Tópicos de vida e obra de Jürgen Habermas

Pesquisa & Texto da autoria de João Ribeiro de A. Borba

Jan/2021

 

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Habermas: um filósofo crítico em busca do social e do consenso.
Seu desenvolvimento e seus debates com outras correntes filosóficas.

 

De onde emergiu a filosofia de Habermas? Como ela nasceu?

Jürgen Habermas é um herdeiro da Escola de Frankfurt, grupo de filósofos fundado pelo pós-marxista Max Horkheimer — autor da principal obra que influenciou o grupo: Eclipse da razão, ou Crítica da razão instrumental.

A Escola de Frankfurt foi formada não apenas por filósofos mas por estudiosos de diversas áreas de humanas, principalmente sociólogos, todos direta ou indiretamente ligados ao marxismo, mas dedicados a uma reformulação do pensamento de Marx, na qual são consideradas contribuições das teorias de Freud, Nietzsche e outros. Os principais membros da Escola de Frankfurt (os mais influentes) eram judeus fugidos do nazismo, e com uma grande preocupação no sentido de tentarem compreender o fenômeno nazista e o que o tornou possível, avaliando que a teoria de Marx pura e em sua versão original não dá conta do problema satisfatoriamente.

Max Horkheimer, o fundador da Escola de Frankfurt, considera que para entender o fenômeno era preciso levar em conta questões de psicologia social que estariam para muito além dos problemas político-econômicos normalmente focalizados de maneira central pelo marxismo.

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Como o livro Eclipse da Razão, ou Crítica da Razão Instrumental,
de Horkheimer, contribuiu para a formação da filosofia de Habermas?

Esse famoso livro de Horkheimer, que marcou toda a Escola de Frankfurt assinalando sua temática básica, também influenciou Habermas — esse frankfurtiano mais jovem, de segunda geração — fortemente. O livro de Horkheimer era pessimista mas demonstrava alguma esperança de futura superação dessa crise da razão — expressão que se tornou célebre em todo o mundo entre os críticos da racionalidade tecnicista e imediatista advinda com o capitalismo. Daí a metáfora do eclipse no título dele: a razão seria como um sol apagado porque encoberto pela lua... mas a lua em breve passaria, e o sol ainda voltaria a brilhar.

Mesmo assim, apesar de uma certa esperança no futuro, se examinamos o livro percebemos que é uma esperança bastante minguada, mergulhada em um enorme pessimismo. No caso da primeira geração da Escola de Frankfurt, a avaliação geral quanto a isto então, é pessimista: a razão técnica, operada pelos indivíduos com fins irracionais e não dialogados humanamente, utilizada de modo puramente instrumental, conforme vem sendo cada vez mais promovida pelo capitalismo, tende mesmo a levar o mundo capitalista cada vez mais para perto do tipo de comportamento perigosamente desumano que caracterizou as atitudes nazistas.

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Daí esse grupo de filósofos começar a combinar sua descendência marxista com uma forte influência do existencialismo de Nietzsche por um lado, e da psicanálise de Freud, por outro. Não apenas para compreender melhor esse fenômeno histórico do ponto de vista psicológico, mas também tentando encontrar, por assim dizer "nas portas dos fundos" dessa racionalidade instrumental — isto é, em seu fundo irracional, em suas metas tão pouco refletidas e dialogadas — algo que fosse de algum modo humanamente recuperável, e pudesse servir de apoio para o restabelecimento da razão em parâmetros menos calculistas e desumanos.

No caso de Jürgen Habermas o que temos é o principal representante de uma nova geração de seguidores da Escola de Frankfurt, mais otimista, e por isso também menos ligada a essa necessidade de examinar os perigos e atrativos lado irracional humano. Habermas já não sente necessidade de dar tanta atenção a Nietzsche e Freud, que examinam a irracionalidade humana. Prefere ao invés disso combinar o marxismo com referências e reflexões ligadas à questão da comunicação, porque é nesta área que Habermas encontra uma esperança muito maior, um sinal de boas transformações, que os frankfurtianos da outra geração não haviam captado.

Para Horkheimer e na maioria dos demais membros da Escola de Frankfurt, a crise histórica que iniciou o mencionado "eclipse da razão", reduzindo-a a um instrumento a serviço de objetivos de perfil capitalista superficialmente individualizados, parece estar apenas começando. O fim desse eclipse parece ser algo ainda distante, uma esperança minguada, às vezes mínima. Para Habermas, o mesmo eclipse parece estar já no fim, com uma esperança ensolarada já começando a despontar por detrás das condições sombrias em que o capitalismo nos lançou.

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De que modo o otimismo de Habermas o diferencia de seu mestre Horkheimer?

Segundo Habermas, se por um lado o capitalismo realmente tem promovido essa redução da razão a uma razão meramente subjetiva e instrumental (individualista, imediatista e oportunista), conforme Horkheimer havia percebido, por outro lado podemos perceber fenômenos sociais ligados à comunicação que dão um claro sinal de uma outra coisa acontecendo paralelamente, ao mesmo tempo: uma busca crescente do entendimento social entre as pessoas.

Isto quer dizer que há duas tendências simultâneas e opostas ocorrendo no mundo capitalista. Uma dessas duas tendências aponta no sentido de um crescente oportunismo individualista e imediatista ligado às técnicas das operações econômicas, que acabam contaminando o resto da vida. A outra tendência aponta no sentido de uma reação social contra essa racionalização desumanizada e tecnicista que o capitalismo promove, e essa reação da sociedade também precisa ser examinada, porque abre as portas para a possibilidade de um mundo novo e melhor.

Para Habermas, a esperança que aponta para esse mundo melhor está ligada à possibilidade da construção consensos nas sociedades humanas, e sobretudo da construção de um grande consenso em torno de uma compreensão global única e racional a respeito de como se estrutura a realidade social humana, em todo o mundo. E ele procura de fato construir esse consenso maior,  essa compreensão global, e não apenas com sua própria teoria. Para construir isso, ele também procura sempre entrar em contato com os mais variados pensadores dos mais variados campos de conhecimento em todo o mundo, buscando um diálogo, e incorporando em sua teoria os resultados desse diálogo.

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A valorização do consenso por Habermas
está ligada a uma desvalorização das divergências?

O fato de Habermas buscar o consenso não significa que sua teoria ignore as divergências de posicionamentos e menos ainda que ela ignore os conflitos sociais e os conflitos econômicos de classe. É uma teoria crítica — aliás, todas as teorias dos membros da Escola de Frankfurt e de seus descendentes (como Habermas) costumam ser conhecidas como participantes dessa noção geral de Teoria Crítica, de modo que quando se usa tal expressão ("Teoria Crítica") muitas vezes se trata de uma referência à Escola de Frankfurt (incluindo esse seu seguidor de uma nova geração e um pouco diferente que é Habermas).

No entanto, o lado crítico de Habermas é justamente aquilo em que ele mais se mantém ligado à Escola de Frankfurt, porque quanto a isto apenas prolonga as críticas iniciadas por Max Horkheimer e levadas adiante também por todos os outros frankfurtianos.

Esse lado crítico se percebe não só na sua crítica contra o capitalismo e a noção puramente técnica do progresso que ele acarreta e promove. Mas também na sua crítica ao positivismo lógico — considerado por ele uma filosofia de promoção e sustentação dessa noção puramente técnica do progresso. Na mesma linha de raciocínio, o lado crítico de habermas aparece também em suas confrontações com filósofo Karl Popper (que defende o positivismo lógico) e com sociólogo Max Weber (embora o próprio Habermas não deixe de ter alguma influência de outros aspectos, menos "tecnicistas", do pensamento weberiano).

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Qual o posicionamento de Habermas em relação a Popper?

A polêmica entre Habermas e Popper tem o seu ponto talvez mais intenso no tema da dialética.

Popper faz uma dura crítica ao pensamento de tipo dialético, procurando desqualificá-lo como um raciocínio inútil e até pernicioso quando se busca o rigor científico, valorizando a lógica em oposição à dialética. Mas a compreensão que Popper tem da dialética é superficial e, em alguns aspectos, inclusive errônea, mal informada.

Habermas, no entanto, não ataca tanto essa distorção de Popper ao descrever a dialética: parece achar natural que pensadores filiados ao liberalismo burguês pensem assim, de modo que prefere apenas apontar com clareza a orientação ideológica conservadora, tecnorática e tendente ao capitalismo que subjaz às críticas popperianas, de modo a desmascarar em Popper um representante da ideologia purguesa capitalista e tecnocrática, e em seus ataques à dialética, uma reação conservadora contra uma das marcas metodológicas da herança marxista na filosofia mundial.

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Como o posicionamento de Horkheimer em relação a Weber afeta Habermas?

As críticas a Weber por parte da Escola de Frankfurt começam a aparecer já no primeiro capítulo do mais famoso livro daquele autor que foi referência orientadora básica de Habermas: Max Horkheimer. O livro de Horkheimer de que estamos falando é Eclipse da razão ou Crítica da razão instrumental, e a critica a Weber, mais tarde retomada e continuada por Habemas, já estava no capítulo desse livro chamado Meios e fins.

No caso de Habermas, sua contraposição a Weber, se é menos completa e agressiva que a oposição que faz a Popper, por outro lado é mais básica e fundamental na compreensão de sua filosofia, a partir do momento em que ele passa defender aquilo que chamou "Teoria do Agir Comunicativo". 

Horkheimer diz que a ascenção do capitalismo levou as pessoas a entenderem a noção de "razão" de um modo mais reduzido e superficial. Antes, acreditava-se que o mundo era coerente, que havia alguma racionalidade no funcionamento das coisas, e que essa nossa capacidade mental de raciocinar era apenas um instrumento para compreendermos melhor essa coerência e racionalidade que orienta o funcionamento das coisas no mundo, para nos situarmos melhor nisso e entendermos quais os nossos objetivos, qual a finalidade da nossa existência em tudo isto.

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Mas depois, conforme foi evoluindo o capitalismo, fomos esquecendo cada vez mais a nossa busca dessa coerência, dessa racionalidade e desse nosso papel no mundo. Fomos orientando nossas vidas cada vez mais para a simples busca de obejtivos mais rasos e superficiais colocados para nós pelo capitalismo — enriquecer, ter mais e melhores bens, serviços e lazeres etc. — sem pararmos mais para refletir a fundo a respeito das nossas finalidades.

No mesmo movimento, passamos a considerar a razão apenas como um instrumento que existe só na nossa mente, que é nossa capacidade de raciocinar, a fim de atingirmos, sem pensar mais a fundo e de maneira automática, esses objetivos postos pelo capitalismo. Horkheimer chama essa noção reduzida e superficial da razão de "razão instrumental". E segundo Horkheimer, a sociologia de Weber está presa a essa visão meramente instrumental da razão, que deixa as pessoas à mercê do capitalismo.

O pensamento de Habermas costuma ser dividido em duas grandes fases. Na segunda dessas duas fases, ele pega carona na crítica de Horkheimer a Weber e à razão instrumental, e a leva mais longe, detalhando-a e aprofundando-a em sua Teoria da Ação Comunicativa. 

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Qual o principal tema de Habermas na fase inicial de sua filosofia?

A primeira fase da filosofia de Habermas, até 1960, é ainda uma fase em que ele está mais próximo dos pensamentos da geração anterior da Escola de Frankfurt, principalmente porque está mais próximo do marxismo. Desta fase sua obra mais importante é Mudança estrutural da esfera pública, na qual examina as transformações históricas no que podemos chamar de "espaço público", no qual são lançadas comunicações ou informações para o conjunto da sociedade. Como se vê, nesta primeira fase de Habermas, sua atenção já estava indiretamente voltada para questões de comunicação.

Neste livro, Habermas segue a linha de alguns elogios feitos por Marx à burguesia capitalista dos primeiros tempos, que acabou criando esse espaço do que é considerado "público". Apesar dos elogios, ele mostra que a criação dessa "esfera" do que é "de interesse público" se fez inicialmente não tão voltada para o interesse "público" quanto se dizia. Na verdade servia como uma espécie de fórum ou espaço no qual ela própria (a burguesia capitalista) podia lançar seus pensamentos, posicionamentos e opiniões de modo a promover e organizar linhas de defesa de seus interesses contra os governos, sempre que era contrariada por eles.

Entretanto, com o tempo outros grupos sociais foram se apropriando dessa esfera pública e participando mais e mais ativamente da formação da "opinião pública", o que alterou a estrutura básica de funcionamento dessa "esfera pública" tornando-a um intrumento de interesse público real.

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Quais as principais divergências
dos filósofos pós-modernos em relação a Habermas?

Depois da primeira fase de sua filosofia (que foi até 1960), Habermas começou a focalizar cada vez mais a questão da comunicação, e entrou numa nova fase com a construção de sua Teoria do Agir Comunicativo. É nessa fase de sua filosofia que o tema do consenso se torna realmente poderoso para ele. Nessa fase, também, Habermas acaba se tornando um dos principais adversários dos filósofos pós-modernos, que criticam qualquer esforço no sentido de se buscar uma teoria geral capaz de explicar globalmente tudo o que está ocorrendo no mundo — e que por isso mesmo, recebem mal a defesas habermasiana do consenso, fazendo oposição a ela.

Segundo os pós-modernos, esse consenso buscado por Habermas, assim como qualquer esforço de construir uma teoria global desse tipo, é não apenas uma utopia irrealizável, mas também algo indesejável e até perigoso. Indesejável e perigoso porque o consenso nunca será real, e também nunca dará conta de toda a complexidade do mundo atual.

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Deste modo, o que teremos como resultado será, na verdade, apenas uma simplificação superficial das coisas, desprezando detalhes que podem ser importantes e até mesmo fundamentais para outras teorias e posicionamentos. Portanto, essa simplificação será necessariamente totalitária, isto é, a imposição de uma única visão do todo forçando as divergências a se submeterem a ela. Uma teoria assim poderá falcilmente acabar transformada em uma força autoritária de opressão nas mãos de grupos dominantes que desprezam ou oprimem opiniões divergentes ou presentes em minorias.

Para os pós-modernos, uma teoria global que (como a de Habermas) tenta sozinha dar conta de tudo e buscar um consenso universal, na verdade está se recusando a aceitar suas limitações e seu posicionamento específico — ao invés de se inserir no debate como apenas mais um em meio à complexa diversidade de posicionamentos da atualidade.

Como já dissemos, aos olhos dos pós-modernos, uma teoria assim necessariamente perderá de vista detalhes que podem ser fundamentais na construção de outras teorias e visões de mundo, inclusive mais representativas e valiosas para grupos minoritários. Daí a conexão direta que esses críticos pós-modernos fazem entre essa busca de uma teorias que tentam dominar totalmente tudo o que há para ser explicado no mundo atual, e o totalitarismo político, autoritário e repressor da diversidade, das divergências e diferenças de posicionamento.

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Quais as críticas de Habermas e seus seguidores aos filósofos pós-modernos?

Habermas e seus seguidores tendem a contra-atacar seus críticos pós-modernos acusando-os de estarem indiretamente ligados ao modo capitalista de pensar as coisas. Isso pode ser verdade para uma parte dos pós-modernos de "segunda geração", como por exemplo F.Fukuyama, que assume um posicionamento politicamente conservador e aliado ao liberalismo burguês e capitalista.  Mas não é válido de maneira nenhuma para todos os "pós-modernos" da segunda geração e menos ainda para o primeiro filósofo "pós-moderno", o filósofo que criou essa expressão e que foi o primeiro a defender esses novos tempos "pós-modernos".

O criador da noção de "pos-modernidade" é o filósofo Jean-François Lyotard, e na verdade ele veio de uma linhagem de pensadores políticos ultra-radicais de uma esquerda anticapitalista de tipo freud-marxista que se tornou conhecida e influente principalmente a partir dos movimentos estudantis internacionais de 1968. Mais precisamente, Lyotard foi um dos membros mais ativos e conhecidos do grupo Socialismo ou Barbárie, do qual fizeram parte com ele Cornélius Castoriadis, Claude Lefort e Edgar Morin.

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Outros pensadores famosos e influentes de esquerda radical e anticapitalista também tiveral alguma passagem por esse mesmo grupo (Socialismo ou Barbárie), como Georges Bataille e o jovem Gui Debord (que pouco mais tarde foi o principal membro fundador da Internacional Situacionista).

Tornou-se comum no Brasil julgar os filósofos pós-modernos como se fossem favoráveis ao liberalismo burgués capitalista, e Habermas como se fosse um representante da esquerda anticapitalista confrontando-se com eles. Nada poderia ser mais falso do que essa simplificação caricata e deformada dos fatos, fruto na verdade acima de tudo de uma profunda (e persistente) desinformação a respeito do processo de desenvolvimento dos filósofos envolvidos.

Um detalhe bastante interessante a notar nesse sentido é que Habermas, o suposto representante da esquerda anticapitalista, já não trabalha mais com a ideia de uma revolução anticapitalista, de um grande salto transformador que mudaria tudo. Os filósofos pós-modernos também costumam ser críticos em relação a essa ideia de uma "grande revolução" que mudaria tudo em um salto transformador. Costumam encarar essa ideia como parte dos mitos totalitários, das ideias utilizadas para justificar posturas autoritárias. Neste ponto, portanto, Habermas e eles tendem a estar de acordo.

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Mas Habermas se afasta da antiga noção de "revolução anticapitalista" tornando mais moderadas as antigas posturas da esquerda anticapitalista da qual ele veio, enquanto os pós-modernos da primeira geração — aqueles mais ligados ao fundador dessa linha de pensamento (Lyotard) — percorrem esse caminho em sentido diametralmente contrário. Eles chegam a isso a partir de uma radicalização das posturas de esquerda anticapitalista do final da década de 60.

Chegam a isso detectando algo de perigosamente conservador (conservador porque autoritário) escondido por detrás dessa antiga noção de "revolução", pela qual se pretende "resolver", "solucionar", de maneira definitiva, o fluxo divergente das mudanças unificando-as a todas numa única grande mudança monodirecionada, e que tende a ser monodirecionada por uma força superior que deve atuar na sociedade (por exemplo por uma via belicosa, através das armas) dissolvendo ou submetendo as divergências. 

Em suma, o que orienta a crítica de pensadores como Lyotard à antiga noção de uma "grande revolução" decisiva não é uma moderação na direção a certos aspectos mais democráticos do pensamento liberal burguês, como no caso de Habermas, e sim uma interpretação particular que fazem do princípio da revolução permanente tal como se encontra em Trotsky e nos anarquistas. O mesmo princípio que estava na base dos posicionamentos defendidos pelo antigo grupo Socialismo ou Barbárie, do qual Lyotar originalmente emergiu.

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Por isso mesmo é bastante curioso (para não dizer um tanto bizarro) que os pós-modernos tenham adquirido todos, em bloco, a fama de politicamente conservadores (embora alguns poucos deles, como Fukuyama, de fato o sejam), enquanto Habermas tenha passado a ser visto como uma das esperanças de uma esquerda anticapitalista ferida pelas constatações pessimistas da Escola de Frankfurt. 

Insistamos um pouco neste ponto. Se pensarmos no velho ditado "diga-me com quem andas e te direi quem és", veremos além disso Lyotard (o primeiro e mais profundo e genial dos "pós-modernos") envolvido desde o início e intimamente com parceiros anticapitalistas radicais, como Castoridadis e Debord, que continuaram ambos ligados à ideia de uma revolução anticapitalista, preferindo corrigir e reformular essa noção ao invés de abandoná-la.

Em outras palavras, o pós-modernismo na verdade, e contrariamente a tudo o que se costuma espalhar em relação a ele, nasceu originalmente de uma postura firme e radical à esquerda e anticapitalista, conforme reformulações estudantis do anticapitalismo revolucionário que foram realizadas partir de 68. Habermas por outro lado representa uma espécie de supermoderação desse esquerdismo pela via de um ecletismo em que muita coisa vai se misturando, desde posturas mais anticapitalistas até as mais ajustadas ao liberalismo burguês e capitalista, mistura eclética na qual tudo o que era radical de um lado e de outro vai se tornando mais ameno e se acomodando em posições intermediárias, com uma leve tendência mais para a esquerda.

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Por último quanto a isto, é necessário observar o seguinte. Do ponto de vista da comunidade filosófica mundial, cujo nível de exigência é bem superior ao da opinião pública leiga no assunto, Fukuyama sequer costuma ser mencionado, porque a bem da verdade, é um pensador irrelevante. Elevá-lo à condição de "um dos mais importantes representantes" do pós-modernismo só tem sentido para aqueles que, seja para festejar o capitalismo como se agora tivesse uma "filosofia", seja para conderar os pós-modernos com base em desinformação, fanatismo ou má-fé difamatória, querem a todo custo forçar essa suposta associação entre o pós-modernismo filosófico e alguma "defesa ideológica do capitalismo". Essa associação não é tão fácil e direta quanto se costuma pensar, e na verdade, costuma estar bastante mal fundamentada.

Aqueles que pretendem efetivamente se contrapor à filosofia pós-moderna de modo correto e com consistência, deveriam parar de dar atenção a uma caricatura de filosofia com mais fama do que fundamento, como é a de Fukuyama — que apareceu com mais de uma década de atraso apenas para "pegar carona" na atenção crescente do público ao tema da pós-modernidade — e enfrentar diretamente um representante mais forte, mais legítimo e bem-fundamentado dessa corrente de pensamento, o seu fundador Jean-François Lyotard.

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Como poderíamos resumir a crítica que Habermas faz a Weber
na Teoria da Ação Comunicativa?

Para entendermos a filosofia de Habermas na sua segunda fase, em que desenvolveu sua Teoria da Ação Comunicativa, precisamos endender seu famoso conceito de "mundo da vida" (em alemão, Lebenswelt), e o modo como esse conceito é utilizado em sua crítica a Weber, em oposição ao que podemos chamar de "mundo da técnica".

O capitalismo e a razão instrumental arrastam as pessoas para o "mundo da técnica", levam as pessoas a agirem automaticamente como máquinas segundo os objetivos colocados pelo capitalismo (direta ou indiretamente ligados ao enriquecimento), mesmo naquilo em que pensam que estão seguindo "o que querem", seguindo seus objetivos "individuais, pessoais". Faz parte do mecanismo da coisa fazer as pessoas pensarem assim, acharem que estão sendo "livres" e decidindo por si mesmas objetivos que, na verdade, são sempre meras variações da mesma coisa: enriquecimento e compra de certos bens de consumo e serviço considerados naturalmente "desejáveis" na sociedade capitalista sem que as pessoas cheguem a pensar muito no assunto.

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Habermas procura nos mostrar que, quando o sociólogo Weber fala em "ação racional" das pessoas, na verdade, sem se dar conta, está falando apenas em uma ação orientada apenas por essa razão instrtumental que prende a pessoa ao mendo da técnica e às orientações padrão do capitalismo. weber trata esse tipo de ação como se fosse "livre", e não é. (A definição de Weber para "ação racional" é a de uma ação que busca os melhores meios para atingir seus objetivos, e não leva em consideração qualquer racionalidade na escolha dos próprios objetivos).

Mas o ponto mais denso da crítica de Habermas a esse sociólogo, e aquele que levou à Teoria da ação Comunicativa, está ligado ao conceito weberiano de "ação social".

Para Weber, uma ação é "social" quando o agente, em sua estratégia de ação, leva em consideração as ações de outros agentes. Por exemplo, se alguém prevê que haverá trânsito muito ruim em certo horário no caminho para seu trabalho, e por isso decide ir ao trabalho de bicicleta, de modo a evitar o congestionamento, esse comportamento (ir de bicicleta) é "social".

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É uma ação "social", segundo Weber, porque se realiza com uma estratégia inserida no mundo social, no mundo das ações humanas. O agente pensa os comportamentos alheios, prevê que uma quantidade muito grande de outros agentes irá tentar realizar seus objetivos fazendo esse mesmo caminho de carro. Por isso vai de bicicleta. A ação de ir ao trabalho de bicicleta é social porque só acontece do modo como acontece em função do fato de o agente estar vivendo em sociedade e considerando isso ao decidir como vai agir.

Habermas nega que esse tipo de ação possa ser considerado "social". Porque é uma ação em que as pessoas são consideradas apenas como parte das condições de ação, e não realmente como pessoas. A ação se desenrola mecanicamente, automaticamente, calculando qual o melhor meio para atingir o objetivo (chegar ao trabalho sem atraso), e na verdade pouco importa se aquilo que está sendo considerado (o trânsito ruim) é uma condição gerada pelo envolvimento de pessoas.

O mundo em que essa ação se desenrola é um mundo em que há barreiras e dificuldades, e meios para evitar essas barreiras e dificuldades ou para minimizá-las. Se essas barreiras e dificuldades envolvem pessoas, Weber considera esse mundo como um mundo "social", mas o fato de serem pessoas ali não está de fato fazendo muita diferença. Além disso, como pode ser realmente considerado "social" um mundo em que as relações sociais são consideradas apenas como condições favoráveis ou desfavoráveis para o bom resultado de uma ação, e não efetivamente como relações humanas?

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Uma ação efetivamente social, segundo Habermas, devia se desenrolar no mundo da vida (Lebenswelt), num mundo considerado como povoado por seres humanos que se relacionam considerando uns aos outros como seres humanos, e não em uma ambientação em que tudo o que importa são as questões técnicas de eficácia, envolvendo os bons ou maus resultados da ação.

Na verdade, essa crítica de Habermas a Weber coloca a formulação de Weber fora de contexto. Weber está tentando demarcar qual o campo de estudo da sociologia, e quer considerar todas as ações que envolvem propositamente relações humanas mesmo que a pessoa não pense muito a respeito do fato de essas pessoas envolvidas serem seres humanos.

A preocupação de Habermas é outra: ele está atento aos valores e posicionamentos que estão por detraz do modo como Weber define as coisas, sejam quais forem os objetivos de weber. Para demarcar o campo do que a sociologia deveria estudar, Weber define a "ação social" (o objeto de estudo da sociologia) utilizando uma noção estreita de razão, a de uma razão puramente instrumental, que não examina quais são os objetivos em jogo e se são bons ou não, mas apenas os meios para atingi-los, e que (ainda mais gravemente) não examina também o caráter humano ou desumano (automático, mecânico, puramente técnico) das ações que envolvem outras pessoas.

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Na crítica de Habermas a Weber, o que seria uma ação efetivamente "social"?

Uma ação efetivamente social seria uma ação comunicativa. Uma ação que é realizada tentando comunicar algo às demais pessoas a respeito de como deveriam agir ou até mesmo de como deveriam ser as coisas no conjunto da vida social que compartilham, considerando a sociedade como um todo. Uma ação que se coloca visando a esfera pública e com procurando comunicar ao resto da sociedade uma proposta para o encaminhamento da vida em sociedade. 

A ação comunicativa social de que Habermas fala não é uma ação que se realiza considerando as demais pessoas envolvidas na situação como se fossem "objetos", "barreiras" ou "instrumentos" para um objetivo inquestionável, mas uma ação que se coloca justamente para questionar os comportamentos ou os rumos da vida social, para provocar outras pessoas a participarem desse questionamento, e acima de tudo é uma ação que se realiza para comunicar algo que questionável, no sentido de que é algo que está senndo lançado para a sociedade como uma proposta a ser discutida, debatida, e que pode ser questionada, corrigida, ou até rejeitada.

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Por exemplo, se um agente sai de casa para o trabalho de bicicleta (havendo ou não trânsito ruim), mas antes de sair veste propositalmente uma camiseta na qual há, no peito, o desenho de um carro com um grande "X" vermelho em cima, e nas costas as palavras "poluição não" em letras bem grandes, esse ciclista claramente está querendo propor algo para ser socialmente discutido, sua ação é uma "ação comunicativa", pois pretende comjunicar-se com as demais pessoas da sociedade, visando a discussão de algo que é do interesse da sociedade discutir. Eis o tipo de coisa que Habermas consideraria efetivamente uma ação social.

Segundo Habermas, esse tipo de ação tem se tornado cada vez mais presente na esfera pública e no meio social em muitas partes do mundo, o que mostra que existe uma tendência forte de busca da construção social, coletiva, de um Estado democrático de direito por parte da pessoas, que está se espalhando pelo mundo, e não apenas a já detectada e bastante clara tendência técnico-capitalista para as ações eficazes na realização de objetivos em que não entram em jogo as considerações humanas e sociais mais amplas.

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Esse crescimento da ação comunicativa no mundo representa uma esperança que afasta Habermas da acidez do pessimismo original de seus mestres da Escola de Frankfurt, como Horkheimer.

Entrando ao que parece em uma terceira fase de seu desenvolvimento filosófico, Habermas, depois de desenvolvida sua Teoria do Agir comunicativo, passou cada vez mais a se deicar aos estudos no campo do Direito, área na qual parece ver a maior esperança de um desenvolvimento mais sólido e consistente de tudo aquilo que a ação comunicativa representa, o mergulho em um novo ambiente de diálogo social democrático com ampla abertura à participação de toda a sociedade.

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