Pesquisa & Texto da autoria de João Ribeiro de A. Borba
sumário
Vaihinger formou-se inicialmente em Teologia (portanto estudando filosoficamente a ideia de Deus e outras noções de interesse religioso relacionadas a isso). Era aluno bolsista no Seminário Teológico de Tübigen, na Alemanha, onde antes dele haviam estudado Hegel, Hölderlin, Schelling e David Friederich Straus.
A bolsa de estudos garantia moradia e alimentação, e trazia prestigio à família do bolsista. Grande parte dos alunos bolsistas — incluindo o próprio Vaihinger — era formada por filhos de pastores luteranos. Mas concluído o curso, preferiu trocar a teologia pelo curso de filosofia, no qual defendeu sua tese de Doutorado aos 21 anos (em agosto de 1874).
Nessa época, iniciou os estudos de alguns dos autores que mais o influenciaram: Darwin, Schoppenhouer, Kant (que se tornaram grandes clássicos) e Friederich Alberty Lange — autor na época também influente, e que, na Universidade de leipzig, foi um dos professores de Vaihinger (Vaihinger o considerava "o professor ideal").
Na época de seu Dutorado, alé de definir suas principais influências, começou também os estudos sobre o tema que o tornou famoso: a ficção — e sua presença na ciência e no conhecimento em geral, sob todas as suas formas. Foi incentivado nisso por Lange, que parece ter simpatizado com esse assunto um tanto incomum (pois o habitual entre filósofos e cientistas sempre foi rejeitar ou menosprezar a fantasia e a ficção como se não tivessem nenhuma participação útil em suas atividades).
Vaihinger já nessa época avaliava que, na prática, a presença e a importância da ficção nos processos de conhecimento eram muito maiores e mais constantes do que os pesquisadores costumavam admitir.
O principal livro de Vaihinger chama-se A filosofia do como se: Sistema das ficções teóricas, práticas e religiosas da humanidade, na base de um positivismo idealista.
Esse longo subtítulo do seu A filosofia do como se faz referência às áreas da filosofia em que ele circula em seu estudo sobre as ficções, e também ao procedimento metodológico que adota para isso.
As ficções teóricas do subtítulo são ficções que aparecem nas teorias filosóficas e científicas quando estão em busca do conhecimento. A área em que está circulando, neste caso, é aquela que em filosofia se conhece como teoria do conhecimento.
As ficções práticas que aparecem mencionadas no subtítulo são principalmente aquelas que dizem respeito às teorias de ética e de filosofia moral. Neste sentido ele está acompanhando o título que Kant dá à sua mais famosa obra sobre moral: a Crítica da razão prática.
As ficções religiosas mencionadas ali são um ponto de discussão especialmente interessante: elas nos conduzem a pensar no tema do mito, no elemento mítico que em alguma medida está rpesente em toda e qualquer religião. Mas Vaihinger não está falando apenas do uso de narrativas de ficção por parte das religiões para exprimirem seus valores e sua fé: ele vai bem mais longe que isto, e declara que ideias como a de Deus, por exemplo, são também uma ficção. No entanto, apesar das aparências, faz isso sem assumir uma postura que possa ser considerada necessariamente atéia.
Do ponto de vista filosófico, o mais interessante neste último ponto está no fato de que Vaihinger declara fazer isso com base em Kant, e o faz ao mesmo tempo admitindo que sua filosofia não é a de Kant nem se reduz a uma interpretação de Kant.
Mas diz também que se apoia largamente em certos aspectos da teoria kantiana que nunca haviam sido suficientemente considerados pelos estudiosos de Kant até o momento. E essa afirmação é bastante polêmica, porque mostra um Kant muito mais ligado à fantasia e à imaginação do que se costuma considerar.
Entretanto, apesar de ser uma descoberta polêmica (e até provocadora), que foi capaz inclusive de chocar os kantianos de sua época, o modo como Vaihinger apresenta a descoberta disso em Kant — para qualquer um que realmente leia o seu livro (e com atenção) antes de pretender criticá-lo — na verdade, irrepreensível.
Sem deixar de lado a ousadia, mas também sem arrogância, aponta com grande honestidade intelectual os limites de sua descoberta, é extremamente cuidadoso e minucioso, citando com frequencia, da maneira academicamente mais adequada e pertinente, passagens do próprio Kant para comprovar a validade de sua interpretação (com a qual no entanto não pretende negar a pertiência de outras interpretações diferentes da sua).
Já a menção a um "positivismo idealista" no sibtítulo faz referência a uma de suas outras influências, para além da influência kantiana: se o "idealismo" mencionado ainda faz referência a Kant, o "positivismo" é uma influência do positivismo lógico em seu método. Assim como os positivistas lógicos, Vaihinger se procura examinar o coerência do pensamento por detrás do uso das palavras.
Neste sentido, ele se apega especificamente à expressão "como se" e a outras similares ou empregadas no mesmo sentido no discurso usado por teorias científicas e filosóficas (como a de Kant, o caso mais cuidadosamente examinado por Vaihinger), e também no discurso religioso em geral. Vaihinger está interessado principalmente na lógica da pesquisa científica e filosófica, na coerência com que a expressão "como se" e outras análogas são empregadas na busca do conhecimento. mas também no campo da moral e no campo religioso.
A influência decisiva que conduziu Vaihinger a essa avaliação parece ter sido o tratamento que Kant — sem dúvida o filósofo que mais o influenciou — deu ao tema da "coisa em si" (que ele também chama de "noumena".
Os "noumena", segundo Kant, seriam aquelas coisas que existem "em si mesmas", independentemente de qualquer condição externa ou relação com outras coisas, independentemente de qualquer conexão com o nosso organismo ou com as coisas que estão no mundo ao nosso redor, as coisas com as quais convivemos e que "aparecem" para nós de alguma maneira (por exemplo através das nossas sensações físicas).
Kant focalizava três "nôumena", três coisas que existiriam "em si mesmas" e intependentemente de qualquer condição externa a elas: Deus, a eternidade da alma e a liberdade humana (ou livre arbítrio). Mas segundo ele próprio, só podemos captar aquilo que de algum modo entra em contato conosco. E acontece que nesse contato, a aparência desse algo se forma para nós já misturada ao nosso modo de perceber as coisas e alterada por ele. E também alterada por uma porção de outras coisas que são condições necessárias para ela nos aparecer deste modo como aparece.
Segundo Kant, não temos como captar as coisas "noumênicas" do modo como elas são "em si mesmas", isto é, não temos como captá-las de maneira "pura", independente de qualquer relação com o que está fora delas — porque nós também estamos fora delas, e quando as captamos, elas já estão se relacionando conosco.
Isso quer dizer que, para Kant, quando pensamos estar captando essas coisas "em si mesmas" (Deus, a eternidade da alma, a liberdade humana) estamos enganados. Não estamos realmente captando-as "em si mesmas", puramente do modo como elas são: estamos captando apenas uma aparência delas, aquilo que aparece delas em nossas mentes. E essa aparência delas já está alterada por esse contato conosco.
Portanto só percebemos aparências das coisas (que Kant chama de "fenômenos"). E essas aparências são condicionadas, isto é, são lidadas a diversas condições que fazem com que elas surjam para nós do modo como surgem, do modo como as percebemos.
Boa parte dessas condições está ligada diretamente à própria maneira como estamos natruralmente organizados como seres humanos, à própria maneira humana de captar as coisas. Para podermos captar e entender as coisas, nosso organismo e nossa mente alteram a aparência delas. Portanto cria uma ficção — que nao corresponde exatamente àquilo que as coisas são "em si mesmas" e intependentemente do nosso modo de percebê-las.
Vaihinger não estava "inventando" nada ao falar do uso da ficção na teoria de Kant, embora o próprio Kant não chamasse aquilo de "ficção". Talvez Kant chamasse de "hipótese" — mas seria uma espécie de "hipótese" um tanto incomum, que não foi feita para ser comprovada mais tarde. Porque segundo Kant, a hipótese dos "nôumena" de fato não é apenas uma possibilidade, é necessário supor que eles existam... mas nunca vamos poder comprovar mesmo se realmente existem ou não, nem como eles são exatamente.
Para Vaihinger, hipóteses (pelo menos enquanto não tiverem sido comprovadas) são também um tipo de ficção, mas aquilo que Kant propõe não se encaixa exatamente na categoria das "hipóteses", justamente porque não pode ser comprovado: se Kant acha necessário supor os "nôumena", não é por alguma espécie de "comprovação lógica" de que eles devem existem de verdade, e sim porque Kant precisa supor isso para poder resolver os problemas teóricos que formulou.
As ficções de Kant, segundo Vaihinger, seguem uma lógica de método, uma linha de raciocínio que é "metodo-lógica", que utiliza tudo o que for necessário como método para atingir seu objetivo... pode até mesmo imaginar que algo seja real só porque precisa que seja real.
O raciocínio kantiano, então, é mais ou menos o seguinte: se preciso de algo para resolver meu problema, e não sei se esse algo existe, então vou imaginar que exista e tratar como se fosse real, porque para a solução do meu problema preciso imaginar que seja real. Não se trata de algo que mais tarde iremos comprovar se é real ou não: está declarado de saída que nunca se saberá se é mesmo real ou não.
O uso do termo "ficção" para isso pode ter sido um pouco chocante para muitos kantianos, mas tiveram que reconhecer que, de um modo geral, Vaihinger está correto em sua leitura de Kant. Ele apenas exagerou demais a importância desse aspecto do pensamento kantiano, porque o termo ficção supõe que se trata de uma invenção, e os kantianos em geral não admitem que para Kant os "noumena" tenham sido exatamente uma invenção. Ele nunca afirmou que essas coisas não existem a não ser quando são inventadas por nós.
Só que o fato de elas talvez existirem realmente não faz com que as representações mentais que temos dessas coisas não se enquadrem na categoria da "ficção": ficções são invenções, e continuam sendo independentemente de corresponderem a alguma coisa real ou não. Se as representações que existem na nossa mente a respeito das coisas não nasceram dessa correspondência com as coisas reais que elas representam, nem de um raciocínio lógico que comprove que elas existem realmente, então nasceram de onde? São invenções, ficções, independentemente de corresponderem ou não com alguma coisa real.
Kant dá uma importância muito grande ao fato de que é necessário supor a existência dessas coisas para chegarmos com o nosso raciocínio aonde queremos chegar. Parece considerar isso tão imporyante quanto um raciocínio que comprovasse logicamente que as coisas existem. Mas o fato de dar toda essa importância a essas suposições não faz com que deixem de ser suposições inventadas, criadas, ficções úteis para atingirmos nossos objetivos.
Sabe-se que Kant era um homem religioso (protestante), mas isso não o impediu de ir bem longe no uso do que Vaihinger chama de "ficção" — não é à toa que sua filosofia incomodou muitos pensadores religiosos da época, e continuaria incomodando muitos deles séculos depois, embora estejam completamente errados quando supõem que a filosofia kantiana seja alguma espécie de "ateísmo" (pois não é).
Acompanhando a linha de raciocínio kantiana, somos naturalmente levados a pensar no seguinte: se só podemos captar as coisas à nossa maneira (à maneira humana) e fazemos isso criando uma imagem alterada delas, uma aparência das coisas que na verdade é diferente delas... então como podemos supor que realmente exista alguma coisa como Deus para além da idéia que formamos de Deus na nossa mente, alguma coisa como uma alma eterna para além da ideia que formamos disso na nossa mente, e alguma coisa como uma absoluta liberdade de decidir, para além do sentimento de liberdade que aparece em nós?
Como podemos ter certeza de que esse sentimento de estarmos decidindo livremente certas coisas, por exemplo, não é apenas aparente? Como podemos ter certeza de que não é uma mera ilusão?
Como podemos ter certeza de que no fundo, por detrás dessa ilusão, desse falso sentimento de liberdade, não somos na verdade como máquinas, como robôs — engrenagens completamente controladas pelas condições do mundo ao nosso redor e por aquilo que está programado em nós de nascença, como podemos ter certeza de que essas condições, que estão além da nossa vontade, não estão nos levando a fazer cada um dos nossos menores gestos ou movimentos a cada instante das nossas vidas?
E a resposta é: não podemos. Não há certeza em nada disso. É simples matéria de fé.
O que Kant faz não é negar a existência de Deus: é separar o campo da fé do campo do conhecimento, que só poderia se basear na razão ou na experiência, nunca na simples fé. O que Kant faz é negar que possamos ter algum conhecimento (comprovável) a respeito desse assunto — ele apenas constata que o que não pode ser conprovado não pode ser considerado como "conhecimento".
Quanto a Deus, então, podemos ter apenas fé, crença, e isto não é "conhecimento". Se fosse, não teríamos como invalidar qualquer outra fé, e todas as crenças seriam igualmente válidas, inclusive a de quem acredita ser um cubo de gelo e não um ser humano, por exemplo. Conhecimento não é e não pode ser uma simples "fé". Este é o caminho por onde enveredam os pensamentos de Kant e Vaihinger, e este último vai ainda mais longe nesse caminho, mas assim como Kant, não nega a importância, o valor dessas noções religiosas para os seres humanos.
Em resumo: se Kant (mesmo sendo cristão), e também Vaihinger, não aceitam a simples fé como conhecimento, e também não aceitam nenhum tipo de prova da existência dessas noções tão importantes para religiões tão influentes como o cristianismo, significa então que nada disso tem valor nenhum, que Deus, a alma eterna, a liberdade, são apenas fantasias e devem ser deixadas de lado? Também não.
Porque (ainda segundo Kant) a ideia de Deus nas nossas mentes — quer ele exista realmente ou não — desempenha um papel importante na organização moral da sociedade.
No caso de Kant, a utilidade de sua filosofia para isto é limitada. Pelo contrário, ele inclusive oferece uma base consideravelmente sólida para justificar a preservação da fé religiosa em Deus, porque para ele, embora tenhamos certeza apenas da existência de uma ideia mental de Deus, essa ideia é fundamental para a moral e é racional preservá-la.
No entanto, ela poderia ser substituída por alguma outra ideia igualmente racional e útil para a formulação de normas morais, de modo que nada impede que com o tempo, as pessoas deixando de acreditar em Deus, possa ir sendo formulada uma outra ideia para substituí-la no cumprimento desse papel — apesar de Kant não acreditar que isso venha a acontecer algum dia, não deixa de ser uma possibilidade aberta em seu pensamento.
Por outro lado, Kant consideraria irracional forçar qualquer tendência nessa direção: a ideia de Deus é para ele uma ideia moralmente racional, e a humanidade tende a preservar e aperfeiçoar as ideias racionais que vai formulando.
Isso porque segundo Kant a humanidade progride com o tempo no uso da razão, e a desvalorização de uma ideia racional já útil e utilizada, mesmo para substituí-la por outra, a princípio parece ser um atraso irracional, a menos que seja muito mais vantajoso do ponto de vista moral a substituição do que o aperfeiçoamento do uso moral da ideia que já está sendoutilizada (a ideia de Deus). Assim, como se vê, Kant oferece igualmente fortíssimos argumentos para os que defendem a preservação da religiosidade com base na necessidade dela para a moral.
No caso de Vaihinger, a acentuação do elemento fictício nisto pode ser mais útil para ateístas. Para ele, o progresso intelectual humano está justamente na conscientização do fato de que tudo isso são ficções, de modo que a fé em uma ideia moralmente racional não ajuda em nada.
O que ajuda, segundo Vaihinger, é retirar isto do campo da fé e trazer para o campo em que isto realmente está, que é o campo da imaginação. E a evolução humana, inclusive o maior desenvolvimento biológico do animal humano em relação aos demais seres vivos, está justamente no refinamento e bom uso (consciente) da fantasia útil, da ficção. Kant seguramente não diria isto.
Embora concordasse que o avanço intelectual humano está em oferecer base racional às coisas, e não se limitar à mera fé, Kant não desvalorizaria a fé, o sentimento de absoluta realidade daquilo que se está supondo como real. Ele apenas dá mais valor a essa fé, no campo específico das questões de moral, quando essa fé se submete à razão, quando a razão é o fundamento dominante nessa suposição da existência de Deus, e não um sentimento qualquer, como o sentimento de fé por exemplo.
Para Kant não importa que haja sentimento naquelas ideias que estamos preservando porque é racional preservá-las. O que importa é que não estejam sendo preservadas por sentimento, e sim por ser racional preservá-las. Na verdade, mesmo no campo religioso Kant impõe também a necessidade da razão. O que é matéria de fé é matéria de fé, e não deixa de ser digno de respeito, mas a própria razão pode estar harmonizada com a fé, e vice-versa, o que é o melhor dos casos.
Kant rejeita a fé religiosa somente quando não está harmonizada com a razão. Segundo ele, supondo a conexão entre Deus e o bem, se deve supor também que Deus nos conduz a buscarmos o mais racional, e que nos desviarmos do que é racional significa nos desviarmos do caminho do bem (e de Deus).
Portanto, o que Kant defende é uma religiosidade racional, em que a fé religiosa se harmoniza com a razão, e não alguma espécie de ateísmo. Para utilizar Kant em favor do ateísmo seria preciso mais do que uma "interpretação" ateísta de Kant: seria preciso utilizar Kant apenas parcialmente, rejeitando parte de sua teoria.
No caso de Vaihinger, pelo contrário, já podemos falar em uma antinomia entre a fé e a razão, que apresentam uma oposição muito maior uma em relação à outra do que em Kant. Isto porque Vaihinger não é simplesmente um "kantiano" — como muitas vezes seus adversários fazem parecer, dando a entender que ele não entendeu Kant. Vaihinger tem sua própria filosofia e é assumidamente um relativista (coisa que Kant não é de maneira nenhuma).
Isto significa que a filosofia vaihingeriana não apenas se opõe a qualquer coisa que se queira fixar como uma verdade absoluta, mas além disto se opõe à própria busca de qualquer verdade absoluta e definitiva.
Vaihinger sempre deixou muito claros os pontos em que se apega a Kant e aqueles em que impõe sua livre reflexão. Aliás ele não só pensa diferentemente de Kant, como chega a avaliá-lo e criticá-lo.
Em seu livro A Filosofia do como se (pág. 540, capítulo A-III), elogia o modo como Kant trata o caráter fictício dos "nôumena" no livro Fundamentos da metafísica da moral (mais comumente conhecido como Fundamentação da metafísica dos costumes), mas critica o tratamento mais "dormático" dado à questão pelo mesmo filósofo no livro Crítica da razão prática.
Vaihinger reconhece que há fortes razões para uma interpretação bem mais conservadora de Kant em relação ao fictício do que a sua. Mas declara assumidamente preferir mesmo assim ressaltar as passagens mais radicais de Kant quanto a isso, porque condizem melhoro com sua própria teoria do como se. Insiste que Kant não deixa de poder ser lido também à sua maneira sem qualquer erro, porque é uma leitura igualmente possível, apesar de mais incomum.
Observa que as passagens em que Kant ressalta o fictício são mais intensas e firmes do que aquelas em que ele se mostra mais dogmático. Mas também são menos frequentes. De qualquer modo, apesar das dificuldades, não vê razão suficiente para diminuir seu apego a esse filósofo, apesar do maior dogmatismo que se pode notar na Crítica da razão prática e em outros textos de Kant.
Por isso ainda se considera sim em larga medida kantiano, apesar de ter também suas próprias ideias.
Sua maior diferença em relação a kant parece ser que, sendo assumidamente relativista, buscar ou supor algo absoluto só pode ser racional se essa suposição for assumidamente a criação de uma ficção metodológica. Isto é, se for uma ficção útil como parte de um método para atingir algum objetivo — e essa suposição fictícia será sempre apenas uma suposição possível entre outras igualmente válidas e úteis.
Para o relativista Vaihinger, portanto (ao contrário do caso do criticista Kant) não há nada que impeça ou desaconselhe a substituição dessa ficção — a ideia de Deus — por alguma outra qualquer que possa cumprir o mesmo papel.
O que não é racional, segundo Vaihinger, é justamente que o sentimento de que algo seja absolutamente verdadeiro (ou seja, a fé nesse algo) impeça esse uso meramente metodológico, e transforme a ferramenta (a ficção útil) em algo que domina o ser humano, ao invés de servir a ele como um instrumento do quel ele dispõe livremente para atingir seus objetivos.
Vaihinger seria sem dúvida mais útil para um ateísta do que Kant. Mas sua filosofia não chega a ser exatamente uma teoria ateísta. Na verdade ele tende para uma revalorização do elemento mítico nas religiões, e também para uma revalorização das relações entre filosofia e mitologia.
Um outro pensador kantiano que acabou adquirindo fama muito maior, apesar de se desenvolver depois de Vaihinger, seguiu essa mesma linhagem (de revalorização do elemento mítico e da mitologia): Ernest Cassirer — que exerceu alguma influência sobre Flusser (que por sua vez exerceu enorme influência sobre o autor do site Projeto Quem, isto é, sobre mim.)
Kant se opõe ao cultivo de sentimentos religiosos sem base racional, e não aceita o domínio do sentimento sobre a razão porque considera o sentimento como algo produzido pelas condições do mundo sensível e material ao qual estamos presos. Mas considera a própria fé racional como algo que supera esse acorrentamento do ser humano no mundo material e sensível que os sentimentos realizam.
Vaihinger, assumindo uma postura diferente desta, não se opõe fé enquanto sentimento que nos acorrenta ao mundo sensível e material. Não nos oferece a mesma má imagem do mundo material e de sua influência sobre nós que Kant (lembremos que Vaihinger foi inclusive influenciado pelo materialismo biológico de Darwin).
Se Vaihinger se opõe à fé, se opõe a ela justamente enquanto sentimento específico que nos prende à suposição de algo absoluto — portanto à suposição de algo que estaria para além da realidade sensível e material. Ele é muit mais simpático ao materialismo do que Kant.
Entretanto, sua utilizade para ateístas continua de fato limitada: para Vaihinger, o sentimento de fé só é um problema na medida em que sua força vai bloqueando a consciência de que todas as representações mentais em que estamos depositando tanta fé são apenas e meramente ficções. Para ele, não haverá problemas na medida em que conseguirmos manter a fé e ao mesmo tempo essa consciência de que nossos objetos de fé são ficções. Mas a intensificação da fé tende a gerar esses problemas.
Se quisermos combater ideias religiosas como a de "Deus" pensando realmente a fundo a respeito da importância que o assunto religioso sempre pareceu ter nas sociedades humanas, mas fazer isso levando em consideração e a fundo as características específicas desse fenômeno. E se não queremos fazer isso apenas pressupondo que essa ideia seja uma espécie de "ópio do povo" equivalente a inúmeras outras "ilusões ideológicas" criadas pelas classes dominantes (ou seja, sem aprofundar o exame das especificidades do sentimento de fé) ...se é isso o que queremos, enfim, então será preciso procurarmos algum outro fundamento, melhor que o oferecido por Vaihinger e Kant.
Fugindo então um pouco do nosso assunto aqui (que é Vaihinger), podemos dizer que a melhor opção neste caso, e também derivada em boa medida de Kant (e de Fichte) é o anarquista Proudhon. Inclusive Nietzsche (autor de O anticristo) também não levou tão a fundo o exame da religiosidade.
Marx e Nietzsche podem ser (muito facilmente) acusados pelos pensadores religiosos de desprezar e até ignorar as peculiaridades reais (e inclusive evidentes) do fenômeno religioso, e de absolutamente não compreenderem os sentimentos religiosos, pois operam com uma caricatura superficial deles. Proudhon se aprofundou tanto no exame do assunto, em sua crítica à fe religiosa, que deixa todos os teólogos embaraçados quando tentam refutá-lo.
Proudhon é ele próprio é uma espécie de anti-teólogo profundo e refinado — superior a muitos teólogos de renome mundial em profundidade e compreensão do sentimento de fé. Relativista mais radical que Vaihinger, ele próprio tem a sua teologia: toda uma teoria acerca da ideia de Deus e do sentimento religioso de fé que, respeitando até o fundo a especificidade dessa ideia e desse sentimento, declara não apenas a provável irrealidade dessa ideia como o caráter autoritário e pernicioso dela e do sentimento de fé no absoluto que a acompanha. Sua produção publicada inclui até mesmo dois livros inteiros de análise da Bíblia e da história do cristianismo em suas mais variadas versões.
Mas Vaihinger não deixa de apresentar essa especialmente interessante valorização da fantasia útil, que em Proudhon não chega a receber a mesma atenção. Uma combinação dos dois é possível: não são de modo nenhum incompatíveis — e o resultado poderia ser bastante interessante.
Pela linha de raciocínio de Kant, a promessa da eternidade da alma após a morte (associada à de que essa vida após à morte é boa) acabaria servindo como complemento para a noção de Deus como uma ideia racional para nos orientar na moral. Serviria como complemento por oferecer uma esperança como incentivo para agirmos moralmente. Mas Kant prefere concentrar seu foco de atenção nos casos de Deus e da liberdade humana (porque acha que a moral deve ser praticada com um puro sentimento de dever moral, e não visando alguma recompensa nesta ou em outra vida).
No caso da liberdade humana, diz Kant, é necessário supor que ela exista (e não importa se a suposição é verdadeira ou falsa!) — porque se os seres humanos não tiverem liberdade de tomar uma decisão ou outra, não será possível responsabilizar ninguém pelos seus atos quando toma uma decisão ética ou juridicamente errada... pois nenhuma decisão poderia ser considerada realmente como uma "decisão" da pessoa: qualquer pessoa teria sido levada a fazer o que fez pelas suas condições de vida, querendo ou não.
Em outras palavras, sem a noção de "liberdade" a moral e o direito não fazem sentido. Então, se sentimos que precisamos da moral e do direito, e se queremos que moral e direito continuem existindo, precisamos imaginar que essa liberdade exista (mesmo que na verdade a gente não saiba realmente se ela existe ou não).
Para Vaihinger, esse raciocínio de Kant significa que, independentemente de existir ou não em nós uma liberdade de decisão, e independentemente de Deus existir ou não, as noções de "Deus " e "liberdade" são ficções úteis para nossas vidas, e por isso precisam ser preservadas.
A partir desse exemplo de Kant, Vaihinger começou a desenvolver uma extensíssima e muito cuidadosa pesquisa dos casos em que algum tipo de ficção útil aparece no raciocínio e nos procedimentos de filósofos e cientistas das mais variadas áreas, e também em outras atividades humanas. E começou a contruir uma classificação para os variados tipos de ficção e suas variadas utilidades nessas áreas e atividades.
Mas Vaihinger não é simplesmente um kantiano ou um intérprete de Kant. Desenvolveu sua própria filosofia a partir disto e combinando Kant com outras influências — a princípio Darwin, Schoppenhauer e Lange, como já mencionado, mas depois acrescentou influências de Fichte e um pouco também de Schelling, e outras (como o positivismo lógico por exemplo, já mencionado no início destes Tópicos de vida e obra de Vaihinger).
Como resultado, desenvolveu uma interessante teoria relativista, isto é, uma defesa da noção de que todos os conhecimentos humanos são relativos e não há verdades "absolutas", definitivas e invariáveis, que possam ser consideradas válidas. Todas as nossas certezas são muito mais apoiadas na ficção do que costumamos admitir, e quando não são, frequentemente é porque estamos iludidos, tratando uma fantasia como se fosse algo real.
O ser humano — diz Vaihinger — é um organismo vivo extremamente complexo e refinado, que ao invés de se orientar no mundo instintivamente ou por sua pura programação genética como outros organismos, desenvolveu a capacidade de criar ficções como um meio eficiente de organizar e equilibrar sua vida, sua mente e suas ações corporais, orientando-se no mundo mesmo sem precisar de tantas certezas, e adaptando-se aos mais variados ambientes.
Segundo ele, a mente deve ter se desenvolvido no organismo humano inicialmente com a função específica de garantir a adaptação ao ambiente e a sobrevivência da espécie, como normalmente ocorre no reino animal, realizando várias ações nesse sentido, algumas mais centrais e importantes, outras complementares.
Mas frequentemente, na natureza, as ações desempenhadas com alguma função específica se desequilibram, e as que eram apenas complementares ganham uma relevância cada vez maior, até alterarem a função original do conjunto.
Aproximadamente isto teria sido provavelmente o que aconteceu com a mente humana: desenvolveu-se em sentido diferente do original, e sem deixar de cumprir o papel de facilitar nossa adaptação a diferentes ambientes, acabou desenvolvendo muito mais do que isso uma outra função: a de nos garantir uma vida mais rica e mais interessante. Daí a produção dos tão variados elementos da cultura humana, e de coisas como, por exemplo, a arte ou a filosofia.
A principal capacidade da mente humana envolvida em tudo isso, a mais complexa e refinada das atividades mentais desenvolvidas no processo de evolução do organismo humano, é justamente a capacidade de criar ficções. Fantasias úteis. E vivemos em meio a elas, quer tenhamos consciência disso ou não.
O que Vaihinger chama de "realidade" é apenas um conjunto desordenado, incompleto e sempre variável de dados brutos sobre o ambiente ao nosso redor que, a todo momento, vão chegando à nossa mente através das nossas sensações físicas. Todo o resto é mera construção da capacidade da mente humana de criar ficções.
Concordando com Kant, Vaihinger acha que os dados sensíveis, desordenados, são organizados pela nossa sensibilidade e pelo nosso entendimento, e por isso é que aparecem para nós como algo razoavelmente estável e compreensível, com o qual conseguimos lidar melhor. Mas considera isto apenas mais um claro sinal de que a nossa vida se desenrola apoiada fundamentalmente em ficções e fantasias úteis, e não em representações que correspondem verdadeiramente ao mundo como ele é em si mesmo.
A única correspondência que conseguimos entre as nossas representações mentais e a realidade é a que está no conjunto das nossas ações eficazes, daquelas que chegam a bons resultados. Só que a realidade muda constantemente e estamos constantemente ajustando nossas ficções a ela, tentando criar padrões estáveis com base nos quais possamos agir de maneira eficaz no sentido não apenas da nossa sobrevivência, mas também e principalmente no sentido da realização de uma vida mais rica e interessante — mesmo quando seguimos esse caminho inconscientemente.
Do ponto de vista da história da filosofia, isto significa dizer que nunca nos afastamos realmente e por completo do pensamento mítico, isto é, do modo de pensar da mitologia: apenas dessacralizamos aquelas fantasias que inicialmente tinham peso religioso para nós.
Dessacralizadas as nossas crenças, começamos o lento caminho, milenar, da tomada de consciência de que elas são apenas ficções, de que essas nossas ficções não são realidades, de que somos seres mergulhados na fantasia e sem contato completo com a realidade em si mesma — porque dela só captamos dados sensíveis brutos e desordenados, que são refinados e organizados pela nossa mente, por nossa sensibilidade e nosso entendimento.
Vaihinger sabia que em sua época não havia clima intelectual para a aceitação dessa sua tese sobre a ficção pela comunidade filosófica mundial e pela crítica em geral. Tornou-se conhecido primeiro por seus estudos sobre o idealismo alemão (de Fichte, Schelling e outros, mas principalmente de Kant, que foi o primeiro dessa linhagem de filósofos).
Contudo os estudos sobre Kant na comunidade filosófica mundial apontavam em uma direção completamente diferente, e suas posições a respeito da teoria kantiana o levaram a um certo isolamento e desfavoreceram sua carreira universitária. Por isso podia prever que se deixasse clara toda a sua filosofia relativista, a aceitação de seus estudos seria ainda pior.
Em vista disso, levou 35 anos para publicar sua primeira, maior e mais importante obra de filosofia pessoal: A filosofia do como se (publicada em 1911) — e na primeira edição, publicou a obra como se fosse apenas o organizador de um conjunto de textos de autores anônimos.
O livro foi agressivamente criticado nos meios acadêmicos, mas não passou despercebido, pelo contrário, despertou muita atenção. Associar Kant a esse tipo de relativismo foi considerado não apenas um erro de interpretação, dando valor demais ao que não poderia ser considerado tão central na obra kantiana, mas também e principalmente uma atitude imoral, como se os autores estivessem difamando Kant. E como se Vaihinger estivesse dando a esses autores anônimos o seu aval ao assinar a organização do livro.
Em suma: seguramente, Vaihinger estava certo: se tivesse abandonado esse disfarce de mero "organizador" e assumido logo de saída a autoria do livro teria sido ainda pior. Para os kantianos mais renomados da época, Vaihinguer parecia estar querendo arruinar a sua própria carreira.
Não obstante, o fato é que a essa altura ele já havia marcado internacionalmente uma posição de referência em filosofia: esse "disfarce" de Vaihinger só foi possível porque já desde 1896 ele vinha se dedicando à criação da Kant-Studien. Philosophische Zeitschrift (Estudos kantianos. Revista filosófica), de modo que estva em contato com imúmeros autores que podiam contribuir com textos de estudos livres em torno de temas kantianos.
Além disso, organizando depois os colaboradores da revista, já havia fundado também a Sociedade Kant, uma organização aberta de estudos livres inspirados pelas reflexões kantianas, como a revista que deu origem a ela, e que em 1921 já havia atingido cinco mil sócios.
Essas "tomadas de liberdade" da sociedade em relação à filosofia kantiana, refletindo livremente com inspiração nela ao invés de apenas estudar cuidadosa e criteriosamente os textos escritos por esse filósofo, parecia algo mais típico de Fichte do que de Kant, e não era uma iniciativa muito bem vista nos meios acadêmicos. Porém a Sociedade Kant contou com colaboradores importantes e de renome internacional, como o sociólogo nietzscheano Georg Simmel por exemplo (ligado diretamente ao famoso Max Weber).
Na verdade foi a ascenção da influência de Nietzsche o que levou Vaihinger a tomar coragem e assumir finalmente a autoria de sua Filosofia do como se.
Achava que Nietzsche estava muito próximo de seu próprio pensamento, e que a aceitação crescente de Nietzsche era um sinal de que talvez a comunidade filosófica mundial aceitasse mais um novo filósofo com ideias similares, e passasse a enxergar a Filosofia do como se como aquilo que realmente pretendia ser: uma nova filosofia, e não um "mau uso" da filosofia de Kant.
Todavia desta vez Vaihinger se enganou. Sua má fama como deturpador de Kant piorou ainda mais, e como os estudiosos de Kant na verdade se viam forçados a reconhecer que Vaihinger não deixava de ser um excelente leitor de Kant, tendo percebido e destacado pontos importantes da filosofia kantiana que outros ainda não haviam compreendido, o fato de ter usado o nome de Kant para desenvolver sua própria teoria foi considerado ainda mais imoral.
Entretanto, Vaihinger nunca havia dito ou escrito que suas ideias eram exatamente as de Kant. Havia apenas apontado, com muito acerto e de maneira muito dificilmente questionável, a presença da ficção, da fantasia útil, em passagens fundamentais da obra de Kant. E a partir daí havia começado a examinar, com o mesmo acerto e sólida pesquisa, a presença disso em momentos fundamentais de inúmeras outras teorias, filosóficas e científicas.
Nunca declarou que isto era algo especificamente central na filosofia de Kant, e sim que isto era central em toda e qualquer teoria, incluindo a de Kant. E central inclusive no pensamento humano em geral, teórico ou não, porque está na base do funcionamento da mente humana.
Vaihinger portanto não cometeu nenhuma difamação ou distorção de Kant: ao colocar no centro de todo pensamento humano a ficção, ele jamais declarou que o próprio Kant faria isto, mas apenas que a atitude metodológica de Kant sugeria essa valorização da ficção como algo válido inclusive para as passagens mais fundamentais de sua obra.
Apesar de todas as críticas que recebeu de professores e pesquisadores kantianos do meio acadêmico, agressivas e muitas vezes completamente equivocadas (pois os autores não se preocupavam muito em ler com atenção e cuidado o que estava sendo realmente dito em A filosofia do como se), Vaihinger recebeu apoios importantes.
O mais importante deles foi o de um físico e de grande renome: Albert Einstein, que reconheceu a grande proximidade entre Vaihinger dizia existir entre seu relativismo filosófico e a teoria da relatividade. Einstein examinou o livro e o elogiou, dizendo que estavam realmente de concordo. Isto animou Vaihinger a persitir em seus esforços, apesar de tudo.
A proximidade entre a teoria da relatividade de Einstein e a filosofia do como se de Vaihinger não significa uma completa e absoluta identidade entre as duas, mas é uma proximidade real, grande e consistente. Einstein tinha razão em defendê-lo. Inclusive porque a acusação de imoralidade intelectual dirigida contra Vaihinger era completamente descabida.
Vaihinger foi frequentemente tratado como se fosse um pesquisador desleixado e sem rigor acadêmico, mas apenas por aqueles que não o leram realmente e com a devida atenção, porque sua leitura atenta torna esse preconceito impossível.
Na verdade, uma série de preconceitos que costumavam ser associados à fantasia em geral e à ficção, considerando-as incontornavelmente incompatíveis com uma pesquisa séria (e vendo-as até como perniciosas nesse sentido), foram transferidas para Vaihinger pelo fato de ele defender o uso metodológico desse tipo de recurso nos estudos.
O que ele realmente dez, em realmente, para merecer esse tipo de acusação? Qual foi realmente o seu comportamento intelectual e qual foi a sua participação na história da filosofia mundial? — Apontou um elemento importante do pensamento kantiano do qual os outros estudiosos não estavam se dando conta até então. Depois, em textos e palestras declaramendamente dedicados a isto, interpretou Kant livremente a partir de sua própria teoria, que coloca esse elemento como fundamento de todo o funcionamento da mente humana.
Deixou sempre bem claro o que estava fazendo. E finalmente, numa obra especialmente dedicada a isto — A filosofia do como se — desenvolveu uma longa série de estudos sobre a teoria que já vinha expondo indiretamente e parcialmente, de maneira mais tímida, naquelas palestras e pequenos artigos. O que há de errado ou de condenável nesse percurso?
Vaihinger estava longe de ser um pesquisador descuidado ou superficial e de afirmar coisas sem base sólida e análise cuidadosa, ao contrário do que sua filosofia do como se pode sugerir. Sua valorização da ficção não desqualifica a busca do conhecimento, apenas relativiza (bastante) os resultados (muito mais ainda do que Kant já os relativizava).
Sofreu alguma influência do positivismo lógico, conforme já mencionado. Graças a essa influência aprendeu a se apegar à análise de como a coerência dos pensamentos é expressa em texto. Disso extraiu o modo como decidiu examinar e exprimir essa presença da fantasia útil — "ficção" — nas teorias, em sua principal obra: fez isso mostrando de que maneira a expressão "como se" e outras expressões similares desempenham um importantíssimo papel metodológico nas teorias das mais diversas áreas e no pensamento humano em geral, contribuindo para mantê-lo coerente.
Vaihinger, em suma, percebeu algo importante em Kant, divulgou e esclareceu isso da maneira mais correta segundo os padrões de comportamento acadêmico, e depois passou a explorar essa ideia cada vez mais para desenvolver sua própria filosofia — um caminho muito comum para qualquer filósofo na história mundial. Nunca declarou estar fazendo alguma outra coisa.
Seu pecado imperdoável, do ponto de vista dos pesquisadores acadêmicos, parece ter sido apenas o de pensar por conta própria e desenvolver suas próprias ideias a partir do que aprendeu lendo Kant, sem se limitar a simplesmente redizer e esclarecer o Kant já havia dito — e fazer isto em meio a outros estudiosos de Kant, e em um momento no qual havia um esforço generalizado deles no sentido contrário, de apenas se limitar ao esclarecimento do pensamento kantiano (e numa direção muito específica, diferente daquela apontada por Vaihinger), sem irem além disso.
A revista Estudos Kantianos e depois a Sociedade Kant fundadas por ele, com seus cinco mil colaboradores, tinham declaradamente o propósito de desenvolver o livre pensamento a partir da inspiração em reflexões kantianas. E não o porpósito de apenas esclarecer a teoria do próprio Kant.
Contudo, o nome de Kant parece ter adquirido na época uma espécie de "aura" de referência filosófica máxima, de importância, respeitabilidade e rigor acadêmico no campo do pensamento filosófico, que tornava inaceitável para os acadêmicos utilizar sua filosofia como simples inspiração para o livre pensamento de tipo ensaístico. Kant era tido como "intocável", a não ser para aqueles que pretendessem ser pura e rigorosamente kantianos em seus estudos ao se referirem a ele.
Apesar de sua reconhecida competência na análise rigorosa dos textos de Kant e de outros filósofos, a postura de livre-pensador e ensaista de Vaihinger era bastante conhecida, e graças a ela sua carreira já vinha sendo prejudicada seriamente no meio acadêmico.
Vaihinger cometeu o pecado de não se sujeitar a isso, de não se resignar a essa condição de "excluído", e tratou de construir seu próprio caminho com a fundação de uma revista de muito sucesso e de toda uma sociedade dedicada a esse livre pensamento inspirado em Kant que lhe estavam negando desenvolverdentro dos círculos acadêmicos.
E não foi fácil fazê-lo, porque viveu com baixos salários, e gastando boa parte deles nesses empreendimentos. E também porque a certa altura foi ficando cego (a cegueira chegou a ser quase completa), de modo que teve de realizar tudo isso de maneira ainda mais difícil e mais cara. Precisava estar constantemente acompanhado de uma secretária contratada para redigir o que ditava, por exemplo, e para ajudá-lo a ler cartas e artigos para organizar os contatos que mantinha com os cinco mil colaboradores da Sociedade Kant e gerenciar a revista Estudos Kantianos. O custo de tudo isso foi viver uma vida muito humilde e passando frequentemente dificuldades com o pagamento de suas contas.
Em minha avaliação pessoal, valeu a pena. Muito. Vaihinger é uma leitura fundamental, imperdível.