Pesquisa & Texto da autoria de João Ribeiro de A. Borba

Primeira versão - anterior a 2008

 

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Pascal: a angústia humana entre o universo e o carrapato infinito,
nas fronteiras entre a dialética, o ceticismo e a fé

 

Como se classifica filosoficamente o tipo de posicionamento de Pascal?

Existe uma séria controvérsia, em Filosofia, quanto à classificação do pensamento de Pascal: apontado por muitos como precursor da dialética como a conhecemos hoje, parece influenciado ao mesmo tempo pelo racionalismo de Descartes, concentrado em sua dúvida metódica, e pelo ceticismo passional de Montaigne, voltado para as contradições do coração humano –– portanto, duplamente cético. Mas ao mesmo tempo defende filosoficamente a fé cristã e a busca de um saber absoluto comparável à onisciência de Deus, com o fervor de um fanático... e os argumentos de um cético radical. O assunto focalizado nesta página da enciclopédia é acima de tudo essa estranha conciliação do inconciliável na filosofia de Pascal.

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Até que ponto Pascal foi influenciado por Descartes?

Pascal (1623-1662) tinha tudo para tornar-se um grande cientista, mas a filosofia lhe pareceu mais desafiadora, especialmente quando tratava de questões humanas, as mais difíceis de se resolver racionalmente sem distorções –– porque o pensamento formal, matemático, ao qual estava bem acostumado, não se mostrava suficiente para isto, como havia mostrado o próprio Descartes (1596-1650), já famoso como defensor do pensamento formal quando Pascal começou sua carreira filosófica.

Recém nascido, Descartes quase morreu, e viveu doente toda a sua infância, tendo de se cuidar e, inclusive (para a inveja dos colegas de escola) passar todas as manhãs de cama. Mas Descartes era um estudante dedicado, e não se divertia muito com isso. A medicina da época era primitiva, e os cuidados certamente tinham de ser muito maiores do que teriam de ser nos dias de hoje.

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Naturalmente, passou a vida inteira extremamente preocupado com a segurança, e com a solidez dos conhecimentos dos médicos. Um de seus maiores interesses como filósofo, portanto, era a possibilidade de que a ciência da medicina se fundasse em conhecimentos mais sólidos e seguros. Um de seus maiores esforços filosóficos, ainda hoje pertinente, é o de localizar os limites do nosso conhecimento para evitar erros: mas segundo o resultado de suas reflexões, questões humanas, história, política, moral etc., não poderiam jamais ser inteiramente compreendidas por meio de idéias claras e distintas –– portanto, simplesmente não podiam ser "cientificamente" compreendidas, o que caberia apenas às ciências exatas e biológicas.

Quanto a isto, se Descartes encontrou um ponto fixo para fundamentar as ciências, podemos dizer que para as ciências humanas esse ponto fixo é um ponto final, pois cartesianamente falando, tais áreas são incertas demais para serem "ciências".

Mas onde Descartes desiste, Pascal vai adiante. Não se detém quando se trata de enfrentar questões ligadas aos sentimentos por exemplo; pelo contrário, são as que mais o motivam: quer compreender os sentimentos humanos, e não recua diante de toda a confusão e contradição com que se apresentam, nem recusa ou ignora o fato de apresentarem repletos de contradições. Para compreendê-los, procura aceitá-los do modo como aparecem na realidade e na vida dos homens.

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Até que ponto Pascal pode ser considerado um cético?

Parece estranho que uma mente tão fervorosamente interessada na verdade possa ser considerada como uma "recuperação" de algo do pensamento do grande cético Montaigne, que duvidava de tudo. E ainda mais estranho quando encontramos Pascal escrevendo algumas passagens contra o ceticismo pirrônico. Mas de fato, apesar disso, Pascal freqüentemente é citado e estudado como cético, ou relativamente cético. Montaigne era o grande "ás" do ceticismo no Renascimento, e Descartes o seu grande refutador, mas o próprio Descartes apresentou falhas em sua refutação do ceticismo, e sua teoria acabou favorecendo o ceticismo tanto quanto servia para combatê-lo. Dependendo de que parte do pensamento de Descartes se adotava como influência, essa influência era cética ou anti-cética.

Mas quanto a Montaigne não havia dúvida: sua filosofia era o grande ceticismo da época.

Então, ser relativamente cético, na época, significava em geral ser um pouco montaigniano –– e portanto, necessariamente um pouco anti-cartesiano. Ser contrário àquele lado anti-cético de Descartes. 

E quanto a isto, a própria revalorização das questões humanas acima de tudo, por parte de Pascal, já se mostra como um primeiro passo na recuperação de Montaigne contra a refutação cartesiana. E revalorizar as questões humanas, é talvez justamente uma das motivações pelas quais Pascal se aproximou da filosofia, pois todas as ciências humanas tendem a apoiar-se mais diretamente nela.

Para os estudiosos mais dedicados e cuidadosos, permanece a dúvida: Pascal será mesmo realmente um cético como Montaigne? Até que ponto? A questão religiosa é o que tende a impedir uma resposta firmemente afirmativa.

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O que é mais forte em Pascal, a filosofia ou a religião?

Pascal ficou mais conhecido e mais influente no campo filosófico do que no campo religioso. No campo religioso, ficou conhecido apenas como um opositor radical do papa, mas suas teorias teológicas não tiveram repercussão tão grande a ponto de criarem uma corrente religiosa original, serviram apenas como uma fundamentação melhor para as alas mais radicais da igreja jansenista (que por si só já era um cristianismo radical, contrário ao dos jesuítas e ao do Papa). Mas ocorre que a filosofia de fato não é o bastante para satisfazer Pascal, apesar de seu forte interesse nas questões humanas... porque quer ir além delas, e sua maior paixão parece estar na questão religiosa.

Neste sentido, Pascal vai além das questões humanas voltando seu pensamento para a questão do infinito, e de como compreender as coisas que são infinitas, depara-se com a questão de Deus.

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Deus existe?

Este havia sido considerado na época o grande ponto fraco do pensamento de Descartes, pois depois de "descartar" tudo o que fosse incerto até chegar à certeza da presença do pensamento, precisava pensar matematicamente para poder medir a certeza das nossas idéias a respeito das coisas. Mas já havia "descartado" a matemática. Então declarou que Deus é bom e não nos enganaria, portanto deve haver "alguma" verdade em todas essas coisas que parecem tão incertas. Neste caso, precisava provar a existência de Deus, e por que a idéia de Deus não havia sido descartada como todas as outras. Entretanto, sua prova da existência de Deus não convenceu a ninguém.

Pensando a respeito, Pascal, que até este ponto era cartesiano, acaba sofrendo subitamente uma grande conversão religiosa, e entra para a seita cristã radical dos jansenistas, indo morar em um mosteiro. Justamente por isso, torna-se ainda mais estranho pensá-lo como um recuperador de Montaigne, que duvidava até mesmo de Deus. No entanto, o que temos em Pascal é realmente, como veremos, uma estranha e interessante combinação de ceticismo e fé religiosa.

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De que modo surge a questão do infinito no pensamento de Pascal?

É refletindo sobre os limites do homem que Pascal chega à questão do infinito. Essa questão, observa Pascal, deixa os nossos pensamentos em grande confusão. A própria natureza é infinita: diante do caminho do Sol no universo, a Terra parece um ponto quase invisível. E o próprio Sol, diante dos movimentos das galáxias e de todas as estrelas, das quais ele é apenas uma, parece um minúsculo ponto praticamente invisível. "Todo esse mundo visível para nós é apenas um traço imperceptível no conjunto total da natureza" –– diz Pascal.
O mesmo ocorre quando observamos um pequeno fato em particular.

E Pascal, com seu humor sempre carregado de ironias (bem ao estilo cético, aliás), se põe a nos mostrar que até um carrapato é infinito: mesmo examinando o menor ser vivo, verifica-se que ele também possui partes. E dentro dele, também a menor parte do universo, o átomo, ainda não é o último elemento que compõe a sua realidade, pois mesmo o átomo ainda pode ser dividido. No interior de cada fragmento atômico há "uma infinidade de universos, cada qual possuindo seu firmamento, seus planetas, sua Terra, nas mesmas proporções do mundo visível".

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Não significa que haja uma micro-Terra idêntica à nossa com micro-homenzinhos idênticos a nós, mas que se pesquisamos por um lado coisas cada vez maiores, até chegarmos ao mundo como um todo e ao universo, acabamos nos perdendo em um infinito muito além da nossa capacidade humana e limitada de compreensão puramente racional e formal, e o mesmo acontece se pesquisamos, por outro lado, coisas cada vez menores até os seus mais mínimos detalhes: a pesquisa também vai parar no infinito, e só pode terminar em nada, pois ultrapassa nossa capacidade de compreensão formal, nossa capacidade de enquadrar as coisas em formas precisas, gerando idéias claras e distintas dessas coisas.

Pensar o infinito é aceitar que o pensamento não pode ser sempre "claro e distinto" como Descartes queria, pois o pensamento esbarra em seus limites meramente humanos e se torna confuso diante do infinito.

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Qual é a posição do homem em face do infinito segundo Pascal?

Considerando o ser humano diante de horizontes infinitamente grandes de pesquisa, ele aparece como algo microscópico, praticamente um "nada", que fica imperceptível no todo. Considerando um horizonte de pesquisas infinitamente pequeno, feito de coisas tão microscópicas e insignificantes que comparadas ao homem parecem na prática um nada, o homem emerge ele mesmo algo colossal, algo tão gigantesco que parece ser tudo. Em suma, o homem é "um nada em vista do infinito, um tudo em vista do nada", e oscila "entre esses dois abismos do infinito e do nada". (Ou mais precisamente entre esses dois infinitos, o do infinitamente grande e o do infinitamente pequeno.)

O ser humano está nesse meio de caminho entre os dois infinitos, mas é igualmente incapaz de ver tanto um quanto o outro. Ele é algo que bóia perdido entre esses dois oceanos cujos limites não consegue enxergar, e que portanto não consegue medir: o oceano do infinitamente pequeno e o oceano do infinitamente grande.

"Este é o nosso verdadeiro lugar na existência" –– diz Pascal –– "andamos à deriva em um mar incomensurável, sempre incertos e oscilantes, jogados de um canto para outro. Qualquer extremo em que pensamos em nos segurar e acostar, balança e nos deixa continuar. Se o perseguimos, esquiva-se de nossas mãos, desvia-se de nós e corre em uma eterna fuga".

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Pascal contradiz Descartes em alguma coisa?

Pode-se notar que o raciocínio de Pascal, aqui, apóia-se em questões humanas. No entanto implica um questionamento muito sério ao rigor e à precisão que Descartes pretendia ter atingido, ao medir o "grau de certeza" que podemos atingir em cada tipo de assunto que pesquisamos. Descartes decretava que era impossível fazer ciência de questões que envolviam sentimentos, porque procurava medir os sentimentos com o mesmo tipo de medida (matemática, geométrica) que utilizava para medir fatos da física e da biologia.

Descartes, valorizando extremamente a razão matemática, dizia "Penso, logo existo". É conhecida a resposta de Pascal a isso: "O coração tem razões que a própria razão ignora". Em outras palavras, segundo Pascal, tratava-se de encontrar o tipo de racionalidade adequado para raciocinar a respeito das paixões ou sentimentos humanos, ao invés de abandonar o raciocínio a esse respeito como se todo e qualquer raciocínio tivesse que ser matemático e ajustado à geometria.

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Também neste sentido, Pascal diz que existem dois tipos de espírito que as pessoas podem apresentar. Há pessoas que apresentam "espírito de geometria" e pessoas que apresentam "espírito de finura" (ou finesse, elegância). As pessoas com espírito de geometria (como Descartes) são capazes de alto nível de concentração e de raciocínios precisos e rigorosos, mas apenas quando trabalham com princípios muito nítidos, claros e distintos, como o próprio Descartes sugere. Essas pessoas ficam totalmente perdidas quanto têm que lidar com princípios sutis e indeterminados, não são boas com as sutilezas do mundo sentimental por exemplo.

Já as pessoas com espírito de finura são o oposto disso. Lidam muito bem com princípios sutis e indeterminados, coisas indiretas e imprecisas, atuam bem na política e nas relações humanas e afetivas em geral, mas sofrem de muito baixo poder de concentração e muita dificuldade de fixar a atenção em uma linha de raciocínio rigorosa e segui-la pacientemente passo a passo.

Segundo Pascal, Descartes cometeu o erro de generazilar o que era de seu tipo particular de espírito considerando isso como uma condição universal do conhecimento humano. A grandeza do ser humano, diz Pascal, não está no espírito de geometria nem no espírito de finura, mas na capacidade de se estender de um a outro e transitar bem nas duas condições. É o que ele tenta em sua teoria, que vai de uma matemática e uma física em grande medida cartesianas até questões profundas das relações sociais, da moral, da psicologia e da alma humana.

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Para Pascal existe alguma grandiosidade no ser humano?

Dizemos que é "incomensurável" é aquilo que não pode ser medido com na mesma escala, com a mesma régua. Por exemplo, as distâncias no espaço sideral são medidas atualmente em anos-luz, que é a distância que a luz é capaz de percorrer em um ano. Tendo uma idéia da velocidade da luz, podemos imaginar a distância que ela pode percorrer em um ano inteiro! As distâncias geográficas no nosso planeta são medidas em quilômetros, e a luz percorre milhares e milhares de quilômetros em questão de segundos; coisas menores que um milímetro costumam ser medidas em mícrons, e assim por diante. Não faz sentido querer estabelecer a mesma medida para tudo –– como Descartes quis fazer. Pode-se imaginar o absurdo que seria medir a distância entre dois planetas em centímetros e milímetros!

Segundo Pascal, além da incomensurabilidade entre sentimentos e fatos fisicamente observáveis, há ainda uma outra. Como seres humanos, estamos conforme já visto entre dois infinitos, o infinitamente pequeno e o infinitamente grande –– e eles são também incomensuráveis. Ser humano significa, para Pascal, ser em contradição: o ser humano é tão insignificante que "um vapor, uma gota d'água bastam para matá-lo", devido a alguma doença. Mas ao mesmo tempo, o homem é capaz de compreender a sua fraqueza e limitação, e assim pode superá-la (e não limitar-se a ela, como propunha Descartes).

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"Mesmo que o universo o demolisse, o homem ainda seria superior àquilo que o matou, porque sabe que morre e sabe qual superioridade o universo tem sobre ele; disso, o universo não sabe nada." Assim como um carrapato, o ser humano tem o seu infinito interior, e está mergulhado em um infinito exterior, mas sendo dotado de pensamento, não consegue sentir-se à vontade com isso: o homem se sente perdido entre esses dois infinitos que não consegue compreender, e que envolvem até mesmo ele próprio, por dentro e por fora. Assim, também não consegue compreender-se por inteiro. Sente-se contraditório.

A grandeza humana está na capacidade de compreender essa situação como um todo e aceitá-la. Mas geralmente não nos elevamos até esse nível, não fazemos valer nossa grandeza.

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Segundo Pascal, existe um mal-estar natural a todos os seres humanos?

Contraditório, o ser humano se sente incomodamente partido em dois (os dois lados de sua própria contradição), como se houvesse um enorme vazio dentro de si, e seu pensamento oscilasse entre as duas bordas desse vazio, tentando agarrar-se de um lado (e sentindo-se imenso, grande demais para isso) ou de outro (e sentindo-se minúsculo, pequeno demais para isso). Um ser humano qualquer em particular pode não perceber isso com clareza a princípio, mas se começa a pensar sobre si mesmo, percebe que no fundo, todo ser humano sente-se mal ajustado no universo, grande demais ou pequeno demais para se encaixar na natureza.

Nossos feitos e ações cotidianos mostram isso. O homem se dispersa com muita facilidade, foge de pensar a respeito de si mesmo e se dedica a distrações, a coisas externas, diversões, trabalho etc. Todas essas ocupações, lúdicas ou sérias, carregam essa ambigüidade insuportável: não são o que parecem ser. Praticadas com pressa e com ímpeto, nascem de uma ânsia pela distração. O homem busca a distração pela distração, no fundo o que quer é fugir de si mesmo, tem medo da solidão, porque sempre lhe falta alguma coisa, não suporta encarar o seu próprio vazio interior, e prefere buscar o que pareça preencher esse vazio, que às vezes se manifesta na forma de tédio, melancolia, tristeza, desespero, sem qualquer motivo aparente (pois no fundo sabe que esse vazio interior nunca será preenchido).

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Para Pascal é possível acessar Deus?

Para Pascal, aquele que busca Deus, se o busca sinceramente, e não apenas por distração, não apenas para ocupar-se de alguma maneira e evitar encarar os próprios sentimentos e a própria condição como ser humano, no fundo do coração permanece em dúvida –– pois sendo humano, é finito, e não pode assimilar Deus (que é infinito) de maneira nenhuma.

Racionalmente é impraticável assimilar o infinito (Deus), a tentativa se mostra ridícula, como o mostraram Montaigne, ao criticar o padre Sebon, que havia tentado demonstrar a racionalmente a existência de Deus, e o próprio Descartes, que tentou fazer o mesmo.

Mas Pascal, com este raciocínio, nos mostra que mesmo emocionalmente continua sendo impossível. Porque o infinito de Deus é algo tão desproporcionalmente maior do que uma pessoa, que, para tentar senti-lo, essa pessoa precisa sentir-se insuportavelmente insignificante e, mais ainda, sentir-se como um absoluto nada, ou seja, deixar de sentir-se, fundir-se com o infinito, e para que o sentimento seja verdadeiro e não ilusório, deve deixar de ser uma pessoa, ultrapassar os limites humanos –– coisa que só é plenamente possível com a morte.

Ora, Pascal não quer pregar o suicídio: declara que a grandeza do ser humano está justamente em ser capaz aceitar toda essa estranha situação e conviver bem com ela, estender-se de uma borda à outra do abismo dos seus próprios sentimentos contraditórios, aceitar o próprio vazio e conseguir abraçar, ao mesmo tempo, aquilo em que se sente insignificante e miserável e aquilo em que se sente gigantesco como um universo. Aceitar suas próprias contradições –– como Montaigne fazia.

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Ao aceitar as contradições humanas Pascal desiste de explicá-las?

É importante notar que Pascal constrói uma explicação para a aceitação das contradições humanas: aceitá-las não é aceitar que é impossível pensá-las, pelo contrário, é procurar pensá-las mesmo que sejam contraditórias.

Assim, temos em Pascal uma explicação racional que deriva todas as nossas contradições de uma contradição básica entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, que descreve a condição humana e explica o funcionamento do desejo, essa constante busca do ser humano por algo que lhe está faltando. O desejo seria um sentimento básico do qual derivam todos os outros, a começar pela solidão, que nasce do medo do ser humano de encarar a si próprio e reconhecer-se como uma contradição vazia e sem sentido, à qual sempre faltará alguma coisa.

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Como Pascal considera a questão da fé?

Seguindo esta linha de raciocínio, Pascal assume o fato de que sente dúvidas com relação à existência de Deus: essa certeza lhe falta, acima de tudo. Mas tem a sensação de que é a única certeza que preencheria o seu abismo interior e resolveria todas as suas contradições. Com base nisto, também assume que essas dúvidas são tão intensas e profundas, tão angustiantes, e exercem tanta influência sobre sua vida, que não pode simplesmente considerar-se um descrente. Pelo contrário: a dúvida quanto a se Deus existe ou não é o centro de tudo na vida de Pascal, portanto Deus é uma questão de extrema importância para ele, a mais importante de todas. É nesse sentido que se diz um "crente", e formula uma definição de "fé" que inclui essa dúvida. Uma fé duvidante, uma fé que é uma aposta fervorosa em algo de que não se tem certeza.

Pascal acredita que, se esta dúvida se solucionasse para todos os seres humanos, todos eles deixariam de ser criaturas contraditórias, feitas de desejos sempre renovados, e passariam a ser criaturas completas e satisfeitas, como deviam ser, provavelmente, Adão e Eva antes da expulsão do paraíso. Entretanto, tem consciência de que esta está longe de ser a única dúvida possível para um ser humano, há pessoas para quem outras dúvidas parecem muito mais importantes. Logo, o que diferencia Pascal dessas outras pessoas é o fato de estar constantemente e intensamente envolvido com a questão de Deus. Como conclusão, Pascal define essa dúvida, tão essencial para sua vida, como fé. Para Pascal, ter fé é duvidar –– mas duvidar tão intensamente, que essa dúvida reestruture toda a sua vida.

Então ter fé é duvidar intensamente. Mas neste caso, é possível que outras pessoas tenham outras formas de fé, que se envolvam com outras dúvidas que acham mais fundamentais do que a dele próprio, Pascal - afinal, ele é apenas humano, como poderia ser o "dono da verdade". O único "dono da verdade", se existe um, deve ser Deus. Para os seres humanos, tudo o que é possível é formar opiniões, que serão sempre contraditórias umas com as outras.

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De que maneira Pascal se aproxima do pensamento dialético?

Temos agora o suficiente de Pascal para compreendermos como ele se aproxima de um pensamento de tipo dialético: para Pascal, apenas um ser no universo poderia explicar tudo sem contradições: Deus –– supondo que ele exista, coisa da qual não temos certeza. Se Deus existe e sabe tudo, é porque seu pensamento, sendo infinito, abrange tudo, é suficientemente grande para abranger em uma explicação coerente todos os pontos de vista existentes e possíveis.

Se Descartes diz ter encontrado um ponto fixo universalmente válido, Pascal declara que esse ponto fixo não é universalmente válido porque para muitas pessoas ele não tem valor, pois não interfere em suas vidas concretas. Neste sentido, Descartes encontrou apenas o seu próprio "ponto fixo", o seu próprio ponto de vista, a partir do qual pretende explicar as coisas segundo sua opinião pessoal.

Pascal declara que o seu raciocínio pode explicar outros pensamentos (como o de Descartes). Portanto poderia mostrar uma coerência no fundo das contradições entre Descartes e, por exemplo, Montaigne. Vejamos: como todos os filósofos e, no fundo, todos os seres humanos, ambos, Descartes e Montaigne, estariam buscando uma solução para a angústia diante do seu vazio interior como seres humanos. E sendo filósofos, estariam tentando construir uma ponte de coerência entre os seus dois infinitos contraditórios, entre a sensação de grandeza e a sensação de insignificância.

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De um ponto de vista pascaliano, podemos dizer, então, que Montaigne agarrou-se a uma dúvida muito intensa: O que sei? E continuou sempre buscando algo mais verdadeiro que superasse suas dúvidas e contradições interiores. Portanto, de certo modo duvidava até mesmo da dúvida –– e com isso, apesar do que possa parecer podemos dizer que, sua dúvida sendo mais intensa e mais sincera, Montaigne tinha mais fé na dúvida do que Descartes. Afinal, Descartes não sentia realmente sua dúvida, era uma dúvida meramente artificial e metódica, como ele próprio declarava –– ele apenas a inventou como uma ferramenta para encontrar algo mais sólido e verdadeiro.

Em outras palavras, do ponto de vista de Pascal podemos dizer que Descartes de fato enfrentou o auto-conhecimento, mas recusou-se a encarar de frente suas contradições, seu vazio interior, e agarrou-se a uma certeza que declarou "absoluta", ainda que tivesse chegado a ela por um raciocínio meramente formal, recusando todas as contradições do mundo como se elas pudessem lembrá-lo (e poderiam) da sua terrível contradição interior como ser humano. No fundo, era como se desde o princípio tivesse aquela certeza absoluta (Penso, logo existo) mesmo antes de usar sua dúvida metódica, e a tivesse usado apenas para se justificar.

Para Pascal, portanto, o ponto fixo é o ponto de vista. E cada um tem o seu. Se queremos explicar todas as coisas racionalmente, precisamos encontrar um ponto de vista a partir do qual consigamos explicar o máximo de fenômenos diferentes que nos for possível. O ponto de vista que nos dê a visão mais abrangente possível da realidade, e que seja capaz de abranger em uma explicação racional inclusive outras opiniões, outros pontos de vista, por mais contraditórios entre si que eles sejam, pois todos trazem apenas conhecimentos relativos, mas todos devem ter um pouco da verdade.

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É aqui que se encontra uma clara semelhança com a dialética que mais tarde apareceria em Hegel: os diferentes pontos de vista opostos uns aos outros revelam verdades apenas parciais, e é preciso buscar a verdade global numa grande síntese que supere as contradições. Para Pascal, essa grande síntese é humanamente inatingível porque está no ponto de vista infinito, que é o de Deus, e todos os nossos pontos de vista são sempre limitados, finitos. Mas isso não quer dizer que não possamos ir jogando os pontos de vista uns contra os outros para irem se corrigindo mutuamente em busca de pontos de vista cada vez mais sintéticos e abrangentes, cada vez menos limitados.

Em resumo: a verdade completa e absoluta, para além de todos os posicionamentos parciais e "verdades" relativas, só pode ser encontrada por inteiro no ponto de vista de Deus, que é absoluto. Assim, Pascal encontra um ponto de vista que lhe parece capaz de fundamentar a visão mais abrangente de todas: Deus. E procura aproximar-se o máximo possível do que poderia ser o ponto de vista de Deus, ou seja, procura examinar toda a realidade como um grande conjunto coerente em que todas as contradições encontrem alguma explicação superior que as torne no fundo coerentes, para que o conhecimento se aproxime cada vez mais do conhecimento absoluto e infinito que só Deus possui, ainda que nunca se chegue de maneira definitiva a esse conhecimento absoluto.

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A dialética de Pascal inclui aceitação de críticas?

Pascal não se atreve a declarar que seja efetivamente possível atingir o ponto de vista de Deus, apenas declara que a crença em Deus (compreendida como uma dúvida vivida com muita intensidade e constantemente) lhe dá o ponto de vista mais abrangente que conseguiu encontrar, pois foi capaz de abranger até mesmo o ceticismo, que é a grande sombra da filosofia –– e então desafia todos os filósofos a encontrarem algum ponto de vista ainda mais abrangente.

Dessa maneira, se o seu pensamento pessoal não atingir o ponto de vista mais abrangente de toda a filosofia, será porque alguém conseguiu algo ainda mais abrangente, algo ainda mais próximo da sabedoria divina, em nome da humanidade, que poderá beneficiar-se dos conhecimentos extraídos desse ponto de vista. E ele, Pascal, naturalmente, continuará lutando para atingir algo ainda mais abrangente do que a sabedoria atingida por seu "concorrente".

Assim, Pascal procura fundar a ciência não em uma verdade absoluta, como Descartes, mas em um movimento constante de diálogo, em que as opiniões contraditórias são lançadas uma contra a outra e cada uma tenta vencer a outra não derrubando-a, mas explicando-a dentro de um quadro explicativo mais abrangente, que exclua o mínimo possível e considere tudo o que puder considerar.

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Como já vimos, não é difícil fazer uma nítida aproximação entre esse perspectivismo de Pascal, que compatibiliza pontos de vista contraditórios enlaçando-os em outros mais abrangentes, e aquilo que reconhecemos hoje como dialética –– ainda que seja apena uma aproximação, e não uma identificação.

Cada filósofo tem sua tese, aquilo que ele defende. Quando o filósofo afirma sua tese, produz reações contrárias entre outros filósofos, que levantam teses diferentes, contraditórias com esta, e que portanto podem ser consideradas antíteses desta (anti-teses), como vemos ocorrer nitidamente entre Montaigne e Descartes. Diante disto, Pascal procura uma síntese –– uma sim-tese, que significa tese de conjunto, que junta as duas em uma tese maior. Uma tese pode ser compreendida como uma posição teórica, no caso uma posição filosófica assumida por alguém, um posicionamento que essa pessoa assume para observar o mundo de um certo ângulo, um ponto de vista.

Uma antítese pode ser compreendida como uma contraposição. A síntese entre as posições contrapostas é uma composição que combina e harmoniza as diferentes posições sem excluir aquilo que elas têm de diferente e contraditório umas em relação às outras, porque a explicação coerente que as organiza num mesmo conjunto está em outro nível. Descartes jamais falaria em vazio interior, ou de uma contradição interior, e Montaigne jamais aceitaria algo do pensamento extremamente formal de Descartes. Comparando-os, Pascal procura compreender a ambos, aceita aquilo em que são contraditórios, mas usa uma idéia capaz de abraçar um pouco do que cada um dos dois queria abraçar e de organizá-los em uma mesma explicação mais abrangente.

Pascal não procura algo de comum entre os filósofos para descartar o que eles têm de diferente ou contraditório. Não se trata de fusão, mas efetivamente de uma espécie de síntese compositiva. Este diálogo em busca de uma explicação mais abrangente que abrace as contradições sem deixá-las de lado, considerando-as parcialmente verdadeiras, é de fato o primeiro grande movimento na história da filosofia em direção à dialética como a conhecemos hoje, que busca essa coerência maior no fundo de todas as contradições sem deixá-las de lado.

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Pascal é mais cético ou mais dialético?

Cético ou dialético? –– é difícil julgar. Sua dialética busca a abrangência absoluta de todo o saber possível, no limite a onisciência de Deus. Mas apresenta ele mesmo esse objetivo como delirante, e faz a própria busca parecer insana, ou reduzida a uma mera ("mera"?) questão de afirmação da dignidade humana. Reduz tudo à dignidade humana. Faz isso com uma seriedade imensa e uma retórica quase capaz de arrastar às lágrimas, que põe em destaque a grande tragédia da condição humana, enquanto condição de busca incansável de um saber absoluto provavelmente inatingível e talvez inexistente, mas essencial e impossível de se ignorar. E ao mesmo tempo, com uma ironia e um bom-humor dignos do mais agudo ceticismo, ironiza essa dignidade: o ser humano não passa de "um caniço pensante" –– diz ele. E para nos apresentar o infinito, o exemplifica com nada menos que um carrapato.

"Zombar da filosofia é, ainda, filosofar" –– diz Pascal. Isto é muito cético.

Melhor não fechar conclusões: acima de tudo, pensemos. Mas não com rígidas razões cartesianas... pensemos mantendo a sensibilidade em aberto, sem recusar as contradições, procurando outros pontos de vista onde possam ser articuladas.

É o que Pascal proporia.

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