Tópicos de vida e obra de Savigny

Pesquisa & Texto da autoria de João Ribeiro de A. Borba

Primeira revisão (formal) em Jan/2021

 

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Savigny: pensador do direito histórico,
as relações entre o direito e as grandes crises sociais

 

Qual o contexto histórico em que Savigny desenvolveu sua teoria?

Savigny é um desses pensadores cuja vida e cuja produção estão tão fortemente marcados pelo contexto histórico em que viveu, que vale mais a pena falarmos desse contexto do que de sua biografia pessoal, se o queremos entender com clareza. Há alguns fatos curiosos em sua biografia, dos quais por isso não vamos tratar aqui, não são muito relevantes para a compreensão de seu pensamento. Mesmo assim, quanto a isto, vale pelo menos notar de passagem suas ligações com pessoas interessantes no campo da literatura. Foi professor dos famosos irmãos Grimm, autores de fábulas infantis assustadoras, e ajudou a impulsionar suas carreiras. Também se casou com a irmã de um famoso poeta chamado Brentano.

Mais importante é saber que Savigny foi um importante jurista que viveu na região da Lorena, na fronteira entre Alemanha e França. A região originalmente era, desde meados da Idade Média (pouco antes do ano 1000), território do Sacro Império Romano-Germânico, e sempre teve população predominantemente alemã, mas em 1648 foi tomada pela França, na época sob o reinado de Luís XIV. Depois da Revolução Francesa (1789) e da ascenção de Napoleão Bonaparte, O Imperador Francisco II (do Sacro Império Romano-Germânico) foi vencido por Bonaparte e, em 1806, forçado a abdicar do trono, dissolvendo todo esse Império.

Em 1815, com a queda de Napoleão, os Estados de língua alemã começaram a se reunificar, formando uma grande Confederação Germânica (com a união de 38 Estados germânicos), cuja capital era a cidade de Frankfurt. Mas em uma confederação, os Estados continuam com governos independentes, de modo que a unificação estava dando apenas os seus primeiros passos.

O processo de unificação da Alemanha foi lento, e as regiões de Lorena e Alsácia ainda continuaram sob o domínio dos franceses durante todo esse processo — que só se completou em 1871, após a derrota da França na guerra franco-prussiana, nesse ano.

Nesta época (1871) a França já havia passado por outras revoluções depois da Francesa, já havia passado da monarquia à república e da república à monarquia diversas vezes, e estava agora sob o domínio do sobrinho de Napoleão, Charles Luís Napoleão Bonaparte, mais conhecido como Luís Bonaparte  (que havia adotado oficialmente o nome de Napoleão III).

Portanto foi por um longuíssimo período (do século XVII ao XIX), que a Lorena, onde vivia Savigny, ficou sob o domínio francês. A história dessa região é bastante conturbada devido às guerras entre os dois países, e a produção jurídica de Savigny (que viveu na passagem do século XVIII ao XIX) está muito ligada a essa situação.

Savigny não assistiu à unificação da Alemanha (pois morreu em 1861, dez anos antes), mas teve um papel importante nos debates sobre o direito no início desse processo de unificação, com a queda de Napoleão Bonaparte.

A obra pela qual Savigny exerceu sua influência nesse debate foi Da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência, escrita em 1814, quando já se discutia a necessidade de substituir o código napoleônico, que havia sido imposto durante o domínio francês — note-se que em 1813, Napoleão já havia sofrido sua primeira grande derrota, para uma aliança entre a Inglaterra, a Rússia, a Prússia e a Áustria (esses dois últimos eram justamente estados de língua alemã). A batalha ficou conhecida como Batalha das Nações ou Batalha de Leipzig, e possibilitou a invasão da França por essa aliança de Estados inimigos.

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Com a vitória da Batalha das Nações, o tema da unificação dos Estados alemães veio à tona, e um jurista conhecido do jusnaturalismo na época, Thibault, começou a defender a criação de um novo direito germânico, que seria comum a todos os Estados alemães e que procuraria contribuir além disso para a sua modernização.

Foi nesse contexto que Savigny, até então conhecido apenas como um importante estudioso do direito romano, apresentou sua contra-proposta, como uma crítica à proposta de Thibault.

Durante a dominação francesa, o código napoleônico, que era voltado para os interesses da alta burguesia industrial, mas tornando-a dependente da indústria francesa, já não se ajustava muito bem à situação concreta da vida economica dos Estados alemães, em geral mais atrasados e agrícolas. Em vários campos, ele vinha sendo combinado por esses povos alemães com uma versão atualizada e adaptada do antigo direito romano — no qual o próprio Savigny era um dos maiores especialistas.

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A contra-proposta de Savigny era a seguinte: ao invés de criarem um novo código germânico como queria Thibault, tentando forçar uma modernização para a qual os Estados alemães não estavam realmente preparados (portanto uma modernização que simplesmente não aconteceria de fato, tornando o direito apenas desconectado da realidade social), o melhor seria aproveitar que o direito romano já vinha sendo utilizado por todos esses Estados de língua alemã em algumas esferas, e estendê-lo gradualmente para todas as esferas do direito, fazendo apenas ajustes e correções onde fosse necessário. O povo dos diferentes Estados germânicos já estava acostumado ao direito romano, e suam ampliação para todas as áreas, se fosse feita gradualmente, não entraria em conflito com os costumes nem seria anulada por eles.

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Qual a importância de Savigny no pensamento jurídico?

Savigny publicou extensos e valiosos estudos sobre o Direito Romano e sua história, avançando para o estudo do direito também na Idade Média. Produziu, além disso, estudos sobre hermenêutica jurídica, isto é, estudos técnicos importantes sobre a questão da interpretação das leis. Mas do ponto de vista filosófico, o mais importante é sua contribuição para uma formulação mais clara, firme e independente, de um posicionamento que até então vinha se esboçando (já desde a antiguidade,  com Aristóteles) muitas vezes ainda preso ao jusnaturalismo, e algumas outras vezes preso ao positivismo jurídico.

Com o texto Da vocação de nosso tempo para para  a legislação e a jurisprudência (1814), Savigny costuma ser considerado então, no campo do direito, como o fundador "oficial", de uma linha de pensamento que pode ser chamada de Direito Histórico ou de Direito Sociológico — pois foi o primeiro a desenvolver esse posicionamento de maneira independente, sem mistura com posturas jusnaturalistas ou juspositivistas. Aqui o chamaremos de Direito Histórico-Sociológico.

Trata-se de um posicionamento que coloca no centro do pensamento jurídico não as leis positivadas, como fazem os juspositivistas, nem tampouco direitos naturais como fazem os jusnaturalistas, mas os direitos costumeiros, os costumes que uma sociedade vai criando espontaneamente para si mesma, desenvolvendo e modificando ao longo do tempo.

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No caso de Savigny, o foco de atenção tende a se concentrar principalmente na jurisprudência, isto é, naquelas decisões de juízes que vão se repetindo e se acumulando diante de casos em que apenas a estrita observância das leis não basta para decidir a sentença. Ele vê na jurisprudência, se devidamente direcionada nesse sentido, por juízes sensíveis a essa necessidade, um instrumento que pode sinalizar para os legisladores e profissionais de direito em geral quais as tendências que estão se assentando como dominantes nos costumes da população. Os juízes deveriam então se manter sensíveis aos costumes.

Por outro lado, a avaliação mais comum entre os que estudam a teoria de Savigny é a de que a postura histórico-sociológica dele acaba se revelando um tanto superficial em vista da necessidade (que está implicada nela) de um estudo histórico e sociológico mais cuidadoso dos costumes. Ele se prende demais ao campo das estritas atividades dos juízes e profissionais de direito em geral, fazendo muito pouco no sentido de realmente avançar para as pesquisas históricas e sociológicas. Isto manteve sua teoria muito aquém dos resultados que poderia ter obtido.

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A importância de Savigny, entretanto, não está limitada só à fundação do Direito Histórico-Sociológico. Ele foi também um profundo estudioso da história do Direito Romano, com publicações influentes sobre o assunto, e estabeleceu um interessante método de interpretação das leis para os profissionais de direito.

Entretanto não há como deixar de ressaltar, muito acima dessas outras contribuições, a contribuição fundamental de Savigny para o estabelecimento de um direito histórico-sociológico independente de outras correntes do pensamento jurídico, e para o fortalecimento dos direitos costumeiros, que tendem a ser um dos princpipais pontos de defesa dessa linha de pensamento jurídico.

A maior importância disto está na contribuição que oferece para qualquer sociedade que esteja passando por períodos de crise ou de grandes transformações em seus costumes, como períodos de pós-guerra ou, por exemplo, ou então períodos que se seguem a grandes transformações políticas e que exigem a construção de costumes democráticos em sociedades historicamente habituadas ao autoritarismo, à repressão e ao abuso das autoridades — este me parece um ponto que merece um destaque realmente especial e uma especial atenção.

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Savigny foi o primeiro a defender um Direito Histórico e Sociológico?

É preciso observar que essa postura jurídica não está presa ou limitada a Savigny. Apesar de receber a fama de fundador oficial dessa linha de pensamento no direito, ele não foi o primeiro nem o único a pensar e fazer essas relações (entre o direito e uma perspectiva histórico-sociológica). Apenas fez isto de maneira mais clara, completa e definida. Neste sentido, é de se notar que na verdade, na antiguidade grega (séculos antes de Cristo), Aristóteles já havia inaugurando esse tipo de posicionamento no campo jurídico — em alguns aspectos inclusive com maior aprofundamento que Savigny (embora em outros talvez não).

Além disso, na passagem do século XV para o XVI, um radicalizador da face empirista da filosofia de Aristóteles chamado Maquiavel também escreveu textos sobre o direito que avançam nessa direção, embora sejam textos normalmente pouco estudados pelos que se interessam pela teoria maquiaveliana, textos de caráter mais prático (ligados às questões históricas e político-jurídicas da cidade-Estado de Florença naquela época).

Aristóteles na verdade, de maneira complexa e interessante, combinou em sua filosofia ética e jurídica esse tipo de posicionamento (histórico-sociológico) com fortes traços de uma postura jusnaturalista que mesmo assim conseguiu continuar mantendo, postura que havia herdado de seu mestre Platão. Maquiavel, por outro lado, operou precisamente uma "limpeza" do aristotelismo de modo a radicalizar algumas de suas facetas mais inovadoras, como esta, afastando o aristotelismo de quase todos os traços platônicos e idealistas — o que resultou numa desfiguração deliberada do aristotelismo original, e como resultado, na extrema originalidade do pensamento maquiaveliano.

O próprio Francis Bacon, apesar de ter levado a fama por isto, admite ser sido Maquiavel o verdadeiro fundador da pesquisa empírica. No campo jurídico (que é onde curiosamente a linguagem maquiaveliana mais deixa transparecer a influência de Aristóteles), esse empirismo se traduz na focalização das relações entre os costumes políticos italianos e as normas positivas. Pode-se ver isto no projeto de constituição (filosoficamente comentado pelo próprio Maquiavel) que ele propõe a certa altura para sua cidade.

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Se ao invés de olharmos para o passado, antes de Savigny, olharmos pouca coisa mais adiante e na direção da França, para o pensador anarquista Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), veremos uma versão bastante diferente do mesmo posicionamento histórico-sociológico — apesar de um tanto combinado com o que hoje chamaríamos de crítica do direito, pois Proudhon considera as questões socioeconômicas e sociopolíticas superiores às questões jurídicas e dominantes em relação a elas. Em Proudhon, o posicionamento jurídico histórico-sociológico ganha uma dimensão inteiramente outra, com enorme aprofundamento, e metodicamente cuidadoso, naquilo que faltou a Savigny. No entanto, Proudhon tem sido pouco ou nada estudado nesse sentido.

Uma revivescência atual interessantíssima — e reformulada de modo bastante original — dessa postura crítico-histórico-sociológica de Proudhon no Direito, postura que retoma a de Savigny (politicamente conservadora) transformando-a em um posicionamento revolucionário e radical, pode ser encontrada no filósofo freudomarxista Cornelius Castoriadis, autor de A instituição imaginária da sociedade. (Castoriadis na verdade é mais pós-marxista do que marxista, tendo rompido com o marxismo trotskista no qual havia militado para fundar um posicionamento quase anarquista, que ele chama de "autonomismo").

De qualquer modo, parece ser mesmo em Savigny, com todo o seu apelo conservador e sua pouca atenção aos elementos históricos e sociológicos para os quais ele próprio chamou a atenção, que encontramos enfim o Direito Histórico-Sociológico mais claramente fundamentado pela primeira vez (mais do que em Maquiavel), e também mais claramente diferenciado do positivismo jurídico e do jusnaturalismo pela primeira vez (mais do que em Aristóteles, que ainda mistura isto com jusnaturalismo).

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Como Savigny vê as relações entre
a história dos costumes e o desenvolvimento de leis?

 

Para Savigny, os costumes de um povo têm um ritmo de desenvolvimento próprio, que tende a ser muitíssimo mais lento do que o ritmo de das atividades dos legisladores e juristas em geral, e os profissionais de direito não costumam dar a devida atenção a isto.

Sendo profissionais especializados, esses legisladores e juristas tendem a desenvolver grande agilidade na formulação e reformulação de leis, e também desenvolvem toda uma terminologia técnica que torna a redação das leis mais concisa e precisa, e sua utilização pelos profissionais da área mais eficiente.

Mas essa mesma agilidade e essa mesma útil terminologia técnica, sob um certo tipo de circunstâncias  — um tipo de circunstâncias que tende alás a se repetir inúmeras vezes na história de uma sociedade —, acaba afastando o direito dos costumes, tornando-o alheio à realidade social, e por isso mesmo, não só ineficaz e sem contribuição para o desenvolvimento desses costumes, como até mesmo prejudicial.

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Estamos falando de situações em que a sociedade acabou de passar por uma grande crise de algum tipo, que destruiu a base de diversos valores e costumes sociais. Então podemos falar de um ciclo de três fases pelas quais passa uma sociedade quando observamos uma crise dessas: a fase inicial de estabilidade; a dramática fase de transição que emerge com a crise, produzindo valores e costumes contraditórios — que é uma fase de muitos conflitos e desentendimentos (e de sofrimento para a população) — e a fase final em que os conflitos se resolvem e a sociedade recupera sua estabilidade sob novos valores e costumes.

É interessante notar o paralelismo entre esse esquema savignyano dos ciclos de crise numa sociedade e aquilo que normalmente encontramos na literatura de ficção: um momento inicial em que os personagens estão em situação estável, algo que acontece para romper esse equilíbrio do momento inicial, toda a trama que se desenrola a partir daí, e por fim, a solução do conflito, com o retorno a uma (nova, diferente) situação de equilíbrio. Será uma coincidência? Uma influência inconsciente manifestada por Savigny, pautada talvez em suas relações com gente do campo da literatura? Ou Savigny pretendeu efetivamente esse paralelismo?

Seja como for, o importante é a observação de Savigny de que sempre que uma grande crise social, como por exemplo uma guerra, acontece, ocorre em seguida uma desestruturação dos costumes por algum tempo, e a sociedade demora a fixar novos valores e novos costumes e se tornar estável outra vez. É o caso de grandes crises econômicas, por exemplo, ou no campo da saúde, ou ainda — para usarmos o exemplo mais comum e o que mais diz respeito ao momento vivido pelos Estados alemães na época de Savigny — o caso de uma guerra.

Independentemente de quem sejam os vencedores e quem os perdedores em uma guerra (embora isso também possa ter sua parte de influência), há normalmente, para os povos envolvidos, uma profunda desestruturação dos costumes, que levam tempo até assumirem outra forma e se estabilizarem novamente.

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Por exemplo: a população masculina decai drasticamente, assim como aumenta drasticamente o número de vúvas. Na economia, então, é preciso que o Estado se adapte a uma nova situação, em que as mulheres passam a ingressar no mercado de trabalho e até mesmo a dominá-lo — lembremos de que Savigny diz essas coisas no início do século XIX, quando o mercado de trabalho era dominado pelos homens, e as mães de família ficavam cuidando do lar, de modo que se trata de uma mudança muito grande.

As mulheres, nesse tipo de situação, ganham autonomia e independência econômica, ao mesmo tempo que a carência de homens tende trazer mais liberalidade para os costumes sexuais e afetivos, com (por exemplo) a tendência para a partilha de homens por mais de uma mulher. Nas famílias, a figura do pai se torna ausente, e a da mãe dominante, o que tende a afetar a formação das crianças. Além disso, essa mãe cuja presença é dominante, por outro lado passa a distribuir suas atenções entre os filhos e o trabalho.

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O conflito entre as novas tendências e os costumes antigos é inevitável, e surge uma situação de tensões constantes, acompanhada por um sentimento generalizado de uma certa desordem dos costumes, um caos. Períodos assim, de transição de velhos para novos costumes, são períodos de muito sofrimento para um povo, e são, também, períodos de muito trabalho e muita pressão social sobre os profissionais de direito, constantemente solicitados e, principalmente no caso de legisladores e juízes, pressionados a trazerem a sociedade de volta à ordem e à estabilidade.

Sendo profissionais especializados e tecnicamente competentes, os juristas, legisladores, juízes etc. tenderiam a se esforçar para atender a essa demanda social, e o fariam provavelmente com rapidez e eficiência, criando novas leis e novos procedimentos jurídicos... e isto seria péssimo — este é o ponto em que o pensamento savignyano se torna realmente interessante: para ele, a pior coisa que os competentes profissionais do direito poderiam fazer, em um período transitório de crise e desorganização dos costumes, seria justamente atender às pressões populares que estão exigindo uma solução jurídica rápida.

Por que? — Precisamente pela diferença de ritmo entre as ações dos profissionais do direito (rápidas demais) e a lenta reorganização social dos costumes, passando dos antigos para os novos e já adapatados à nova realidade. Reestruturando-se rapidamente e de modo artificial, sem ir ajustando-se ao próprio movimento gradual de acomodação de novos costumes, o direito tende a prejudicar e tornar ainda mais lento e penoso esse período de transição, porque ele se torna mais um fator de atrito e conflito, torna-se parte do problema em suma, e não parte da solução.

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A coerência das novas leis umas com as outras, que sob outras circunstâncias teria sido ótima, na fase de crise torna-se mais um fator de distanciamento entre elas e os costumes. Porque torna mais difícil ir adaptando cada parte do código aos novos acomodamentos em que os costumes forem se assentando. Cada vez que se tentar ajustar aos novos costumes que já estão se fixando alguma dessas leis, a perda de sua coerência com o cresto do código tenderá a produzir resistências por parte dos profissionais do direito.

Os termos técnicos do campo jurídico, que normalmente permitem concisão e precisão à formulação das leis, se tornarão um empecilho mais porque dificultarão para a população o entendimento das leis, que deveriam pelo contrário, ajudar esse povo a se auto-organizar melhor. Savigny aconselha que, pelo contrário, as leis feitas nessas fases de crise sejam tão claras quanto possível para o leigo: em linguagem coloquial e simples, talvez até com exemplos. Deve-se fazer sim o possível para não sacrificar de vez a concisão e a precisão, mas sempre considerando em primeiro lugar a necessidade de uma linguagem que todos entendam.

Os profissionais de direito devem resistir às pressões populares no sentido de que tomem a dianteira na organização dos costumes, e não ceder a essas pressões. Devem fazer as mudanças nas leis gradualmente e pontualmente aqui e ali, conforme for surgindo a necessidade disto. Eles devem ir acompanhando as mudanças nos costumes e o modo como elas vão se ajustando e se firmando, para atuar apenas fazendo pequenas correções úteis.

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Assim, as leis irão se desenvolvendo juntamente com os costumes, ajustando-se àqueles costumes que forem se firmando melhor com o tempo, ao invés de criarem uma realidade jurídica paralela e alheia aos costumes, em atrito com eles. O atrito será só com os costumes que já estarão mesmo decaindo, mas as leis terão então por outro lado o apoio dos novos costumes que estarão se firmando gradualmente — é claro, desde que os profissionais do direito sejam suficientemente competentes para captarem nos costumes o sentido para o qual a unidade nacional está realmente se movendo, isto é, para que conjuntos de costumes ela está se encaminhando.

Se conseguir acompanhar o ritmo e o sentido correto das mudanças dos próprios costumes — e com leis escritas em linguagem simples, para que a população possa compreendê-las e cada cidadão possa tomar melhor consciência dos novos costumes que estão se firmando ao seu redor — o direito acabará realmente contribuindo para para que as pessoas selecionem os costumes a serem seguidos, os que se ajustam melhor à nova situação vivida pela nação.

As leis então estarão cumprindo o papel educativo que lhes cabe nessas fases críticas de transição, ajudando a população a compreender seu próprio novo quadro emergente de costumes e a lidar com eles. O período de transição, deste modo, tende a ser mais curto e menos doloroso para a população, embora difícil para os profissionais de direito. Mas eles terão cumprido seu dever da melhor maneira.

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Uma vez firmados os novos costumes, com a sociedade em uma nova fase de estabilidade e de menos conflitos, os profissionais de direito poderão, digamos assim, correr atrás do prejuízo, e buscar uma maior coerência entre as leis, assim como no funcionamento do conjunto das instituições jurídicas, reestruturando o conjunto do sistema juridico de modo mais coerente e eficiente. Em tempos de estabilidade e sem as pressões populares, as grandes reestruturações do direito podem se realizar com muito melhor resultado, e terão já uma base sólida para começarem, todo um direito já estabelecido a ser apenas corrigido, mesmo que ainda precise de correções realmente grandes.

 

Como os legisladores podem captar
quais os costumes emergentes
que estão se firmando no lugar dos antigos?

 

Segundo Savigny, o direito já possui uma antiga instituição que pode facilmente se fazer sensível aos novos costumes emergentes em uma sociedade, e que pode portanto servir como "porta de entrada" dos costumes para a legislação, como passagem pela qual os novos costumes podem ser absorvidos, juridicamente interpretados e formulados em leis: a jurisprudência.

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Lembremos do que é que se trata (e a partir daqui estamos falando de algo que diz respeito à boa formação de juízes em geral, e não especificamente do pensamento de Savigny, que retomaremos mais adiante).

A jurisprudência é, em sentido geral, a prudência ou cuidado com que os juízes têm a obrigação de tomar suas decisões, sem contrariar as leis firmadas e vigentes, mas por outro lado, interpretando-as (sem contradizê-las) quando seguir simplesmente e ao pé da letra a maneira como estão formuladas ainda deixa dúvidas, e não basta para orientar na prática com clareza e precisão uma tomada de decisão real.

Além disso, a jurisprudência em sentido geral (esse cuidado que os juízes têm a obrigação de ter em suas tomadas de decisão) envolve também o modo como tomam decisões quando há lacunas na lei, isto é, quando ocorre um caso que não foi previsto em lei, e que exige uma tomada de decisão livre por parte do juiz. Nesta situação, há diversos critérios que é aconselhável que o juiz siga.

Por exemplo, é aconselhável que suas decisões, quando houver lacunas nas leis, possam ser retomadas no futuro por outros juízes em outros casos semelhantes que vierem a ocorrer — por isso, as decisões dos juízes devem ser sempre registradas e tornadas publicamente acessíveis, de modo que essa biblioteca de decisões, essa biblioteca da jurisprudência, possa ser consultada por advogados e por outros juízes sempre que necessário.

Antes de tomar uma decisão que não tenha como se orientar pela lei tal como está escrita ao pé da letra, o juiz deve consultar essa biblioteca de jurisprudência, para verificar se sua interpretação da lei não foge demais às interpretações já feitas antes por outros juízes. Também, havendo lacuna nas leis — isto é, se o que o juiz está examinando é um caso não previsto por lei — ele deve consultar essa biblioteca de jurisprudência para verificar se outros juízes já não estão tomando, um certo tipo de decisão em casos como semelhantes.

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Para preservar uma certa unidade e coerência no conjunto das decisões jurídicas, preservando com isto também a compreensão do sentido das decisões pela população (e melhores condições para que a população respeite as decisões jurídicas, percebendo-as como um todo consistente e não como um aglomerado de decisões aleatórias), o juiz deve ter o cuidado de não tomar decisões que mais tarde sejam difíceis de ajustar ou compatibilizar com alguma lei existente. Mas também deve evitar na medida do possível tomar decisões que contradigam as que já foram tomadas antes por outros juízes em casos similares.

Um ordenamento jurídico qualquer pode conter certas leis determinando de que maneira vai funcionar a jurisprudência, prevendo limites de interpretação das leis para os juízes, por exemplo. A liberdade dos juízes para interpretar leis e tomar decisões em caso de lacunas legais pode variar, então, de um país para outro. Mas uma excessiva rigidez no controle das decisões judiciárias pode prejudicar o bom cumprimento da função caraterística da jurisprudência no conjunto das atividades jurídicas — além de poder colocar em risco o princípio democrático da divisão de poderes, pelo qual o poder judiciário precisa ter certa independência em relação aos poderes executivo e legislativo.

A jurisprudência em sentido geral significa tudo isto. Mas em sentido técnico, no campo jurídico, costuma-se tratar como "jurisprudência" simples e diretamente o conjunto das decisões jurídicas já registradas e que podem ser consultadas por juízes e advogados durante julgamentos. Em suma: quando se fala em "jurisprudência", os profissionais de direito em geral ententem que se está falando desse conjunto de decisões que vai formando a tal biblioteca, o tal conjunto de registros que pode ser consultado, o conjunto das decisões de juízes já tomadas em casos específicos que nem sempre foram previstos em lei.


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Agora, para voltarmos a Savigny, há ainda um ponto a ser mencionado a respeito da jurisprudência, que para o direito histórico-sociológico é o ponto mais importante de todos: ao tomar uma decisão nova — ainda não tomada por nenhum outro juíz em toda a jurisprudência registrada até o momento — um dos critérios que o juiz pode considerar (o mais importante de todos, no entendimento de Savigny e do direito histórico-sociológico) é o de seguir os costumes mais firmemente estabelecidos na sociedade quanto àquele tipo de situação.

É claro que o juiz deve evitar simplesmente seguir grandes comoções populares de momento, promovidas pela mídia por exemplo, e que esse critério deve ser contrabalanceado além disso pelo senso de justiça, pelo princípio de razoabilidade, pela coerência com a Constituição e os direitos fundamentais, e pelo princípio da dignidade humana quando ela estiver em jogo.

Captar e seguir os novos costumes que vão se firmando em uma sociedade não significa pura e simplesmente atender aos apelos de alguma comoção popular de momento. Pelo contrário, implica visão histórica, de longo prazo, e compreensão de quais as tendências que vêm crescendo nos costumes da população e que provavemente se firmarão como habituais com o passar do tempo.

O que Savigny nos ensina é que, nas fases de transição, naquelas em que uma grande crise ou algum grande acontecimento rompe as bases de costumes antigos e vai arrastando a sociedade para uma reestruturaçãoem direção a novos costumes, os juízes têm o dever de atuar como os porta-vozes desses novos costumes que estão tendendo a se fixar. Os juízes têm o dever de trazê-los para dentro do campo jurídico, tomando suas decisões preferencialmente nesse sentido.

Assim, nos momentos históricos de grandes transformações em uma sociedade, a jurisprudência deve estar atenta às mudanças que vão se firmando nos costumes e deve procurar acompanhá-las e legitimá-las cada vez mais nas decisões dos juízes. Os legisladores, por sua vez, têm o dever de se manterem atentos ao que vai surgindo de novo e se firmando na jurisprudência, e devem formular (ou reformular, quando necessário) as leis em função dessas mudanças, procurando acompanhá-las e dar a elas um sentido mais claro e preciso, que possa ser compreendido e a acompanhado pela própria população que está estabelecendo para si mesma esses novos costumes.

É desse modo — através de uma jurisprudência ligada aos direitos costumeiros (ou "consuetudinários", como se costuma dizer no campo jurídico) — que, segundo Savigny, o direito poderá ir incorporando gradualmente na positividade das leis aquilo que a sociedade está firmando para si mesma através das mudanças em seus costumes. E é desse modo que as leis poderão servir como uma ferramenta de autoconhecimento e auto-orientação da população, com o apoio de seus profissionais de direito.

 

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Tópicos de Vida e Obra de Savigny
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