Pesquisa & Texto da autoria de João Ribeiro de A. Borba

Primeira revisão Jan/2021

 

sumário


 

Heráclito: fluidez, contradição e conflito em todas as coisas,
e a busca da unidade na multiplicidade

 

Qual a principal herança do pensamento heracliteano para a filosofia?

A principal herança heracliteana foi a idéia de que tudo muda, tudo flui, a valorização da multiplicidade, da pluralidade e a idéia de que nessa multiplicidade de coisas em transformação, tudo está em contradição, tudo está em conflito e nada concorda completamente com nada.

Para Heráclito, as coisas estão em conflito umas com as outras porque para que uma exista, ela precisa ocupar o lugar que estaria ocupado por outras se ela não existisse (e aqui o pensamento de Heráclito se aproxima daquele de um outro filósofo anterior, Anaximandro).

Mas além disso Heráclito diz que cada coisa está em conflito com si mesma, cada coisa que existe é contraditória por dentro. Como isso é possível?

sumário

É que segundo Heráclito (ao contrário do que diz o filósofo Parmênides) não é possível afirmar que uma coisa simplesmente "é" ou "não é" de tal ou tal maneira. As coisas não "são", como se fossem estáticas, paradas no tempo: elas "estão sendo" de uma maneira e ao mesmo tempo "estão deixando de ser" de outra maneira. Esse movimento pode ser rápido e claramente perceptível, mas também pode ser lento, tão lento que ficamos com a impressão de que elas de fato "são" (fixamente) de tal ou tal maneira. Entretanto neste caso é apenas uma impressão nossa, porque não estamos sendo capazes de captar o processo de mudança, de tão lento que ele é. O processo de qualquer modo está lá, está acontecendo. A coisa está mudando.

E se acoisa está mudando, isso quer dizer que ela está deixando de ser o que era e passando a ser o que será no futuro. Segundo Heráclito, aquilo que ela está deixando de ser está em conflito com aquilo que ela está passando a ser, assim como num adolescente o que ainda existe de criança e o que já existe de adulto estão em conflito.

Se olharmos para o passado da coisa que está em transformação, ela contraditoriamente "é e não é" ao mesmo tempo aquilo que ela era, porque parcialmente já deixou de ser, e parcialmente ainda é. E se olharmos para o futuro dessa mesma coisa ela também está em contradição, porque ela "é e não é" ao mesmo tempo aquilo em que está se transformando: até certo ponto já é, e até certo ponto ainda não é.

É por esse raciocínio que Heráclito nos afirma que as coisas no mundo estão em conflito por dentro, que elas são internamente contraditórias com si mesmas.

sumário

 

O que é a verdade para Heráclito? E como atingi-la?

Para Heráclito, a verdade seria o conjunto de toda essa multiplicidade de coisas em transformação e contraditórias umas com as outras que forma o mundo. Então, para captá-la, seria preciso o que hoje chamamos de uma visão global ou visão de conjunto (alguns preferem dizer uma visão holística) de tudo isso.

sumário

 

Como deve ser a relação entre unidade e multiplicidade segundo Heráclito?

Uma visão de conjunto é uma, é um modo de se perceber o conjunto, e portanto também tem uma certa unidade. Assim, é possível dizer que os heracliteanos buscam a unidade nessa multiplicidade das cpoisas que existem.

Mas por isso mesmo, para os heracliteanos, é preciso tomar o cuidado de não supervalorizar a idéia de que é uma visão de conjunto e não acabar desvalorizando a multiplicidade das coisas que existem ou até fazendo-a desaparecer como se essa "visão de conjunto", que é algo que ocorre só nos nossos pensamentos, fosse "mais verdadeira" do que a multiplicidade em sua totalidade, ou seja, do que a própria realidade em seu conjunto, porque nosso próprio pensamento, no qual estamos formando essa "visão de conjunto", é apenas uma pequena parte dessa realidade.

Em outras palavras, é preciso tomar cuidado para não deixar a "idéia" que formamos do conjunto da realidade em sua multiplicidade, transformar-se em uma unidade no sentido de Parmênides, como se fosse "absolutamente verdadeira" só por ser uma unidade e justamente por isso. A verdade está no conjunto de toda a multiplicidade das coisas. A ideia unificada que formamos desse conjunto no nosso pensamento é apenas uma ideia, que está dentro do conjunto das coisas que existem.

sumário

 

Os dialéticos são herdeiros de Heráclito?

A dialética é a herança heracliteana que passou pelo maior número de discussões e estudos ao longo da História, a começar por alguma influência heracliteana que atingiu consideravelmente Platão e que chegou a influenciar até certo ponto Aristóteles. Depois essa herança reapareceu nos idealistas alemães pós-kantianos, Fichte, Schelling e especialmente Hegel, considerado o fundador da dialética atual, passando depois para Marx e seus seguidores, que com a participação também de pensadores anarquistas (em especial Proudhon, Stirner e Bakunin), construiram um imenso campo de debates em torno da dialética, de seus limites e de suas diferentes interpretações e concepções possíveis.

Contudo os dialéticos não são os únicos herdeiros do pensamento heracliteano. Podemos encontrar forte herança de Heráclito nos pensamentos de Nietzsche, Bergson e Heidegger, cada um interpretando Heráclito à sua maneira. Mas também nos pensamentos de diversos outros existencialistas diferentes de Heidegger, especialmente no modo como tratam as questões do "instante" e do momento presente "aqui e agora" como um momento fluido e passageiro, impossível de fixar.

sumário

A visão de conjunto dos heracliteanos, não obstante, está mais presente nos dialéticos. É como a visão de um grande campo de batalhas em que tudo está em luta, ou de um grande jogo com milhões e milhões de competidores. Para falar dessa visão global que precisamos ter do grande campo de confrontos que é o mundo, Heráclito, também falava sim em uma "unidade", mas dizia que era preciso buscar a unidade na multiplicidade e a multiplicidade na unidade, sem nunca esquecermos que essa unidade é feita de múltiplas coisas.

Os dialéticos de hoje, que são herdeiros de Heráclito, chamam essa visão do conjunto de totalidade sintética: a totalidade de todas as coisas em constante transformação e contraditórias umas com as outras que formam o mundo, ou o resultado total de tudo isso.

Pode-se dizer que a unidade da multiplicidade de que os heracliteanos falam é o ponto de vista do general diante do mapa onde planeja sua estratégia, e não o do soldado que está no campo e não vê o conjunto. Por isso é que dizemos que há uma "unidade" nessa multiplicidade: estamos falando da totalidade dos conflitos envolvidos.

É importante notar que nessa luta ou nesse jogo não existem apenas dois exércitos ou dois "times": tudo está em luta contra tudo, como num jogo de futebol onde não existem times e cada um joga por si mesmo, ou então existem muitos times jogando ao mesmo tempo, e os times mudam, os jogadores podem começar a "jogar contra" e mudar de time no meio do jogo. Não é à toa que costuma ser difícil entender a dialética: para os dialéticos, a própria realidade é complicada, se entendermos bem o sentido dessa palavra... as coisas estão todas co-implicadas, cada uma implica as outras ao redor e vice-versa, num enorme jogo de teses e antíteses entrelaçadas.

sumário

 

Os dialéticos e os heracliteanos estão ligados a uma filosofia do tempo?

Para entendermos melhor o pensamento dialético, vamos começar pela noção de que tudo flui, tudo muda constantemente. Heráclito dizia que não é possível a gente se banhar duas vezes no mesmo rio, porque da segunda vez, as águas passaram e o rio já não é mais o mesmo.O tempo não volta para trás.

As águas do rio eram uma metáfora muito comum na época para se falar da vida, do rio da vida que vai passando, com a idéia de que o que passou, já passou e não volta mais, as coisas já se transformaram, a situação já mudou. É difícil acompanhar esse fluxo das coisas, porque nos apegamos a elas do modo como estão agora, e não vemos o tempo passar.

Mas o tempo sempre passa, implacavelmente, e não temos como impedir que as coisas mudem, a não ser que a gente se iluda imaginando em nossa fantasia que as coisas ainda são do mesmo modo que eram. Caimos nessa ilusão o tempo todo, tentando "imobilizar" as coisas do jeito como elas são.

Fazer isso, imaginar as coisas "imobilizadas" fora desse fluxo constante de transformação delas, é entrar em um pensamento abstrato, é abstrair as coisas do seu contexto fluido, como se recortássemos imaginariamente uma porção da água que está passando em um rio para examinarmos essa porção passando na nossa mão, fora do rio. O pensamento abstrato pode até ser útil em alguma medida, mas não podemos nos deixar levar por ele como se fosse a própria verdade das coisas.

sumário

Mas não é só nessa fluidez do tempo, passando a cada instante, que encontramos a filosofia dos dialéticos e dos heracliteanos sobre o tempo. Porque para Heráclito, quando tomamos distância para examinar as coisas de um ponto de vista mais global, nos tornamos capazes de perceber grandes ciclos que ocorrem na multiplicidade fluida das coisas.

Por exemplo: se não conseguimos captar com precisão a realidade das águas de um rio quando estamos dentro dele, porque essas águas estão passando, por outro lado se tomarmos bastante distância poderemos captar o conjunto todo do ciclo das águas. Elas descem da montanha com o rio, vão para o mar, evaporam com o calor, formam nuvens no céu, vão para a montanha com o vento e se condensam, e então chovem, descendo de novo pelo rio, e assim por diante. Um dos ciclos da natureza.

Embora esses ciclos nunca se repitam exatamente e rigorosamente iguais, continuam sendo ciclos, repetições aproximadas, semelhantes umas às outras.

Os dialéticos e outros descendentes do pensamento de Heráclito costumam ter essa compreensão de que as coisas no correr do tempo acontecem não só de maneira fluida e impossível de captar com precisão, mas ao mesmo tempo de maneira circular e aproximadamente repetitiva, com "giros" ou "reviravoltas" parecidas umas com as outras e em alguma medida comparáveis –– o que ajuda a refletir a respeito delas.

O tempo corre de uma maneira fluida, contínua e difusa, mas ao mesmo tempo girando em ciclos em que as coisas se repetem de maneira aproximada ou parecida.

sumário

 

O que os heracliteanos dizem sobre
as palavras e os nomes que damos às coisas?

Quando damos um nome para uma coisa e continuamos tratando-a por esse nome porque reconhecemos que ela continua sendo "a mesma" coisa, na verdade estamos presos a uma ilusão, porque se a examinarmos direito perceberemos que a coisa está mudando, mesmo que seja bem lentamente.

Embora a gente não se dê conta, quando fazemos isso, quando tratamos as coisas como se elas fossem sempre as mesmas (e fazemos isso o tempo todo), estamos pensando abstratamente; em outras palavras, fazer isso é abstrair (extrair, subtrair, tirar) o nosso pensamento do mundo (imaginariamente, porque na verdade é claro que ele continua sendo parte do mundo), e ficar parado no tempo, apegado à mesma velha imagem que estávamos acostumados a fazer das coisas, enquanto o mundo na verdade está mudando debaixo do nosso nariz (e mesmo que não percebamos, nós mesmos estamos mudando junto, porque também somos parte do mundo).

sumário

 

O pensamento heracliteano costuma incomodar os lógicos?

Existe uma coisa nessa idéia do fluxo do mundo dos heracliteanos que incomoda bastante os lógicos, e este é um ponto em que os herdeiros da lógica aristotélica ficam igualmente incomodados: além de ser uma ideia contrária ao princípio lógico da identidade (que diz que uma coisa não pode ser contrária a si mesma), parece difícil explicar aonde o fluxo das coisas começa e aonde ele acaba.

Se tudo se transforma, se uma coisa está se transformando na outra, como é que vamos conseguir dizer, no meio desse fluxo de transformação, que existe uma coisa de um lado e outra coisa de outro?

Será que no fundo tudo é uma coisa só, uma mesma grande massa de transformações, um mesmo grande processo que não tem começo nem fim?

Mas então como é que os heracliteanos podem dizer ao mesmo tempo que existe uma multiplicidade de coisas, diferentes umas das outras e até contraditórias umas com as outras?

sumário

rodapé