Tópicos de vida e obra de Jean-François Lyotard

Pesquisa & Texto da autoria de João Ribeiro de A. Borba

Jan/2021

 

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Lyotard: filósofo do indizível
e da crítica ao totalitarismo do discurso

 

Como começou a carreira filosófica de Lyotard

Jean-François Lyotard teve a primeira fase mais produtiva de sua filosofia como membro do grupo Socialismo ou Barbárie, trabalhando na crítica do stalinismo e na defesa da autogestão –– proposta que avançava para fora do marxismo rumo ao anarquismo

Em sua crítica radical do totalitarismo, Lyotard começou a detectar a presença desse totalitarismo dentro do próprio campo das práticas teóricas em geral, como tendência a determinadas formas de dominação do pensamento, e finalmente, desfeito o grupo Socialismo ou Barbárie, começou a avançar por si próprio para a crítica de elementos totalitários na própria estrutura da linguagem textual, verbal ou discursiva em geral.

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Qual é para Lyotard a relação entre a fenomenologia
e a crítica ao totalitarismo no discurso?

Para Lyotard, o totalitarismo do discurso estaria inscrito na sua estrutura de “blocos” conceituais em sequência e de categorias gerais, limitando o pensamento e bloqueando o acesso ao que está para além dessa estrutura discursiva.

Foi para situar essas coisas às quais a linguagem discursiva não teria acesso que Lyotard passou a trabalhar com a fenomenologia –– chegando a ecrever um livro com esse título: A fenomenologia. O ponto de vista fenomênico estaria conectado ao campo sensorial das aparências, para além das estruturas do que pode ser dito discursivamente.

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Qual foi o ponto máximo dessa crítica ao
totalitarismo do discurso em Lyotard?

O ponto máximo dessa crítica foi a publicação de sua complexíssima tese Discurso, figura. Nela, Lyotard procurou mostrar a impossibilidade de avançar discursivamente para o campo do “figural”, no qual haveria algo que se apresenta em silêncio. Existiria então uma ruptura radical e instransponível entre o discurso e a figura.

Lyotard procura mostrar como tradicionalmente se privilegiou sempre o discurso, mascarando e ocultando essa ruptura e a indizibilidade (o aspecto silencioso e indizível) da figura. O que ele faz, então, é inverter isto, privilegiando a figura, e mostrando que ela traz o sentimento radical da alteridade, da diferença, enquanto o discurso, com a generalidade de seus conceitos ou categorias e com a diacronicidade que reduz tudo a uma mesma lógica linear de desenvolvimento, tende a absorver tudo numa interioridade que escamoteia as lateralidades desviantes e as diferenças radicais.

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O que foi a economia libidinal de Lyotard?

Mais tarde, em um livro de grande originalidade chamado Economia libidinal, Lyotard se utiliza da metáfora de uma “grande película efêmera” para descrever a realidade composta pelo discurso e por tudo aquilo que o ultrapassa. Essa “grande pelílula” do real estaria em movimento como uma película cinematográfica, e tudo nela estaria efemeramente sincronizado, isto é, sincronizado mas de maneira passageira, em transformação.

O discurso surgiria na desaceleração da película, em que se revela a sucessão diacrônica de “quadros” estáticos –– os “blocos” conceituais sequenciados do discurso. Mas ao contrário do que poderíamos imaginar, isto não quer dizer que o discurso seria alguma “realidade estrutural” mais profunda por debaixo das coisas. Pelo contrário: para Lyotard, a realidade é o que aparece sincronicamente na película em movimento, e que pode ser melhor captado pela fenomenologia.

Essa película teria frente e verso, mas estaria dobrada como uma faixa de Moëbius, de modo que nunca seria possível separar a frente do verso.

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Uma faixa de Moëbius pode ser visualizada assim: pegue uma tira longa de papel segurando uma ponta numa mão e outra ponta na outra mão. Torça a tira girando uma mão para um lado e outra para o outro lado. Em seguida, sem distorcer a tira de papel, una as duas pontas uma com a outra. Pronto! Isto é uma “faixa de Moëbius” –– e ela tem a seguinte característica: se você pusesse a ponta de uma caneta em um ponto qualquer dela, e for fazendo um risco ao longo do comprimento, esse risco iria passando gradualmente de dentro para fora e de fora para dentro na faixa, e não haveria nenhum “ponto de passagem” separando o lado de dentro do lado de fora.

Na “grande película efêmera” da metáfora imaginada por Lyotard para descrever a realidade,  de um lado da película teríamos um campo de forças e intensidades –– que formaria o inconsciente libidinal. (Aqui Lyotard faz uma releitura nietzscheana de Freud –– se para Freud o inconsciente é como que um campo de forças que se estrutura na forma de linguagem, para Lyotard ele se estrutura já diretamente na forma de um campo de forças.) E do outro lado da película teríamos todas as representações em que essas forças e intensidades afetivas vão se inscrevendo, como o cinema, a TV, o trabalho, o capital… e como se vê, essas “representações” para Lyotard não são apenas coisas que estamos acostumados a chamar de “representações”.

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Qual foi a obra mais famosa de Lyotard?

Mais adiante, em 1979, Lyotard escreveu o livro que o tornou famoso em todo o mundo: A condição pós-moderna. Foi este o livro que celebrizou a ideia de que estamos vivendo tempos pós-modernos. Nele Lyotard questiona como igualemente totalitárias do ponto de vista intelectual todas as categorizações dicotômicas do tipo “bem e mal”, “esquerda e direita” etc., dizendo que elas escamoteiam uma realidade muito mais complexa e cheia de “lateralidades” formando um campo de forças sutis às quais precisamos prestar atenção. Muitos caminhos possíveis de transformação da realidade pela via da micropolítica estariam sendo escamoteados e deixados de lado por tais dicotomias engessadas.

O livro também trabalha com a ideia –– que lembra algo de Rosa Luxemburgo –– de que teríamos elementos das mais variadas épocas da história da humanidade convivendo todos juntos, e portanto, diz Lyotard, estaríamos vivendo no fim da história, pois não faria mais sentido pensar em uma sucessão de grandes revoluções por vir até uma grande revolução final, como se fazia no marxismo tradicional.

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Lyotard escreveu alguma obra importante
depois de A condição pós-moderna?

Depois de A condição pós-moderna Lyotard escreveu um livro menos conhecido mas que é uma de suas obras fundamentais e talvez mais importante no conjunto de sua produção: O diferendo. Nele Lyotard lança mão de categorias do Direito para mergulhar no exame do discurso. Basicamente se utiliza da ideia de “diferendo” para revelar uma “fratura” interna dos discursos, na qual algo de indizível vem à tona.

O diferendo, segundo Lyotard, é algo parecido com um litígio, mas não igual: no litígio, existe a possibilidade de se encontrar uma solução para o conflito entre as partes. No diferendo, a própria linguagem dos envolvidos no conflito (em que alguém sofreu dano) não pode ser traduzida na linguagem jurídica, de modo que não há solução possível, e quem sofreu dano torna-se vítima dessa limitação da linguagem jurídica.
Lyotar se utiliza dessa imagem para aplicá-la a inúmeras diferentes situações discursivas demonstrando as limitações do discurso em sua fratura interna, demonstrando que existe uma ruptura, uma quebra do discurso entre aqueles “jogos de linguagem” de que Wittgenstein fala.

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O que são os “jogos de linguagem” de Wittgenstein?

Para o filósofo Wittgenstein os dicionários na verdade passam uma imagem distorcida e irreal da realidade no que diz respeito à linguagem, porque na vida prática e real não existem significados fixos para as palavras: o que elas têm é apenas uma infinidade de contextos de uso, e o sentido delas varia de acordo com esse contexto em que estão sendo usadas. Para Wittgenstein, cada variação possível do contexto de uso de uma palavra ou expressão é um “jogo de linguagem”, e tem suas próprias regras para o uso daquela e de diversas outras  expressões utilizadas em conjunto com ela nesse mesmo jogo.

Assim, o conflito entre as partes no diferendo envolve um jogo de linguagem em que se dá esse conflito, ou então dois jogos de linguagem em atrito um com o outro, mas em qualquer dos dois casos, o jogo de linguagem do Direito não é compatível com o jogo ou os jogos das partes, há um abismo entre o jogo de linguagem do direito e o das partes, de modo que não há tradução jurídica possível para o que está acontecendo e não há como solucionar o caso.

O que Lyotard nos mostra, é que esse tipo de situação de diferendo não ocorre só no campo do Direito, mas em inúmeras diferentes situações nas quais a linguagem discursiva se choca contra seus limites.

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