Tópicos de vida e obra de Michel Foucault

Pesquisa & Texto da autoria de João Ribeiro de A. Borba

 

sumário


 

Foucault: Filósofo da micropolítica,
combinando Marx, Nietzsche e Freud com boa dose de ceticismo

 

Quais os principais campos de estudo
que Foucault atravessou com sua filosofia?

 

Michel Foucault é um filósofo interessado principalmente no estudo das relações entre conhecimento, discurso e poder. Foi a partir desse interesse central que acabou desenvolvendo seus estudos em diversas outras áreas, como normalmente fazem os filósofos — visto que a filosofia não se define pelo estudo de qualquer especialidade. 

Entre os estudos importantes que Foucault derivou desse interesse há um modelo de historiografia — que tem sido tomado como uma das bases de fundamentação da História do Cotidiano (também conhecida como História das Mentalidades), método de historiadores como Philippe Ariès e Georges Duby por exemplo, e outros que participaram da construção da extensa e famosa coleção História da vida privada.

São estudos que não examinam exatamente o desenvolvimento político ou econômico de uma sociedade, como vemos em historiadores marxistas, nem as grandes revoluções, ou os grandes atos de pessoas heróicas, famosas ou poderosas, à maneira dos historiadores mais antigos. Ao invés disso, esses historiadores inspirados em Foucault examinam os registros históricos de inúmeros casos de pessoas comuns e desconhecidas que viveram em certa época em certo lugar, e a partir desses estudos, fazem o levantamento da mentalidade daquela sociedade naquela época, isto é, dos costumes diários, dos pensamentos, dos sentimentos e valores que eram típicos de uma pessoa comum naquela sociedade.

Foucault tem toda uma densa pesquisa histórica realizada por ele de modo bem similar a este que depois foi praticado pelos historiadores do cotidiano (ou das mentalidades). São pesquisas a respeito de diferentes assuntos, principalmente sobre temas de psicologia, entre os quais se destacam as questões da sexualidade e da doença mental. Suas principais obras sobre esses assuntos são o livro História da loucura e os vários volumes de sua História da sexualidade. Mas seus estudos sobre temas de psicologia, psicanálise e psiquiatria não são sempre necessariamente ligados aos estudos de história, às vezes Foucault aborda temas dessas áreas analisando-os diretamente.

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Além disso, Foucault desenvolve dentro de sua filosofia uma teoria crítica sobre conhecimento e a verdade, e uma teoria crítica da linguagem e dos discursos (isto é, das coisas normalmente ditas ou pensadas por pessoas de certos grupos sociais, e do modo como costumam dizer ou pensar essas coisas). Examina os discursos decifrando aquilo que exprimem da mentalidade e dos valores coletivos em uma sociedade, aquilo que nem sempre é dito às claras, mas que está lá, por detrás do que foi dito.

Ele  combina essas duas teorias (a de crítica do conhecimento e da verdade e a de crítica dos discursos) em obras como As palavras e as coisas e Arqueologia do saber. Procura sempre mostrar como os discursos e a mentalidade que está por detrás deles interferem na concepção que uma sociedade tem do que é a verdade, nos conhecimentos que ela aceita como válidos, e no modo como ela constrói esses conhecimentos. E como essas concepções sociais a respeito dos conhecimentos e da verdade interferem também na formação dos discursos dos diferentes grupos sociais em uma sociedade.

Podemos destacar também, entre as produções de Foucault, além de um sólido pensamento crítico com base no qual firmou um interessante ponto de vista ético, toda uma discussão de forte interesse especificamente para o campo jurídico, envolvendo uma refinada e provocativa crítica de limitações Direito das quais toda a tradição jurídica mundial até o momento não havia se apercebido com clareza. Para o campo jurídico, Foucault é um pensador extremamente provocativo.

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Quais as principais influências que marcaram Foucault?
Como podemos classificar seu posicionamento filosófico?

 

Em sua formação, Foucault foi influenciado inicialmente pela psiquiatria, pelo marxista Louis Althusser e ao que parece também pelo existencialista Martin Heidegger — que tem como uma das marcas de sua filosofia a valorização das diferenças e daquilo que as pessoas têm de único, suas carcterísticas singulares e intransferíveis. Heideggerianismo e marxismo formam, aliás, uma combinação bastante incomum de influências.

Por outro lado, ao mesmo tempo que parecia influenciado por Heidegger no início, já desde cedo assumiu uma postura bastante diferente daquela do mais famoso existencialista de sua época, Jean-Paul Sartre. E como apesar dos traços de influência heideggeriana Foucault fazia algo muito diferente do as pessoas estavam acostumadas a encontrar em obras de existencialistas. Isto levou muitos leitores interessados a associarem sua filosofia com o pensamento estruturalista. Se os existencialistas examinavam as coisas preferencialmente do ponto de vista da existência individual de um ser humano, seus sentimentos diante da vida e diante da sua própria condição humana, suas angústias e aflições etc. E Foucault, diferentemente de Sartre, preferia focalizar a coletividade, e não o indivíduo. 

Desde a antropologia de Claude Levy-Strauss o estruturalismo, fundado por ele, vinha ganhando terreno em diversas áreas fora da antropologia e entrando em polêmicas com os existencialistas de um lado, com os marxistas de outro. O estruturalismo procurava se concentrar não na subjetividade individual nem nas questões angustiantes da existência humana, mas sim, de modo bem mais seco, técnico e analítico, na estrutura das relações sociais, no modo como se articulam umas com as outras formando uma rede padronizada de interações e comportamentos que se complementam uns com os outros na sociedade.

Esta postura dos estruturalistas contrastava por outro lado com a dos marxistas, porque estes costumavam dar mais atenção à história político-econômica de desenvolvimento das sociedades, destacando principalmente os conflitos sociais e políticos e os grandes momentos de transformação pelos quais cada sociedade passava. Para os marxistas, o estruturalismo parecia ficar "estacionado" no exame de situações mais ou menos estáveis que haviam se estabelecido em cada época, e parecia também dar preferência ao que parecia harmônico e coerente na sociedade estudada, perdendo de vista os processos de transformação e grande parte dos conflitos sociais, políticos e econômicos que levavam a essas transformações. Entretanto, se preferia focalizar mais o coletivo que o individual, Foucault, contrariando sua fama, na verdade nunca se encaixou muito bem nessa linha estruturalista.

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É verdade que do ponto de vista dos estudos de História, Foucault, como os estruturalistas, focaliza menos os processos revolucionários e de grandes transdormações, e mais uma época colocada por ele em exame. As transformações históricas, em suas obras, tendem transparecer naturalmente a partir do contraste entre o exame dessa época e o exame da época seguinte. Isto é de fato uma maneira de proceder que, para um marxista, pareceria típica dos estruturalistas. No entanto, Foucault muitas vezes se agarra a um tema (por exemplo a maneira como se compreende a "loucura") e persegue cuidadosamente as transformações pelas quais esse tema foi passando ao longo do tempo em diferentes sociedades.

Além disso, ao contrário do que muitos esturturalistas costumam fazer, ele ressalta fortemente os conflitos e oposições nas sociedades estudadas. E a tal ponto aliás, que mal se pode falar de qualquer coisa como alguma "estrutura" geral interligando todos os comportamentos naquela sociedade. Seria mais acertado portanto, no caso de Foucault, falar em uma imensa pluralidade de forças em oposição na sociedade — forças que tendem a se organizar em discursos mais ou menos estruturados, mas opostos uns aos outros, e também em certas formas de mentalidade mais ou menos estruturadas também, mas igualmente opostas umas às outras.

Em suma: com base em Foucault, dificilmente se poderia falar em uma única grande "estrutura" de funcionamento na qual todos os conflitos de uma sociedade revelariam estar sob uma mesma lógica. Mais do que isso, Foucault focaliza muito intensamente o que é não apenas inconsciente, mas irracional (e inclusive incoerente) nos comportamentos sociais. E tende a focalizar mais os pontos em que ocorrem essas incoerências profundas do que qualquer estrutura coerente e única que existiria subjacente a tudo em uma dada sociedade. De fato, é verdade que Foucault não pode ser considerado um existencialista. Entretanto assim que começou sua fama de "estruturalista", tratou de deixar bem claro para o público, explícita e declaradamente, que também não era um estruturalista — como logo se torna evidente quando vamos avançando na leitura de seus textos. Não obstante, alguns continuam a classificá-lo assim, mas a maioria acabou reconhecendo seu diferencial em relação ao estruturalismo.

Entretanto, como claramente não chegava a ser um existencialista, nem exatamente um marxista, o público leitor começou novamente a enquadrá-lo em uma outra categoria: ele seria então um "pós-estruturalista": alguém que passou pela influência do estruturalismo e a ultrapassou, mas que mantém suas influências. Isto é estranho para um autor que, afinal, não tem de maneira nenhuma Levy-Strauss entre suas principais influências. Mais uma vez, Foucault tratou de deixar claro que o rótulo não se ajustava a ele. Foucault era Foucault — tinha sua própria linha original de pensamento, e enquadrá-lo nesta ou naquela tendência não ajudaria a compreendê-lo melhor. 

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Contudo, apesar de incomodar-se com esse tipo de classificações, chegou a escrever um pequeno livro que, embora tenha uma importância bem menor que a de muitos outros livros seus, mostra bem claramente, e de maneira muito assumida e explícita, suas principais influências: em primeiríssimo lugar, Nietzsche (o filósofo que havia servido de base a Heidegger quando este estava fundando sua nova filosofia existencialista e fenomenológica), e Freud (o fundador da psicanálise, e uma das principais bases de onde emergiu toda a psiquiatria); em segundo lugar, logo abaixo desses dois, Marx (o pensador que estava na base de Althusser).

Declarar essas influências, aliás — Nietzsche, Freud e Marx — por si só já mostra uma atitude intelectual bastante típica de Foucault: ele tende a cavar sempre mais fundo, em busca do que estaria nos fundamentos, na origem ou na base daquilo que se apresenta como objeto de estudo inicial.

Por outro lado, se essa atitude de busca dos "fundamentos" daquilo que se estuda costuma ser típica de quem está em busca de certezas mais sólidas e seguras por detrás das aparências, o caso de Foucault curiosamente não é esse. Pela maneira como interpreta esses autores, poderíamos com uma considerável margem de segurança — embora ele não costume se pronunciar a respeito disso — considerá-lo também influenciado em alguma medida pelo ceticismo pirrônico, aquela tendência filosófica que não aceita qualquer fixação de verdades definitivas e absolutas, e que permanece sempre e radicalmente em um incessante movimento de investigação, jogando todas as teses e teorias que vai encontrando umas contra as outras, ou ressaltando nelas apenas os seus aspectos mais dinâmicos e questionadores. E é assim que opera no pensamento de Foucault essa atitude de buscar fundamentos: seus resultados são sempre muito mais críticos e demolidores em relação aos modos tradicionais de pensar os mesmos assuntos, do que qualquer fundamentação mais segura, ou mais certa, daquilo que se poderia esperar disso.

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De que maneira as influências de Nietzsche, Freud e Marx
marcaram o pensamento de Foucault?

 

O livro em que Foucault deixou claras suas principais influências, como não poderia deixar de ser, chamava-se Marx, Niestzsche e Freud. Nele, Foucault declara que esses três pensadores são os marcos fundamentais não apenas do seu pensamento em particular, mas de certo modo do pensamento filosófico mundial contemporâneo como um todo. Principalmente porque todos os três, segundo sua avaliação, recusam radicalmente qualquer estratégia que tenda absorver e enquadrar seus pensamentos em alguma grande tendência geral a partir de pontos de acordo — ou seja: o único real ponto de acordo entre eles está no próprio fato de que não há pontos de acordo, colocam-se cada um como um pensador irredutivelmente diferente de qualquer outro discurso que não seja o seu. De modo que não há como contornar, esconder oo disfarçar a diferença que apresentam em relação a outros pensadores.

Mais do que isso: segundo Foucault, os três, Marx, Nietzsche e Freud (e especialmente esses dois últimos) sugerem, cada um à sua maneira, que não há conciliação que possa contornar, esconder ou disfarçar de maneira definitiva as diferenças conflitantes e insolúveis entre os posicionamentos opostos de quaisquer que sejam os filósofos ou discursos que estão em oposição — no caso de Marx, isto se concentra principalmente na oposição entre o discurso (ou ideologia) da burguesia capitalista e o do proletariado; no de Nietzsche, na oposição entre o discurso do forte, que valoriza o risco e o viver intensamente, e o discurso do fraco, que valoriza a sobrevivência e o viver com segurança e longamente; no caso de Freud, na oposição entre o patológico e o saudável ou terapêutico (ou menos patológico)... ou ainda, na oposição entre o thanático (a tendência à morbidez e à destruição) e o erótico (a tendência ao prazer e à vida).

Peneirando nos três esse tipo de atitude, que desmascara em tudo oposições insolúveis e irredutíveis, temos como que a sensação de que qualquer posicionamento assumido por alguém tenderia a reinterpretar outros posicionamentos à sua própria maneira, de modo que ninguém pode atingir um ponto em que a sua interpretação do que o outro disse esteja realmente de acordo com o que o outro disse.

Assim, os três, Marx, Nietzsche e Freud, optam por simplesmente não tentar chegar a essa interpretação "perfeita" do que o outro quis dizer — considerando impossível ultrapassar completamente o território do seu próprio modo de pensar. Optam então por não chegar a um entendimento com o outro, mas apenas a um entendimento do outro à sua própria maneira, recusando qualquer (falsa, hipócrita) conciliação definitiva com o outro. Em outras palavras, segundo a leitura de Foucault, são autores que simplesmente assumem até o fundo, e com todas as consequências, o fato de que cada um deles entende à sua própria maneira o que é dito por outros. Como qualquer um na verdade faz, quer se dê conta disso plenamente ou não — é o que qualquer um desses três pensadores poderia acrescentar. Porque todos os três, além disso, trabalham constantemente fazendo interpretações que desmascaram, por detrás do discurso dos outros, pensamentos e valores que estão indiretamente, inconscientemente embutidos ali, sem serem percebidos pelos que colocam esses discursos.

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Ou seja: uma pessoa pode dizer o que quiser, defender as ideias e valores que quiser, e aos olhos de Marx, no fundo estará sempre ocultando um posicionamento dominado pela ideologia capitalista e exploradora, ou um posicionamento que revela seja o senso de realidade característico de um proletário consciente, seja a postura "proletarista" de um bom traidor da classe exploradora. Uma pessoa pode defender a imagem que quiser de si mesma, e aos olhos de Freud, estará sempre apenas manifestando, com maior ou menor consciência disso, seus mecanismos psicológicos de defesa do Ego contra os ataques de quem tenta "invadir" seu subconsciente para trazer à sua consciência os monstros que estão ali (quem discordar de Freud, inclusive, tenderá a ser compreendido por ele desta maneira!). E uma pessoa pode defender os valores morais que bem entender, por detrás deles, Nietzsche sempre encontrará e tratará de desmascarar aqueles mesmos valores de quem quer a intensidade da vida mesmo correndo todos os riscos implicados nisto, ou de quem quer apenas suportá-la em um grau baixo ou mediano de intensidade para meramente sobreviver (como que morto em vida) pelo tempo mais longo que conseguir.

O caso de Nietzsche merece um pouquinho mais de atenção, aqui. Para ele, esse esforço de mera e medíocre sobrevivência dos que seguem o segundo caminho mencionado no parágrafo acima (normalmente a grande maioria), se realiza através de uma aliança comunitária em torno de valores e de todo um modo de vida padronizado que garantem essa segura e estável mediocridade longamente vivida para todos. O custo disto é uma oposição feroz, agressiva, social e coletivamente dirigida contra qualquer um que pretenda ser ou viver de modo diferente. E este é um ponto em que Foucault, defensor muito firme das diferenças e do direito de ser diferente, se revela muito profundamente nietzscheano.

Por suas atitudes e posicionamentos enquanto filósofo, e também pela leitura e avaliação que faz dessas três linhas de pensamento, Foucault foi talvez um dos principais responsáveis pela grande onda das assim chamadas filosofias da diferença — que com o Movimento de 68, passaram a tomar um grande espaço na comunidade filosófica mundial, e que geralmente assumem Heidegger ou Nietzsche como uma de suas principais referências. Entre os filósofos dessa linhagem temos por exemplo Giles Deleuze e Paul Ricoeur.

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Qual a principal influência da filosofia de Foucault
no pensamento político mundial?

 

De todas, a maior influência de Foucault sobre o pensamento político mundial é aquela que deriva de seu livro Microfísica do poder. Se a filosofia política tradicional pensava as relações de poder a partir das grandes instituições políticas oficiais e do relacionamento entre partidos políticos, tendo por referência sempre as estruturas governamentais, e se o marxismo ampliou um pouco essa perspectiva dando atenção também à participação indiretamente política organizações econômicas e dos sindicatos, a amplificação proporcionada por Foucault nesse sentido foi tão mais radical que se pode falar em uma verdadeira "explosão" dessas perspectivas políticas, até então sempre centradas na questão do Estato e de quem detém poder sobre a máquina estatal.

A abordagem inaugurada por Foucault na filosofia política detectou e demonstrou, com toda clareza, uma enorme relevância de relações de poder que até então sequer eram estudadas: aquelas pequenas relações de poder que se verificam cotidianamente, em nível microscópico, no nível interpessoal — entre os membros de uma família, os colegas de trabalho ou de estudo, e em geral em todas as relações humanas e sociais.

Mostrou como essas microscópicas relações de poder não apenas correm paralelamente às estruturas da ordem política oficial, com frequência sem nem mesmo serem afetadas por elas, como além disso, pelo contrário, elas é que acabam afetando a totalidade da ordem política, no nível macroscópico em uma sociedade... E mesmo quando não o fazem, acabam de qualquer modo por ser mais relevantes para a vida, e merecer ainda maior atenção dos estudos políticos do que aquelas relações de poder macroscópicas tão habitualmente focalizadas.

Isto gerou uma verdadeira crise no pensamento político mundial, porque não se sabe bem como atuar politicamente de maneira engajada em um mundo em que, como Foucault nos revela, os poderes se encontram tão pulverizados. Pulverizados a tal ponto que não há mais focos específicos sobre os quais concentrar especialmente a atenção. A partir do que Foucaoult nos revelou, já não parece mais fazer tanto sentido como antes, por exemplo, concentrar críticas e esforços de pressão dirigindo-os especificamente contra a atuação dos detentores do poder oficial, e menos ainda concentrar forças em torno de estratégias para a tomada desse poder. Deste novo ponto de vista, a atuação microscópica, no sentido de modificar as pequenas relações de poder no cotidiando — no sentido de modificar o modo de vida das pessoas em seus relacionamentos interpessoais, em suma — tende a parecer mais relevante.

Por outro lado, se a militância política perde na prática seus eixos habituais e focos centrais de atuação, a crítica política por parte dos estudiosos granha todo um campo fertilíssimo de atuação, que pode vir a orientar no futuro a militância. Entretanto é preciso observar que mais de 20 anos depois de inagurada, a abordagem foucaultiana permaneceu ainda sempre tão fértil para a crítica política, no plano teórico, quanto inadequada para a orientação, no plano prático, de ações efetivas na política, para além do mero discurso crítico. Por isso, ao basear-se nessa nova abordagem, a militância política tende a procurar orientação para suas práticas fora do pensamento de Foucault.

Procuram essa orientação, em geral, em outras linhas de pensamento que, igualmente afinadas com o Movimento de 68, oferecem alguma orientação talvez conciliável com a de Foucault — como por exemplo o Situacionismo de Guy Debord. Mas há também os que procuram essa orientação mais prática em pensadores da mais tradicional linhagem anarquista, como Pierre-Joseph Proudhon ou o anarco-individualista Max Stirner (para quem aliás essa classificação decerto não é exatamente precisa). No entanto, nenhuma conciliação teórica realmente cuidadosa e coerente de Foucault, seja com o Situacionismo, seja com o Anarquismo, conseguiu firmar-se de maneira consistente e generalizada como orientação padrão para toda essa militância teoricamente "desorientada" — sem uma linha de pensamento que lhe oriente as ações de modo firme e coerente — desde as revelações foucaultianas sobre a política.

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A filosofia política de Foucault tem alguma expressão mais direta nos campos do Direito e do exercício dos poderes estatais oficiais?

 

No campo do pensamento jurídico, em particular, o aspecto mais provocador e instigante do pensamento de Foucault está em sua noção de poder disciplinar, e na ideia de que há uma pressão normalizadora constante por parte dos grupos sociais sobre os indivíduos. Pressão pela qual esses grupos sociais impõem aos indivíduos normas que estão para além daquelas juridicamente reconhecidas, que correm paralelamente a elas sem sofrerem o efeito das mesmas, e que frequentemente inclusive chegam a afetar por vias sutis e discretas, mas poderosas, o próprio processo de formulação das normas jurídicas oficiais.

Ele constatou que todas as tradições teóricas no campo jurídico até o momento haviam sempre considerado o indivíduo seja como um simples reflexo do meio social, seja como uma pequena unidade integral — um "átomo" social — sobre o qual agem as leis e o poder, tal como oficialmente estabelecidos, ou sobre o qual agem as influências e forças de pressão sociais. De modo que as leis, poderes oficiais e/ou influências e pressões sociais tratam de conter certas ações individuais e, assim, modelar o conjunto dos seus comportamentos dos indivíduos.

Mas Foucault detectou também, para muito além de tudo isso, a existência desse poder disciplinar que, exercido pelo aspecto normalizador dos grupos sociais, não afeta apenas algumas ações do indivíduo (as ilegais), como se fosse um "átomo" livre com tais ações perniciosas estrategicamente contidas. Mais do que isso, o poder disciplinar remodela o próprio modo de ser dos indivíduos, reprimindo de maneira violenta qualquer manifestação mais radical de sua singularidade, de suas diferenças em relação ao que é considerado "normal" e "socialmente aceitável" naquele grupo. Assim, o indivíduo é injustamente punido pelo simples fato de "ser diferente" do que a normalidade determina como "aceitável".

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Essa "normalidade" constiste em todo um sistema de normas e punições muito efetivas e realmente verificáveis nos mais variados grupos sociais — e que no entanto, passam ao largo de todo o sistema jurídico e de toda a história do pensamento jurídico sem que a esfera do Direito tenha sequer se dado conta oficialmente da sua existência. O sistema jurídico, em consequência, tende a simplesmente ignorar, de maneira chocante, essa realidade. Uma comunidade carcerária, por exemplo tem todo o seu sistema de normas, todo o seu padrão de "normalidade" muito específico estabelecido entre os prisioneiros por eles próprios, e os desvios em relação a essa "normalidade" tendem a ser severamente punidos, sem que nada disso tenha qualquer relação direta com o sistema jurídico oficialmente estabelecido.

Mas esse tipo de coisas ocorre nos mais variados agrupamentos sociais, e aqueles que estão envolvidos nas atividades jurídicas oficiais de uma sociedade não são exceção. e sem se darem conta, são afetados — eles também — pelos padrões de normalidade aos quais se apegam, e pelo poder disciplinar que é exercido, também sobre eles, conforme excercem suas atividades na esfera jurídica. Essas atividades (assim como seus resultados) são evidentemente afetadas por isso — não poderiam deixar de sê-lo — e no entanto, costumam seguir adiante sempre ser se dar conta sequer da presença desses efeitos tão evidententes. Os envolvidos não costumam sequer lidar suficientemente com o problema, que no mais das vezes, parecem ignorar como se fosse irrelevante, ou nem mesmo perceber.

Mais tarde, depois de ter gerado com seus pensamentos uma crise na orientação das ações politicamente engajadas, e um choque de realidade nas perspectivas tradicionais no campo jurídico, Foucault — possivelmente preocupado com os efeitos pulverizantes de suas próprias descobertas teóricas sobre as atividades politicamente engajadas, quem sabe? — começou a concentrar sua atenção em algo a que chamou de biopolítica.

Trata-se do conjunto das estratégias políticas oficialmente adotadas pelos poderes institucionais, nos mais variados Estados nacionais do mundo, visando o controle estratégico das próprias condições biológicas de sobrevivência e de vida das populações sob seu controle. É o que se verifica por exemplo no controle de natalidade da população de um Estado, que frequentemente lse apoia em considerações ligadas à estratégia de desenvolvimento econômico do país, independentemente dos interesses diretos das famílias envolvidas.

Talvez Foucault tenha encontrado este tema da biopolítica (ou do biopoder) ao buscar um modo de combinar realisticamente a sua perspectiva dos micropoderes com um foco de atenção crítica um pouco mais direcionado especificamente para as ações do poder Estatal.

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