Tópicos de Vida e Obra de John Locke

Pesquisa & Texto da autoria de João Ribeiro de A. Borba

Primeira revisão (formal) em Jan/2021

 

ESTE MATERIAL AINDA NÃO ESTÁ PRONTO, MAS JÁ PODE SER CONSULTADO. PODE SER LIDO E COMPREENDIDO COMO UM TEXTO COM COMEÇO, MEIO E FIM CONTENDO JÁ O BÁSICO ESSENCIAL SOBRE LOCKE. NO ENTANTO FALTAM AINDA ALGUMAS POUCAS QUESTÕES A SEREM TRATADAS, E ALGUMAS CITAÇÕES E IMAGENS A SEREM INTRODUZIDAS.

sumário


 

Locke: iluminista, empirista, contratualista
e um dos primeiros teóricos do liberalismo capitalista


Qual a importância de Locke, e em que áreas da filosofia ele atua?

 John Locke (1632-1704) é um pensador inglês conhecido por suas realizações no campo da filosofia jurídico-política e, principalmente, no campo da teoria do conhecimento.

Entretanto, poucas vezes os estudiosos e comentadores de sua obra se preocupam em relacionar mais intimamente suas teorias nesses dois campos tão diferentes. Não costumam procurar pela coerência do conjunto do pensamento de Locke, limitando-se a estudar separadamente o que ele diz em um desses campos e o que diz no outro.

Aqui, vamos fazer um esforço no sentido de sanar isso — ou pelo menos uma provocação para que os mais interessados Locke procurem sanar isto.

No campo jurídico-político temos basicamente, em John Locke, um antiabsolutista agressivo, escrevendo em defesa dos valores liberais e do enriquecimento fundado na produtividade (e não na herança de terras e bens conquistados pela força das armas como é quase sempre o caso da nobreza ou aristocracia em seu tempo).

Ele assume essa postura numa época em que a burguesia produtiva estava em acensão, e entrava em conflito constantemente com a aristocracia decadente. No entanto não chega a detectar o papel do trabalhador assalariado na produção, nem a questionar o trabalho escravo — coisas que pouco tempo depois e no contexto francês contribuíram para a fama de radicalismo político de Rousseau (1712-1778). Locke, pelo contrário, tendia a encarar os empresários como os verdadeiros produtores, e a mão de obra de outros empregada por eles como e meras extensões do esforço do trabalho desses empreeendedores na produção.

CIT 1

Como Locke valoriza, entre os capitalistas, apenas aqueles que acumulam seu capital com base no trabalho, isto se ajusta bem à maior parte da burguesia empresarial em dura e difícil (mas consistente) ascenção na época, que era uma burguesia empresarial formada basicamente por mestres artesãos enriquecidos ou por seus descendentes imediatos, que herdavam não apenas a riqueza, mas sobretudo as técnicas de trabalho a serem passadas aos funcionários, e o gerenciamento da empresa. Essa burguesia via seu caminho de ascenção dificultado pelos privilégios e pelos preconceitos e ataques agressivos da aristocracia.

Em diversos países essa aristocracia agressiva procurava manter seus privilégios e suas condições luxuosas de vida às custas de favores do rei, gastando muito mais do que produzia (por meio de seus servos camponeses) e onerando os cofres públicos com isso — cofres que, claro, eram sempre recheados com pesados impostos cobrados dessa burguesia produtiva, e rapidamente esvaziados com gastos ininustificáveis do governo para manter o luxo da vida aristocrática para os que estavam habituados a ela. Em diversas partes da Europa a burguesia se revoltava e se insurgia contra isso, principalmente por essa razão. 

No campo da teoria do conhecimento, Locke pode ser considerado o mais influente de todos os filósofos empiristas até sua época — que afirmam que todo conhecimento depende da experiência e começa pelos dados sensoriais que vamos captando pelos olhos, ouvidos, pelo nariz, pela boca, pelas sensações na pele... os empiristas acham que a base de todos os nossos conhecimentos no fundo está nisto, que  não em elementos que nos são inatos (isto é, pré-existentes na nossa mente já desde que nascemos).

As conexões entre o empirismo de Locke e a sua teoria jurídica e política não são completamente evidentes. Mas isto não significa que elas não existam ou que não sejam relevantes para um entendimento melhor de sua filosofia.

 

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Locke combina o empirismo com mentalismo:
o que significa dizer isto? 

Locke ― como já mencionado ― é o mais famoso dos empiristas, filósofos que na época valorizavam acima de tudo a experiência e os dados sensíveis como bases de todo conhecimento.

Os empiristas ― principalmente Maquiavel, que desenvolveu a base da coisa sem ter sido devidamente reconhecido nisto, e Francis Bacon, que acabou considerado o fundador dessa corrente de pensamento ― começaram como opositores de teorias muito apoiadas na mente e na subjetividade humana.

Maquiavel e Bacon, e outros que como eles começaram a fundamentar o empirismo, são pensadores que viveram entre os séculos XV, XVI e XVII, e buscavam um conhecimento mais objetivo e apoiado na observação dos fatos externos à nossa mente, menos dependente de nossos valores subjetivos e de nosso raciocínio com base neles.

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Esse tipo de postura já antecipa os esforços da ciência mais tarde (no século XIX) no sentido de evitar se apoiar em juízos de valor, isto é, evitar avaliações (ou julgamentos) a respeito de como seria bom que as coisas fossem ou que as coisas não fossem, e procurar se limitar aos juízos de fato, aos julgamentos sobre como as coisas são de fato ou como elas não são.

A linha oposta nesse debate, valorizando a mente humana mais do que os objetos externos percebidos por ela, passou a defender a tese de que o que torna os conhecimentos mais objetivos não é a simples observação dos fatos, e sim o raciocínio correto, preciso, coerente e bem feito (como na matemática). Portanto um elemento de nossa mente e independente da experiência dos fatos externos — nossa capacidade mental de raciocinar — ...embora esse nosso elemento mental não fossem os juízos de valor puramente subjetivos tão criticados pelos empiristas.

Esse posicionamento oposto ao dos empiristas se organizou portanto em torno da defesa da razão como o centro da nossa capacidade de conhecimento, considerando-a plenamente capaz de se livrar da influência de valores subjetivos, e mais confiável em seus resultados do que a simples experiência e a observação dos fatos. Por isso ficou conhecido com "racionalismo". O principal defensor disto foi o francês René Descartes (que viveu na passagem do século XVI para o XVII).

No mesmo século XVII, alguns pensadores começaram a combinar as duas posições opostas, entre os quais os mais marcantes e influentes foram Thomas Hobbes, o fundador da linha de pensamento contratualista (que retomou isto de um outro chamado Althusius, mas deu a esse contratualismo um sentido inteiramente novo), e o próprio John Locke, também herdeiro do contratualismo de Hobbes.

Mas Locke ressaltou muito mais o empirismo do que o mentalismo racionalista cartesiano (de Descartes), enquanto Hobbes mostrava um posicionamento muito mais marcado pelo racionalismo cartesiano do que ele. De modo que Hobbes ficou conhecido como um "cartesiano" apesar de valorizar também o empirismo (principalmente o de Maquiavel), e Locke por outro lado ficou conhecido como empirista ― e um dos mais importantes pensadores do empirismo inclusive, apesar de seu empirismo, bem menos radical nessa direção que os de Maquiavel e Bacon, estar marcado por um mentalismo que ele aprendeu com a leitura de Descartes.

A partir de Locke, o empirismo de Maquiavel e de Bacon passou a ser encarado por muitos histpriadores como um empirismo ainda "ingênuo", por confiar demais nos dados dos sentidos e da experiência. Entretanto isto não é exatamente justo. Sabemos que Maquiavel dá bastante atenção aos limites da observação e a uma larga margem de imprevisibilidade com a qual é preciso contar quando agimos com base nela, e sabemos que Bacon explora muito cuidadosamente diversas fontes de erro na observação dos fatos, em sua famosa teoria dos ídolos.

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Apenas os dois permanecem em uma espécie de empirismo mais puro, sem examinar tão a fundo quanto Locke o aspecto psicológico da coisa, isto é, de que modo os dados observados passariam do ambiente externo para dentro da mente humana.

CIT 2

 

 

 

Como é a teoria da "tábula rasa" de Locke, e como ela está relacionada ao empirismo?

 Sua principal obra sobre o assunto ― aquela em que mais cuidadosamente expõe sua teoria do conhecimento empirista com complemento no mentalismo racionalista ― se chama Ensaio sobre o entendimento humano, e foi publicada pela primeira vez em 1690, depois de vinte anos de preparação e de discussões com outros estudiosos, especialmente cientistas membros da Royal Society, associação à qual estava ligado.

 

Capa do livro

 

Locke considerava a filosofia como uma preparação para a ciência, e no livro, encontramos um prefácio com o título Epístola ao leitor no qual ele diz que seu trabalho é “como o de um ajudante de jardinagem, preparando o terreno e removendo o entulho que atrapalha o caminho do conhecimento”.

Mas se é talvez o empirista mais famoso, como já dissemos não é de modo algum o mais radical, porque combina o seu empirismo com o que podemos chamar de um mentalismo. Podemos dizer isso porque ele apresenta uma boa dose de ceticismo em relação à nossa capacidade de captarmos diretamente pelos sentidos e pela experiência a realidade do modo como ela é em si mesma.

Segundo ele, recebemos em nossa mente apenas sinais desconexos e desconjuntados vindos da realidade externa, e é nossa mente que, utilizando nossa capacidade racional, interpreta e organiza esses sinais chegando ao que parece ser uma imagem razoável, em alguma dose possível e até mesmo provável, dessa realidade externa.

CIT3

Na verdade, o que ele diz é que temos na mente “ideias” de dois tipos. Temos aquelas que vão sendo formadas por esses “sinais” que vêm do mundo exterior através de nossas sensações físicas, que são representações mentais das coisas que existem no mundo. E temos ideias que formamos em nossa própria mente através da reflexão, examinando o próprio modo como essas representações vão se formando na nossa mente... estas últimas são ideias sobre operações mentais que podemos fazer utilizando nossas representações mentais das coisas do mundo.

CIT4

Isto quer dizer que não existe nenhuma ideia inata em nossas mentes, nenhuma ideia que já esteja lá desde sempre, desde o nosso nascimento. Todas as nossas ideias foram sendo formadas na nossa mente em algum momento.

Vão sendo formadas primeiro pelo modo como captamos os sinais do mundo exterior através de nossas sensações físicas e nossa mente vai organizando esses sinais em “ideias”, em representações das coisas que existem “lá fora” da nossa mente. Em seguida pelo modo como percebemos em nós mesmos essas ideias se formando e se organizando, através de nossa reflexão, isto é, observando como a coisa acontece em nós mesmos.

Essa “reflexão” nos ensina a combinar de diferentes maneiras os sinais que captamos do mundo exterior e também as ideias, ou representações, que formamos com eles. E essas combinações diferentes que vamos aprendendo a fazer mentalmente são as nossas operações mentais, são o nosso raciocínio com base naqueles dados (naqueles “sinais”) que vieram da observação e da experiência.

CIT5

Segundo uma expressão famosa de Locke, “não existe nada em nossa mente que não tenha passado antes pelas sensações” CIT6. Para exprimir isso com mais clareza, ele utiliza também uma metáfora igualmente famosa: diz que a mente humana no início é vazia como uma “tábula rasa”CIT7.
Naquela época de Locke os estudantes, nas escolas, tomavam notas das aulas riscando as palavras em uma placa de cera macia encaixada em uma caixa rasa de madeira. Para apagar depois, bastava alisar a cera novamente passando uma régua de madeira. Essa caixa rasa cheia de cera é que era chamada de “tábula rasa” ― a antepassada dos cadernos de papel e, mais tarde, dos tablets.

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tabula rasa

 

De qualquer modo é importante notar que para Locke a mente humana apresenta naturalmente uma capacidade de pensar, de realizar operações (raciocinar) com base nesses dados, que vão sendo gravados na mente como os sinais riscados numa “tábula rasa”.


Qual a situação histórica e biográfica em que Locke
desenvolveu seus posicionamentos e criou sua teoria?

Nascido em uma família de classe média, filho de um funcionário dos tribunais que se tornou capitão no serviço militar, Locke além de filósofo era formado em medicina, o que provavelmente o influenciou muito em sua opção pelo empirismo — porque é uma ciência normalmente bastante apoiada na pesquisa empírica, isto é, na observação e na experiência.

Foi também professor de grego, retórica e filosofia. Mas passou a maior parte da vida em atividades políticas. Locke era ligado a um lorde do partido liberal inglês — o partido Whig, esquerda da época, mais ligada aos interesses da burguesia empresarial que aos dos lordes aristocratas mais tradicionais. Tratava-se do Lord Ashley Cooper, também conhecido como Conde de Schaftensbury. Locke trabalhou para ele viajando em inúmeras missões diplomáticas. Mais tarde, com o apoio dele, chegou a ocupar um cargo na Junta de Comércio da Inglaterra. Saiu do cargo quando o conde, que era seu protetor, perdeu sua posição e influência no poder. 

Politicamente, Locke defendia uma monarquia constitucional representativa, mas incluindo nisto a novidade de uma defesa teórica cuidadosa da divisão de poderes. Chegou a sofrer alguma perseguição política (seguindo nisto o mesmo destino de seu lorde protetor) e teve que viajar incessantemente por algum tempo para não acabar preso, devido à pressão sobre as autoridades de todo um grupo de aristocratas conservadores  que queriam vê-lo na cadeia.

Em 1683 acabou inclusive se exilando na Holanda, e tendo que enfrentar um pedido oficial da Inglaterra às autoridades holandesas no sentido de que o entregassem para a prisão. Mas encontrou proteção contra as perseguições junto a membros influentes da seita protestante naquele país estrangeiro.

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O sofrimento dessa experiência o levou a fazer (em coro com os protestantes que o defenderam) a defesa filosófica da tolerância em matéria de opinião. Foi nessa circunstância que escreveu sua famosa Carta sobre a tolerância.

CIT 8

Mas sua teoria política, que parecia tão radical aos olhos da nobreza mais conservadora de diversos países, e que defendia a tolerância e combatia o autoritarismo político, na verdade estava bem longe de algo como uma filosofia de cunho popular e de defesa das camadas mais pobres — como as teorias socialistas que começaram aparecer apenas bem mais tarde para defender esse tipo de antiautoritarismo, a partir do século XIX. Locke, pelo contrário, ainda defendia até mesmo a escravidão por exemplo (na verdade foi um dos últimos filósofos do mundo a ainda defenderem a escravidão absoluta e permanente).

CIT 9 (ou link)

Locke também achava que sua defesa da liberdade não deveria ser aplicada aos povos indígenas, segundo ele ainda "primitivos" demais para isso, considerando-os na verdade comparáveis a animais selvagens. Muitos outros pensadores de sua época e inclusive bastante anteriores, tinham uma visão bem menos preconceituosa (e frequentemente até favorável) dos povos indígenas, como Montaigne por exemplo.

CIT 10 (ou link)

E finalmente, sua famosa defesa da tolerância não o impediu de, por outro lado, defender práticas bastante intolerantes em relação às camadas mais pobres da população inglesa. Defendia por exemplo que as famílias mais pobres que não pudessem alimentar suas crianças fossem obrigadas a colocar essas crianças para trabalharem a partir dos três anos de idade.

Defendia também que os mendigos fossem obrigados a usar distintivos para serem vigiados, e que houvesse grupos oficiais de "espantadores de mendigos" para afastá-los dos horários e locais permitidos para a mendicância... e os que não respeitassem essas regras de controle da mendicância deveriam ser condenados a trabalhos forçados ou obrigados ao serviço militar compulsório na marinha (caso tivessem mendicado na praia). Por "mendicar", aliás, entenda-se não apenas pedir esmolas, mas também simplesmente circular nos locais e horas errados parecendo-se notoriamente com um "mendigo".

Os que fugissem do trabalho falsificando atestados de algo que os liberasse, segundo Locke deveriam ter as orelhas cortadas, e se reincidissem no ato deveriam ser deportados como criminosos e direcionados para o trabalho forçado no campo, por exemplo nas colônias da Inglaterra. 

CIT 11 (ou link)

A intolerância desse famoso defensor da tolerância em relação às camadas mais pobres da população também apresentava um cunho moralista. combinado com preocupações econômicas de caráter capitalista: defendia que fosse restringida a venda de bebidas e diminuídas as tavernas para as camadas mais pobres da população, para a moralização dos trabalhadores e para garantir sua produtividade nas empresas.

Apesar de tudo isso, Locke era considerado, para os padrões da época na Inglaterra, um esquerdista radical e até um "subversivo" — ...a esquerda inglesa, ao que parece, não estava exatemanete bem servida nessa época de pensandores que fossem ao mesmo tempo consistentes, coerentes e radicais. Ou os que se apresentavam não eram suficientemente reconhecidos e acolhidos pelo público e pela crítica.

Na Inglaterra dos tempos de Locke, a situação política era de crise e de pouco diálogo — o que veremos que teve influência na teoria de Locke, que procura valorizar muito o diálogo entre os posicionamentos divergentes em busca de comum acordo. As tensões eram muito agudas e os posicionamentos explosivos, pouco ou nada ponderados.

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guerra civil inglesa

 

Mas na Inglaterra, como vimos, as camadas mais pobres não encontravam ainda muitos pensadores que representassem de fato seus interesses e posicionamentos, ou pelo menos se aproximassem disso (socialistas como como Robert Owen e William Godwin, por exemplo, só vieram a aparecer quase um século depois) — e esse não era também, nem de longe, o papel assumido por Locke.

CIT 12

Os conflitos entre burguesia e aristocracia haviam conduzido a uma guerra civil estimulada por diferentes grupos distribuídos entre essas duas classes, e que disputavam o poder uns contra os outros — e é nessa disputa, envolvendo essas duas camadas economicamente favorecidas, que se insere a teoria jurídica e política de Locke.

O principal foco desses conflitos era a oposição entre os fiéis à monarquia de um lado, e de outro os que pretendiam que o poder se concentrasse nas mãos do poder legislativo, isto é, do Parlamento e de seu chefe, Oliver Cromwell.

 

Cromwell

 

O conflito se complicava com diversos grupos organizados em posições intermediárias, e a população em geral se dividindo também entre diversas posições conforme seus valores eram mais afinados com os da burguesia (como os do próprio Locke) ou com os antigos valores aristocráticos.

Alguns queriam o rei com poderes absolutos, outros queriam o rei, mas com seus poderes controlados pelo Parlamento, e havia os que preferiam uma república sem rei, com o Parlamento no poder, e os que queriam apenas Oliver Cromwell no comando com poderes absolutos, como se fosse um rei, e assim por diante.

De um modo geral, podemos dizer que em quase todas as épocas e lugares em que houve conflito entre os interesses da burguesia e os da aristocracia, os aristocratas tiveram sempre a tendência de apoiar, no início, uma monarquia absoluta de direito divino (isto é, uma monarquia em que o direito do rei a esse cargo é considerado um direito sagrado, dado à sua família por Deus). E quando o rei já não atendia mais satisfatoriamente aos anseios desses nobres aristocratas, eles passavam a apoiar uma monarquia controlada por um Parlamento, mas sempre um Parlamento no qual representantes das famílias da nobreza tivessem mais poder.

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No caso da Gran Bretanha na época de Locke (que era formada pela Inglaterra e por outras nações sob seu domínio), o Parlamento estava sob a direção de Oliver Cromwell, que defendia os interesses da burguesia, apoiado nos valores do protestantismo, e não os da aristocracia.

O protestantismo ― como podemos conferir lendo LINK A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber ― é uma versão do cristianismo mais bem ajustada aos valores burgueses e capitalistas, e avessa aos valores da maior parte dos nobres.

CIT - Weber

O protestantismo (lembrando que Locke era um discreto protestante) defendia uma postura mais individualista. Valorizava o trabalho como atividade sagrada premiada por Deus com a riqueza, e desprezava o luxo e os gastos inúteis (que eram tão habituais entre os nobres). Promovia o reinvestimento desse lucro na produção como forma mais digna de lidar com esse “prêmio” divino — o que ajudava a impulsionar o desenvolvimento de uma economia capitalista em um país.

CIT - Weber

Além disso, o protestantismo não aceitava bem o uso da religião como forma de justificar o poder político de alguém, de modo que em todos os lugares onde essa versão do cristianismo cresceu, ela gerou resistências contra a ideia de uma monarquia justificada por um direito divino da família real de governar.

CIT

O Parlamento inglês nessa época não apenas tinha um lider (Cromwell) que seguia esses valores protestantes, como era todo ele dominado principalmente por representantes da burguesia produtiva, que o apoiavam e faziam dele um lider muito forte.

Essa burguesia, conseguiu apoio dos camponeses, duramente explorados pela nobreza, e com esse apoio, voltou-se contra os costumes luxuosos e gastadores desses nobres, que conseguiam dinheiro público (dos impostos) com o rei para alimentarem esses maus hábitos, que que tinham privilégios e isenções na cobrança de impostos.

Essa nobreza, apesar de algumas exceções, de modo geral tinha uma mentalidade política ultra-conservadora, e apoiava a monarquia absoluta de direito divino, assim como consideravam também que sua vida luxuosa era um direito natural, dado a suas famílias por Deus. Consideravam-se naturalmente “superiores” a todo o resto da sociedade, consideravam o trabalho uma atividade inferior e desprezível, e achavam que a rebeldia contra tudo isso era uma afronta e uma ofensa à ordem natural das coisas criada por Deus.

Essa aristocracia conservadora, evidentemente, não gostava da independência do Parlamento, achava um absurdo que os parlamentares criticassem certas decisões do rei e até se opusessem a elas. Achavam que o Parlamento devia ser contido, controlado pelo rei, ou então eliminado. Ou, no mínimo, dissolvido e reformado para ser dominado por membros da própria nobreza, que apoiava as decisões do rei.

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Qual era mais precisamente a situação política
da Inglaterra na época de Locke,
e quais os posicionamentos dele nessa situação?

 

O ditador Oliver Cromwell, chefe do parlamento inglês, morreu em 1858. Ele vinha conseguindo conter pela força muitas resistências e revoltas contra seu governo, governando em favor da burguesia contra os aristocratas de um lado, e contra a camada mais pobre dos trabalhadores de outro. Com sua morte, o poder voltou ao Parlamento, mas os novos parlamentares, que seguiam a mesma linha de Cromwell, ficaram com medo de não conseguir conter as revoltas, e de perderem o controle da unidade nacional inglesa (em outras palavras, tinham medo que a Inglaterra se dividisse em guerras civis e deixasse de existir). Então resolveram trazer de volta a monarquia, e dar amplos poderes ao rei para reprimir essas revoltas.

Coroaram o rei Carlos II em 1660. Mas apesar da volta da monarquia, a alta burguesia continuou crescendo e dominando o modo como a Inglaterra se organizava, às vezes se rebelando contra o autoritarismo do governo. Nessa época, um jovem filósofo chamado John Locke, igualmente assustado com esses movimentos burgueses de rebeldia, se declarava firmemente monarquista, politicamente de direita e autoritário. Mas não defendia monarquia de direito divino: era um hobbesiano, um contratualista como Hobbes, defensor da monarquia mas também da igualdade de direitos.

Só mais tarde inverteu suas posições, e sem deixar de ser contratualista, acabou se tornando o filósofo jurídico famoso que é tão estudado hoje — um dos maiores defensores dos ideais de liberdade da alta burguesia inglesa da época.

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Com essa organização burguesa em todo o país, com uma mentalidade voltada para o lucro acima de tudo, a Inglaterra começou a aumentar rapidamente a sua produção de mercadorias, e a precisar de mercado consumidor externo. Portugal, que tinha bons portos e muitos comerciantes judeus e genoveses, era uma porta de entrada natural para os produtos ingleses, principalmente tecidos de lã, que dali eram vendidos para vários países da Europa. Acompanhando essa grande transformação, com o fim da monarquia sendo aclamado como uma nova era de liberdade política e o crescimento da burguesia.

Foi só em 1689 que John Locke publicou seus famosos Dois tratados sobre o governo civil mostrando que havia mudado suas posições.

Nessa obra, passava a defender um contratualismo diferente daquele de Hobbes, radicalmente contrário à monarquia, propondo inclusive um governo com divisão de poderes. Mas a princípio só publicou metade da obra. A segunda parte (Segundo tratado, que era a parte mais radical, bem mais que primeiro tratado), foi publicada por ele anonimamente e da maneira mais discreta possível.

Um dos principais fatores que levaram Locke a mudar de posição foi a influência das ideias francesas sobre a igualdade de direitos, que nessa época estavam se espalhando e que, mais adiante, iam acabar oferecendo fundamentos filosóficos para a a filosofia Iluminista e para a Revolução Francesa.

Poucos anos depois da publicação dos Dois tratados sobre o governo civil de Locke, um explorador inglês de minas de carvão (em 1698, final do séc. XVII) começou a usar uma máquinaa vapor em suas minas, e a partir daí, começaram a surgir cada vez mais novas máquinas, capazes de acelerar enormemente os serviços e a produção em diversos setores. Ao longo doséc. XVII surgiram máquinas de semear, máquinas de tear (transformar lã em tecido), motores avapor para barcos de transporte de mercadorias, e pouco mais tarde para trens (a partir de 1804, início do séc. XIX). Era a Revolução Industrial — e com ela, a produção inglesa, que já vinha seacelerando, se tornou incomparavelmente superior à de todo o resto do mundo.

Mas anecessidade de mercado consumidor para todos esses produtos era cada vez maior, e difícil de
satisfazer, principalmente porque em boa parte do mundo (mais precisamente nas colônias de países europeus) quase que só se usava mão de obra escrava, e escravos não têm salário, portanto não têm dinheiro para comprar nada.

Essa situação pressionaou a Inglaterra no sentido de adotar uma política internacional abolicionista, de luta pela abolição da escravatura.

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Locke se apoiou em algum outro pensador que veio antes dele? Quem inventou o método contratualista?

John Locke desenvolveu seu raciocínio aproximadamente a partir do mesmo método contratualista criado antes dele por Thomas Hobbes, mas imaginando sua própria versão do estado natural e do contrato social.

Seguir o método contratualista de Hobbes não significava necessariamente seguir as mesmas ideias políticas que Hobbes defendeu com esse método. (Na verdade até mesmo o individualismo, que era um posicionamento fortemente embutido no próprio método, pôde ser contornado em certa medida por um terceiro contratualista chamado Jean-Jacques Rousseau, que veio depois de Locke — Rousseau valorizou a ideia de que se buscasse uma "vontade geral" para além das vontades individuais, e mais perto do final da vida foi desenvolvendo essa linha de pensamento no sentido da valorização de uma transparência tão radical das pessoas, que idealmente elas quase não teriam "persona", ou "pessoalidade" individual: tudo fluiria naturalmente de uma pessoa a outra sem que nada ficasse retido em qualquer uma delas para formar quaisquer diferenças individuais... as diferenças individuais, e portanto a própria individualidade, então, praticamente não existiriam.)

 

Rousseau

 Rousseau

 

No caso de Locke, o individualismo que estava embutido no método foi mantido. Mas foi até certo ponto suavizado — pois o individualismo original de Hobbes era bastante radical e inclusive agressivo.

Na verdade, apesar de adotar aproximadamente o mesmo método de raciocínio contratualista proposto por Hobbes, e apesar de manter o individualismo que estava embutido nesse método, apenas suavizando-o um pouco, podemos dizer que as diferenças de posicionamento político entre Locke e Hobbes são consideráveia.

Locke preferiu usar esse método para defender um posicionamento mais otimista, e que pudesse servir para ajudar a orientar as forças mais progressistas e transformadoras da época, de modo a evitar um posicionamento isolado, e obter resultados mais eficazes. A filosofia política que Locke desenvolveu com base nisto, portanto, era firmemente favorável à burguesia produtiva, contra a monarquia e contra os aristocratas.

Mas não podemos dizer que Locke defendia a postura burguesa e capitalista apenas porque era a mais progressista e transformadora na época. Mesmo escrevendo alguns de seus textos mais importantes precisamente contra as interferências religiosas no pensamento juspolítico de sua época, Locke era pessoalmente protestante, e seu pensamento está sim profundamente comprometido com a visão burguesa e capitalista das coisas, e emergida precisamente desse protestantismo — uma visão que com o tempo foi firmando em política o nome de "liberalismo". 

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Quais os pricipais diferenciais do posicionamento político
de Locke em relação ao de Hobbes?

 Em suma, Locke adotou não apenas o método de Hobbes, mas também a mesma linha de pensamento de Hobbes que ficou conhecida como “contratualismo”: a ideia de se raciocinar imaginando a sociedade, o Estado, o direito e a propriedade privada como produtos de uma espécie de grande contrato entre indivíduos livres e iguais. Mas usou isto para defender posicionamentos diferentes a respeito da vida em sociedade e do papel dos governantes.

Apesar de sua teoria do conhecimento ser menos racionalista e mais empirista, e com isso já se mostrar consideravelmente diferente da de Hobbes, a maior de todas as diferenças que Locke estabeleceu entre sua teoria e a hobbesiana está no posicionamento político que Locke construiu a partir dessas inspirações hobbesianas.

Se Hobbes driblou todos os posicionamentos já existentes para construir o seu próprio como uma espécie de equilibrista que não se atém nem a esta nem àquela posição, mas firmando um posicionamento claramente mais puxado para o lado do racionalismo, o caso de Locke é bem outro e bem mais simples.

Locke adotou firmemente e sem hesitações o posicionamento de uma certa camada da burguesia liberal que defendia os princípios do capitalismo em ascensão, ligando esses princípios a uma moral do trabalho pela qual se fazia a oposição contra a aristocracia esbanjadora e parasitária, que vivia às custas do rei, sustentada por privilégios especiais em relação aos impostos e pela corrupção dos interesses públicos, com o dinheiro público bancando sua vida de luxo e ostentação.

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Quais são as intenções de Locke quando constrói sua própria versão do estado natural diferente daquela de Hobbes?

Tentemos então descobrir quais as "intenções" de Locke quando constrói sua própria versão do estado natural, diferente daquela de Hobbes. Alguém poderia argumentar que as intenções do autor são subjetivas, dependem do que está em sua mente e portanto são inacessíveis, nunca saberemos quais foram. Mas não estamos falando aqui das intenções psicológicas do autor.

Estamos falando na verdade do sentido que está inscrito em suas obras, da direção na qual as obras apontam — e elas podem inclusive chegar a apontar em uma direção com a qual o próprio autor pessoalmente não concordadaria: ele pode chegar a defender coisas, em seu escrito, que não se dava conta de estar defendendo, mas que estão inscritas ali no texto, na direção para a qual o texto aponta quando compreendemos as diferenças que esse texto apresenta em relação aos de outros autores que lhe serviram como ponto de partida (como no caso Hobbes) e os posicionamentos em que esse texto de encaixa quando o colocamos em diálogo com seu contexto histórico. 

Então, quando dissermos a partir daqui que Hobbes "quer" isto ou aquilo, que Locke "quer" isto ou aquilo, o leitor deve entender que estamos nos referindo a esse sentido inscrito nos próprios textos desses filósofos, independentemente de terem conseguido passar para seus textos exatamente o que queriam ou não. Se conseguiram isso, nunca saberemos.

Para entendermos melhor como Locke imagina o seu estado natural, para dar início aos seus raciocínios políticos e jurídicos, examinemos de novo, então, o pensamento de Hobbes. Vejamos de que modo esse pensador originalíssimo, antes de Locke, imaginava o tal "estado natural" e qual o sentido desse estado natural hobbesiano.

Já vimos como Hobbes imaginava a natureza humana ― egoísta e agressiva.

Hobbes exagerava ainda mais essa agressividade e esse egoísmo imaginando também que a natureza seria limitada em seus recursos. Sem recursos naturais suficientes para garantirem a sobrevivência e a satisfação dos desejos de todos, as pessoas entrariam naturalmente em conflito umas com as outras, lutando por esses poucos recursos.

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Hobbes imaginava as coisas desse modo propositalmente, para poder justificar a necessidade de um governante que fosse poderoso e assustador o suficiente para conter os conflitos. Mas também para justificar o direito dos seres humanos de no fundo continuarem sempre rebeldes, e lutarem agressivamente e incansavelmente (dentro dos limites impostos pela necessidade da paz social) por sua vida e pela realização de seus desejos.

Locke, diferentemente de Hobbes, não quer justificar nenhum governo desse tipo. Quer que suas ideias sirvam para recusar qualquer governo autoritário, e justificar apenas um governo que represente os interesses coletivos de toda a sociedade.

Locke também quer que suas ideias sirvam para recusar essa rebeldia individual agressiva e explosiva de que Hobbes falava. Quer que sirvam para forçar as pessoas a abandonarem qualquer tendência egoísta, e seguirem o que é do interesse coletivo de toda a sociedade ― mas também quer justificar a ideia de que os tais interesses coletivos de toda a sociedade seriam, na verdade, os mesmos dos mais ricos e produtivos empresários capitalistas, em relação aos quais não deveria haver nenhuma “rebeldia”.

Como o estado natural é uma construção artificial visando atingir um objetivo, ressalta-se ainda mais o fato de que há um sentido em que essa construção pretende ir. Ela é construída com uma finalidade, com um objetivo.

CIT - Nozick

Isso pode não ficar muito claro quando lemos Locke, porque no Segundo tratado sobre o governo ele dá a entender que está sendo realista quanto ao modo como deve ter surgido a sociedade civil a partir do estado natural, como se estivesse fazendo um trabalho de historiador que descobre a verdade a respeito do passado.

Mas não, ele não está sendo realista, nem poderia estar, porque em seu Tratado sobre o entendimento humano, deixa claríssima a impossibilidade de acessarmos verdades definitivas acerca de qualquer coisa para além do que captamos direta e simplesmente pela experiência. Tudo o que podemos "captar" para além disto, fazendo operações mentais com os dados trazidos pela experiência, não estaremos realmente "captando" mas apenas "interpretando" e será apenas algo possível, no máximo uma hipótese, nunca uma verdade. 

CIT de Danilo Marcondes e tb do próprio Locke

Assim, tudo o que Locke diz sobre o estado natural e o modo como saímos dele deve ser compreendido como meramente hipotético, mesmo que ele procure tornar suas hipóteses aparendemente mais realistas que as de Hobbes.

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Não é impossível argumentar contra isto e afirmar que Locke acredita de fato que as coisas se passaram do modo como ele descreve.

CIT retirada dos Clássicos da Política vol 1

Mas se afirmarmos isto estaremos afirmando que ele: 1 - não é coerente, porque contradiz escandalosamente um de seus principais livros com o que diz em outro livro ainda mais importante; e 2 - é um tolo ou um ingênuo, pois acredita em coisas patente e evidentemente absurdas — como a infinitude dos recursos naturais, que é afirmada por ele em si mesma, como dádiva divina, e não apenas em função do trabalho pelo qual conseguiríamos extrair infinitamente desses recursos o que precisássemos (coisa aliás em si mesma já um tanto ingênua).

Honestamente, que sentido faz achar que um pensador político da estatura de John Locke acreditaria, por exemplo, que se as pessoas fossem se apropriando de extensões cada vez maiores das terras, cercando-as e impedindo a entrada de outras pessoas, sempre haveria mais terras no mundo, até o infinito, para todas as pessoas irem se apropriando delas e aumentando cada vez mais essas suas propriedades? Nem mesmo se acreditássemos que não existem países com suas fronteiras territoriais para impedirem o avanço para novas terras, porque seria supor que a superfície do planeta é infinita!

E mesmo sob o argumento de que o trabalho torna a produtividade dos bens naturais inesgotável: faz mesmo sentido achar que Locke acreditaria que uma matéria príma, uma vez colhida da natureza, seria inesgotável? Se fosse assim, que sentido faria as pessoas buscarem mais recursos, mais matéria prima na natureza? E buscar mais matéria prima equivale a algo como aquela apropriação de mais e mais terras da qual falamos há pouco. Um dos problemas coduz ao outro.

O mais sensato é, de fato, considerar essa infinitude de que Locke fala, infinitude dos recursos da natureza e do que se pode extrair dela pelo trabalho, como uma hipótese metodológica, como algo imaginário, uma utilização metodologicamente útil da imaginação — assim como Hobbes havia feito mais explicitamente e menos ambiguamente antes dele. É uma solução mais digna para um pensador dessa estatura do que considerar demasiado a sério o maior realismo aparente com que ele trata suas descrições "estado natural" e da saída desse estado, como se ele acreditasse que as coisas que diz são efetivamente uma descrição histórica de fatos do passado. 

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Por outro lado, se admitimos (como devemos admitir) que o estado natural descrito por Locke, assim como o processo pelo qual ele imagina termos saído desse estado, são mesmo construções imaginárias, de caráter puramente hipotético — em conformidade aliás com o que torna o método contratualista criado pro Hobbes tão original — ...então esse sentido em que o pensamento de Locke pretende ir está inscrito nessa hipótese imaginária, porque se ele a inventou, a inventou pretendendo alguma coisa com isso.

CIT - Nozick

Neste caso, devemos admitir sim que é para conseguir justificar o que quer justificar, e criticar o que quer criticar, que Locke precisa imaginar o ponto de partida de seu raciocínio de um modo diferente daquele imaginado por Hobbes.

 

Se para Locke somos todos igualmente racionais por natureza,
como podemos dizer que ele aceita as desigualdades? 
Como ele trata a questão do uso da razão?

Locke — já vimos — trabalha com a ideia de que nossos conhecimentos são sempre imperfeitos e incompletos, mas podem se desenvolver, e esse desenvolvimento não depende do modelo matemático de coerência, e sim de trabalharmos melhor com a linguagem que utilizamos ao desenvolvê-los.

O bom uso da linguagem e maior desenvolvimento de nossas teorias, segundo ele, não dependem do uso de um modelo matemático de raciocínio, e sim do diálogo público com outros estudiosos em busca de entendimento a respeito dos assuntos tratados.

CIT - do próprio Locke

O diálogo racional em busca do entendimento, devemos observar, é justamente a própria manifestação externa (empiricamente observável) do esforço das pessoas no sentido de utilizarem correramente a razão, isto é, no sentido de a utilizarem em busca do que é o mais correto e o melhor para todos. E já resulta de uma consideração empirista do uso da razão.

 O pensamento de Locke a respeito da questão da linguagem é bastante conhecido. O que não quer dizer que não haja muito debate em torno de alguns pontos desse pensamento que não parecem tão claros.

Acompanhemos o que já é notado por exemplo por Danilo Marcondes, em um simples (e bem realizado) manual introdutório de história da filosofia:

Segundo Locke, assim como as ideias são signos mentais das coisas, as palavras são signos das ideias. O significado das palavras é, portanto, a ideia correspondente a elas em nossa mente, e é por meio das ideias que as palavras se referem às coisas. Quando falamos, nossas palavras evocam na mente do ouvinte uma ideia equivalente à ideia que temos em nossa mente ao proferirmos as palavras, e essa é a forma que nos comunicamos e nos fazemos entender. A semântica de Locke é chamada de semântica ideacional, já que o significado das palavras depende da ideia correspondente a elas em nossa mente. Uma vez que o signo linguístico, a palavra, é convencional, é apenas por meio de sua relação com ideias que pode significar. A linguagem é assim a expressão de um pensamento ― uma representação mental por meio de ideias que são signos das coisas no mundo ― constituído anteriormente à linguagem e independente dela. Essa forma de explicação do significado linguístico prevalecerá praticamente até o surgimento da filosofia da linguagem de tradição analítica com Frege, Russel, Moore e Wittgenstein ao final do século XIX e início do XX.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, cap. 3, tópico C (no último parágrafo do tópico), p. 186.

A questão que coloco aqui é: que modo esses dois campos de atuação da filosofia de Locke — de um lado sua teoria do conhecimento (intimamente ligada a essa sua teoria da linguagem), e de outro sua teoria política (intimamente ligada à sua teoria econômica) — se ligam um ao outro?

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Sabemos que Locke envolveu-se em polêmicas e debates intelectuais que se tornaram famosos em sua época, mas não podemos afirmar com firmeza que ele, na prática, tenha de fato se dedicado com profundidade a essa busca de entendimento com outros estudiosos — embora defendesse o valor disto. O que sabemos é que esse tipo de entendimento entre as pessoas, em busca de consenso, é seguramente uma das peças chave em sua noção de como se desenvolveriam as sociedades para irem ultrapassando o estado natural.

Para ele, o uso correto da razão está ligado ao diálogo procurando fixar quais são os fatos da realidade com os quais é preciso lidar, e à aceitação dos acordos aos quais se chega a esse respeito, através do diálogo. A razão se manifesta externamente (de modo empiricamente observável) nesse diálogo em que as pessoas procuram chegar a um acordo a respeito de qual a correta descrição dos fatos, mais precisamente a um acordo a respeito de qual a melhor interpretação dos fatos a ser seguida por todos.

Segundo Locke, o desenvolvimento gradual das sociedades a partir do mais primitivo estado natural depende justamente de as pessoas fazerem esse bom uso (esse uso correto) de sua capacidade racional.

Mas essa capacidade racional depende dos dados sensíveis de que as pessoas dispõem e de seu esforço para tentarem descrever esses dados de sua experiência da melhor maneira possível umas para as outras, pois essa é a base para as pessoas buscarem juntas a melhor interpretação dos fatos, e portanto também para tomarem juntas as melhores decisões para a vida de todos na sociedade.

Mais tarde as pessoas acabariam decidindo deixar tais decisões nas mãos de certas lideranças jurídico-políticas, que teriam o papel de representar esse diálogo social, decidindo em nome dos demais.

As avaliações racionais que inicialmente as pessoas fariam em conjunto, depois passariam a ser feitas pelos líderes jurídicos e políticos em nome delas, representando-as. E não apenas essas avaliações racionais que fariam de tudo o que fosse preciso avaliar para as decisões de interesse da sociedade, como também o próprio uso que as pessoas fazem de sua razão, segundo o empirismo de Locke, só poderia ser avaliado a partir da observação externa dos comportamentos dessas pessoas.

Esse conhecimento externo (o único possível) não nos dá segurança absoluta. De modo que só podemos avaliar com absoluta segurança se nós mesmos estamos tentando usar bem a nossa razão, ou se na verdade a estamos usando de maneira egoísta apenas para o nosso próprio benefício. Quanto a isto, só a auto-avaliação oferecer um resultado mais seguro. Quanto às outras pessoas, só podemos avaliar observando e depois interpretando seu comportamento, interpretação na qual existe sempre alguma margem de erro.

CIT do próprio Locke no Ensaio, onde sonsola os injustamente acusados

Mas isso não quer dizer que para Locke o uso que as outras pessoas fazem da razão não deve ser avaliado. Pelo contrário: ele considera natural e fundamental que avaliemos constantemente se as pessoas estão usando bem ou usando mal a sua razão — ou então que as autoridades jurídicas e políticas, que nos representam oficialmente, façam constantemente essa avaliação. Mesmo que possa ocorrer algum erro nessa avaliação.

Perceba-se: há para Locke um bom uso (em em diferentes graus) da razão, e também um mau uso (em diferentes graus de gravidade) da razão... e bem ou mal, acertando ou não nessa avaliação, esse uso que as pessoas fazem de sua razão deve ser avaliado, deve ser medido.

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Lpcke

 

Então reforcemos bem e observemos com atenção este ponto: segundo Locke, se os seres humanos são seres naturalmente racionais, e igualmente racionais por natureza, não significa que todos façam o mesmo bom uso desse dom natural que é a razão, nem que todos a desenvolvam e a madureçam no mesmo ritmo e até o mesmo nível: e isto deve ser avaliado por todos e pelas autoridades, trazendo consequências para as pessoas — ...e lá se vai por água abaixo a igualdade natural de todos os seres humanos quanto à capacidade racional. 

Sejamos mais claros: o liberalismo — já desde Locke — costuma fazer bastante alarde de sua defesa da igualdade de todos os seres humanos quanto à capacidade racional. Mas sempre deixa isto como mero pano de fundo para destacar uma diferença real que, na prática, é observada quase sempre como uma questão de competência de cada um no sentido de se esforçar para desenvolver essa racionalidade em um ambiente competitivo, no qual ela (essa racionalidade) é uma peça chave para a vitória daqueles que se destacam economicamente — que é claro, se destacam precisamente porque os demais não se destacaram, passando a ficar à sombra desses "destacados" membros da sociedade que "conquistaram merecidamente" tal posição de destaque. 

Mais tarde, em Kant (1724-1804), essa diferença no amadurecimento racional que se observa de uma pessoa para outra muda de sentido, e passa a valer no direito e na ética como possível atenuante para os crimes e falhas morais dos indivíduos, o que torna menos evidente esse elemento de discriminação em que uns são inferiorizados em favor de outros na sua condição de seres humanos racionais.

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Relevo de Kant

 Kant - esculpido em relevo

 

Kant já está ciente desse risco desse risco da discriminação com base em tais noções, e procura evitá-lo. Neste sentido, considera que a dignidade humana — que é presente em todo e qualquer ser humano e inalienável — está justamente na liberdade de qualquer indivíduo de julgar as coisas por si mesmo de modo racional (sejam quais forem os limites máximos a que consegue chegar com essa sua capacidade racional), e considera também que as pessoas devem ser sempre tratadas de acordo com essa dignidade, igual em todos (o que é um dos pontos basilares de sua ética).

Destarte, para Kant (que lembremos, é posterior a Locke e se aproveitou de muitas ideias dele, mas corrigindo-as), se uma pessoa não se mostra capaz de um uso maduro da razão nem por isso deve ser considerada como se fosse definitivamente "irracional" e incapaz de decidir: pelo contrário, deve ser dignamente tratada como um ser humano livre, e educada no sentido de desenvolver melhor sua autonomia decisória, sua independência para decidir por si mesma de maneira madura, inclusive concordando ou não com seus educadores.

Portanto, segundo Kant, a pessoa menos amadurecida em seu uso da razão deve ser educada de tal modo que amadureça racionalmente e se torne mais capaz de exercer sua própria dignidade como ser humano livre e capaz de decidir, libertando-se de preconceitos e manipulações.

CIT - Kant, ref a Locke no 1º prefácio à Crítica da Razão Pura

Entretanto isto já é uma correção que Kant aplica às ideias de Locke, porque não é esta a utilização que o próprio Locke faz dessa diferença do grau de amadurecimento racional que observa entre as pessoas. A postura de Locke em relação aos "menos amadurecidos" no uso da razão é bastante dura e nada complecente (a responsabilidade por esse mau desenvolvimento racional é inteiramente da própria pessoa).

atenção: para Locke, esses que fazem um uso menos amadurecido e menos desenvolvido da razão tendem claramente a coincidir com os mais pobres, na medida em que seu esforço no trabalho para saírem da pobreza não produz resultados suficientesPorque segundo Locke, um dos resultados mais evidentes do bom uso da razão é precisamente a boa produtividade no trabalho, da qual o sinal mais claro é o enriquecimento. 

De modo que em Locke, tudo se passa como se o trabalho produtivo, duro e honesto, resultasse necessariamente e por si mesmo em enriquecimento. Como se em condições normais não houvesse nada que impedisse esse enriquecimento da pessoa que trabalha produtivamente — neste caso, se o trabalho não é produtivo, é porque não é realizado de forma suficientemente racional, sinal de que a pessoa ainda não amadureceu o suficiente a sua capacidade racional. Este é o modo como ele raciocina.

Pensamos um pouco a respeito disto: Locke parece supor que se o trabalho duro e honesto não conduz ao enriquecimento, é porque esse trabalho não está sendo realizado de maneira realmente racional e produtiva. Daí a proximidade, que transparece como pano de fundo no pensamento de Locke, entre as noções de pobreza baixo amadurecimento racional.

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Agora avancemos um pouco mais nisto esclarecendo outro ponto ligado a este, um ponto de maiores implicações jurídicas no pensamento lockeano. Trata-se do seguinte: se os que fazem uso menos amadurecido da razão, para ele, tendem a coincidir com os mais pobres, no mesmo sentido coincidem também (só que fatalmente e necessariamente) com os marginais e criminosos em geral.

Para Locke um marginal ou criminoso é, efetivamente (como veremos examinando sua descrição do estado natural e do processo de saída desse estado), alguém que prefere fazer mau uso da razão ao invés de esforçar-se (pelo trabalho) para desenvolvê-la e amadurecê-la. 

CIT - alguma passagem do próprio Locke ou de um estudioso seu nesse sentido

Note-se bem: o modelo com base no qual Locke formula sua noção do que é um "criminoso" não é o agressor físico, o assassino ou o latrocida, como no caso de Hobbes, mas pura e simplesmente o ladrão e o depredador do patrimônio alheio. Aquele que atenta contra a propriedade portanto, e não aquele que atenta contra a vida. Os que escolhem fazer mau uso da razão (os marginais e criminosos em geral) são para Locke, basicamente, aqueles que optam pelo roubo ou pela depredação do patrimônio alheio, ao invés de optarem pelo trabalho em busca de condições para adquirirem o seu próprio patrimônio.

CITs de Hobbes e de Locke para comparação

Conforme o pensamento liberal lockeano, aquele que trabalha dura e honestamente parece estar necessariamente e naturalmente destinado ao desempobrecimento, rumo ao enriquecimento. De modo que se ele de fato trabalha, mas continua sempre pobre, e se as condições econômicas são as do capitalismo normal, sem que ninguém esteja lesando essa pessoa, então existe algo de suspeito nesse trabalhador: ele não parece ser suficientemente amadurecido em termos racionais, o que em última instância significa que ele... está mais próximo daquela condição que caracteriza o criminoso, isto é, o ladrão e o depredador do patrimônio alheio! 

A lógica de Locke, como se vê, não pensa nas condições normais de concorrência capitalista como condições que lesam o trabalhador e bloqueiam seu desempobrecimento, podendo levá-lo à revolta e com ela, ao roubo ou à depredação dos bens alheios (aqueles bens das classes mais ricas).

Pelo contrário, pensa no trabalhador que continua sempre pobre como alguém de menor amadurecimento racional e, por isso mesmo, alguém suspeito, que pode mais facilmente cair no uso imoral ou criminoso da razão. Alguém que revoltando-se (porque decide agir contra a ordem social, e portanto de maneira imoral) deixa de dialogar com os outros em busca do melhor, recusa tolamente a orientação, a direção (em última análise o comando inclusive) dos mais racionais (menos pobres), e  pode chegar no limite a utilizar sua pouca e mal desenvolvida capacidade racional para atentar contra a propriedade.

 Veremos nos próximo tópicos um pouco mais passo a passo de que modo isto transparece nos raciocínios de Locke quando descreve o estado natural e quando descreve o modo como, segundo ele, as pessoas iriam saindo desse estado natural.

Ficará mais clara a conexão operada por Locke entre a produtividade do trabalho e o emprego da razão no modo como se realiza o trabalho, no mesmo movimento em que o melhor uso da razão vai contribuindo para essa saída do estado de natureza. O marginal e o criminoso — como ficará evidente — são encarados por Locke como pessoas que, decidindo agir de modo tolo e ao mesmo tempo imoral, recusam esse processo de desenvolvimento social que é melhor para todos, e preferem permanecer egoisticamente em conflito com os demais, como nos estágios mais primitivos do estado natural.

Veremos também que, por outro lado, a pessoa autoritária e inclusive aquela que pretende assumir a condição de monarca absoluto, são encaradas do mesmo modo por Locke como pessoas que decidiram atuar de maneira imoral, recusando o desenvolvimento social já atingido e preferindo ao invés disso retornar a um estágio mais primitivo de desenvolvimento, em que as ações eram guiadas sem diálogo ou até segundo o puro e simples egoísmo. 

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Nessa saída do estado natural vão se formando gradualmente, segundo Locke, as bases de uma estrutura de representação política oficial, incluindo a divisão dos poderes e legislativo, judiciário e executivo, e mais um quarto poder de caráter negociador. 

E há pessoas que vão ficando para trás porque se recusam a acompanhar o progresso social. Essas pessoas são de um lado os autoritários e os defensores do absolutismo, que querem ser reis ou tirar vantagens pessoais de sua proximidade com um rei; e de outro lado os marginais ou criminosos, que atentam contra as leis e a ordem estabelecidos nesse desenvolvimento, mas sobretudo contra o direito de propriedade. 

  

Como Locke imagina o estado natural do homem
antes de existirem leis e governos?
Também não existiria nenhuma moral como em Hobbes?

 

Quando um contratualista constrói o seu ponto de partida imaginário (no caso dos contratualistas dessa época, a sua imagem do que seria o "estado natural", sem leis ou governo e sem vida social), ele normalmente constrói uma imagem de como seria o ambiente natural, e uma de como seria e como viveria o ser humano nesse ambiente, segundo sua natureza (a natureza humana).

Então vejamos: como seria o ambiente natural, segundo Locke?

A imagem que ele faz do ambiente natural é consideravelmente otimista. Imagina a natureza como dotada de recursos ilimitados, capaz de sempre oferecer a todos toda matéria prima de que precisarem para produzirem o que quiserem. Além disso, a natureza — por sua criação divina — seria ordenada segundo regras perfeitas (as leis da natureza), de modo que compreendendo suas leis perceberíamos que tudo nela funciona da melhor maneira possível.

CIT do próprio Locke ou de comentador sobre deus e a natureza

E além disso, compreendendo as leis da natureza também seríamos mais capazes de transformá-la através do nosso trabalho, conseguindo melhores resultados.

Existem valores morais orientando Locke quando ele imagina a natureza desse modo. Em Primeiro lugar, se os recursos naturais são infinitamente fartos e abundantes e nunca vão faltar a ninguém, então não existe nada que justifique uma pessoa tentar tomar os bens de outra.

Em segundo lugar, se Deus ordenou a natureza segundo as melhores leis, o melhor para nós também, enquanto seres humanos que são também parte da natureza, é tentarmos descobrir essas leis (as leis divinas e naturais) e segui-las, isto é, vivermos de acordo com nossa natureza. E se não fizermos isso, estaremos nos desviando nas normas de Deus e da nossa própria natureza, indo por um caminho que será necessariamente pior.

Quando Locke pensa no melhor e no pior, aqui, o interesse pessoal quase coincide com o que é de ordem moral: agir da melhor maneira é (quase) agir ao mesmo tempo da maneira mais vantajosa e da maneira mais ética. Mas por que dizer "quase"? Por duas razões. Primeiro, porque as vantagens de se agir moralmente não são imediatas, demoram a aparecer. Segundo, porque essas vantagens não são necessariamente vantagens a serem desfrutadas com prazer, como se poderia imaginar.

Examinemos com mais cuidado essas "vantagens" de se agir eticamente.

Apesar de ser mais vantajoso agir eticamente, essa vantagem só aparece no longo prazo. E para alguns pode parecer mais vantajoso agir de maneira antiética, porque traz pequenas vantagens a curto prazo. Estarão errados, é claro. Deveriam preferir as vantagens maiores de longo prazo, mas não é necessariamente o que vão escolher. E isso quer dizer que há pessoas que fazem más escolhas do ponto de vista moral, e são resónsáveis por essas suas escolhas.

Essas pessoas são moralmente condenáveis por terem escolhido o caminho que escolheram — e o interessante a notar aqui, é que para Locke essa escolha pelo mau caminho ou pelo bom caminho acontece já desde o início, no estágio mais primitivo Locke imagina o estado natural, já existem de saída pessoas que escolhem agir bem ou agir mal.

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CIT de Locke

Tentemos entender bem a mentalidade de Locke: agir eticamente, aqui, significa em resumo agir de maneira produtiva, trabalhando, e não roubando os bens dos outros. Agir eticamente significa também conviver com os outros dialogando com eles, decidindo juntos o que é o certo a fazer, e o que deve ser evitado por ser errado. E pode-se imaginar que esses dois modos de agir eticamente estão ligados. As decisões conjuntas terão a ver com o trabalho e com os produtos do trabalho.

O trabalho não produz seus resultados imediatamente, e o diálogo com os outros também não chega a decisões sempre rápida ou imediatamente. Daí que alguns acabem preferindo as pequenas vantagens do roubo, cegos para as vantagens muito maiores de uma vida coletiva civilizada, em que todos trabalham e produzem em conformidade com leis decididas para o bem de todos.

Quanto à questão do desfrute prazeroso dessas vantagens de longo prazo, não Locke não está pensando em luxo ou gastos com coisas prazerosas. Está pensando em produtividade, em vantagens produtivas.

A pessoa que se dedicar mais ao trabalho enriquecerá sim. Mas essa dedicação não tem nenhum ponto final, não existe para Locke o momento do puro e simples desfrute da riqueza: a pessoa deve continuar sempre se dedicando ao trabalho produtivo, e isso significa também que deve dedicar seu capital, sua riqueza adquirida, tanto quanto possível, a esse trabalho produtivo. Deve reinvestir o que ganha, e não simplesmente gastar. É nisto que Locke está pensando quando pensa na vantagem do enriquecimento que uma ética dedicação ao trabalho pode trazer a uma pessoa.

CIT de Locke

Esse modo de pensar, embora Locke não deixe isso claro, está indiretamente ligado à sua formação religiosa de tipo protestante (que já mencionamos em tópicos anteriores), para a qual o trabalho duro e honesto é, no fundo, uma maneira de se glorificar a Deus.

CIT de Weber

Mas segundo o pensamento lockeano, as pessoas só chegariam muito lentamente a esse convívio social e produtivo regrado por leis de que falávamos acima.

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Locke imagina que haveria algum convívio social e as
respectivas questões morais já desde o início do estado natural?

 Não se pode dizer que no início do estado natural lockeano existiria algo como um convívio "social". Mas também não se pode dizer que não haveria questões morais em jogo no comportamento dessas pessoas. Pelo contrário: as pessoas viveriam cada uma por si mesma, sem relacionamentos entre elas, mas não totalmente isoladas umas das outras... e isso tornaria bem mais difícil identificar as pessoas de bem e diferenciá-las das pessoas "más" (isto é, reconhecer quem escolheu tentar agir da melhor maneira e quem preferiu as vantagens rápidas de agir sem se preocupar com o certo e o errado).

Nesse momento inicial, então, as pessoas de bem, os indivíduos bem intencionados, aqueles interessados em fazer o que julgam ser o certo a fazer, atuariam cada um por si mesmo como intérprete, juiz e executor das leis que eles próprios considerassem as melhores.

Segundo a linguagem do próprio Locke, cada um seria por direito e por dever intérprete, juiz e executor das leis divinas e naturais — o que significa não apenas que essas pessoas, vivendo cada uma por sua própria conta, agiriam naturalmente assim (atuando elas próprias como intérpretes das leis do certo e do errado, juízas e executoras dessas leis) mas que elas teriam além disso todo o direito de agirem assim, e na verdade até a obrigação moral de agirem assim.

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CIT de Locke e/ou Nozick

Cada um teria o dever moral de tentar interpretar o que Deus determinou naturalmente como "certo" e como "errado", julgar suas próprias ações e as ações das outras pessoas com base nisto, e tomar as devidas providências para fazer valerem essas leis, mesmo sem ter certeza completa delas, e mesmo impondo-as aos outros — porque o fato de as pessoas viverem cada uma por si mesma não significa que não existissem outras pessoas vivendo ao redor delas.

Evidentemente nessa situação haveria muitos erros de julgamento, sem que jamais pudéssemos ter certeza quanto a termos acertado ou errado em cada caso. Assim como haveria também muitas discordâncias e muitos conflitos por causa da falta de entendimento mútuo.

CIT de Locke

Mas esses não seriam os conflitos mais graves. Por que? Porque pessoas "de bem" pelo menos tentam dialogar antes de imporem suas decisões aos outros. E isso quer dizer que apesar de haver conflitos, a situação não chegaria a ser de uma constante guerra ou ameaça de guerra de todos contra todos — e esta que Locke está propondo é uma visão menos pessimista das coisas que a de Hobbes.

Os conflitos mais agudos, os que de fato poderiam ser comparados talvez a uma "guerra" (ou ameaça de guerra) seriam apenas aqueles provocados por pessoas com intenções egoístas ― provocados aqueles que poderíamos chamar talvez (embora Locke não chegue a esse ponto) de “selvagens hobbesianos”. 

Por que "selvagens hobbesianos"?

Locke não chama tais pessoa dessa maneira, mas podemos entender que é o que pretende dizer, oorque a visão de Hobbes, à qual locke está se opondo com esta sua, era exatamente a de que no estado natural cada um buscaria o melhor para si mesmo contra os outros. Este seria segundo Hobbes um estado de constante guerra ou ameaça de guerra em que não existem boas intenções entre as pessoas — pois não haveria nenhuma confiança entre elas (e quando se suspeita que o outro nos pretende fazer o mal, nada mais natural que nos precavermos preparando a possibilidade de lhe fazermos o mal primeiro, para incapacitá-lo de nos ferir ...por exemplo matando-o).

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DGM - 48 A 55 - Resolver todos esses diagramas num só acrescido de explicação.

Locke, não se satisfaz como Hobbes com a constatação de toda essa agressividade nos comportamentos humanos, à maneira de Maquiavel.

Seguindo o caminho contrário, observa que, na realidade do dia a dia, ao lado dos comportamentos agressivos e egoístas podem ser observados também comportamentos em que as pessoas procuram entender umas às outras e chegar a acordos a respeito das coisas. Então, com base nessa observação, ele imagina que os dois tipos de comportamentos seriam possíveis e existiriam também já no estado natural. 

Agora desses dois tipos de comportamento observáveis entre os homens segundo Locke já no estado natural — o mau comportamento de quem faz mau uso da razão, e o bom comportamento de quem faz bom uso dela — dissemos que o mais vantajoso o segundo, apesar de trazer seus resultados apenas a longo prazo. Por quê?

Porque se as pessoas de bem, fazendo bom uso da razão, dialogam entre elas em busca do entendimento mútuo — e supõe-se que algumas vezes chegam de fato a esse entendimento, decidindo as coisas em conjunto — unidas, vivendo já em sociedade umas com as outras, elas se tornarão mais fortes.

Mas ao mesmo tempo, estarão produzindo mais, e isto significa que estarão com um maior acúmulo de bens na região em que (supõe-se) já estão vivendo como vizinhas umas das outras. Portanto, tenderão a tornar-se alvo da cobiça dos mal intencionados (daqueles que fazem mal uso da razão). Então evidentemente terão que se precaver e se proteger contra esses maus elementos, externos à sua suciedade e que representam uma ameaça para seus bens.

Os mal intencionados, por outro lado, nunca conseguirão uma união estável entre eles, porque não têm como estabelecer entendimento e confiança mútuos. De modo que tenderão a se apresentar como inimigos isolados dessas coletividades. As leis dessas sociedades recém-formadas tenderão a considerar esses indivíduos isolados e perigosos como "criminosos", sempre que eles tentarem tomar os bens concentrados e acumulados na região pelos cidadão ali associados.

E ocorre que, assim como essas pessoas de bem foram se entendendo cada vez mais e se associando cada vez mais firmemente em torno da prática de decisões coletivas, cada pequena sociedade formada assim tenderá a dialogar, por sua vez, com outras pequenas sociedades de pessoas de bem formadas do mesmo modo. E finalmente, em que condição teremos os mal intencionados nesse quadro, os que fazem mal uso da razão? — Estes estarão cada vez mais isolados e fracos em face do crescimento constante das forças associadas de todas aquelas pessoas de bem.

Eis aí a dimensão do otimismo de Locke: para ele, agir moralmente, isto é, no esforço constante de buscar o que é certo e evitando o que é errado, conduz as pessoas que fazem isso a se unirem e se fortalecerem cada vez mais, enquanto os que fazem mau uso da razão, tentando aproveitar-se da via fácil do roubo, vão ficando cada vez mais isolados e fracos.

Este, segundo Locke, seria um processo gradual e natural, e é por esse processo que as pessoas (pelo menos aquelas que fazem bom uso da razão) iriam caminhando juntas para uma vida mais e mais civilizada, e para fora do estado natural, até a formação de grandes sociedades em que se faria necessário, finalmente, o estabelecimento de órgãos públicos oficiais capazes de exercer o governo de toda essa gente.

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  Como seriam o mau e o bom uso da razão 
no estado natural para Locke?

 Já dissemos que a visão hobesiana combatida por Locke em sua imagem do estado natural era uma visão bem mais pessimista. Segundo Hobbes, o que as pessoas querem é ter o máximo de recursos materiais para garantirem sua sobrevivência e para conseguirem satisfazer uma gana insaciável de viverem em condições sempre melhores. E Hobbes não vê a natureza como um campo de recursos ilimitados, como Locke. Pelo contrário, a vê como um campo limitado, com recursos escassos que seriam disputados pelos indivíduos numa disputa de morte.

Já vimos também que em Locke, os que no estado de natureza se comportam dessa maneira descrita por Hobbes não deixam de existir, mas são apenas os que fazem "mau uso da razão. E eles convivem, no mesmo estado natural, com outros que, pelo contrário, fazem bom uso da razão.

 

Locke

 

Isto significa que o fundamental para entendermos as diferenças entre Hobbes e Locke, não é simplesmente observarmos o quanto Locke era "mais otimista". O fundamental é observarmos que os dois têm uma concepção diferente a respeito da razão humana e de qual o papel dela na vida. O que estamos observando aqui é que precisamente que esses dois jusnaturalistas da linha contratualista, Hobbes e Locke, não têm a mesma compreensão do que é a razão e de qual o papel desempenhado por ela na vida humana.

Vale notar que ambos — Hobbes e Locke — são jusnaturalistas, ambos fundamentam toda a sua teoria jurídico-política em certas noções acerca da natureza profunda dos seres humanos, daquilo que é característico especificamente dos seres humanos pela sua própria natureza. E que como a grande maioria dos jusnaturalistas, ambos consideram a capacidade racional como um elemento fundamental para entendermos o que é específico dos seres humanos.

É apoiando-se nessa base, nessa ideia de que o ser humano é um ser racional (algumas vezes unicamente nessa base, outras principalmente nela ou tendo-a como uma das mais importantes) que a maioria dos jusnaturalistas vai desenvolver todo o seu sistema de pensamento jurídico, em busca de deveres e direitos que seriam naturais a todos os seres humanos pelo próprio fato de serem racionais.

A questão, para Locke, é moral: está no modo como os seres humanos se utilizam dessa sua razão natural. Mas além disto, é também uma questão de definição do papel que cabe à razão, na vida humana — pois para Locke, o mau uso da razão é um uso ruim tanto do ponto de vista moral quanto do ponto de vista do papel que a razão está destinada a assumir pela sua própria natureza. Os que fazem mau uso da razão estão "denaturando" esse dom natural do ser humano.

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CIT de Locke

 

O uso da razão descrito por Hobbes (como ferramenta satisfação de meros objetivos individuais) é considerado por Locke como o mau uso da razão porque segundo ele a razão não foi feita para isso. Não é para isso que ela serve, e utilizá-la assim é utilizar uma boa ferramenta para uma função na qual ela não pode obter os melhores resultados... — algo como pretender usar uma chave de fenda para pregar um prego numa parede.

CIT de Locke ou Nozick

 

Mas há também em Locke a condenação moral desse mau uso (dessa subutilização da razão, dessa sua utilização menos produtiva do que poderia e deveria ser), como mencionamos pouco acima.

CIT de Locke ou Nozick

No caso da chave de fenda, eventualmente até conseguiremos usá-la para pregar um prego, talvez inclusive com rapidez... mas seguramente a muito custo, de maneira brutal, forçando a ferramenta contra sua natureza com selvageria, digamos assim, e como efeitos colaterais, machucando a mão, entortando o prego, deixando feias marcas na parede...! Podemos imaginar por exemplo alguém enfiando com violência uma chave de fenda na parede, esburacando-a ao redor de um prego muito firme, para arrancá-lo de lá com pedaço da argamassa e tudo... talvez seja até rápido. Mas a que custo?

Quando usamos bem uma ferramenta, isto é, quando a usamos para a finalidade certa, não apenas obtemos resultados melhores, mas também nos aperfeiçoamos no uso dessa ferramenta, amadurecemos nossa capacidade de utilizá-la. Este parece ser o raciocínio embutido no fundo do que Locke nos diz — retomado mais tarde pela filosofia de Kant no tema do "amadurecimento" racional dos indivíduos.

Se por exemplo nos acostumarmos a utilizar uma chave de fenda para os fins corretos, os que se ajustam melhor a ela — se a utilizarmos para aparafusar e desaparafusar parafusos, e não tentando pregar ou arrancar pregos com ela — logo aprenderemos que usando uma chave de fenda mais longa, se houver espaço para isso, faremos menos força. E saberemos como aparafusar ou desaparafusar sem que a chave escorregue para fora da fenda do parafuso, se sem fazermos bolhas nas mãos etc. etc.

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 Pois bem... falando agora não mais sobre chaves de fenda, mas sobre esse instrumento bem mais refinado que é a razão humana, para que é que ela serve afinal, segundo John Locke? Qual seria o Bom uso da razão?

 Lembremos que Locke é um empirista. E como bom empirista, para responder a essa questão ele erá listar aquilo que podemos observar como sintomas externos de que uma pessoa estaria fazendo bom uso de sua razão. 

Podemos sintetizar isso dizendo que, segundo Locke, as pessoas demonstram em seu comportamento (empiricamente observável) estarem se esforçando para utilizar corretamente a razão ― procurando fazer o melhor, como é adequado para pessoas de bem — nas seguintes situações:

  • a) quando procuram tornar seu trabalho mais inteligente e produtivo (ao invés de tentarem simplesmente tomar o fruto do trabalho dos outros); 
    b) quando mostram esforço no sentido de dialogar com os outros em busca do entendimento mútuo a respeito do que é o melhor a fazer, tentando tomar suas decisões coletivamente, outro sinal de bom uso da razão.

Quanto mais avançado o nível de amadurecimento da pessoa no uso da razão, quando mais civilizada estiver a pessoa, mais firme e decididamente ela se comportará dessas duas maneiras, empiricamente observáveis.

 Em ambas as situações, em ambas as maneiras de se comportar, podemos notar um mesmo traço comum: o fato de a pessoa agir segundo certas normas ou leis que não são simplesmente criadas por ela, mas normas ou leis que ela interpreta que sejam aquelas que ela deve seguir

No primeiro caso, ela deve compreender e seguir as leis de funcionamento da natureza para poder tornar seu trabalho de fato mais produtivo, em seu trabalho estará lidando com matéria prima natural, e se não entender como essa matéria reagirá às suas ações, não conseguirar realizar um bom trabalho. No segundo caso, estará também tentando descobrir o que é o certo a fazer e o que é o errado a evitar em suas interações com as outras pessoas, portanto quais as leis corretas a seguir, e não agindo simplesmente em busca de vantagens pessoais.

É interessante notar o paralelismo entre as leis da natureza, que é preciso descobrir para tornar mais produtivo o trabalho, e as leis do certo e do errado nos comportamentos dos homens, que segundo Locke também precisam ser descobertas (e não inventadas). Tentar descobrí-las, isto é, fazer uma interpretação de como elas seriam, é atuar como legislador. É colocar em prática o direito e o dever naturais de atuarmos como legisladores perante as leis divinas e naturais.

Mas para fazer o bom uso da razão neste segundo sentido não basta apenas determinar as leis que dizem o que é o certo a fazer e o que é o errado a evitar. Porque de nada valerão essas leis se ninguém as seguir.

De modo que a pessoa de bem, aquela que faz o bom uso da razão, é aquela que além disto assume também o direito e o dever de julgar seus próprios comportamentos e os das outras pessoas, avaliando se são bons ou maus comportamentos segundo as leis já determinadas.

E como fazer esses julgamentos ainda não valeria de nada se nenhuma atitude fosse tomada a partir deles, a pessoa de bem também teria o direito e o dever de executar as sentenças para os maus comportamentos de modo a corrigi-los, assim como também realizar o que sua interpretação das leis determina que precisa ser realizado (e claro, de executar na prática não apenas o necessário, mas inclusive as ações determinadas como "boas" em sua interpretação das leis).

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CIT de Nozick ref a Locke

 

Como surge a ideia da divisão de poderes
na sociedade, segundo Locke?

O processo de aparecimento da divisão de poderes, segundo Locke, acompanha o próprio processo de saída do estado de natureza, como um todo. Neste processo, a questão já colocada no tópico anterior, de tudo o que está implicado no bom uso da razão é um ponto extremamente interessante. Ajuda a enxergar com mais clareza que o estado natural imaginado por Locke é de fato imaginário ou hipotético: porque foi imaginado muito especificamente para servir de base em algo que Locke pretende defender com tudo isso: a ideia de uma divisão de poderes.

Podemos perceber claramente a noção da divisão de poderes que hoje conhecemos já aparecendo esboçada aí, em pleno estado natural, no modo como se comportam neste momento as pessoas de bem, aquelas que fazem bom uso da razão...

No estado natural, segundo Locke, esses poderes ainda não estariam divididos, estariam no indivíduo como um único aglomerado de poderes concentrado, mas o modo como Locke nos fala deles já sugere que são poderes diferentes uns dos outros ali aglomerados, e não uma massa única na qual certos poderes iriam se formando e se destacando com o tempo. Isso nos mostra que ele pensa esses poderes já como poderes distintos, diferentes uns dos outros, quando pensa no modo como estão presentes no indivíduo natural.

E de fato, o que Locke vai procurar nos mostrar é apenas de que modo o desenvolvimento da sociedade civil, governada por leis, órgãos públicos e lideranças políticas oficiais, estaria ligado justamente ao processo de separação e exteriorização desses poderes. Poderes que originalmente, no início do estado natural, estavam unidos (aglomerados, mais do que fundidos uns aos outros) em cada individuo, e sendo exercídos ao mesmo tempo como um direito e um dever pelos indivíduos considerados isoladamente (mas apenas no caso daqueles indivíduos que fazem bom uso da razão).

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Resta saber de que modo, exatamente Locke imagina que chegariam a surgir de fato esses poderes oficiais, que por enquanto aparecem apenas em alusões indiretas, no modo como as pessoas fariam bom uso da razão ainda no estado natural (isto é, ainda antes da existência de tais poders oficiais). Saber como é que Locke chega à instituição de fato desses seus quatro poderes independentes e harmônicos na forma de órgãos públicos oficiais, a partir dessas alusões indiretas que faz a eles no modo como as pessoas de bem utilizam sua razão, já desde o estado natural.

No desenvolvimento da vida social, os indivíduos já não podem mais e nem devem mais manter esses poderes concentrados em si mesmos: devem compartilhar esses poderes uns com os outros. E a certa altura, quando o grupo social ficar muito grande, surgirá a necessidade prática de todos os indivíduos transferirem esses poderes para certos representantes escolhidos oficialmente para isto e organizados para este fim em instituições públicas oficiais. 

Podemos então resumir o modo como Locke vê o processo de saída do estado natural assim: as pessoas de bem exerciam individualmente todos poderes, que estavam concentrados em cada uma delas: o de interpretar quais seriam as melhores leis, o de julgar as ações segundo elas, e o de executar o que está determinado pelas leis e as sentenças desses julgamentos. Isto evidentemente produziria conflitos constantes entre elas, por causa dos desacordos quanto às leis e quanto aos julgamentos.

Mas sendo pessoas de bem, esses indivíduos do estado natural também exerceriam um quarto poder: o de dialogar com os outros em busca de entendimento. Este quarto poder levaria a um crescente compartilhamento dos outros três, isto é, levaria as pessoas a decidirem cada vez menos individualmente e cada vez mais em conjunto umas com as outras quais as melhores leis e, com base nelas, qual o correto julgamento para as ações que fossem sendo realizadas.

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CIT de Nozick

Este crescente diáĺogo em busca de entendimento e este crescente compartilhamento das decisões levariam os indivíduos, por sua vez, à formação de grupos sociais cada vez maiores, e cada um desses grupos também iria sendo conduzido a um entendimento crescente e um compartilhamento de decisões igualmente crescente com os outros grupos.

Até que, por fim, a grande quantidade de indivíduos envolvidos tornaria tudo isto bastante problemático e nada prático, porque haveria gente demais para dialogar e tomar as decisões. De modo que surgiria daí, naturalmente, a necessidade prática de colocar essas decisões nas mãos de pessoas especialmente escolhidas para isto, e organizadas em instituições capazes de facilitar essas tomadas de decisão e garantir que fossem decisões efetivamente de acordo com o que a população decidiria, se ainda pudesse tomar por si mesma essas decisões.

CIT de Locke

 Ora, até aqui, as decisões poderiam ser cconcentradas nas mãos de um único governante ou de um único grupo de governantes... — afinal, isto vinha sendo justamente o mais comum nos últimos séculos em toda a Europa. Mas não é o que Locke propõe. Ele propõe que, ao invés disso — e precisamente para garantir que as decisões tomadas não fugissem da vontade da população — que todo esse poder teria que ser dividido em poderes separados e harmônicos, cada um exercido por uma pessoa ou grupo diferente. Por que? De que modo isso ajudaria a garantir que as decisões não se afastassem da vontade popular?

A resposta de Locke a esta questão é interessante: isto impediria que, com o poder todo concentrado nas mãos de um único indivíduo ou grupo, esse indivíduo ou grupo deixasse de lado o amplo diálogo entre os cidadãos (e seu, com os cidadãos) a respeito das decisões a tomar, e fosse arrastado pelo impulso de decidir tudo autoritariamente por si mesmo, retornando a uma condição mais primitiva como aquela do início do estado natural

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Note-se bem o que Locke está procurando dizer com isto.

A forma de governo dominante na Europa dos últimos séculos até a época de Locke, é a monarquia absoluta de direito divino, com o monarca detendo em suas mãos o poder soberano, superior a qualquer outro poder no Estado. E a Inglaterra, no momento em que Locke escreve e publica essas coisas, está em guerra civil, com sua monarquia (que já estava presa aos poderes de um Parlamento), em crise, tentando restaurar seu absolutismo, mas encontrando as mais variadas oposições a isto.

Nesse quadro histórico, Locke é  justamente o primeiro (antes de Montesquieu, inclusive) a fazer uma teoria em defesa da proposta de divisão de poderes, que se tornou tão comum nas democracias representativas a partir do século XX, em geral dotadas de três poderes independentes que tentam  atuar de forma harmônica mas ao mesmo tempo cada um colocando limites aos exexos dos outros dois (os poderes legislativo, judiciário e executivo).

Mas Locke pensa não em três, e sim em quatro poderes independentes e harmônicos: além desses três tão comuns a partir do século XX, ele imagina também um quarto, um poder diplomático de negociação com outros Estados, que ele chama de poder federativo. É esse quarto poder que teria se desenvolvido gradualmente já desde o estado natural a partir do dilálogo entre os indivíduos em busca de entendimento mútuo, e depois entre os grupos de indivíduos. É este poder que está ligado mais diretamente à forma externa, empiricamente observável do uso da razão, que é a linguagem. E é através dele que os poderes, primitivamente concentrados no indivíduo, irão se exteriorizando e sendo compartilhados com outros até a formação da vida social. 

Este é talvez o único ponto de convergência (até certo ponto) de meus posicionamentos com os de Locke: o absolutismo, ou o exercício absoluto de poderes concentrados em um só ponto, equivale a uma espécie de primitivismo extremamente pernicioso.

Na verdade é possível encontrar aqui até mesmo as sementes de alguns posicionamentos de certas linhas do anarquismo (como o anarcossindicalismo proposto por Malatesta), que tendem a um certo evolucionismo otimista segundo o qual a vida social na humanidade caminharia tendencialmente no sentido antiautoritário.

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Malatesta

 Errico Malatesta

 

Os adversários autoritários tendem neste caso a ser encarados como primitivosmal desenvolvidos, e por isso mesmo violentos e perigosos, mas que devem ser tratados como se estivessem tomados por uma espécie de doença da qual talvez fosse possível curá-los, visto que todo ser humano traz em si as condições para uma tomada de atitude mais evoluída diante da vida e das relações com os outros.

Entretanto no caso de Locke, esses primitivos autoritários não seriam tratados com tanta complacência. Locke chega a comparar por exemplo os monarcas absolutos (que em sua época ameaçavam retornar) a feras selvagens que deveriam estar enjauladas.

Quer dizer que Locke é mais anarquista que os anarquistas do sindicalismo revolucionário da linhagem de Malatesta? De maneira nenhuma. Ao comparar os monarcas absolutos a feras selvagens e perigosas, note-se bem, Locke os está comparando ao mesmo tempo com os criminosos, porque é essa mesma imagem que faz dos criminosos. Mas quem são, para Locke, os criminosos? Basicamente, os que fazem mau uso da razão porque se isolam da vida social, recusando seguir suas leis, para poderem se afastar do trabalho e viverem do roubo. 

Lembremos mais uma vez: mesmo que Locke considere criminosas a violência e o assassinato, o que serve de modelo para ele quando se trata de pensar o criminoso não é o agressor, latrocida e o assassino, como para Hobbes, e sim o ladrão e o depredador de propriedades, o que agride ou toma os bens do outro, e não o que agride diretamente o outro. Na verdade, segundo a linha de raciocínio de Locke, agredir os bens do outro é agredir o outro, e há casos comuns previstos por ele em que a agressão física ao próprio corpo de quem nos agride a propriedade seria aceitável, e inclusive a agressão até a morte, colocando o direito de propriedade acima do direito à vida! — um anarquista jamais concordaria com isto.

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CIT Locke

Se Locke vê o poder concentrado e autoritário como um perigoso retorno a uma condição primitiva que tende à violência contra os cidadãos seguindo um comportamento de rapina, de roubo (porque é disso que se trata), não podemos deixar de acentuar que por outro lado ele está pensando na violência contra os cidadãos em primeiro lugar e acima de tudo especificamente através do capital e das propriedades desses cidadãos.Está pensando na violência contra o capital e a propriedade, muito mais do que na violência contra os corpos desses cidadãos!

Portanto, Locke está tratando de defender contra o poder do Estado (assim como antes defendeu contra os ladrões) aqueles cidadãos que efetivamente têm propriedades e capital. Porque os que não têm, os mais pobres, são para ele justamente os que tendem a cair no roubo, no crime — e por isso devem ser inclusive vigiados. Se não enriqueceram, isto é sinal de que fazem mau uso da razão no trabalho, e este mau uso pode se potencializar transformando-se em comportamento criminoso.

(Mais uma vez um anarquista jamais aceitaria esse tipo de ideia: os anarquistas são herdeiros ultra-radicais da história das lutas dos trabalhadores, dos mais pobres e dos marginalizados de toda espécie por seus direitos, e se um autor como Robert Nozick se aproxima de ideias de Locke como estas que acabamos de descrever, e faz isso dizendo-se "anarquista", é porque não é um autêntico anarquista: ou não entende nada da história do anarquismo ou pode ser considerado, sem qualquer reticência, como um grosseiro difamador dessa tradição política).

Aqui, vemos Locke (assim como seu atualizador Robert Nozick) se afastar claramente (e radicalmente) dos posicionamentos tipicamente anarquistas (e também dos meus).

Repito: os movimentos anarquistas nasceram das lutas dos trabalhadores por seus direitos contra a exploração capitalista, e dos socialmente excluídos e marginalizados contra as diversas formas de opressão e marginalização social que, passando pela opressão dos poderes econômicos, culminam na opressão pelo Estado. De modo que Locke não pode ser visto de maneira nenhuma como aliado do pensamento anarquista (ao contrário do que o falso "anarquista jurídico" Robert Nozick procura persistentemente fazer parecer).

Locke faz a defesa jurídico-moral de um liberalismo burguês capitalista. Posiciona-se contra os excessos do poder estatal, mas também contra aqueles que não detêm capital, de modo que procura na verdade substituir o poder do Estado pelo poder econômico, mantendo condições de opressão daqueles que não detêm poder econômico (e justificando isto moralmente).

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Se ele propõe a divisão de poderes por desconfiar de toda concentração de poder, não deixa de propor uma forma de poder político oficial sobre a sociedade, e mesmo que não o fizesse (mesmo que avançássemos a partir dele na direção em que Nozick o utiliza), defender uma especie de capitalismo sem limites contra o seu controle pelo Estado não é ser anarquista: é apenas excluir o poder governamental para consagrar cru e brutal poder econômico dos focos de acumulação do capital sobre toda a sociedade. Quando o autêntico anarquista combate o Estado não é para deixar a sociedade à mercê das forças do capital, mas para combater qualquer forma de poder que venha a se estabelecer sobre as pessoas, inclusive o poder econômico.

Como vimos, não é preciso um esforço intelectual muito grande para percebermos que a ideia dos três poderes separados e harmônicos tão comum nas democracias do século XX já está de algum modo embutida no que Locke chama de bom uso da razão, mas com o acréscimo de um quarto poder, talvez o mais importante, que daria início à formação dos outros três como poderes independentes que se controlam uns aos outros: 1 - o poder de dialogar em busca de entendimento mútuo (alusão indireta ao poder federativo); 2 - o de interpretar as leis divinas e naturais (ao legislativo); 3 - o de julgar os comportamentos em conformidade com essas leis (ao judiciário) e 4 - o de executar as sentenças para os maus comportamentos, ou realizar também o que as leis determinarem que deve ser realizado (alusão ao poder executivo).

Apenas não devemos esquecer que, além dessas quatro maneiras políticas de se fazer bom uso da razão com as quais Locke faz alusão aos seus quatro poderes independentes e harmônicos se controlando mutuamente, ele também apresenta uma quinta maneira de se fazer bom uso da razão que já não está ligada a relações políticas, e sim à questão econômica da produção: trata-se da organização racional do trabalho para torná-lo mais produtivo — da qual já falamos. 

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Embora ele não o coloque assim de maneira clara, podemos facilmente deduzir a presença do poder econômico já em sua teoria como um quinto poder — um que não irá adquirir a feição de um poder político oficial, mas que nem por isso deixa de estar presente e atuante. Trata-se aliás do único poder que Locke justifica sem restrições e sem necessidade de controle pelos outros poderes, desde que esse poder econômico se desenvolva com base na produtividade, no trabalho produtivo.

Garantindo que essa seja a condição básica de enriquecimento e ascensão ao poder econômico, os demais poderes do Estado não devem incluir esse poder econômico em seus equilíbrios de forças para o controle mútuo uns dos outros. Cumpridas as condições básicas (o fundamento no trabalho produtivo) o poder econômico é deixado livre para agir como bem entender.

E Locke parece supor (até insistir) que o poder econômico assim fundamentado agirá eticamente em benefício do interesse público melhor do que as camadas mais pobres da população, se fosse permitido a elas participarem das decisões. De modo que essas camadas pobres devem, por obrigação, maior respeito e reverência às opiniões de quem tem poder econômico

Locke, aqui, parece acompanhar um "raciocínio" muito comum em sua época, segundo o qual quem tem mais propriedades tem mais coisas (e também mais pessoas, empregados), de que cuidar, tendo "mais responsabilidades" — e portanto sendo uma pessoa mais responsável do que aquele que não tem nada.

Isto por si só, aliás, é bastante significativo: remete à postura capitalista de Locke. Para falar sobre o bom uso da razão, ele utiliza de um lado essa série de alusões aos poderes políticos, e de outro, faz referência ao que, segundo ele, enriquece certas pessoas (garante a elas a acumulação do capital). As origens do poder econômico, extra-oficial, aparecem desta maneira pareadas com as origens dos poderes políticos oficiais, mas com muito maior independência em relação a eles. 

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Das diferentes maneiras de se fazer bom uso da razão
até a saída do estado natural, com a instituição oficial
dos três poderes 

 

Já vimos que segundo Locke, no início do estado natural os indivíduos viveriam cada um por si, sem relacionamento social entre eles. Já vimos também que nesta situação haveria duas opções para o indivíduo humano: agir com agressivamente e com egoísmo, pensando apenas na satisfação imediata de seus desejos e necessidades à maneira de uma fera selvagem, tomando à força aquilo que tivesse sido conquistado pelos outros; ou então trabalhar utilizando os recursos oferecidos pela natureza, e conquistar por si mesmo os seus bens. 

Vimos também que, optando pela primeira dessas duas linhas de ação, e colocando sua capacidade racional a serviço dela, a pessoa estaria optando por fazer um mau uso da razão. Isso precisamente porque não somos feras selvagens, mas seres humanos, e o que nos faz diferentes das feras selagens é exatamente o fato de, ao invés de seguirmos os instintos, seguirmos a razão, que torna nossas decisões livres. 

Enquanto seres humanos temos condições de avaliar racionalmente as coisas, antes de tomarmos decisões em relação a delas, e é para isso que serve a razão segundo Locke. Para avaliarmos não apenas quais os melhores meios de ação, mas também quais os melhores fins a perseguir, quais os melhores objetivos a focalizar — o que Locke entende em termos morais, como uma avaliação do que é o certo a fazer e do que deve ser evitado por que é moralmente errado.

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Essa avaliação do certo e do errado se exprime na avaliação e afirmação de regras a seguir, assim como na avaliação do quanto as estamos seguindo de fato e fielmente ou não (Locke aqui nos faz lembrar Kant, que bebeu bem mais neste filósofo inglês do que se costuma verificar). 

Optando pela segunda opção — que é fazer o bom uso da razão — o indivíduo (ainda vivendo sem relacionamento social com outros indivíduos) passaria a assumir para si mesmo o dever e o direito de utilizar a razão para modificar partes da natureza através do seu trabalho de maneira inteligente, tornado-as mais úteis ou produtivas, e com isto, conquistar o direito de propriedade sobre essas partes da natureza. Por que? Porque ao trabalhar sobre essa parte da natureza, o indivíduo transferiu para ela alguma coisa que é sua: a sua força de trabalho e a sua inteligência.

Aqui temos um ponto bastante interessante da teoria de Locke. Até surpreendente em comparação com o que havia na época em termos de teorias sobre o trabalho humano.

Diz Locke que essas coisas (que fazem parte do indivíduo) ficaram marcadas pelo seu trabalho nessa parte da natureza sobre a qual ele trabalhou.  O trabalho transfere algo do trabalhador para o objeto trabalhado, e com isto estabelece um laço, uma relação íntima do trabalhador com o objeto trabalhado, que não pode e não deve ser alienada (separada) dele sem a devida compensação. E a responsabilidade pela decisão quanto a isto deve caber à propria pessoa que estabeleceu esse laço com o objeto por ela trabalhado.

Segundo o raciocínio de Locke, essa parte da natureza foi alterada pelo iniciador dos trabalhos sobre ela, e se tornou mais útil ou mais produtiva. Não seria justo então que outros, sem realizarem o mesmo esforço, o mesmo trabalho, viessem agora usufruir das vantagens que essa parte beneficiada, melhorada, da natureza, passou a oferecer, sem prestar contas a quem realizou isso, ou compensar essa pessoa de alguma maneira. O mais justo portanto, segundo ele, é que essa pessoa seja considerada proprietária dessa parte da natureza alterada pelo seu trabalho, e possa decidir livremente se, ou em troca de quê, irá permitir que outros usufruam dessa sua propriedade, ou permitir que que ela seja passada às mãos de um outro proprietário.

Este é um ponto em que a teoria econômica liberal de Locke sobre o trabalho parece antecipar algumas coisas ditas mais tarde pelo anarquista Proudhon e pelo comunista Karl Marx a respeito do trabalho. Exceto pelo fato de que quando Locke fala sobre o trabalhador, ou produtor, está falando sobre o empresário, o dono (que ele supõe que é também o administrador) do empreendimento produtivo, e tratando os efetivos trabalhadores como se fossem meras peças na engrenagem do processo de produção consuduzodo por ele.

Proudhon e Marx, por outro lado, estão falando efetivamente sobre os tralhadores em ação diretamente na oficina de trabalho, e fazem a crítica do processo pelo qual esses trabalhadores vão sendo levados a perderem a consciência de que deixaram essa marca de seu trabalho nos produtos (o que em Marx está diretamente ligado às noções de fetichismo da mercadoria e de alienação).

Marx usa a imagem de que a força do trabalho é uma energia que está como que "congelada" no objeto produzido. Do mesmo modo, no caso do anarquista Proudhon, o trabalho é a "força plástica da sociedade" exteriorizada e objetivada (parcialmente transferida para a nova forma dada a um objeto externo), mas no caso deste anarquista, podemos entender essa marca do trabalhador no produto inclusive como uma marca personalizada, remetendo à imagem do trabalho artesanal, só que personalizada por trazer sobretudo a marca de uma personalidade coletiva, cultural, e não apenas individual.

Na teoria de Marx, que é posterior, esse elemento personalizado do trabalho que se transfere à matéria-prima, mesmo se considerarmos uma personalidade coletiva, desaparece.

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Proudhon

Proudhon 

 

 

Marx

 

Se Locke utiliza em sua teoria (possivelmente pela primeira vez na história da filosofia mundial) essa observação da transferência de algo do trabalhador para o produto do trabalho, por outro lado apesar disso seu raciocínio acaba contribuindo para o processo de alienação dos trabalhadores em favor do liberalismo capitalista (favorável apenas aos empresários). Por quê? Porque considera os trabalhadores em ação na oficina (que são os que efetivamente usam sua força na transformação da matéria-prima) como se não fossem diretamente responsáveis pela produção, apenas respondendo a uma responsabilidade do patrão que os comanda, e portanto como se estivessem desconectados de qualquer direito sobre o produto.

 O bom uso da razão, segundo Locke, está na racionalização desse trabalho produtivo para torná-lo ainda mais produtivo, em usá-la para tornar o trabalho mais racional, mais organizado.

Locke está falando, na verdade, sobre administração — sobre bom gerenciamento do trabalho, um gerenciamento mais racional. Mas além de tudo isso, optando por fazer o bom uso da razão o indivíduo também estaria assumindo o dever e o direito de julgar o que é certo e o que é errado nas ações humanas, e de tentar fazer acontecer aquilo que é certo, assim como de tentar impedir aquilo que é errado. E é a partir desta noção de deveres e direitos básicos que o vemos desenvolver toda a passagem do estado natural para o estado civil e toda a teoria da divisão de poderes.

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O modo como Locke raciocina a respeito do bom uso da razão no gerenciamento do trabalho traz uma porção de implicações em defesa do direito de propriedade como podemos ver — isto é, dos direitos do empresário-proprietário (patrão-gerente) sobre tudo aquilo que seu empreendimento produz. E traz o direito e o dever de agir para colocar em prática o que é certo e impedir o que é errado, o que significa... para proteger esse direito de propriedade e garantir suas implicações.

Em suma, o bom uso da razão no trabalho e suas implicações nos mostram o conteúdo do que deve ser considerado bom e certo e do que deve ser considerado mau e errado nos comportamentos humanos. Para Locke é bom e certo, por exemplo, todo comportamento que contribui para que o direito à propriedade seja garantido e protegido para os empreendedores produtivos, é mau e errado todo comportamento que contraria ou ameaça o direito de propriedade dos empreendedores produtivos.

É fundamentalmente para garantir e proteger esse direito, evitando e punindo comportamentos que o ameaçam, que é preciso desenvolver essas ações de tipo legislativo, judiciário e executivo que depois irão se transformar em três poderes oficiais. E a divisão de poderes também visa impedir uma ameaça: a do controle (considerado autoritário) do governo sobre os empresários, que na visão de Locke deveriam gerenciar seus empreendimentos livremente com base em suas responsabilidades, inclusive responsabilidades sociais.

No começo do estado natural cada um realizaria sozinho e por si mesmo essas ações de tipo legislativo, executivo e judiciário. Cada um interpretaria à sua maneira as leis do certo e do errado, cada um julgaria por si mesmo os comportamentos das pessoas com base nisto, e cada um se esforçaria para colocar em prática suas decisões a respeito disto (por exemplo punindo os maus comportamentos). Mas o resultado setia o conflito entre as pessoas, porque dificilmente elas concordariam umas com as outras o tempo todo em todas essas ações. O que um acha errado e tenta impedir que os outros façam, pode ser justamente o que outros acham o certo e o que deve ser feito.

Então entraria em ação mais um bom uso da razão: o uso da razão para dialogar com os outros em busca do entendimento. E isto faria toda a diferença. Com as pessoas dialogando umas com as outras e se entendendo mutuamente, elas iriam decidindo essas coisas cada vez mais em conjunto, coletivamente, e iriam se unindo e se tornando mais fortes na hora de colocar isso em prática, isto é, na hora de forçar os comportamentos de todos a irem na direção certa.

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A certa altura já seriam tantas pessoas em cada grupo e tantos grupos dialogando e decidindo tudo juntos, que seria impraticável continuar o diálogo deste modo, porque quando há muita gente para decidir junta, o entendimento fica muito mais difícil e trabalhoso, e decisão fica muito mais demorada. Seria preciso criar um governo, alguém para fazer isso pelas pessoas, alguém para fazer as leis, julgar os comportamentos e realizar as ações necessárias. Mas para fazer tudo isso pelas pessoas, em nome de toda a sociedade, senão todo o processo de desenovolvimento de tudo isso iria por água abaixo.

Vejamos: se houvesse só uma pessoa (como um rei) ou só um mesmo grupo com todos os poderes concentrados em suas mãos, esse governante ou os membros desse grupo no governo se sentiriam tentados a decidir tudo por si mesmos, sem considerar todo o processo pelo qual a sociedade foi aprendendo em conjunto como deveria proteger e garantir a propriedade.

E segundo Locke, já desde o estado natural, a força das pessoas de bem estava justamente em não decidirem as coisas sozinhas, mas coletivamente. Decidindo sozinho e sem considerar os resultados de todo esse diálogo, de todo esse entendimento social — de todo esse entendimento em favor do direito de propriedade principalmente, decidindo qual o modo correto e o melhor modo de garanti-lo e protegê-lo — em suma, ignorando tudo isso e tomando essas decisões sozinho, o governo estaria se separando da sociedade, deixando de fazer parte dela ao mesmo tempo que tem poder sobre ela. Perigo extremo para a sociedade, portanto.

Neste caso o governo criado para facilitar o processo de decisão da sociedade estaria passando a decidir de modo totalmente independente dela e do diálogo com ela. Esse governo estaria se transformando em algo bem parecido com aquelas pessoas mal intencionadas, aqueles egoístas hobbessianos que nos primórdios do estado natural já não aceitavam a vida social e viviam pensando apenas em si mesmos.

Não importa que o governo faça isso com boas intenções, tentando decidir o melhor para a sociedade, não importa que ele aja como se fosse uma pessoa de bem, continua perigosamente parecido com um indivíduo primitivo mau intencionado dos primórdios do estado natural, o que equivale a dizer que se comporta de modo parecido com o de um criminoso (um ladrão ou depredador, que ameaça roubar ou destruir as propriedades das pessoas). Por que? Porque na verdade, ninguém sabe realmente o que é o certo a fazer e o que é errado e precisa ser evitado. Nem mesmo o governo. 

É preciso lembrar que Locke é empirista, não acredita que tenhamos acesso a nenhuma "essência" platônica ou "verdade profunda" das coisas, mas apenas a interpretações a partir daquilo que observamos externamente. Tudo são apenas interpretações que fazemos raciocinando a partir da nossa experiẽncia e observação dos fatos. Como podemos saber então se uma interpretação é melhor ou mais correta que a outra?

O critério de Locke é simples: uma grande quantidade de gente de bem (fazendo bom uso da razão) e pensando o mesmo, tem menos chances de estar errada do que uma pessoa sozinha que pensa diferente de todo mundo. Note-se bem: o critério não é simplesmente o da maioria, mas o da maioria das pessoas de bem — em última instância, daquelas que dão o devido valor ao direito de propriedade e à produtividade, isto é, principalmente os empresários produtivos, e também a maioria dos que dão o devido valor às opiniões deles, já que o enriquecimento deles mostra que são os mais amadurecidos no bom uso da razão faz deles os mais responsáveis pelo conjunto da produção da sociedade como um todo.

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Por que um governo seria diferente? Não, segundo Locke, não seria tão diferente assim.

O governante ou os membros de um governo, assim como todos os indivíduos da sociedade em geral, deveriam então decidir na medida do possível em conjunto com os outros membros dessa sociedade. Em diálogo e entendimento com eles.

Entretanto, o governo foi inventado justamente para resolver o problema da praticidade das decisões. Isso quer dizer que mesmo sendo responsável por dar a última palavra nas decisões, e por tomá-las mais agilmente — se necessário até sem diálogo direto com a sociedade, para tornar essas decisões mais práticas e ágeis — o governo ainda tem a obrigação de representar o conjunto da sociedade nessas decisões, e esta é a questão. Ele tem a obrigação de tentar decidir de acordo com o que a sociedade em seu amplo diálogo de entendimento acha ser o certo a fazer.

Em outras palavras, o governo tem que fazer bom uso da razão tentando interpretar quais são as decisões com as quais a população concordaria — entenda-se as decisões com as quais a maioria das pessoas de bem (em defesa do direito de propriedade e de suas implicações) concordaria.

Mas se tiverem todo o poder concentrado em suas mãos, o governante ou os membros do governo terão a todo momento, em cada decisão, a tentação de decidirem por conta própria sem representarem as decisões da coletividade com o um todo. E a chance de serem más decisões, então (decisões que acabarão prejudicando o direito de propriedade e suas boas implicações por exemplo), será muito maior, já que um decisor isolado tende a não decidir tão bem quanto toda uma coletividade de decisores. Este é o perigo.

 Podemos perceber nisto uma forte crítica de Locke às monarquias absolutas de sua época, e em favor de uma maior participação das casses empresariais nas decisões do governo, ou de de que as classes empresariais sejam mais atentamente consideradas nas decisões do governo.

Lembremos que as monarquias absolutistas da época tendiam a decidir autoritariamente as coisas em favor da aristocracia, da nobreza que era proprietária de grandes fazendas, mas que havia conquistado essas terras, gerações antes, pela guerra, e não com o seu trabalho produtivo.

Essa nobreza não atuava claramente e de modo racional no gerenciamento da produtividade dessas fazendas: pelo contrário, estava perdendo cada vez mais sua mão de obra camponesa, porque seus servos camponeses estavam fugindo cada vez mais para as cidades de comerciantes (os burgos) e se transformando em pequenos empresários bugueses ou em trabalhadores assalariados a serviço desse novo e crescente empresariado burguês.

E qual a reação da nobreza em todos os países em que isto estava acontecendo? Ela passava a exercer sua influência sobre os reis fazendo o possível para prejudicar a ascenção da classe empresarial e impedir que seus servos fugissem de suas fazendas, e também para manter sua vida de luxo, ameaçada pela crescende diminuição de sua mão-de-obra camponesa. Isso quer dizer que a nobreza usava sua influência sobre os reis não apenas diretamente contra a burguesia empresarial, mas também para conseguir financiar com dinheiro público suas condições luxuosas de vida, suas grandes festas por exemplo, ou para obter mais terras e mais camponeses. E de onde vinha esse dinheiro público? Fundamentalmente de impostos altos cobrados do empresariado burguês.

Fica bem claro, assim, em favor de quem, e contra quem, a teoria política e econômica de Locke estava se levantando naquela época.

Como evitar então o risco de que o governo, tentado pela concentração de muito poder em suas mãos, passasse a atuar "autoritariamente" contra "a liberdade", isto é, contra o direito de propriedade e de livre uso e livre gerenciamento produtivo da propriedade — direitos conquistados pela burguesia empresarial com seu trabalho inicial de apropriação da matéria e transformação da prima natural, e com seu gerenciamento racional da produção a partir daí?

O modo de evitar esse risco, segundo Locke, é não permitir essa concentração de poder. E para isto, para evitar o risco dessa concentração de poder, ele nos apresenta dois recursos. Um desses recursos é justamente a divisão de poderes.

O outro, é o interessantíssimo — e naquela época, raríssimo — direito de resistência da população, enquanto coletividade de pessoas de bem, contra um governo que não a ouça e não atenda sua compreensão do certo e do errado. Locke é um dos primeiros a defenderem de maneira clara e teoricamente bem estruturada o direito de resistência coletiva contra um governo, ainda que essa resistência, em sua teoria, apareça conectada a uma defesa moral em última instância do direito de propriedade (e de apropriação pela via do trabalho) em sentido capitalista.

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 A divisão de poderes é a ideia de que ao estabelecer um governo para sair das dificuldades da domada coletiva das decisões, e para concluir de modo definitivo a saída do estado natural, a sociedade deveria firmar esse governo sem concentrar os poderes de legislar, julgar e agir em um só indivíduo ou grupo.

Ao invés disso, o mais racional seria estabelecer não um centro de poder, mas quatro separados e independentes, cada um responsável por um tipo diferente de exercício do poder, e todos os quatro agindo não apenas de modo independente, mas também harmonicamente, cada qual procurando cumprir seu papel. Poder legislativo, poder judiciário, poder executivo e poder federativo (responsável pelo diálogo diplomático com outros Estados).

Como o papel de cada um dos poderes só pode se realizar corretamente se os demais cumprirem também corretamente cada um o seu papel, cada um desses poderes independentes e harmônicos teria de cumprir também o papel de fiscalizar e controlar se os demais poderes estão cumprindo corretamente seu papel, o que significa que se um dos poderes começasse a concentrar demais as decisões, os demais iriam naturalmente impedi-lo, porque ele estaria invadindo o território que é da responsabilidade deles.

As democracias representativas do século XX adotaram claramente essa ideia de Locke da divisão dos poderes. Mas geralmente limitando-os a três: legislativo, judiciário e executivo. Apesar de Locke ser anterior, e já ter uma teria bastante elaborada quando a isto, fama de ter desenvolvido a tese da divisão de poderes costuma ser atribuída ao francês Montesquieu, autor de O espírito das leis, e não a ele.

 

Montesquieu

 Montesquieu

 

Locke antecipou as ideias dos federalistas?

É interesante observar também — coisa que quase sempre não é devidamente notada quando se estuda Locke — que o modo como ele descreve a saída gradual do estado de natureza sugere a formação de um Estado de tipo federativo, embora a teoria federalista só tenha aparecido cuidadosamente desenvolvida mais tarde e nos Estados Unidos.

Os teóricos federalistas desenvolveram seu pensamento no processo de independência dos Estados Unidos da América, visando fortalecer a união dos Estados que estavam reunidos ali, mas sem eliminar sua liberdade e sua independência uns em relação aos outros.

O posicionamento deles se apresentou em 85 artigos publicados em periódicos e depois organizados em livro, artigos que foram desenvolvidos a partir de reuniões realizadas em 1787 para formular uma nova Constituição para esse novo Estado formado pela união dos Estados americanos que haviam se tornado independentes do domínio da Inglaterra. E Locke, vale lembrar, viveu (e desenvolveu sua teoria) bem antes disso, na Inglaterra — viveu de 1632 a 1704.

Para Locke, conforme as pessoas de bem vão se unindo e formando uma sociedade no processo de saída do estado natural, elas não vão formando apenas um grande grupo de gente que vai se tornando cada vez maior. Pelo contrário: vão formando diferentes grupos paralelamente, e são esses grupos, independentes uns dos outros e cada qual já com seu próprio entendimento coletivo do certo e do errado, que vão depois se organizando e passando a interpretar e decidir essas coisas juntos, como uma federação de grupos unidos.

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E seguramente não é à toa que os federalistas norteamericanos utilizam o mesmo termo que John Locke utilizou para o poder diplomático e negociador que ele imaginou: "poder federativo". O raciocínio de Locke sugere que esse poder federativo (que para ele deveria permanecer independente) não serviria apenas para a negociação com o estrangeiro, mas também (e talvez principalmente) para a negociação diplomática entre esses diversos grupos (ou sub-Estados) de um mesmo Estado maior, de modo a mantê-los unidos.

Se existiriam poderes distintos interagindo de modo equilibrado uns com os outros e atuando como freios e contrapesos uns dos outros no governo desse Estado maior, por outro lado haveria támbém esse sistema de freios e contrapesos entre esse Estado maior, considerado no seu conjunto, e os diferentes sub-Estados que o compõem. De modo que a independência de cada um dos sub-Estados em relação ao Estado maior (ou Estado federal) não fosse nunca suficiente para romper essa sua união com os demais sub-Estados e desmantelar país.

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De que modo o empirismo de Locke interfere
na maneira como ele constrói sua versão do estado natural
e sua defesa do direito de propriedade?

 Para encontramos o caminho de uma possível resposta a esta questão tão interessante e tão pouco examinada, vamos retomar a linha de raciocínio de Locke, revendo os pontos em que aparece a interferência do empirismo.

1 - A observação empírica do trabalho, e sua presença
na formulação do estado natural

Locke recusa a ideia de Hobbes de uma natureza com recursos escassos e limitados. E isto já está apoiado em sua observação empírica mais cuidadosa dos fatos. De que modo?

Ele observa que, na realidade, as pessoas conseguem sempre extrair muito mais da natureza através do seu trabalho, do que apenas aquilo que a natureza oferece para ser colhido sem esforço.

O que um minerador em busca de ouro consegue apenas olhando na superfície da terra, por exemplo, não será nunca o mesmo que outro consegue usando sua inteligência e seus esforços para escavar túneis em regiões que dão claros sinais da existência de ouro. O trabalho racional, inteligente, torna a própria natureza mais produtiva. E isto ― que é um fato observavel, mas que Hobbes não havia notado ― faz uma enorme diferença.

Por não ter obsrvado isto, Hobbes se sentia justificado em exagerar as coisas imaginando a natureza extremamente limitada. Locke, pelo contrário, sente que está plenamente justificado se imaginar a natureza, para todos os efeitos, como carregada de recursos ilimitados, capazes de nos oferecerem em quantidade infinita tudo aquilo de que precisarmos para nossa sobrevivência e para nossas melhores condições de vida.

Podemos com razão criticá-lo se o considerarmos exagerado no sentido oposto daquele de Hobbes, porque essa infinitude já não é observável. Entretanto, trata-se apenas uma suposição metodológica útil para justificar o que ele pretende justificar com base nela (o que aliás também poderíamos alegar igualmente em defesa de Hobbes).

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Onde Hobbes exagerava no pessimismo, Locke passa a exagerar então no otimismo. Por que? Porque Locke não quer justificar a agressividade dos seres humanos uns contra os outros de maneira nenhuma. (Ao que tudo indica, seu maior receio seria o de acabar justificando a agressividade dos despossuídos, dos sem-propriedades e sem capital, contra os proprietários capitalistas.)

Vejamos seu raciocínio.

Se Locke imagina que a natureza oferece recursos infinitos para a satisfação das necessidades e desejos humanos ― desde que os seres humanos trabalhem inteligentemente para produzir o que querem usando esses recursos naturais ― então nada justifica que um ser humano queira tomar os recursos naturais que estão sendo utilizados por outro ser humano.

Por que tomar o que está sendo utilizado por outro? Por que não ir trabalhar, ao invés disso, em um outro pedaço da natureza para conseguir o que quer? A única justificativa para isso, segundo Locke seriam as más intenções.

Para Locke, então, se um ser humano altera as condições da natureza com seu trabalho, tornando-a mais produtiva para ele, significa que deixou algo de seu naquele pedaço da natureza, deixou ali a marca do seu trabalho. E ao fazer isso, passou a ter o direito de propriedade sobre aquele pedaço da natureza, com todos os recursos que estão oferecidos ali. Ninguém mais tem o direito de se aproveitar desses recursos. O direito passou a ser exclusivamente do proprietário, que conquistou esse direito pelo esforço do seu trabalho.

Se outro tenta depois disso roubar dele esses recursos naturais ― dos quais, repitamos, ele se apropriou com todo direito, pelo esforço de seu trabalho e de sua inteligência ― esse outro estará agindo de maneira egoísta e oportunista, buscando o caminho fácil de tomar pela violência o que o primeiro produziu pelo esforço, e isto é errado ― o roubo do que já se tornou propriedade alheia, segundo Locke, não pode ser justificado de maneira nenhuma. O direito de propriedade tem que ser respeitado acima de tudo.

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 Fundamento da propriedade no trabalho racional

 

 

 

 

 

 

 

2 - A observação empírica da propriedade, e sua presença
na formulação das crescentes relações sociais
a partir do estado natural

Segundo Locke, no estado natural a vida social iria se desenvolvendo pouco a pouco, gradualmente, a partir dos indivíduos, que iriam se juntanto uns com os outros, principalmente em torno da regulamentação coletiva do trabalho e da aquisição individual de propriedades com base no trabalho.

Esses relacionamentos sociais e econômicos, do ponto de vista lockeano, se iniciariam — atenção para isto — justamente a partir do respeito que as pessoas de bem dedicam às propriedades alheias, reconhecendo nos outros o mesmo direito à propriedade que reconhecem em si mesmas.

CIT - Locke

Guardemos esta informação, porque esse respeito, segundo Locke, depende do que se pode observar externamente das pessoas, empiricamente inclusive. Depende, em última instância, do esforço produtivo que se observa nas pessoas, e do sinal externo mais claro desse esforço: o enriquecimento.

Segundo a conceção de Locke, quem enriquece — e importa acentuar bem isto: quem enriquece com base em seu esforço produtivo — merece respeito. E o respeito pelo esforço produtivo alheio, assinalado pelas propriedades que as pessoas conseguem adquirir com esse esforço, está entre as bases da construção moral e jurídica da vida social, segundo a teoria de Locke.

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Os que não reconhecem ou não respeitam esse direito, estariam então, já desde esse início, à margem da vida social, e se não passassem a reconhecê-lo e respeitá-lo, preferindo viver isoladamente segundo suas próprias regras individuais, passariam a fazer parte, do ponto de vista da regulamentação coletiva das coisas pelos que vivem em sociedade, dos assim chamados "criminosos", e estariam cada vez mais profundamente excluídos das sociedades que iriam se formando.

Aqui temos um detalhe bastante interessante ― um detalhe que assinala o ponto mais radicalmente capitalista da teoria liberal lockeana (e que é justamente o mesmo detalhe mais tarde apropriado e distorcido pelo anarquismo ultraindividualista de Max Stirner, subvertido para ser transformado em uma arma conceitual lançada contra o próprio liberalismo capitalista). Quando Nozick defende o livre exercício do poder econômico sobre as pessoas contra o poder do Estado para controlá-lo, e diz estar sendo "anarquista", está possivelmente (até provavelmente) partindo de uma leitura absurdamente superficial e distorcida de Stirner.

 

Stirner

Stirner - segundo caricatura feita por Engels
(há fotos em circulação que se alega ser de Stirner,
mas não há certeza)

 

O detalhe é o seguinte: para Locke, quando a pessoa se apropria de certos bens, ela está ao mesmo tempo construindo a si mesma. Está construindo aquilo que é de sua responsabilidade pessoal, e que inclui sua reputação social. E aqui parece haver mais uma — talvez a mais interessante —  participação de seu empirismo em sua teoria jurídica e política.

Este é um detalhe importante: embora não o coloque exatamente com essas palavras, não é difícil constatar que Locke dá alto valor a essa reputação social do indivíduo — sempre considerada por ele do ponto de vista da responsabilidade pessoal que a pessoa tem perante a sociedade, com relação aos bens que são de sua propriedade (incluindo seu próprio corpo), e também considerada do ponto de vista do devido respeito e consideração que a sociedade deve ao proprietário produtivo e responsável.

CIT - Locke

 Acontece que por detrás disto, podemos detectar a ideia de que as pessoas já não mantêm em sociedade aquela mesma igualdade de condições que, fizessem bom ou mau uso da razão, pareciam ter no ponto inicial do estado de natureza.

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Até que ponto a teoria de Locke ainda valoriza
a igualdade natural entre os seres humanos?

A teoria de Locke ainda valoriza a igualdade natural entre os seres humanos? Ou submete essa igualdade a fatores de perfil capitalista que justificam a desigualdade? A resposta é muito clara: — Não, em suas conclusões já não valoriza a igualdade natural, e sim, submete essa igualdade a fatores de perfil capitalista que justificam a desigualdade.

Podemos dizer que apesar de jusnaturalista, e de partir de uma mesma e igual natureza humana para todos, como os demais jusnaturalistas contratualistas, John Locke encontra uma maneira de diferenciar as pessoas segundo sua "importância" aos olhos da sociedade capitalista.

 O alto valor que Locke dá à responsabilidade do proprietário produtivo pela utilizaçã de seus bens, perante o julgamento da sociedade, e ainda mais ao respeito e à consideração que a sociedade lhe deve por essa sua produtividade responsável — tudo isto, que aqui estamos resumindo sob a ideia de uma "reputação social" adquirida pelo esforço empreendedor e produtivo — está ligado ao direito da pessoa de se construir a si mesma aos olhos da sociedade. Está ligado ao direito da pessoa de, a partir de sua reputação como produtor, adquirir o respeito dos demais em sua sociedade e inclusive uma maior influência sobre eles se sua reputação nesse sentido for maior.

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Tais coisas não estão tão explícitas em Locke, repito, mas são perceptíveis nas entrelinhas, subentendidas como decorrência mais ou menos natural do que ele nos vai dizendo, e que não precisa sequer ser firmemente esclarecida. Para bom entendedor meia palavra basta — não é o que se diz? Mas tentemos esclarecer melhor a coisa. 

Quando faz a distinção entre "ser humano" e "pessoa", em Um ensaio sobre o entendimento humano, Locke não fala em uma "construção social" dessa pessoa. Ele fala da "pessoa" apenas como aquela continuidade psicológica entre tudo o que fez parte desse "eu" no passado e tudo o que faz parte desse "eu" no presente — coisa que depende da memória e da consciência que esse "eu" tem de si próprio. Essa unidade psicológica do "eu" formando uma "pessoa" vai além da consciência apenas do próprio corpo e de que permanece sendo "o mesmo" corpo (e um corpo humano), apesar de suas mudanças ao longo do tempo.

Essa consciência psicológica do "eu" — de que ele permanece sendo o mesmo "eu" apesar de descontinuidades como a do sono à noite, e de transformações psicológicas ao longo do tempo — é o que faz desse "eu" uma "pessoa", e não apenas um organismo vivo individual do tipo "ser humano". Isto é tudo o que Locke nos diz a respeito, nesta passagem de sua obra, incluindo apenas alguns detalhes e o exame de consequências disto, fazendo uso de alguns casos imaginários e até fantasiosos como recurso auxiliar para o raciocínio (por exemplo o que ocorreria se uma pessoa pudesse mudar de corpo, e coisas assim).

CIT - Locke

Não obstante, Locke extrái de seus raciocínios em torno da questão da "pessoa" algumas conclusões morais e jurídicas a respeito da pessoa que adquire má reputação, por exemplo a pessoa acusada de um crime.

CIT - Locke

Ele também nos dá a entender que, se há algo que sempre permanece o mesmo e que caracteriza esse "eu" como uma pessoa que é sempre a mesma, por outro lado essa "pessoa" não é uma unidade completamente invariável, mas a unidade de uma continuidade ao longo do tempo de alteração em alteração.

CIT - Locke

pessoa, para Locke, muda. Suas características descritivas se alteram com o tempo. Mas se alteram seguindo uma certa continuidade sem rupturas, que fazem com que ela continue consciente de si mesma como "a mesma" pessoa.

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Entretanto o mais interessante é o seguinte: essa consciência que a pessoa tem de si própria depende de a pessoa observar a si mesma à maneira da observação que faz também das coisas externas ao seu redor — que incluem também as outras pessoas ao seu redor.

CIT - Locke

Essa consciência de si própria é também um autoconhecimento da pessoa. Isto significa que também depende, portanto, daquilo que Locke diz ser fundamental ao conhecimento em geral: ideias claras e distintas a respeito daquilo que se está conhecendo — lição bastante evidentemente aprendida com Descartes. Locke diz "ideias claras e distintas" CIT - Locke, como aquelas de que Descartes falava.

Mas tais ideias para ele não são inatas e descobertas dentro de nossa mente pelo raciocínio: são adquiridas. E como adquiri-las? — Através de uma observação ou experiência consciente, atenta e cuidadosa.

CIT - Locke

Só que — como já vimos — nenhuma experiência nos permite o contato com essências ou verdades profundas. Esta noção de Locke fica bastante clara no modo como ele descreve o processo pelo qual os seres humanos iriam emergindo do estado natural e exteriorizando suas capacidades de relacionamento com os outros por meio da criação de órgãos públicos (externos aos indivíduos) dotados de poderes distintos (legislativo, judiciário, executivo etc.).

Tal descrição aparece em outro livro famoso de Locke, já não sobre teoria do conhecimento, mas sobre direito e política: o Segundo tratado sobre o governo. 

Conforme o que Locke nos apresenta nesse livro, tal processo de saída do estado natural se daria apoiado no diálogo entre os indivíduos, em busca de soluções conjuntas para o que antes procuravam resolver individualmente. Em busca de um entendimento racional, dialogado — que depende do uso das palavras para trocar experiências e chegar a pontos de acordo entre elas, apesar de essas experiências diferirem de indivíduo para indivíduo.

CITs - Locke

Encontrar os pontos de acordo entre as experiências daria base ao acordo e entendimento mútuo entre os indivíduos — mas o inverso também vale: o diálogo mútuo em busca de entendimento contribuiria para a localização e demarcação de pontos de acordo entre as experiências dos indivíduos.

Sem isto, sem esta coletivização das observaçõs através da linguagem, os dados obtidos pela experiência de um único indivíduo isolado lhe permitiriam apenas interpretar muito subjetivamente qual a possível verdade por detrás deles. Pois como se daria mais objetivamente essa interpretação?

Ela só pode se dar mais objetivamente com a linguagem utilizada nessa interpretação sendo utilizada racionalmente, isto é: com o indivíduo não apenas procurando descrever as coisas com precisão para si mesmo, mas também dialogando sobre isto com outros indivíduos, confrontando suas interpretações com as deles, em busca de acordos, pactos, decisões conjuntas a respeitoEste é o caminho pelo qual os indivíduos humanos iriam saindo da vida isolada e passando à vida social.

Supõe-se então que algo similar se dá no que diz respeito às decisões e julgamentos que o ser humano individual faz quando examina a si mesmo, tentando adquirir maior consciência ou conhecimento de si próprio: ele conseguirá apreender com mais objetividade quem ele próprio realmente é conforme vá conectando seus próprios julgamentos a respeito de si mesmo com os julgamento feitos por outros.

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Mas o que se depreende do conjunto do pensamento juspolítico de Locke é que o que ele entende pelo julgamento que uma pessoa faz de outra não é propriamente uma avaliação qualitativa do tipo "como você é"; e sim em primeiro lugar a avaliação verificando se a pessoa está certa ou errada nas coisas que afirma e também moralmente, nas coisas que faz.

Já vimos que a moralidade lockeana, do ponto de vista não meramente individual e subjetivo, mas social (e portanto dependente do que cada pessoa expõe de si e capta das outras pessoas) é uma moralidade que vai se revelando diretamente conectada à oposição entre dois pólos, representando respectivamente a moralidade exemplar e a imoralidade criminosa: o polo do empreendedor produtivo e responsável, e o polo daquele que, criminosamente, não respeita o fundamental direito de propriedade e o fundamental dever do trabalho a fim de adquiri-la, procurando obtê-la pelo roubo.

A posição da pessoa entre esses dois polos extremos, o do mais elevado produtor e o do mais baixo e improdutivo (e até contraprodutivo) indivíduo torna-se assim um critério de avaliação da importância dessa pessoa, do ponto de vista da sociedade. De avaliação de sua má ou boa, mais baixa ou mais alta reputação social.

Essa boa reputação social do empresário produtivo parece dever se estabelecer, para Locke, mais informalmente do ponto de vista moral, do que formal e oficialmente do ponto de vista jurídico. Mas esse reconhecimento moral devido ao empreendedor produtivo e responsável não deixa de transparecer indiretamente também nas formulações jurídicas e políticas de Locke, que não são de maneira nenhuma neutras em relação à influência disto.

Esse reconhecimento moral da "importância" do empresário produtivo e responsável, detentor de propriedades, se alia intimamente a essa supervalorização da propriedade, especialmente quando pensamos na existência de pessoas tão pobres, com tão poucas propriedades, que talvez tenham a vida como seu único bem de valor.

Podemos afirmar com bastante segurança que havia sim, na época de Locke, pessoas nessas condições na Europa (incluindo a própria Inglaterra) — e mesmo que não houvesse, isto não justificaria ele tratar tal possibilidade como irrelevante, visto que Locke é bastante prolixo em tratar de possibilidades não observadas mas que poderiam ocorrer, tentando incorporar tais possibilidades no campo de validade de sua teoria. Parece na verdade bastante significativo que ele não se aperceba dessa limitação (claramente ideológica, de cariz capitalista) de sua própria teoria filosófica.

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 Está marcado por toda essa visão de uma moral pró-capitalismo, por exemplo, o fato de Locke fazer com que o direito de propriedade tenha, em sua teoria jurídica, quase tanto valor quanto o direito à vida, e em certas circunstâncias, até mais valor. 

Se por exemplo não houver leis definidas a respeito de como tratar o criminoso que invade e depreda uma propriedade, e esse criminoso for capturado em pleno ato pelo proprietário, esse proprietário, segundo Locke, estará em seu direito se mantiver o criminoso em cárcere privado, se torná-lo seu escravo, ou até mesmo se torturá-lo e matá-lo. E aí temos a propriedade — isto que as pessoas não têm na mesma quantidade — elevada acima do valor da vida (que está presente igualmente em todos os membros da sociedade). 

Aquele ser humano capturado em ato criminoso passa nesse caso a ser comparável a uma fera selvagem e perigosa, e o proprietário que teve seus bens depredados tem o direito de tratá-lo como se trata (como na época de Locke se tratava) uma fera selvagem.

A vida passa a valer menos, nessas circunstâncias, do que a propriedade! A semente da desigualdade econômica se manifesta com dureza e até crueldade, representada nesse detalhe do pensamento de Locke. Está claro que aqui estou assumindo posicionamento em relação a Locke, e não apenas fazendo uma descrição ou análise fria de seu pensamento. Mas isto não invalida necessariamente as informações apresentadas. Verifique-se a coisa com maior precisão, e reflita-se a respeito.

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Qual o raciocínio pelo qual podemos captar em Locke
a passagem do empirismo à valorização
daquele que detém mais propriedades?

 

A noção de Locke de que a pessoa que constrói seu patrimônio adquirindo propriedades por meio de seu trabalho inteligente e produtivo, está ao mesmo tempo construindo a si mesma por meio da construção de uma reputação social, é desenvolvida por ele nas entrelinhas de seu texto como algo subentendido, mas pode ser notada com alguma facilidade pelo leitor.

E ao que tudo indica, é nesta noção que repousa a ligação entre a parte juspolítica seu pensamento e a base disso em sua teoria empirista do conhecimento — coisa para a qual os estudiosos de Locke geralmente não dão a devida atenção.

Vejamos: para Locke, não há como termos conhecimento da essência de uma pessoa, como Platão pretendia na antiguidade. Uma essência é algo que não se vê, não se toca, não se ouve, não se cheira e da qual não se sente o gosto. É algo que só poderia ser captado com o uso da pura razão.

E acontece que essa “pura razão”, para Locke, não existe, ou se existe não pode ser captada pela nossa consciência nesse estado "puro" (ele ainda não é Kant).

A razão, segundo sua teoria empirista, só pode se desenvolver a partir dos dados sensíveis e com base neles.

Ela própria é examinada por Locke a partir de sua face "externa" e observável, segundo o modo como se dá nas interações entre as pessoas: em uma palavra, segundo o modo como ela se desenvolve no campo da linguagem, considerada basicamente como um modo de definir as experiências individuais para os outros (o que ele compreende como descrevê-las tão precisamente quanto possível). E também é examinada como um modo de comunicar  experiências aos outros, de tal maneira que as pessoas possam se assegurar umas às outras do que estão dizendo, comparando mutuamente suas experiẽncias sensíveis em busca de semelhanças que fundamentem o acordo.

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Isso condiz com algo que já examinamos: que para ele não é possível conhecer nada das coisas em sua essência, e também nada de uma pessoa humana em sua essência ― tudo o que sabemos sobre uma pessoa, tudo o que sempre poderemos saber a seu respeito, está nas qualidades sensíveis, nas características que podemos captar dessa pessoa, a partir de sua aparência, e no que ela nos diz de suas experiências sensíveis em relação às coisas sobre as quais conversamos, e em relação a nós mesmos.

Já vimos também que para Locke é preciso avaliar as pessoas, pois elas não têm a mesma importância para a sociedade como um todo. Sua importância depende da produtividade que demonstram enquanto  fundadores e líderes de empreendimentos econômicos. Não é preciso muito mais que isso para percebermos que só podemos conhecer e avaliar uma pessoa a partir de sua reputação social, em um sentido bem capitalista do termo.

Assim, é possível que existam essências profundas desconhecidas, mas para todos os efeitos, uma pessoa por exemplo é apenas o conjunto de tudo aquilo que as outras pessoas, na vida social, podem captar dela com os olhos, os ouvidos etc. E daquilo que se pode interpretar socialmente de sua importância a partir dessas observações, dialogando a respeito, falando sobre essa pessoa.

Sobretudo nos campos jurídico e político, em que as demarcações claras e objetivas (incluindo as "ideias claras e distintas" com as quais Descartes tanto se preocupava) são fundamentais, é preciso ser pragmático e trabalhar dentro esses limites, evitando buscar "essências" das quais não podemos afirmar nada com suficiente segurança.

Em outras palavras, para chegarmos finalmente à nossa conclusão, na visão de Locke uma pessoa, para todos os efeitos, se reduz à imagem pública que é feita dela.E se essa imagem pública é construída a partir de propriedades (no sentido de características) observáveis nela e socialmente conversáveis a respeito dela, também repousa nas propriedades (em sentido econômico) que essa pessoa detém, e que lhe trazem certa reputação social.

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Em seu livro mais famoso, Um ensaio sobre o entendimento humano — que versa sobre sua teoria do conhecimento empirista, mas não deixa de apontar em diferentes passagens indicações relativas ao direito e à política — Locke, desenvolve brevemente um curioso raciocínio nessa linha, em direção à questão da justiça oficial.

Pode-se encontrar isto no capítulo XXVII deste livro, sobre a questão da identidade do ser humano e da pessoa.

Ali, pensando na direção contrária da que estávamos desenvolvendo aqui, mas dentro da mesma linha de raciocínio, Locke fala não na boa, mas na má reputação social de alguém. Locke (em uma passagem já citada neste artigo) LINK chega a lamentar a possibilidade uma pessoa inocente ser acusada e condenada injustamente, note-se bem, se não houver provas externas, observáveis, que sejam contrárias sua má reputação ligada a um crime . Contudo ele não se aprofunda muito nos recursos jurídicos visando evitar isso. Mais do que qualquer outra coisa, ele procura apenas consolar antecipadamente os possíveis inocentes injustamente condenados. Procura consolá-los com a ideia de que mais tarde, após a morte, Deus compensará os justos e punirá os verdadeiros culpados.

Que lição acerca de Locke podemos extrair disto?

O que estou procurando observar aqui é que para Locke, na ausência de qualquer acesso seguro à essência ou verdade profunda das coisas, essa mesma "externalidade" observável que serve de critério no campo jurídico vale também moralmente quanto à pessoa que constrói sua imagem pública: ela constrói sua boa reputação social pela via capitalista — na posição de empresário produtivo e responsável, adquirindo seu patrimônio com base em seu trabalho desenvolvido de modo racional e produtivo, o que segundo Locke deve ser valorizado e respeitado pela sociedade. 

Note-se o seguinte: ao raciocinar deste modo, na prática, no que diz respeito as ações que se deve adotar em relação às pessoas, Locke acaba tratando do mesmo modo as características físicas ou mentais de uma pessoa e o conjunto das propriedades que ela adquiriu com seu trabalho.

Isto não é feito por ele de maneira indireta ou metafórica: Locke trata literal e explicitamente do corpo e da mente (pelo menos naquilo que é conscientemente e com clareza experienciável do nosso corpo e da nossa mente) como propriedades de um indivíduo no sentido tanto descritivo quanto econômico. Em termos econômicos trata o corpo e a mente de um indivíduo como partes do seu patrimônio, exatamente do mesmo modo como são suas propriedades aqueles bens externos a ele adquiridos por ele através do trabalho.

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A única diferença é a de que o corpo e a mente ― a princípio vazia ― são propriedades naturais, com as quais o indivíduo nasce e que lhe cabe ativar produtivamente, e não propriedades externas adquiridas como as demais. Dessas propriedades naturais ao indivíduo ainda assim só podemos nos assegurar daquelas que podemos observar e experienciar como se fossem externas (comparando-as portanto com aqueles bens efetivamente externos dos quais nos apropriamos). 

Até mesmo os conteúdos que vão preenchendo a mente do indivíduo desde o seu nascimento, no fundo são na verdade, para Locke, propriedades que ele vai adquirindo ao longo da vida, por meio de seu trabalho intelectual.

Em suma: o raciocínio básico pelo qual procuro aprofundar aqui a conexão entre a teoria do conhecimento de Locke e sua teoria juspolítica (principalmente entre Um ensaio sobre o entendimento humano e o Segunto tratado sobre o governo) — ou pelo qual procuro ao menos provocar os estudiosos a aprofundarem essa conexão — é uma hipótese fundada na observação de traços sutis do pensamento de Locke, geralmente considerados de menor relevância.

Trata-se da hipótese de que essa duplicidade da noção de Locke do corpo — como "propriedade" da pessoa no sentido de "patrimônio", ao mesmo tempo que é "propriedade" no sentido de componente característico dessa pessoa enquanto indivíduo humano — é uma duplicidade que pode ser também estendida de modo relevante e interessante às demais "propriedades" do patrimônio de uma pessoa, a partir modo como Locke trata (discreta e indiretamente, e usando outras palavras, mas sim, claramente, nas entrelinhas de seus textos) a questão da reputação social de uma pessoa.

Em outras palavras, ao que tuo indica, para Locke uma pessoa é, basicamente, aquilo que ela tem. Não lhe podemos observar empiricamente a essência, então para todos os efeitos ela se reduz ao conjunto das propriedades naturais ou adquiridas que possui, porque estas podemos claramente observar. O resto para além disto são meras interpretações incertas acerca de essências inatingíveis — interpretações que podem ou não chegar a se firmar socialmente de modo a nos dar um pouco mais de segurança, mas nas quais não se pode confiar como dotadas de qualquer objetividade.

Essa objetividade e segurança acerca do que as pessoas são em sua essência não podem ser atingidas precisamente porque os seres humanos, esses conjuntos de propriedades naturais e adquiridas de que estamos falando e dos quais estamos tentando descobrir alguma possível essência, são conjuntos mutáveis. As propriedades adquiridas se alteram com o tempo. Uma pessoa pode enriquecer e empobrecer, e a boa reputação social que a acompanha pode aumentar ou diminuir com base nisto... mas também com base nas interpretações incertas que a sociedade faz de quem é essa pessoa "no fundo", a partir do que vai observando nela.

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Diagrama Locke

 

De onde vem esse duplo sentido implícito no modo
como Locke trata a "propriedade" chamada corpo?

Talvez isto venha do fato de Locke ser inglês, porque na língua inglesa, a palavra “property” significa tanto um bem que é do patrimônio de alguém, quanto uma característica que algo ou alguém possui ― por exemplo quando falamos da propriedade dos gases de se expandirem e se espalharem pelo espaço em que estão, ou de uma bela mulher que tem a propriedade de ser bela e a propriedade de ter os olhos castanhos. Em seu Um ensaio sobre o entendimento humano a palavra "property" aparece algumas vezes nesse sentido, quase como sinônimo de "características", "qualidades observáveis" pelas quais algo pode ser "definido" (isto é, descrito).

Na verdade, este uso não aparece realmente acentuado em Locke. Mesmo assim, há muitas indicações esparsas em suas obras que apontam que essa associação entre propriedades econômicas e propriedades descritivas seria maior, em Locke, do que se costuma considerar — porque torna mais compreensível a coerência entre sua teoria do conhecimento e sua filosofia juspolítica. 

Notemos então que “propertys” pode ser traduzido como “propriedades” ― tanto no sentido daqueles bens que uma pessoa comprou ou produziu para si mesma, quanto no sentido daquelas propriedades (características) que descrevem como essa pessoa é. E que Locke de fato algumas vezes utiliza essa expressão no sentido de "qualidades observáveis" em algo, embora a use muito mais no sentido econômico, nos livros em que trata de questões jurídicas e políticas.

Os que falam a língua portuguesa têm uma certa facilidade para compreenderem o que seria uma associação entre esses dois sentidos de "property" como esta que estou sugerindo ser subjacente às teses de Locke, porque a palavra “propriedade” em português tem o mesmo duplo sentido que a palavra “property” em inglês.

É bem pouco provável que esse duplo sentido dessa palavra tenha escapado a Locke, porque é uma palavra muito apropriada para o vocabulário empirista. Também é possível, por outro lado, que ele tenha procurando evitar essa palavra, justamente porque advogava contra o uso de palavras de duplo sentido.

Comparando Um ensaio sobre o entendimento humano com sua primeira versão rascunhada — acessível aos estudiosos desde o século XX com o título de Draft A — Locke parece ter tido inicialmente a expectativa de tratar de modo mais rápido essa questão dos maus usos da linguagem no processo do conhecimento, porque a anuncia como uma questão introdutória, contudo parece ter tido essa expectativa frustrada, com o tema exigindo um estudo muito mais detido, longo e aprofundado do que ele imaginava, de modo a tomar todo o seu Draft A. 

Mais tarde, a partir de seu segundo rascunho da obra (o Draft B), acaba preferindo centrar o foco de sua atenção nas ideias simples e compostas, e a questão da precisão no uso da linguagem voltou a submergir para o segundo plano, posição em que permaneceu no Draft C e na versão final do livro.

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Se Locke tivesse insistido em focalizar essa questão centralmente, e se voltasse para o exame de seu próprio uso da linguagem, verificando a maneira como se utilizou da noção de "property", teria deixado mais claro isto que me parece poder focalizar nas entrelinhas de seu texto? Ou teria rejeitado essas obsrvações que faço e distinguido mais firmemente "propriedades" como "qualidades observáveis" de "propriedades" em sentido econômico? — Não pretendo avançar aqui nenhuma resposta definitiva nesse sentido, faço apenas uma aposta aqui, sem aprofundar-lhe os fundamentos, e peço aos estudiosos mais interessados em Locke que me corrijam se for o caso.

 De qualquer modo o fato é que, mesmo quando ele não usa esta específica palavra — "property" — os dois sentidos de “propriedade” não aparecem sempre de modo claramente distinto em seu pensamento, a menos que contemos com distinções feitas habitualmente pelo senso comum, mas que neste caso não nos permitem detectar alguma conexão profunda entre a teoria de Locke no campo do conhecimento e sua teoria no campo jurídico e político.

Mas que há conexões, parece claramente firmado por exemplo pelas referências de Locke a questões de interesse moral e juspolítico em sua principal obra de teoria do conhecimento — Um ensaio sobre o entendimento humano — no capítulo em que fala sobre a questão da identidade como ser humano e como pessoa.

O que estou dizendo — sobretudo como uma provocação para a reflexão dos interessados no assunto e dos especialistas em Locke — é que esse filósofo não parece diferenciar claramente essas duas noções quando descreve uma pessoa pensando no papel dessa pessoa enquanto membro de uma sociedade: a noção de "propriedades" enquanto bens econômicos que a pessoa possui, e a noção de "qualidades" que a descrevem perante a sociedade, enquanto pessoa dotada de uma certa (boa ou má) reputação social. 

Estou sugerindo que Locke parece ter sido levado a isso por seu empirismo, que o leva a considerar as pessoas a partir de suas características externas observáveis, sobretudo em face das necessidades práticas e de objetividade que se apresentam no campo do direito, mas também em face da prática de uma moralidade social, coletiva, para além da consciência moral individual. E que parece ter sido levado a isso ainda mais por seu liberalismo capitalista, que valoriza nas pessoas a riqueza que elas possuem, o seu patrimônio.

E estou dizendo além disso que talvez Locke, dando-se conta disso ou não, tenha sido levado a esse modo de pensar não apenas por seu empirismo e por seu capitalismo, mas também por esta característica da língua inglesa, que associa indiretamente à noção de “propriedade” econômica o sentido de “característica”, por utilizar para isso a mesma palavra ― assim como fazemos em português.

Raramente os estudiosos procuram relações (como esta) entre famosa teoria do conhecimento empirista de Locke e sua igualmente famosa teoria juspolítica. A falta dessas relações acaba pesando contra a teoria juspolítica desse filósofo, que por isso parece menos bem fundamentada e mais contraditória do que é ― embora corrigir isto fazendo essas relações não signifique de maneira nenhuma que Locke chegue a se revelar coerente quanto Hobbes ― ou mesmo que ele faça algum esforço para atingir uma coerência comparável à da matemática.

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