Tópicos de vida e obra de Flusser


Pesquisa & Texto da autoria de João Ribeiro de A. Borba
15/07/2021

 

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As várias faces da filosofia de Flusser

A filosofia de Flusser tem diferentes facetas, o conjunto de seu pensamento vai apaparecendo melhor pelo cruzamento dessas diferentes faces que se apresentam em obras de estilo diferente umas das outras. Flusser tem:

  • textos dissertativos mais longos e estruturados, como por exemplo as obras Língua e realidade, Filosofia da caixa preta, A dúvida, Da religiosidade, e o longo O último juízo: Gerações;
  • ensaios curtos e criativos de livre-pensamento sobre pequenos fatos de acesso na vida cotidiana, publicados em jornais ou agrupados em livros com um sentido geral que os atravessa, como por exemplo Natural:mente, Pós-história ou Gestos;
  • uma grande profusão de textos para exposição oral em aulas, seminários e conferências, às vezes agrupados em livros como Comunicologia;
  • livros dedicados ao que ele chamava de "ficção filosófica", fortemente dominados pelos recursos alegórigos, como História do diabo e Vampirotheutys Infernalis; e
  • livros predominantemente marcados por elementos direta ou indiretamente autobiográficos, como Bodenloss, Ser judeu ou Fenomenologia do brasileiro (este último sobre seu contexto de vida em meio à cultura brasileira com relação à qual, como imigrante, se sentia deslocado).

Na verdade, todas essas facetas de Flusser se cruzam em alguma medida em cada um de seus textos, mesmo porque estão inter-relacionados em uma mesma perspectiva filosófica.

No entanto — independentemente das preferências do autor deste site, que tendem a focalizar em primeiro plano Natural:mente, Pós-história, Vampirotheutys Infernalis e Comunicologia, além de diversos textos não-publicados Flusser se tornou internacionalmente famoso por seu livro Filosofia da caixa preta, e é então com base neste livro, apenas situando melhor seus assuntos em relação a debates da história da filosofia aos quais Flusser fazia menção, que desenvolvo aqui estes esclarecimentos que se seguem.

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A filosofia pós-histórica de Flusser

O que vamos tentar fazer aqui é raciocinar como o filósofo Vilém Flusser. Esse filósofo desenvolveu uma concepção de História, uma noção a respeito de como devemos entender as transformações históricas que vão ocorrendo na humanidade.

Segundo ele, estamos vivendo o em uma era pós-histórica, estamos vivendo o fim da história, o fim do progresso, o fim de todos os desenvolvimentos tecnológicos, que já chegaram quase ao máximo que poderiam chegar. Os filósofos da Modernidade (época que começou com Maquiavel e Descartes, no começo do capitalismo, por volta do século XIV,e chegou no seu ápice com o filósofo Kant, no século XVIII), desenvolveram a idéia de que a História da Humanidade progredia de algum modo, sempre com novos avanços.

Essa idéia continuou forte entre os filósofos até o final da década de 60. Então surgiram os "pós-modernos", filósofos que começaram a questionar essa idéia de que estamos sempre avançando ou progredindo, e necessariamente para "melhor". Flusser de certo modo foi um deles, e um dos primeiros.

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O surgimento do ser humano na pré-história

Vamos começar imaginando que estamos na pré-história. Não existe ainda o homem, existe só um bicho que vai se tornar humano.

É difícil saber como um animal se situa no mundo. Podemos, porém, fazer certas conjecturas. O animal não se considera algo da natureza - aliás, ele não "se considera" - ele tampouco existe como um indivíduo independente da natureza — aliás, ele não "existe", porque fazendo uma análise etimológica da palavra existir (ou seja, uma análise da origem dessa palavra), temos: ek-sistere, que quer dizer "estar fora" (podemos nos lembrar do inglês "exit", que quer dizer "saída", e que tem a mesma origem). O homem existe da natureza — no sentido de que está fora dela.

Uma zebra, fugindo de um leão, vê o mundo correndo e pulando à sua volta. Da mesma forma, segundo o psicólogo e educador Jean Piaget, um recém-nascido não tem noção de que seu braço é realmente seu, isto é: não se separa do berço ou mesmo do seio materno, para ele é tudo uma coisa só que se transforma em braço, em berço e em seio.

Ambos (o recém-nascido e a zebra) estão mergulhados num mundo que é, todo ele, feito de tridimensionalidade (de três dimensões, horizontalidade, verticalidade e profundidade), para o recém-nascido e para os animais como a zebra, tudo tem três dimensões.

Nossos antepassados também percebiam o mundo provavelmente desse modo, e a única defesa que tinham contra seus predadores era fugir. Eles precisavam ser rápidos, e isso é difícil no emaranhado de galhos e espinhos da floresta, e por isso desenvolveram quatro mãos, com as quais saltavam de árvore em árvore ao mesmo tempo que abriam caminho pela mata. Mas quando estavam parados, só precisavam de uma dessas mãos para se pendurar... o que faziam, então, com as outras três, que ficavam livres?

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Segundo Flusser, o ser humano é humano porque é alienado da natureza, ou seja, porque ek-siste (existe) como algo fora da natureza. Em seu modo de expressar, que era sempre bem-humorado e ao mesmo tempo bastante dramático, Flusser diria que nesse momento essas mãos não seguram mais galhos, ou o que é bom para comer ou para copular, ou então algo perigoso.

Essas mãos, seus gestos, agora caracterizam uma revolução: flutuam naquele abismo de alienação que se abriu entre o animal e o mundo. Isso porque agora, esse animal que está se tornando homem arranca pedaços do mundo e os traz para a frente dos seus olhos. Flusser diria que a característica essencial da visão é que ela não vê a não ser superfícies. A mão mergulha na coisa, ela se movimenta na terceira dimensão, enquanto o olho reduz tudo à segunda dimensão. Para o olho, nada tem profundidade, tudo se torna superficial, bidimensional, feito apenas de uma dimensão vertical e uma horizontal.

Antes, o animal que está se tornando humano usava os olhos para mergulhar seu corpo na floresta. Agora ele usa suas mãos para mergulhar pedaços da floresta na visão e transform-má-los em imagens, em superfícies que ele examina, olhando primeiro de um lado, depois de outro... o objeto arrancado da natureza se transforma para ele em uma composição de várias superfícies bidimensionais, ou imagens.

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Cultura e linguagem

Agora, o Homem existe: está fora da natureza. Um homem pode imaginar o mundo; por exemplo, talhando um búfalo na parede de uma caverna; um outro pode olhar para esse búfalo e reconstituí-lo em três dimensões na sua imaginação. Entra em cena a comunicação, inicialmente feita através de imagens, e o homem adquire uma nova defesa: a vida em sociedade. Certamente já se comunicavam antes disso com ruídos, mas com as imagens passa a ser possível registrar as idéias, por exemplo em uma parede de caverna, para que outro possa captar essas idéias depois, e assim, passa a ser possível cultivar essas idéias socialmente, mantê-las vivas no grupo. Passa a ser possível uma cultura dos pensamentos comunicados.

Conhecemos no Brasil o termo "cultura" em dois sentidos, o que está ligado aos costumes de um povo de um modo geral e o que está ligado à prática de cuidar do desenvolvimento de algo, como quando falamos de uma cultura agrícola. Aqui, estamos usando os dois sentidos ao mesmo tempo, e mostrando que não são assim tão diferentes, pois a cultura, no primeiro sentido, significa uma porção de coisas que são cultivadas pelos costumes de um povo. Flusser diria que a linguagem está no fundamento de toda e qualquer cultura. É através dela que os costumes passam de pessoa a pessoa, de geração a geração, e vão sendo cultivados.

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As imagens são também uma forma de linguagem

No começo as imagens serviram para nos orientar melhor no mundo, e para compreendermos melhor as coisas do mundo. Mas logo todo um pensamento mágico foi se ligando a essa comunicação por imagens. Quando desenhavam um búfalo primitivo na parede de uma caverna, e desenhavam a si mesmos perseguindo o animal com lanças e depois ferindo-o e derrubando-o, faziam isso em meio a um ritual primitivo de magia, antes de saírem para caçar o búfalo. Acreditavam que essas imagens de algum modo tinham poder mágico sobre a realidade, e iam ajudá-los na caça.

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Da imagem à escrita

Pois bem: a linguagem que fundamentava as primeiras sociedades era constituída de imagens. Com o tempo essas imagens foram sendo rasgadas em pedacinhos que foram sendo alinhados segundo novas regras, ou seja, segundo uma nova espécie de gramática formando uma nova linguagem: a escrita (vejam por exemplo os hieróglifos dos antigos egípcios).

Por exemplo: o "A" que conhecemos, na antiguidade chamava-se "aleph" que era o nome de um tipo de touro ou búfalo. Essa letra era desenhada de cabeça para baixo:

Aleph -

...e se olharmos bem ainda vemos nela o desenho simplificado de uma cabeça de touro, que hoje se desenha com os chifres virados para o chão.

Essa mudança de linguagens, da imagem para a escrita, representa uma revolução muito mais profunda do que pode parecer. Representa o fim da pré-história e o começo de uma visão linear da História. Com essa revolução, o homem começa a perceber os acontecimentos do mundo em linha, em pedacinhos de imagem alinhados.

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As imagens originalmente funcionavam como mapas do mundo (traziam para o homem uma tradução do mundo em esquemas abstratos, orientando-o em sua comunicação com esse mundo). As cartas celestes dos antigos Fenícios, que eram uma espécie de mapa das estrelas, orientavam os navios deles em rotas da antiguidade de uma cidade para outra, por exemplo a rota de Atenas para Cartago, ida e volta. Não importava nem mesmo saber o que eram "estrelas"; o que importava era saber dirigir-se no mar usando as imagens que elas formavam no céu — o que quer que elas fossem. Nesse sentido, parecia que as imagens podiam substituir o mundo, que o homem podia dispensar o mundo em troca de suas imagens, porque as imagens por si mesmo já bastavam. Não era preciso conhecer mais a fundo o mundo.

Com o tempo, principalmente na Grécia antiga, apareceram indícios de que as imagens não serviam tão bem para mapear o mundo como parecia, muito menos para substituí-lo. Um exemplo clássico é o paradoxo de Zenão, de dois mil anos.

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O paradoxo de Zenão

O paradoxo era mais ou menos o seguinte: imaginemos um grande atleta da época, o guerreiro Aquiles, apostando corrida com uma tartaruga. Digamos uma tartaruga muito veloz (mas naturalmente não tão veloz quanto Aquiles) e digamos que a tartaruga parte primeiro. Antes de ultrapassar a tartaruga, aquiles tem que chegar até o ponto onde ela se encontrava quando ele partiu. Chamemos esse ponto de Ponto 0. Durante o tempo que gastou até atingir o Ponto 0, a tartaruga já andou um pouco mais, e já alcançou outro ponto, o Ponto 1, que fica um pouco mais à frente. Então agora, antes de alcançar a tartaruga, Aquiles tem que atingir o Ponto 1... mas quando chegar lá, a tartaruga já terá avançado para o Ponto 2, um pouquinho mais adiante, e assim sucessivamente.

A distância entre Aquiles e a tartaruga pareceria sempre menor, mas matematicamente, serias impossível para ele ultrapassá-la, porque sempre que chegasse no ponto em que ela estava, no mesmo período de tempo ela também já teria avançado alguma coisa, ainda que bem menos, então haveria sempre um novo ponto para Aquiles atingir antes de alcançá-la. Conclusão: é matematicamente provado que a tartaruga, absurdamente, vence Aquiles nessa corrida.

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Mas a experiência prática mostra que isso é absurdo e que Aquiles realmente ultrapassaria a tartaruga! É justamente por isso que dizemos que é um paradoxo: matematicamente seria impossível para Aquiles vencer a tartaruga, mas na prática, é óbvio que é isso o que acontece.

Não que os matemáticos pusessem em dúvida a capacidade do grande Aquiles de vencer uma lerda tartaruga, mas desesperavam-se ao perceber que as imagens não representavam tão fielmente o mundo, porque se imaginavam onde estariam a figura de Aquiles e a da tartaruga primeiro em relação ao Ponto 0, depois em relação ao Ponto 1, depois ao Ponto 2 e assim por diante, isso não dava a eles uma noção realista do que realmente aconteceria numa tal corrida.

Esse problema desesperou os matemáticos gregos até o fim de sua civilização e a ascenção do Império Romano. A dificuldade estava no fato de ainda estarem se apoiando muito em um raciocínio por meio de imagens quando tentavam resolver o problema. Queriam imaginar Aquiles em uma posição, depois em outra, depois em outra, e o mesmo com a tartaruga. Queriam construir uma imagem que representasse bem aquilo que veriam se estivessem assistindo a uma corrida como essa.

A imagem era a forma mais marcante de pensamento, e não é à toa que pouco tempo depois, mesmo tentando escapar a isso e propor uma forma de pensamento bem mais abstrato, Platão ainda usou o termo idéia para exprimir a essência das coisas. A palavra idéia significava imagem. Platão queria superar as imagens propondo uma "imagem pura", captada pelos olhos "da alma", e não pelos da cara, e foi quem introduziu a primeira grande técnica de escrita filosófica (em forma de diálogos entre personagens). Na verdade, sem que se desse conta, estava tentando entrar no caminho da superação do pensamento por imagens e da substituição dele por um pensamento baseado em textos.

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Na revolução que aflorou conforme o texto foi ganhando mais importância, observamos o abandono do pensamento mágico e mitológico e o surgimento cada vez mais marcante da filosofia. A filosofia é discurso por meio de palavras, e nasce no discurso, ganhando ainda mais força com a palavra escrita. A humanidade, nesse período, estava presenciando a passagem do mito à razão, na qual se baseou todo o pensamento ocidental até os dias de hoje. O pensamento racional apoiado no modo de pensar que os textos provocam é mais linear que o pensamento mítico, provocado pelas imagens. É um pensamento histórico, em que uma coisa ocorre por causa de outra, que ocorre por causa de outra e assim por diante, de modo que as coisas vão sendo alinhadas umas depois das outras, como em um texto.

Flusser diria que, mais adiante, depois da Idade Média, a invenção da imprensa e a introdução da escola obrigatória generalizaram a consciência histórica, ou seja, esse modo de pensar alinhador provocado pelo contato com os textos. A partir desse período, todos aprenderam a ler e escrever, passando a viver historicamente — diria Flusser — inclusive camadas até então sujeitas às superstições da vida "mágica": os camponeses se tornaram proletários alfabetizados. É importante lembrarmos que a História da humanidade nasce com a invenção da escrita, e é escrita,é feita de textos que nos explicam como foram as coisas no passado.

Essa conscientização histórica generalizada se deu graças a textos barados: livros, jornais, panfletos. Simultaneamente, todos os textos se baratearam. No modo de Flusser de dizer as coisas, o que ocorreu foi que o pensamento textual barato venceu o pensamento de tipo mágico-imaginístico (apoiado em imagens), produzindo dois efeitos inesperados.

De um lado as imagens se protegiam dos textos baratos, refugiando-se em guetos chamados "museus" e "exposições", deixando de influir na vida cotidiana. De outro lado surgiam textos herméticos dificílimos de se entender (principalmente os científicos), inacessíveis ao pensamento conceitual (textual) barato, a fim de se salvarem da inflação textual galopante. E assim a cultura ocidental se dividiu em três ramos: a imaginação marginalizada pela sociedade (isolada nas artes), o pensamento conceitual herético (feito de conceitos e textos científicos); e o o pensamento conceitual barato dos textos populares que todo mundo lia.

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Em outras palavras: a invenção da imprensa se deu por volta de 1500, começo da Idade Moderna (época de Maquiavel, que retomou o pensamento histórico como forma de se entender a época presente). Essa invenção inflacionou a produção de textos e, conseqüentemente, efetivou a defasagem entre textos populares, como os almanaques e panfletos informativos, e textos eruditos, como os primeiros estudos científicos que tratavam de temas específicos.

Aqui temos os textos de Descartes (pouco tempo depois de Maquiavel) como os mais representativos desse discurso erudito. Descartes nunca se preocupou em escrever para o "populacho". O texto popular só se encarrega de repetir e divulgar de forma simplificada o conhecimento. Descartes ao contrário, como todo bom erudito, se encarregou de aperfeiçoar cada vez mais o conhecimento do mundo, e não de simplificá-lo e divulgá-lo.

Os textos populares repetem direta ou indiretamente os modelos que os textos eruditos — como os de Descartes — criam para compreendermos o mundo. Já vimos que os modelos da antiguidade, baseados em imagens, criavam paradoxos que deixavam os matemáticos desesperados, como o de Aquiles e a tartaruga. Descartes, que era de uma época muito mais mergulhada no pensamento textual, conceitual e histórico, aperfeiçoou um certo tipo de texto que já existia, até torná-lo capaz de criar uma solução para aquele antigo paradoxo. Esse tipo de texto de que estamos falando, e que foi aperfeiçoado por Descartes, se chama Geometria Analítica.

De que modo Descartes aperfeiçoou a Geometria Analítica para conseguir resolver o paradoxo de Aquiles e da tartaruga? Sua primeira providência foi parar de tentar imaginar (visualizar mentalmente) as figuras de Aquiles e da tartaruga correndo. Quando os gregos antigos partiam da imagem dessas duas figuras correndo na mesma direção, eram levados a representar essa corrida como se ela acontecesse ao longo de uma mesma linha reta, já que na realidade é como aconteceria (Aquiles e a tartaruga correndo na mesma direção) e que era preciso de algum modo fazer uma imagem que imitasse essa situação e a transportasse para dentro da matemática.

Descartes já não está preocupado em fazer uma imagem que imite a situação tal como nós a veríamos se assistíssemos a essa corrida. Para ele, a imagem da coisa já não interessa, ela já não ajuda a compreender a realidade. Para compreender a realidade é preciso, ao contrário, superar a imagem e representar as coisas de uma maneira mais abstrata sem querer imitar o modo como as veríamos com os nossos olhos.

Assim, Descartes constrói um gráfico cartesiano onde temos as distâncias percorridas por Aquiles e pela tartaruga assinaladas por uma das coordenadas, e o tempo em que percorrem essas distâncias assinalado por outra das coordenadas. Podemos primeiro traçar a linha que representa o movimento da tartaruga, assinalando seu ponto de partida e a que distância ela deve estar dele a cada momento. Depois, no mesmo quadro, podemos traçar a linha que representa o movimento de Aquiles, com seu ponto de partida e a que distância ele deve estar desse ponto de partida a cada momento. O resultado são duas linhas que se cruzam em um certo ponto, que é o ponto em que Aquiles ultrapassa a tartaruga. Desse ponto em diante, ele já está à frente da tartaruga.

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Aquiles e a tartaruga

 

A linha que representa o movimento da tartaruga começa já no ponto 20 de distância, ela começa bem na frente. A linha que representa o movimento de Aquiles começa atrás, no ponto zero de distância. Os dois movimentos se cruzam no momento 2: é o momento em que Aquiles ultrapassa a tartaruga.

As linhas que representam os movimentos de Aquiles e da tartaruga já não são mais imagens que procuram imitar esses movimentos. Basta observar que na realidade, o que vemos é Aquiles e a tartaruga correndo na mesma direção, seguindo uma mesma linha, e no gráfico as linhas apontam em direções diferentes e se cruzam.

Mas essas linhas cartesianas, que são mais abstratas e se parecem bem menos com os trajetos reais dos dois, no final das contas, representam melhor o que se passa na realidade do que aquela linha em que os matemáticos antigos imaginavam as figuras de Aquiles e da tartaruga em diferentes posições
Esse texto aperfeiçoado por Descartes que se chama Geometria Analítica tem uma peculiaridade: ele reduz tudo a cálculo.

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O que é um cálculo?

Se seguirmos a origem da palavra, que vem do latim, se examinarmos o que ela queria dizer originalmente, veremos que um cálculo é uma "pedrinha", como quando dizemos que temos um "cálculo no rim". Antigamente, usava-se pedrinhas alinhadas para fazer contagens e medir quantidades. Daí surgiu o ábaco, ferramenta de cálculo feita de pedrinhas perfuradas e atravessadas em arames (como nas contagens de pontos em alguns salões de sinuca nos dias de hoje). Surgiram também colares que, com um código de nós, armazenavam informações, como um telégrafo.

Segundo Flusser, a noção geométrica de ponto nasceu de uma espécie de representação do cálculo, pensado como pedrinha usada para se fazer as contas. Com Descartes, passamos a fazer as contas usando pontos no gráfico, e esses pontos podem ser compreendidos também como cálculos matemáticos. Desta forma, como em um telégrafo, Descartes elaborou um método para calcular textos e imagens, isto é, reduzí-los a pontos. Na verdade, graças a ele, hoje uma maneira usual de se apresentar um certo conjunto de pontos qualquer é, justamente, apresentar os cálculos (matemáticos) a partir dos quais podenmos gerar esses pontos.

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É claro que Descartes não dizia que era exatamente isso o que estava fazendo: Flusser é quem interpreta Descartes desse modo. O que Flusser nos diz é que quando Descartes decidiu calcular as coisas, transformá-las em cálculos, no fundo estava procurando reduzí-las a pontos tão mínimos que fossem indivisíveis, como se fossem "duros" e não pudessem ser "quebrados" em pedaços menores que isso, ou seja, "pedrinhas" fundamentais.

Descartes jamais admitiria isso: para ele os pontos são abstratos, são indivisíveis porque não ocupam nenhum espaço, são a-dimensionais, não têm dimensão nenhuma, nem altura, nem largura, nem profundidade, então não podem ser divididos em alturas menores, em larguras menores, em profundidades menores, porque já não têm nada disso, não podem ser menores do que já são.

Mas o que o Flusser diz é que por detrás desse modo de pensar de Descartes o que existia era na verdade a ânsia de buscar algo que fosse inquebrável, indivisível, algo que fosse como uma pedrinha tão sólida que não pudesse ser quebrada de jeito nenhum. Isso parece condizer com a obsessão que Descartes tinha pela segurança e pela certeza. Descartes foi desde criança uma pessoa de saúde frágil, vivia doente, e tinha medo de morrer. Queria dar bases sólidas para a ciência se desenvolver, e sua maior preocupação era com a medicina.

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Flusser e o "Eu" cartesiano

Voltemos a Flusser. O que nos interessa a respeito de Descartes aqui é que ele procurou reduzir tudo a cálculos que desembocavam em pontos no gráfico cartesiano (que é "cartesiano" justamente porque foi criado por ele, Descartes). Descartes chegou a "calcular' nesse sentido (ou seja, a transformar em um ponto fixo, sólido e inquebrável) o próprio "Eu" do ser humano. Montaigne, que era da geração anterior a Descartes (e da geração posterior a Maquiavel), foi um filósofo cético bastante famoso, e espalhou por toda a Europa uma porção de dúvidas a respeito disso que estamos acostumados a chamar de "Eu": será que existe realmente alguma coisa que seja uma só e sempre a mesma e que possamos chamar de "Eu", ou isso não passa de uma ilusão?

Afinal, se observarmos a nossa psique, a nossa mente (ou a nossa "alma", como era mais comum dizer naquela época) perceberemos que mudamos o tempo todo e que somos feitos de muitas partes diferentes e que muitas vezes se contradizem. Como podemos dizer que existe verdadeiramente alguma coisa que seja sempre a mesma e uma só por detrás disso que chamamos de "Eu"?

Descartes quis responder a isso, e chegou à idéia de que o "Eu" era um ponto fixo do qual era impossível duvidar. Isso porque quando duvidamos de alguma coisa, já estamos ao mesmo tempo colocando o nosso "Eu", a nossa "alma", o nosso "pensamento" em movimento, então não é possível duvidar de que "Eu existo", porque ao duvidar já estamos pensando, e o que é que está pensando? O que é que está duvidando? — O próprio "Eu". E Descartes então declara que descobriu uma verdade inquestionável: a de que é impossível duvidar do fato de estar duvidando, ou seja, de que é impossível duvidar que existe algo ou alguém que está praticando justamente esse ato de duvidar. "Penso, logo existo", diz Descartes.

O que Flusser nos diz é que essa busca de Descartes, desesperado para encontrar um "ponto fixo", uma "certeza inquebrável" no fundo da alma, não é uma busca só dele. No fundo é a busca de toda a civilização ocidental, que foi tão influenciada pelo judaísmo, pelo cristianismo e pelo islamismo. É uma busca da alma, uma busca que está presente na história da humanidade há séculos e séculos em todos os que acreditam que exista uma alma ou querem acreditar que exista, e em todos que não acreditam mas indiretamente foram influenciados por um mundo de pessoas que acreditam ou querem acreditar. Em Descartes isso veio à tona. Mas é um sentimento geral da humanidade.

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As origens da busca do "Eu" e a perdição do mergulho na abstração

E de onde essa busca nasceu, nessas religiões que marcaram tanto a civilização ocidental? Como essas religiões foram se interessar por isso?

Segundo Flusser, a origem disso é ainda mais antiga: está na pré-história, naquele primeiro movimento do animalzinho que ia tornar-se homem, aquele movimento de arrancar algo da natureza usando a mão desocupada e trazer esse algo até os seus olhos, porque nesse movimento ele começa a pensar mais abstratamente do que os outros animais, começa a abstrair a dimensão da profundidade dessa natureza à sua volta e a ver as coisas como se fossem composições de imagens feitas só de duas dimensões. E nesse movimento, esse animalzinho, ao tornar-se humano, perdeu um pouco do seu contato com a natureza, que tem uma dimensão a mais (a profundidade).

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Insegurança na perda do útero natural da humanidade

Conforme o ser humano foi se desenvolvendo, essa distância em relação à natureza foi aumentando, e o ser humano passou a tentar reencontrar-se com o mundo, recuperar a segurança que tinha de estar realmente no mundo. Primeiro tentou recuperar isso através de imagens que o ajudavam a orientar-se no mundo, depois essas imagens começaram a não ajudar mais, e foram rasgadas em textos (especialmente os textos científicos), que deveriam servir para ele compreender melhor a natureza, voltar a entrar em contato com ela e não se sentir tão perdido.

Mas também não deu muito certo... com a ciência veio a tecnologia e vieram seus resultados: pavimentamos o chão (nos afastamos da terra), cobrimos a pele com roupas, o horizonte com construções, apagamos a noite com luzes artificiais que não nos deixam mais ver as estrelas etc. Conforme foi se afastando cada vez mais da natureza, o ser humano foi encontrando um refúgio numa parte da natureza que ainda não parecia perdida, porque estava dentro dele: a própria natureza humana, a "alma", o "Eu" etc.

Este mesmo objeto de busca foi sacralizado e mitificado pelo judaismo e pelo cristianismo ainda na antiguidade. Mas bem mais adiante, no Renascimento, o filósofo Montaigne deu um belo susto na humanidade em relação a isso, com suas dúvidas céticas. Alguém precisava responder e recuperar a esperança de encontrar um refúgio seguro na alma. Foi o que Descartes quis fazer.

Segundo Flusser, esse caminho do mundo tridimensional em que vivíamos originalmente até o mundo calculado em que vivemos hoje, é o percurso da História da Humanidade. Nossa História é uma história de uma perda cada vez maior das dimensões da realidade (ou seja, do mundo natural). Primeiro perdemos a profundidade e mergulhamos num mundo de imagens. Tentamos usá-las pare recuperar o mundo natural de três dimensões mas não conseguimos, ficamos presos às imagens. Então começamos a "rasgá-las" e alinhá-las em textos tentando reencontrar algo mais "profundo" por detrás delas. Criamos teorias. Tudo em busca da recuperação dessa segurança perdida, da recuperação de nossa situação original de imersão no mundo natural.

Esse processo de avanços paradoxais para longe da natureza tentando reencontrá-la não foi tranqüilo nem aconteceu por igual e por completo em todas as áreas do nosso pensamento: o pensamento por imagens reage contra o pensamento textual. Existe uma oposição entre eles, e aos poucos vão chegando numa síntese, que parece ter começado com uma vitória do texto. Mas acabamos presos às teorias (produtos do pensamento textual) e ao mundo técnico que surgiu como resultado delas, que nos afastou ainda mais da natureza, e nos dias de hoje isso deu forças para um retorno do pensamento mágico e imaginístico (apoiado em imagens).

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Do texto ao cálculo

No tempo de Descartes o texto ainda estava em ascensão. Os textos (com que construímos nossas teorias) já não têm as duas dimensões que existiam nas imagens: eles só têm uma dimensão, são só uma linha que se prolonga indefinidamente, são um alinhar de coisas.

Descartes conseguiu ir ainda mais longe: despedaçou os textos em uma espécie de texto "mais puro" feito apenas de cálculos, textos (alinhados) que podem ser sempre reduzidos a pontos. Pontos não têm nem aquela única dimensão da linha do texto: são a-dimensionais, sem dimensão nenhuma. Agora estamos vivendo um momento de síntese em que construímos imagens compostas a partir de cálculos (pontos, pixels, como se diz na informática), e chegamos a esses cálculos através de teorias (textos). É o mundo das imagens técnicas, imagens nascidas indiretamente de textos.

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O desenrolar da história da humanidade: o mundo imagético

Vamos voltar um pouco para entendermos melhor toda essa visão de Flusser de como se desenrola a História da Humanidade.

Como já vimos, o homem no início transformava o mundo e as coisas do mundo em imagens bidimensionais; ou mais precisamente, se tornava homem justamente na medida em que passava a tratar o mundo e as coisas como se fossem feitos de imagens bidimensionais, raciocinando mais abstratamente do que os outros animais em geral, abstraindo a noção de que havia uma profundidade onde ele estava mergulhado, e passando a raciocinar como se estivesse entre imagens, olhando para elas, diante delas, o que significa também fora delas, e já não mais como se estivesse dentro das coisas, mergulhado na profundidade delas.

Façamos um esforço para tentar sentir as coisas como os primeiros homens provavelmente as sentiam. Sua visão corria nessas imagens bidimensionais do mundo e das coisas do mundo, estabelecendo entre as partes de cada imagem relações temporais, isto é, um pedaço dessa imagem vinha antes e outro vinha depois.

Mas nessas relações temporais, sempre era possível voltar ao que tinha vindo "antes", porque a imagem estava ali, parada, para ser apreciada, e o olhar podia passear pelas partes dela várias vezes (imaginem um primeiro animalzinho quase-humano observando curioso uma fruta ou uma pedra em sua mão de todos oso ângulos). O mundo todo, inclusive, era pensado em conjunto dessa maneira, como uma grande imagem.

Assim, O dia vinha magicamente antes da noite e a noite antes do dia, formando um ciclo interminável em que as coisas não se explicam (ou melhor, uma coisa explica a outra e a outra explica essa uma circularmente, e não é preciso ir além disso), e elas também não "vão embora", porque podemos sempre voltar a elas. A noite que vem não é outra noite: é a noite que está de volta, como se fosse a mesma noite aparecendo de novo. Por isso o mundo era vivido magicamente, como se a vida fosse um grande ritual, feito de outros pequenos rituais, que se repetiam incessantemente. O cotidiano das pessoas, como todo o resto, seguia rituais circulares que não precisavam de explicações maiores além de constatações mágicas, divinas ("veja" como milagrosamente a noite surge sempre outra vez depois do dia, e o dia depois da noite!).

Assim foi surgindo a idolatria, ou seja, aquilo que Flusser diz ser a fé na verdade das imagens. As coisas são assim como vemos e essa é a verdade. As imagens imitam o mundo e por isso nos ajudam a ver a verdade e a nos relacionarmos de verdade com o mundo. Mas aos poucos o homem foi começando a acreditar mais na força das imagens do que na realidade que elas deveriam imitar. Na era da idolatria, cantar e dançar à noite ao redor imagem do sol nascendo podia ser um ritual sagrado, porque a força dessa imagem do sol nascendo podia garantir que o sol realmente nasceria de novo depois da noite.

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O desenrolar da história da humanidade: o mundo textual

Quando as imagens começaram a não corresponder exatamente ao que acontecia realmente na natureza e os homens começaram a se perder no mundo apesar de terem nas mãos esses mapas mágicos que eram imagens abstraídas do mundo e das coisas do mundo, alguns buscaram entender o que estava acontecendo, e procuraram entender melhor as imagens organizando suas figuras componentes em relações de causa e efeito.

No caso da imagem geral de como era o mundo, isso significava abrir e alinhar aquela sucessão de fenômenos repetitivos da natureza que estavam representados nessa imagem de como era o mundo. O dia e a noite, por exemplo, deixaram de simplesmente virem um após o outro, como entes divinizados que seguiam sempre um mesmo ritual, e transformaram-se em uma relação da causa ausência ou presença do sol e do efeito ausência ou não de luz, relação que por sua vez proporcionaria o calendário, que por sua vez permitiria acompanhar a evolução das colheitas, o que por sua vez ocasionaria a fome ou a fartura, e de assim em diante, numa linha infinita de fatos que os homens iam começando a compreender agora acumulados em uma visão histórica, linear.

Mais adiante, ocorre uma reação do pensamento mágico e imaginístico, que renasce dentro do mundo técnico e teórico criado pelo próprio pensamento textual, e misturando-se parcialmente com ele. Isso ocorre com a invenção da câmera fotográfica, e depois do cinema e da TV.

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A dialética entre imagem e texto

Para Flusser, então, a história nasce e se desenvolve a partir desse conflito entre o pensamento baseado em imagens e o pensamento baseado em textos. E essa luta dialética entre as duas maneiras de pensar vai assumindo diferentes formas ao longo da história.

Na Idade Média, essa oposição dialética assume a forma de uma luta entre o cristianismo (textual) e o paganismo (imaginístico).

A Reforma protestante, no início do capitalismo, antepunha-se por um lado às imagens ideológicas e idólatras da Igreja Católica; e por outro, procurava espalhar os textos bíblicos pela população camponesa (textos que deviam ser o fundamento de uma fé íntima, uma certeza ancorada na alma, ou seja, na natureza humana como criatura superior de deus). Podemos dizer que a Reforma pretendia arrancar o texto das mãos do Papa e da alta hierarquia católica, e "textualizar" a fé do povo, que é a pedra fundamental do Cristianismo, para afastá-la do perigo do pensamento mágico (por imagens) que era tipicamente pagão. Deste modo, os protestantes transformaram a estrutura da fé, no início do capitalismo.

Já na Idade Moderna que nasceu e evoluiu a partir daí, a oposição dialética imagem-texto se dá, segundo Flusser, entre a ciência (textual) e a ideologia (imaginística). Vemos isso na enorme ascensão da ciência política por um lado, e das ideologias políticas de outro. A ciência política, grande crítica de seu tempo e defensora da modernização da sociedade, que se deu na luta contra as ideologias da nobreza e do rei absoluto, inscritas nas várias camadas sociais basicamente em "imagens", tais como o "sangue azul" e o "direito divino". Em oposição a isso, a ciência política procurava mostrar o que havia (e especialmente o que não havia) de realmente verdadeiro em tudo isso, que eram imagens aceitas sem discussão e sem questionamento.

O Iluminismo, movimento que buscava difundir na população as "luzes da razão" e cujo representante mais importante foi o filósofo Kant (séc. XVIII), foi o apogeu do texto, o ponto máximo do pensamento textual, portanto da ciência com seus resultados tecnológicos e técnicos e da consciência histórica. A "luz" que se lançava da razão sobre as obscuras idolatrias e ideologias irracionais, esclarecendo uma imagem de mundo outrora mergulhada nas trevas medievais, era nada mais, nada menos do que o uso generalizado e intenso da linguagem textual, ainda que bastante contaminada pela linguagem imaginística e tentando livrar-se dela (a própria imagem de "luz" para se referirem à razão era já o sintoma de uma certa contaminação pelo pensamento imaginístico que os Iluministas queriam tanto combater).

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A textolatria

Os Iluministas combateram o pensamento imaginístico... mas do apego a esse combate surgiu aos poucos a textolatria: o homem passou a adorar os textos e a ter mais fé na força deles do que na própria realidade que eles tentavam descrever, de forma que passamos a acreditar mais no que as teorias científicas diziam a respeito do mundo do que naquilo que vivíamos diretamente no mundo, e a balança das oposições dialéticas começou mais uma vez a virar.

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O surgimento das imagens técnicas

Surgiu a necessidade de novas imagens que decifrassem as verdades para nós, porque começamos a desconfiar — com razão — dos textos, que ao invés de nos colocarem mais em contato com a natureza nos afastaram ainda mais dela, produzindo toda uma parafernalha técnica e tecnológica entre nós e a natureza. Deixamos de comer a fruta no pé, passamos a tomar o suco em pó, tecnologicamente produzido... e daí por diante.

Nasceram então as fotografias, que Flusser chama de imagens técnicas, imagens produzidas com base em textos teóricos: textos da Ótica, que é uma parte da Física, da Mecânica, que é outra, e da Química — tudo isto está presente em uma fotografia, por detrás dela, para que ela possa existir. Mas nos esquecemos disto. Passamos a acreditar cada vez mais nas fotografias, mais do que em um texto (como se não houvesse texto também por detrás delas).

O que parece mais confiável: um texto que descreve uma praia ou uma fotografia dessa praia? A resposta mais comum desde as últimas duas ou três gerações, em qualquer parte do mundo alfabetizado, seria que a fotografia é mais confiável.

Mas não era assim que pensavam as pessoas da época em que a fotografia havia acabado de ser inventada, em meados do século XIX, e ainda não era algo tão habitual. Um texto parecia naturalmente muito mais confiável.

Isso mudou, e as fotografias começaram aos poucos a parecer uma espécie de "prova" de que as coisas eram realmente do modo como estavam sendo descritas. Mas o fato é que aquele mar belamente verde que aparece na foto de uma praia certamente não é verde daquele modo, porque aquele não é o verde da praia: aquele é o verde da Kodak — ou de seja qual for o laboratório responsável pelo filme utilizado, e seja qual for a química aplicada na fabricação desse filme.

Perceba-se que nessa última reação das imagens, que nos trouxe a fotografia, o cinema e a TV, elas se misturaram bastante com elementos oriundos do pensamento textual, das teorias e de seus resultados técnico-tecnológicos.

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A crise das imagens técnicas

Atualmente (e este texto é escrito em 2021), raciocionando à maneira de Flusser, podemos dizer que as técnicas de manipulação artificial das imagens por computador estão tão difundidas que estamos, mais uma vez, perdendo a crença em nossos "mapas" visuais de acesso ao mundo. Começamos a enxergar a empresa produtora da câmera, por exemplo, e as manipulações possíveis, por detrás de qualquer fotografia que pareça muito natural.

Hoje esse processo de descrença parece estar se radicalizando, e as coisas estão mudando mais uma vez: com a informática e ainda mais radicalmente com a Internet, há uma nova reação do texto. Mas bastante fraca: ele agora parece fundir-se com as imagens e compor-se com elas. Textos são utilizados como se fossem imagens, ganham cores e formas, e imagens são utilizadas como se fossem textos, ganham significados e remetem a outras idéias através de "links" formando "hipertextos".

O novo alinhamento de imagens-textos já não é bem um alinhamento, já não é exatamente uma forma de raciocínio linear, mas uma rede de alinhamentos de imagens e textos que formam uma composição, que por outro lado também já não é exatamente circular e estática como nas antigas imagens. Está se formando um raciocínio que não é linear, histórico, conceitual, racional; nem tampouco é mágico, circular, ritual, repetitivo: trata-se de uma mentalidade computadora, um pensamento de tipo compositivo, que compõe redes de relações que vão em múltiplas direções.

É que, segundo Flusser, essa longa cadeia de oposições dialéticas entre a Imagem e o Texto está finalmente atingindo uma espécie de síntese, e portanto está chegando ao fim, e a antítese que pode nascer futuramente dessa síntese será provavelmente uma outra coisa completamente diferente de tudo o que conhecemos até agora.

Se Flusser estiver certo, não há mais base para um pensamento histórico de tipo linear como o tradicional, porque daqui para a frente estaremos começando a desaprender a pensar históricamente e linearmente, e começando a aprender a pensar compositivamente unindo imagem e texto. Neste caso, tudo o que até hoje estamos acostumados a entender como História provavelmente deve acabar desaparecendo ou ao menos sofrendo uma grande transformação, transformação em que já é possível prever ao menos uma coisa: já não faz mais sentido pensar que o futuro é um só e que a história avança como uma linha em que a humanidade progride (ou avança) sempre em uma única direção.

Logo já não será mais possível fazer "a história" da humanidade, e talvez tenhamos que começar a pensar em muitas "histórias" paralelas, ou deixar essa forma de conhecimento ser absorvida por alguma outra, talvez a sociologia ou (como seria mais do feitio de Flusser dizer) a cibernética aplicada às relações humanas... e uma vez absorvida, desaparecer.

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