Todos os textos desta página são de João R. A. Borba (João Borba)
Esta foi uma das primeiras seções que formulei no planejamento do site ProjetoQuem. E é uma seção que tem para mim um peso afetivo muito especial. A família Flusser é amiga de meus pais de muito larga data. Um dos filhos de Flusser, o Miguel, era amigo de infância do meu pai, e durante muito tempo foi para mim como que uma espécie de segundo pai também. Agora que estou adulto, tornou-se um amigo muito querido.
Foi através de Flusser (Vilém, o filósofo) — de suas palestras e de seus contatos com meu pai, o artista Gabriel Borba (que foi seu assistente durante muitos anos) — que entrei em contato com a filosofia, ainda na pré-adolescência... e ainda sem saber o nome daquele tipo de estudo praticado por ele. Sabia apenas que era o que eu queria fazer quando crescesse, porque ficava fascinado com as suas palestras, e com suas conversas com meu pai e com amigos do meu pai. Dizia coisas que me faziam pensar por muito tempo e que, vez por outra, alteravam todo o meu modo de ver as coisas na vida. Ouvir o Vilém Flusser era uma aventura.
Nos tempos de colegial, passei a levar vários amigos para as palestras do Flusser comigo. Ele parece ter ficado muito entusiasmado com isso, muitas vezes falava olhando fixo para o nosso grupo, que era sempre o grupo mais jovem no auditório, e desde essa época, se tornou um pouco mais próximo de mim. Mas só um poco. É que mesmo assim, havia sempre uma distância um pouco estranha. O Flusser falava com a gente quase como se estivesse falando sozinho. Muitas vezes recolhia o que a gente tinha dito e encontrava ali coisa muito maior e mais profunda do que havíamos pensado... agigantava a gente diante do público com as suas respostas àquela nossa pergunta tão complexa e interessante... mas ao mesmo tempo a gente se sentia um pouco diminuído por não ter realmente pensado naquilo tudo. Ele é que tinha pensado, o que a gente havia dito tinha sido um mero pretexto. Meus amigos comentavam às vezes sobre esse tipo de sensação que ele provocava.
Sua expressão corporal nas palestras era sempre um show extra. Era ágil, agitado, falava andando para um lado e para o outro e em tom de voz apaixonado, com gestos muito acentuados dos braços e mãos, pausas dramáticas em que se imobilizava por longos segundos, como se estivesse congelado, ou sendo fotografado no auge de um momento dramático, e claro, aquela constante expressão de insuperável ironia (para não dizer sarcasmo)... e por último, os olhos, sempre cuspindo faíscas em forma de interrogação e exclamação.
O Flusser também salivava muito sem se dar conta, então nunca nos sentávamos na primeira fileira, e alguns amigos brincavam de perguntar uns aos outros se alguém tinha trazido o guarda-chuva. Quando nos encontrávamos mais tarde, costumávamos discutir muito sobre as palestras, e o assunto voltava pipocando ocasionalmente ao longo de uma ou duas semanas. Muitas vezes tendiam a me perguntar coisas, como se eu pudesse orientar melhor na compreensão do que o Flusser havia dito (não tenho muita certeza, mas acho que podia mesmo). Mas na maior parte dos casos, as discussões logo se afastavam do assunto Flusser, e passavam a girar em torno de mil outras coisas que ele, direta ou indiretamente, nos havia provocado a pensar. Depois a coisa passava, e vinha uma certa calmaria intelectual... até a próxima palestra dele para a qual eu convidava outra vez os amigos.
Na verdade nem sei se meus amigos notavam essa dinâmica que estou descrevendo, dos impulsos de reflexão que o contato com o Flusser ia inserindo nas nossas conversas. Eu notava.
A certa altura, eu e um amigo chamado Sérgio Tomioka planejamos e realizamos juntos, em sala de aula, com a permissão dos nossos professores, uma palestra nossa para a nossa turma de colégio sobre a filosofia do Flusser, a partir de palestras dele e também do livro Filosofia da caixa preta. Tenho ainda o nosso manuscrito disso (ao menos o da minha parte na palestra).
Meu amigo estava entusiasmado especialmente com a descrição que o Flusser havia feito do ser humano como uma cebola, com cascas por sobre cascas e mais cascas, e no fundo da cebola — ...naquele fundo tão perseguido pela religiosidade judaica e cristã, sob o nome de "alma" — o que havia? Havia nada. O ser humano era todo feito apenas e somente de máscaras.
Essa imagem também me atraía, porque aproximava o Flusser de algo que já havia lido, quase nos mesmos termos, no livro de um outro filósofo pelo qual já me interessava naquela época, e do qual já lia esporadicamente um pedacinho de texto aqui, outro ali: o anarquista Proudhon (isto está se não me engano na introdução no livro Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da miséria). Mas o Tomioka levou o gosto pela cebola flusseriana (e a meu ver também proudhoniana) ainda bem mais longe: na nossa palestra, desfez ao vivo uma cebola de verdade bem diante de seus olhos, para o nosso público de jovens estudantes como nós, a fim de mostrar mais claramente do que é que o Flusser estava falando. E — claro — foi lacrimejando dramaticamente diante daquela situação trágica do ser humano. Achei o máximo. Queria ter tido aquela ideia. Como se vê, havíamos incorporado também, além dos conteúdos, bastante do sentido retórico e de dramaticidade teatral do Flusser (aliás éramos atores mirins mesmo, tínhamos um grupo de teatro amador).
As discussões filosofantes com minha turma de amigos, nas vezes em que íamos juntos às palestras do Flusser, costumavam começar só uns dias mais tarde, porque em geral eu não saía de lá com eles. Saía com o meu pai e o Flusser... e depois, tinha muito a completar para os meus amigos, a partir do que tinha ouvido (quietinho, como um espião oculto) da conversa inteligente desses dois adultos. Só que o Flusser volta e meia me lançava um olhar de soslaio, via minha curiosidade... na verdade não tinha muito como não ver, pois eu não era lá muito discreto.
Já era mesmo meu habitual andar sempre com um caderninho debaixo do braço e uma caneta (sempre de tinta preta), e naqueles meus momentos de "espião" das conversas filoóficas do Flusser com os adultos, estava lá com meu caderninho, tomando notas — na verdade, pensando bem, um pouco descaradamente (lembro do meu pai ralhando de leve comigo uma ou mais vezes: "Pára com isso, filho, agora estamos conversando..."; "Pára com isso, filho, agora não é hora, estamos jantando..."
Mas a bem da verdade, o próprio Flusser parece que não tinha também muita "hora certa" pra filosofia, porque jantanto ou não, com público ou sem, parecia estar 90 por cento do tempo ainda em palestra. Não sei se não era justamente por causa daquele mini carrapicho que era eu ali ao lado, anotando e anotando e anotando coisas feito um doido. Não sei se não era por isso que algumas vezes meu pai dava uma leve ralhada comigo, talvez fosse pra deixar o Flusser um pouco mais sossegado, justamente.
Não, acho que não. O Flusser não sossegava mesmo, nunca. Acho só que o meu pai ficava um pouco aflito porque eu me desconectava do mundo e ficava ali grudado no caderno, o que não devia parecer mesmo muito educado da minha parte, nem muito normal aliás, para um adolescente, porque eu não respeitava momento de refeição, nem de qualquer outra coisa que fosse, só estudava, estudava. Ficava só anotando, anotando, anotando... (mas o que é normal para um adolescente, afinal?).
O fato é que devia ser um garoto um pouco esquisito e bem chato mesmo nesses momentos. Meu pai tinha razão: eu estava sempre desconectado demais do momento presente. Tendia a me desligar de tudo e de todos ali no meu caderno, mergulhado em minhas anotações. Precisava me presentificar!
Mas isto não quer dizer que não havia vida naquelas minhas notas. Só precisava colocá-la para fora. Aliás, nunca anotava simplesmente o que o Flusser dizia: eu era secretamente rebelde e até arrogante. Minhas anotações eram super recheadas de comentários críticos meus, de especulações amalucadas a partir do que ele havia dito, muitas vezes tentando completar as linhas de raciocínio dele, mas outras vezes tentando torcê-las em favor de algo meu... e anotava sobretudo interrogações e perguntas longuíssimas, cheias de detalhes... — que nunca cheguei realmente a fazer para ele. Minhas anotações eram para mim uma viagem em um verdadeiro oceano de aventuras e mistérios.
Essa coisa de o Flusser parecer que falava sozinho, no meu caso ficou mais intensa ainda na época em que se aproximou um pouco mais de mim (quando comecei a levar meus amigos e colegas de colégio para assistirem palestras dele, em geral sobre arte, cultura e tecnologia). Muitas vezes, antes das palastras, eu ficava sozinho com ele por uns minutos. Não lembro bem, acho que o meu pai me pedia para eu fazer companhia... ou será que era o próprio Flusser quem pedia ao meu pai que me deixasse por ali? Não sei. Taí uma coisa que nunca perguntei ao meu pai. Talvez tenha sido eu que, sem ningém se dar muito conta da minha presença, tenha ficado sempre por ali por perto (feio "espião" filosófico).
O que sei é que não me sentia de fato fazendo companhia naqueles momentos logo antes de palestras (e às vezes logo depois delas). Não dava pra "fazer companhia" pro Flusser. Ele parecia sempre mergulhado nele mesmo, nos pensamentos dele. Pra ser sincero, acho que eu também devia parecer um pouco assim do ponto de vista dele, porque nunca me atrevia a lhe dirigir muitas palavras, no máximo uma frase, uma pergunta solta... nunca dizia realmente toda a cachoeira de palavras que estavam rolando na minha cabeça. Eu era, naqueles momentos, uma companhia um tanto silenciosa para um cara por sua vez também inacompanhável, de tão ensimesmado. Mas eram momentos precisosos para mim, sentia que estava aprendendo algo ao observá-lo silenciosamente antes do seu "show"... aquilo mexia muito comigo. E o engraçado é que, em outras circunstâncias, eu tinha a fama de ser um tagarela insuportável.
A presença do Flusser, por alguma razão, me fazia calar a boca (e tagarelar o pensamento).
Quando "fazia companhia" ao Flusser por momentos depois de uma palestra, havia uma pergunta que ele sempre me fazia: o que você achou ? — eu normalmente, apesar de com timidez, fazia algum comentário crítico sobre algum momento em que achei que ele podia ter aprofundado mais algum ponto. Ele sempre parecia mais interessado em saber qual era o ponto sobre o qual eu ia comentar alguma coisa do que propriamente no meu comentário.
Mas os momentos em que lhe fazia companhia um pouco antes de alguma palestra eram os mais interessantes para observá-lo. Por exemplo antes de uma palestra no Centro Cultural São Paulo, por ocasião da publicação de Filosofia da caixa preta, na qual entre outras mil coisas, o Flusser falou sobre as origens da escrita, letra por letra — assunto que continua me interessando até hoje. Antes daquela palestra, ele andava de um lado para o outro agitadamente, com passos rápidos e os olhos no chão, às veses com uma mão na testa, carregado de uma energia impressionante. Resmungava uma coisa ou outra, pensando alto. Às vezes soltava uma frase no ar, e de vez em quando, literalmente bufava — como um touro prestes a chifrar o toureiro. Só faltava mesmo arrastar o pé no chão, feito pata de touro.
Tem ocasiões em que, ainda hoje, fico pensando se aquilo tudo antes das palestras não era parte da encenação, se não era uma brincadeira dele justamente porque estava ali comigo... porque algumas vezes, entre um bufar e outro, se abaixava para olhar fixo nos meus olhos e dizia uma frase com o dedo em riste, afirmando que era para eu me lembrar daquilo, porque era "talvez o mais importante". Eu ficava tão impressionado que lembrava mesmo. Lembro de muitas dessas frases até hoje. Antes daquela palestra, no Centro Cultural São Paulo, o que ele disse, pedindo com muita intensidade que eu lembrasse, foi mais ou menos o seguinte: "A inversão dos vetores de significação! É o que está acontecendo — guarde isso, é talvez o mais importante!". Inversão dos vetores de significação, não vou esquecer nunca na vida. Não tem como esquecer. O cara era doido.
E o pior... acho que também sou.
Nunca vi o Flusser tão satisfeito, e nem falando tão depressa (não dava pra anotar direito) como quando mencionei que quando chegasse à faculdade queria fazer curso de filosofia.
Foi aí que ele me deu o conselho mais direto e preciso que alguém em toda a minha vida já me ofereceu, para os meus estudos de filosofia. Só que eu era um adolescente, portanto rebelde, e propositalmente segui o conselho à minha maneira, e não como ele havia dito.
O conselho foi o seguinte (não lembro as exatas palavras, mas o conteúdo era exatamente este): "Antes de tudo, leia Kant, todos os dias, um parágrafo por dia. E a cada semana, escreva o que você pensou sobre aquilo que leu. Concorde ou não, leia. Depois escreva sobre o que pensou. A Crítica da Razão Pura, de Kant. Aí você vai estar com os contemporâneos. Depois disso pode pensar em ler outras coisas do mesmo modo." — e ele repetiu para que eu anotasse no meu caderninho: Crítica da Razão Pura. Eu tinha acho que uns quinze anos.
Como já disse, era rebelde. Bastante, embora o tipo do rebelde bonzinho e completamente amalucado, imprevisível. As pessoas diziam habitualmente que eu parecia "muito certinho" mas era "meio doido", capaz de surpreender sempre, no bom ou no mal sentido... é possível, minha mãe é assim, posso ter herdado alguma coisa dela. Não sei. Mas o fato é que, ao invés de estudar Kant todos os dias — a Crítica da Razão Pura —, passei a estudar todos os dias Proudhon (o anarquista), um parágrafo por dia, tomando notas no final da semana sobre tudo o que havia pensando a respeito, incluindo meus pontos de concordância e discordância. Mas Proudhon tinha muito mais obras do que as duas únicas que se costumava ler no Brasil — O que é a propriedade? e Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da miséria.
Na verdade logo descobri que havia mais de quarenta obras de Proudhon a serem estudadas, densíssimas, complexíssimas, quase nada disso traduzido para o português. E era difícil determinar o que era o principal, porque era um autor praticamente desconhecido dos estudiosos de filosofia, mais lido por alguns de sociologia e alguns de política. De Proudhon, as minhas obras favoritas são As confissões de um revolucionário, Filosofia do progresso e Da criação da ordem na humanidade ou Princípios de organização política. A primeira dessas três obras é também a favorita do Bakunin — proudhoniano rebelde, que quis fazer de Proudhon uma leitura mais radical, e para isso, o reconstruiu com novas bases (hegelianas) e combinando-o com ultraindividualista Max Stirner... que era o quê? Outro leitor mais rebelde de Proudhon.
Mas voltemos à breve autobiografia de intelectual flusseriano que estou traçando aqui. Mesmo depois do falecimento do Flusser, o empenho nesse sentido de seguir uma versão rebelde do seu conselho (torcer o conselho dele de ler Kant em favor da leitura de Proudhon) me acompanhou pelos tempos de universidade adentro e por boa parte da vida afora. Mas nesse caminho, uma coisa muito curiosa aconteceu: a certa altura estsava relendo um texto de Proudhon, não me lembro qual, e uma confissão dele me chamou a atenção como um peteleco na orelha. Não lembro as exatas palavras, mas...
— Leio Kant todos os dias — disse ele — depois, escrevo o que pensei sobre o assunto.
Lembro que dei uma gostosa risada quando li isto. Mais risada ainda quando descobri uma coincidência imperdível: que a crítica um tanto wittgensteiniana de Flusser às categorias kantianas, dizendo que na verdade são apenas categorias historicamente construídas da língua alemã, é exatamente a mesma que Proudhon já havia feito a Kant (em 1843, no livro Da criação da ordem na humanidade)! Proudhon não é um kantiano. Mas achava importante ler Kant... para se por a par dos fundamentos do mundo filosófico contemporâneo, justamente.
Divertidas coincidências do mundo histórico-filosófico. Pode-se dizer, aliás, que Proudhon é uma espécie de Fichte invertido em favor de algo próximo a um materialismo histórico. Se Marx inverteu Hegel para afastar-se do idealismo, de certo modo repetiu esse gesto anterior de Proudhon em relação a Fichte. Gesto de sutil rebeldia jovem-hegeliana de Marx em relação ao anarquista francês que tanto o influenciou? Bem possível. E quem é Fichte, afinal?
Curiosamente, é um discípulo rebelde de Kant...
(Pois é... vovô Flusser tinha razão!)
Nesta seção, retomo meus estudos da filosofia de Flusser, que também nunca deixaram de me acompanhar (seria impossível que deixassem) paralelamente às minhas leituras de Proudhon e outros filósofos. Flusser é minha fonte primeira e mais primitiva em filosofia, a mais antiga em minha vida, e a que esteve presente por mais tempo, pois nunca deixei de relê-lo. Cada autor que li, li sempre com as interrogações do Flusser bufando na minha memória, como um imprint. O Flusser — de certo modo meu "vovô filosófico" — representa a gênese sempre presente, a fonte primária e inesgotável da interrogação filosófica na minha vida. Ler o Flusser e ler sobre o Flusser, é algo que sinto como autobiográfico, como se estivesse lendo sobre minha própria gênese intelectual. E é o que pretendo fazer aqui nesta seção.
O Flusser para mim era, em suma (como creio que para muitos e muitos outros) um desafio mobilizador, um combustível intelectual poderoso. Sempre lamentei minha timidez de adolescência diante dele, o fato de não ter entrado realmente em um diálogo filosoficamente intenso com ele, e principalmente de me sentir sempre ainda jovem demais para isso, meio que fora do tempo.
Meu plano de adolescente, mantido por anos a fio porque sou mesmo obsessivo, sempre foi o de me formar em filosofia, lendo muito e relfetindo muito, para poder, algum dia, discutir com o Flusser de igual para igual, a partir de meus próprios posicionamentos. Queria poder contra-argumentar, interferir em seu pensamento tanto quanto ele interferia no meu. Queria poder, de certo modo, presenteá-lo com o desafio com que ele me presenteava, as interrogações, o mistério. Sentia uma necessidade tremenda disso.
Depois daquele dia, na palestra que mencionei ministrada por ele no Centro Cultural São Paulo (na biblioteca, se me lembro bem), a dedicatória que escreveu em um livro dele que eu havia comprado foi "Para o filho do meu amigo, e meu futuro amigo". Era o que eu mais queria. Infelizmente o livro com a dedicatória, perdi nos tempos de universitário, na USP. Esqueci no ônibus de viagem em um Encontro Nacional de Estudantes de Filosofia realizado em Goiânia. Quando voltei aflito para o ônibus não estava mais lá, nunca mais vi.
Tudo bem, era só um livro. Tenho muitos.
Só que no caminho de meus estudos de filosofia, quando estava dando maior consistência aos meus primeiros posicionamentos filosóficos pessoais, o Flusser faleceu.
O Flusser falecido... minha obsessão de adolescência pelo diálogo com ele foi evidentemente pelo ralo, por água abaixo. Uma perda dolorosa. A vida é assim, que se há de fazer.
Putz grila.
Quem sabe agora eu possa refazer um pouco desse diálogo eperado e perdido antes de nascer. Quem sabe possa retomar esse anseio com os tantos e tantos outros que ele estimulou a pensar filosoficamente como eu, e que agora estão, da morte dele para cá, começando a publicar no Brasil os primeiros estudos mais extensos e consistentes sobre sua filosofia.
Começo a deixar aqui, nesta seção do site ProjetoQuem, depois de longos anos de timidez, minhas primeiras contribuições neste sentido — já assumidamente contaminadas por inúmeras outras influências que vêm se costurando em um pensamento que, finalmente, posso dizer que me é próprio em alguma medida, ou pelo qual ao menos me sinto autenticamente reponsável, sem repetir ao iminar a ninguém em especial, apesar de toda a minha costura de influências (e talvez precisamente por causa dela, pois não creio que algo nasça, em filosofia ou em qualquer outra área, ex nihilo, do nada).
Espero que o leitor faça bom proveito dos estudos flusserianos que vou começar a publicar aqui.
Eu fiz. E continuo fazendo.
São Paulo, última semana de Agosto de 2013.
segundo João Borba - set./2013
TEXTO AINDA INACABADO
A filosofia é uma espécie de rede de debates que vai se desenvolvendo ao longo da história, sempre retomando e atualizando em novas interpretações elementos dos debates passados. Em qualquer teoria filosófica existe necessariamente a presença de alianças e/ou confrontos na rede dos debates filosóficos históricos, sendo essas interações com tal rede diretas e explícitas ou indiretas mas detectáveis. Isto é o que Flusser, em outros termos, chamava de filosofar sob o signo da polêmica — é o que ele insistentemente procurava fazer no Brasil, e o que o frustru, por falta de resposta neste sentido entre os estudiosos de filosofia daqui.
Flusser apenas ressaltava (com toda razão) que a polêmica em que necessariamente se desenvolme uma teoria filosófica não se reduz — não pode se reduzir — a esse debate essencial com outros filósofos, mas se estende também aos estudiosos das mais diversas áreas. Porque outro dos traços característicos evidentemente constatáveis da filosofia é a tendência (fortíssima, e a meu ver valorosa, fundamental) para a interdisciplinaridade — aspecto terrivelmente negligenciado pela filosofia acadêmica no Brasil.
Entretanto tudo isto ainda não é suficiente para defini-la, é apenas uma descrição de dois dos seus traços mais evidentes e fáceis de constatar quando examinamos o seu desenvolvimento ao longo da história.
A filosofia é difícil de definir porque essa definição é ela própria um dos temas do debate — outra característica evidentemente constatável da filosofia. A filosofia é a mais radicalmente autoreflexiva das atividades humanas, reflete (e debate) até mesmo sobre sua própria definição.
A filosofia, então, não poderia deixar de ser difícil de definir — isto faz parte dela. Por isso julgo que o melhor caminho nessa direção (ainda que talvez não nos conduza de fato até às portas de uma definição) seja mesmo ficar o mais próximo possível do evidente e do facilmente constatável, seguindo além disso como regra evitar excluir como "não filosóficas" teorias já historicamente assentadas ou mundialmente reconhecidas na comunidade geral dos filósofos.
Esta postura que assumo evidentemente não implica "neutralidade" (imagino que, felizmente, tal neutralidade seria impossível). Se procura não excluir, nem por isso deixa de implicar uma específica organização do campo do que se considera "filosófico", empurrando certas teorias para o centro dessa caracterização e outras para a periferia dela.
Neste sentido há uma certa seletividade incontornavelmente implicada, e inclusive desejável, a fim de que a filosofia não se descaracterize e se dissolva em outras atividades, por exemplo científicas, até deixar de existir — pois minha proposta está longe de ser a de um suicídio da filosofia como a de certas linhagens de pensadores positivistas. Julgo necessário evitar então, que sejam acolhidas como autenticamente ou plenamente filosóficas sem reflexão e debate quanto a isto, formulações que, podendo se generalizar com esse precedente de acolhimento, tendam a desfazer demarcações já historicamente bem assentadas no delineamento da atividade filosófica, conforme o predominantemente aceito até o momento na comunidade filosófica mundial.
No acolhimento de algo inicialmente não filosófico, esse algo deve portanto passar por uma reinterpretação que o torne filosófico sem excluir o seu potencial inovador na rede histórico-filosófica mundial, e não ser simplesmente acolhido em seu puro estado original como dado bruto, e tratado como se fosse "filosofia" sem maiores reflexões. É o que ocorre com formulações que não nasceram originalmente ligadas a essa rede histórica de debates, como as cosmovisões orientais, que nem sempre se pautam em argumentos.
Mas é preciso estar atento também para o fato de que toda formulação teórica tem sentidos para os quais avança, inscritos nela, e esses sentidos podem não ser explícitos, mas sugeridos, indicados indiretamente. E no caso de uma teoria filosófica, as alianças e confrontações na rede dos debates histórico-filosóficos estão sempre entre os sentidos para os quais a teoria aponta (no melhor dos casos, propositalmente).
Tratando-se de filosofia, ela jamais pode ser um construto teórico isolado de qualquer consideração, direta ou indireta, oculta ou explícita, de tais alianças e confrontações. Não há filosofia em uma teoria que se constrói simplesmente ignorando essa rede histórica, a não ser a partir do momento em que ela seja inserida por outros nessa rede, forçando outras terrias a interagirem com ela.
Por que digo tudo isto? Por que chamo a atenção para tudo isto? A filosofia, como já disse, não se reduz a esse seu traço característico evidente — a presença de alianças e/ou confrontos na rede dos debates filosóficos históricos, sendo essas interações com tal rede diretas e explícitas ou indiretas mas detectáveis. Mas os outros traços característicos evidentes dela — como por exemplo a radical e constante autocrítica — sem a presença deste filosofar sob o signo da polêmica, podem vir a nos orientar no sentido de uma antifilosofia, o que já ocorreu em inúmeros casos, temos muitos filósofos que são ao memo tempo antifilósofos, filosofam praticando uma negação da filosofia. Por exemplo os filósofos da escola positivista, que são cientificistas e propõem a redução da filosofia a um complemento das ciências, ou, nos casos mais radicais, a extinção e superação da filosofia nas especielidades científicas. É uma corrente de pensamento forte, politicamente conservadora.
Feitas estas observações, digo não apenas que a filosofia em sentido geral é uma rede de debates históricos, mas que é feita de debates entre abordagens teóricas diferentes (diferentes filosofias, em sentido particular) construídas para potencialmente darem conta, cada uma delas por si só ou estendida por desenvolvimentos posteriores, do estudo de todo o conjunto da realidade. Ou então contruída para fundamentar um estudo especializado, o que faz dela uma teoria de caráter híbrido, meio filosófica, meio proto-científica, lidando portanto com o problema de sua demarcação em relação a outros estudos — o que, neste caso, passa a ser o mais propriamente filosófico de seus problemas, já que terá também que lidar com problemas que já antecipam sua condição de ciência especializada.
As alianças e confrontações, entretanto, podem estar ali, propositalmente colocadas para serem simplesmente localizadas e mapeadas, ou detectadas nas entrelinhas e explicitadas; mas podem também estar alí sem que o próprio autor dessas reflexões se dê conta disso — porque toda reflexão de quem quer que seja, instruída ou não em história da filosofia, é herdeira de um caldo de reflexão coletivo inscrito em seu contexto histórico. E é também simultaneamente um foco singular de organização de regiões desse caldo em um jogo original e único de reflexões personalizadas, de modo que podemos sim falar em uma filosofia autêntica praticada sem nenhuma pré-formação filosófica.
Uma tal filosofia terá suas vantagens e desvantagens.
Por um lado, se praticada realmente sem qualquer conhecimento de história da filosofia, se arrisca a focalizar como seu essencial o que não tem nada de singular, de único ou de original. Estará apenas a repetir, provavelmente com menor aprofundamento, o que já foi aprofundado antes e até muito mais longe por algum filósofo renomado da rede. Reinventar a roda só tem interesse enquanto vivência estritamente pessoal e fugaz, e apenas se no nível dessa experiência íntima tal repetição de um gesto já feito por outros for sentida como inovadora. Pois para quem não está tendo vivência única e pessoal desse gesto, trata-se pura e meramente de repetição, imitação (consciente ou não). — Este argumento, que não deixa de fazer sentido, era lançado pelos "filósofos" acadêmicos no tempo de Flusser contra ele.
Mas quem disse que para praticar uma filosofia assim é preciso desconhecer a história da filosofia? — Colocá-la entre parênteses, como fez Flusser inúmeras vezes em sua prática fenomenológica, não sigifica desconhecê-la, nem tampouco deixar de reinserir as reflexões assim alimentadas, fenomenicamente, na rede de alianças e confrontações da história da filosofia... exercício constante do qual ele próprio é o melhor exemplo que conheço.
Esses parênteses aliás permitem a coexistência dessas informações em paralelo, nos orientando quanto ao que há e o que não há de diferencial único em nossas reflexões no momento mesmo em que as fazemos em paralelo, com toda a história da filosofia disponível ao lado, mas não intrometendo-se no ponto de partida. O que Flusser faz é um uso diferente da história da filosofia, apropriando-se dela ao invés de se deixar apropriar por ela — para parodiarmos aqui o anarco-cético-existencialista Max Stirner. E Flusser faz isso porque não concebe a história como dado, mas como registro (presentemente feito e constantemente refeito com nova cara de "passado").
Por outro lado, uma filosofia praticada assim, a partir de vivências específicas e não do que se conhece da história da filosofia, para apenas se utilizar essa história como orientação (posicionando-a a posteriori em termos de ordem lógica) é a única que pode ao mesmo tempo atingir, sim, alguma singularidade, algo de único e original e que seja simultaneamente de interesse coletivo, e não idioticamente (do grego ídios) — preso à estrita vivência pessoal de um só. É a única que pode atingir autêntica intersubjetividade, construir-se em relações interpessoais responsáveis (em que os polos, envolvidos vivencialmente, respondem personalizadamente por esse seu envolvimento na relação).
Nisto ultrapassa igualmente aquela reflexão teórica que parte da pura história da filosofia e gira apenas nela, e que por isso mesmo tende a cair no outro polo da idiotice, no outro polo do um voltado sobre si mesmo na ignorância da alteridade. A reflexão que parte da pura história da filosofia, se não consegue saltar daí para o mundo vivencial de seu público, tende a cair na unidade de um coletivo que só se reconhece como todo homogêneo, e que anula sistematicamente as divergências despersonalizando (e irresponsabilizando) seus membros até perder de vista o próprio sentido de rede de debates que caracteriza a filosofia.
A filosofa aplicada, essa peça-tabu para os defensores de uma filosofia idiótica do tipo não-vivencial como a aqui lastimada, é vista por eles em geral como uma bizarra fonte de perturbações extrafilosóficas desnecessárias ao campo filosófico, ou no melhor dos casos como um desajeitado meio de divulgação da filosofia para público não-filosófico.
Penso que a prática fenomenológica de Flusser, filosofando a partir de camas, janelas, cachimbos, e inúmeros outros objetos que veiculam extramentalmente a intersubjetividade humana é, de certo modo, o percorrer do próprio caminho da filosofia aplicada em um sentido simetriamente oposto e mais interessante ainda: o da aplicação direta de práticas filosóficas a tais objetos como fonte de alimentação para teorizações.
Infelizmente, a difusão de Flusser no Brasil, que se fez desequilibradamente mais entre leigos interessados em filosofia do que entre filósofos praticantes experimentes, continua presa a uma mitificação supervalorizadora da filosofia, como se ela fosse alguma atividade superior às demais atividades humanas precisamente por ser praticável por qualquer um, sem qualquer preparação, com resultados indiferentes em termos de qualidade. E, como se fosse por isso mesmo, uma atividade potencialmente intrínseca a qualquer ser humano, então de algum modo eterna, resistente a qualquer definição dissolvente dela que se fixe por circunstâncias culturais específicas. Não é.
Ou melhor, intrínseca aos potenciais de qualquer ser humano sim — mas qualquer outra atividade humana, como a de pedreiro, também o é exatamente no mesmo sentido. Eterna e resistente a qualquer circunstância cultural desfavorávele a qualquer definição dissolvente, absolutamente não.
A filosofia é uma atividade humana como qualquer outra, portanto, como qualquer outra, tem suas peculiaridades e tem circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis ao seu florescimento em função dessas peculiaridades.
A generalização da defesa de uma concepção antifilosófica da filosofia, isto é, de uma concepção que a desqualifique ou a restrinja a um mero complemento ou extensão das ciências (como ocorre no cientificismo positivista); ou que a dissolva em meras opiniões ou em meras reflexões críticas sobre o mundo ou a vida sem maior caracterização que isto (como tendeu a ocorrer entre seguidores de Nietzsche leigos em filosofia e agora tende a ocorrer entre seguidores de Flusser leigos em filosofia) é uma circunstância cultural tão desfavorável para o florescimento da filosofia (e aliás quase tão favorável à morte dessa atividade em uma cultura) quanto uma ditadura política.
Cabe aqui um paralelo interessante que remete a Sócrates e a sua provocativa postura político-filosófica em Atenas, no século V a.C. Sócrates morreu condenado a morte precisamente por filosofar, no sentido que era então o meis radical desse termo, em um tribunal democrático no institucionalmente mais democrático dos regimes políticos da história da humanidade. E morreu declarando-se sim democrata e reconhecendo a legitimidade das leis democráticas então vigentes mesmo com todos os defeitos, dos quais ele mesmo havia tratado de fazer a crítica filosófica. Como compreender isso? E que paralelo pode ter isso com o que vinha dizendo aqui a respeito de Flusser e da questão de como conceber a filosofia?
A condenação de Sócrates, ao contrário do que erroneamente se pensa, não foi um caso especial: foi apenas mais uma em meio a inúmeras outras condenações de intelectuais, pensadores e educadores na época, como por exemplo o ultrademocrata Protágoras (o sofista) e o filósofo atomista Demócrito, sentenciado à morte por "ateísmo". Aliás todo e qualquer intelectual, pelo simples exercício de pensar publicamente, vinha sendo suspeito de ateísmo --- posicionamento que se julgava estar lançando a ira dos deuses contra a cidade, que vinha sofrendo adversidades (adversidades aliás na agravadas cada vez mais precisamente por essa atitude antiintelectual generalizada, que dificultava a busca de soluções sensatas).
Tratava-se do período de decadência da democracia direta de Atenas, em que os linchamentos sob falsa capa institucional (condenações já decididas antes do julgamento, e com os direitos de defesa muito mal observados) haviam se tornado uma constante. Período em que os debates argumentativos, que antes sempre estiveram no coração da prática democrática popular, haviam decaído em ondas de fanatismo. Período em que a imensa maioria dos cidadãos era conduzida como massa (sem autonomia reflexiva) pelas posições inquestionadas de líderes políticos e religiosos de propensão antiintelectual.
Portanto, a condenação de Sócrates à morte não foi de maneira nenhuma uma condenação apenas simbólica de toda a filosofia: foi a condenação real, e o início de uma morte real da prática filosófica naquela sociedade, assim como de toda prática reflexiva que, em um âmbito mais geral lhe fornecia as antes excelentes condições de florescimento ali. As críticas de Sócrates às condições educacionais vigentes naquela democracia antecipavam o perigo, e infelizmente não foram suficientemente compreendidas e assimiladas a tempo.
Sócrates criticava o despreparo dos cidadãos comuns para a tomada das decisões democráticas cuja responsabilidade caía sobre eles. Mais precisamente criticava a ausência de condições propícias para a generalização de um tal preparo entre os cidadãos — pois tudo na educação democrática ateniense favorecia a livre opinião e o debate argumentativo, sim, mas visando apenas os louros do reconhecimento público como pessoa sábia, porque pretender que essa sabedoria, se fosse a respeito das questões de interesse político, deveria ser especialmente considerada no momento das tomadas de decisão na democracia, seria reputado como antidemocrático.
Há quem veja em tais críticas de Sócrates, de fato, uma postura antidemocrática de valorização das opiniões daquele que "entende de" política acima das opiniões do "leigo", como se houvesse pessoas "politicamente superiores" às outras em suas opiniões. E quem pensa assim está cometendo um erro grave, e bem mais facilmente detectável do que se supõe: está confundindo Sócrates com o antidemocrata Platão.
Sócrates dedicou sua vida a difundir (infelizmente sem muito sucesso) um modelo de educação pública gratuita voltada precisamente para aquilo de que a democracia direta de Atenas precisava para aprofundar-se, radicalizar-se e firmar-se como algo mais duradouro:
o senso crítico e a autocrítica nos debates. Uma cultura do senso crítico e da autocrítica, junto à já vigente cultura do debate argumentativo, era o que impediria a decadência da democracia direta de Atenas na tirania de uma massa de tolos conduzidos como cegos por lideranças fanáticas ou oportunistas.
Este era o intento de Sócrates, e a busca disto é precisamente o que torna legítimo pensá-lo como símbolo da filosofia. Porque uma cultura do debate argumentativo alimentado e orientado pelo senso crítico e pela autocrítica era, claramente, a própria imagem do que se podia conceber como mais característica e radicalmente filosófico naquela época.
Tais características peculiares da atividade filosófica (aliás compartilhadas com a atividade democrática direta da época em seu estado mais pleno) são ainda hoje presentes no que se entende por filosofia. Mas outras já se acrescentaram historicamente a elas, sobretudo pelos diferenciais que emergiram das interações entre a filosofia e essa sua filhota bastarda tardia, bem mais influenciada pela cultura capitalista, que é a especialidade científica — e que visa resultados numericamente quantificáveis em termos de conhecimento.
A filosofia tem, em suma, um espessura que lhe é própria, um conjunto de traços que a caracterizam — assim como qualquer outra coisa na face da Terra também os tem. Ela apresenta atualmente (e sempre tem apresentado), entre tais características, a peculiaridade de ser historicamente bem mais maleável quanto a isto do que diversas outras atividades culturais humanas.
Destarte tentar defini-la sempre implica (ou tem implicado) perguntar não apenas o que supomos que é a filosofia (isto é, o que ela tem sido, historicamente), mas também o que queremos que venha a ser (portanto, incontornavelmente e no mesmo movimento, o que pretendemos que deixe de ser). E não está fora do quadro das possibilidades, infelizmente, que ela apenas deixe de ser, se dissolva, desapareça — levando pelo ralo todo o lastro civilizacional que nos foi deixado por Sócrates, Platão, Aristóteles, Maquiavel, Bacon, Descartes, Rousseau, Diderot, Kant, Hume, Hegel,Kierkegaard, Bergson e quaisquer outros filósofos que se queira lembrar, deste posicionamento ou daquele, seja lá qual for.
Tudo isto pode, pura e simplesmente, desaparecer, se assim o quisermos e se avançarmos nessa direção. Eu, definitivamente, não quero, não aceito e lutaria até a morte contra uma tal dissolução, sem a menor hesitação. Mas a filosofia, pelo que se depreende de sua história, não é resistente. Ela é frágil. Resiliente sim: restando uma mínima semente e condições suficientemente favoráveis, pode (talvez, talvez) renascer a partir da retomada de algumas ruínas, ou do pouco que tenha persistido — como renasceu após sua brutal redução ao entorno teológico durante quase mil anos de Idade Média. Mas nada garante que renasça.
Pretender reduzir a espessura do conjunto de traços que caracterizam a filosofia ao mínimo que é praticável por qualquer um sem preparo, isto é desconsiderando em termos absolutos toda e qualquer experiência na área, todo e qualquer conhecimento prévio, é pouquíssima coisa mais que uma estupidez. É exatamente o mesmo que dar a uma tribo indígena que jamais teve contato na vida, direta ou indiretamente, com um prédio, e tendo diante de si apenas o material para isto, mas sem compreender muito bem de que se trata e como foi feito para ser usado, a tarefa de construir, com esse estranho material, o prédio inteiro a partir de um pequeno e vago conjunto de informações tais como "serve para muitas pessoas morarem dentro umas em cima das outras".
O resultado, no melhor dos casos, será curioso, divertido, interessante — mas inútil enquanto prédio, porque não será um prédio (não será reconhecível como um). No pior dos casos aquilo, o que quer que seja, vai desabar em cima das pessoas e se transformar em parte da história de uma tragédia.
Um risco muito similar é corrido por uma democracia cujas forças mais influentes, pretendendo ser "mais democráticas", ao invés de promoverem para todos gratuitamente o máximo dos conhecimentos já sabidamente úteis à atuação política direta, em regime de participação democrática crescente, cometem a estupidez suprema (ou o supremo oportunismo) de, pelo contrário, promover a ideia de que pensar mais que os outros sobre certos assuntos --- ou tentar fazer algo melhor, com mais competência — é "antidemocrático".
Deixando de lado aqui as complexas discussões histórico-filosóficas em torno do que há de político implicado na associação de sentidos positivos ou negativos a noções como as de "alto" e "baixo", e utilizando essa linguagem por assim dizer "ingenuamente", à maneira do senso comum, de modo a nos fazermos compreender com simplicidade, digo que há um nome para esse tipo de postura (que acusa de antidemocrático qualquer saber que se destaque na massa), e o nome não é "democracia": essa postura se chama nivelamento por baixo, ou tendência ao rebaixamento de todos (menos de quem estiver na liderança disto, é claro).
Democracia é exatamente o oposto: ascenção do que estava por baixo. E só implica rebaixamento daquilo cuja posição "superior" era precisamente o que mantinha por baixo quem estava por baixo. Não é o caso do conhecimento. Nem do filosófico nem do técnico, aliás — desde que esse conhecimento técnico seja além disso refletido (o que tende a colocá-lo em diálogo com a filosofia... mas nem por isso deixa de ser um saber técnico, especializado). O rebaixamento do conhecimento, sua desvalorização — especialmente, digamos de uma vez, em um país como o Brasil, cuja "democracia" nem mesmo atingiu, até o raiar do século XXI, uma cultura do debate argumentativo, menos ainda uma do senso crítico e da autocrítica... um tal rebaixamento do valor dos conhecimentos, repito, apenas rebaixa a todos, indiferentemente.
Por esse mesmo raciocínio é que digo o quanto é importante, para toda uma gama de entusiásticos flusserianos leigos em filosofia que existem neste país, que compreendam que a fenomenologia de Flusser, seu filosofar a partir da vivência do contato diário com objetos culturais, não é um filosofar sem filosofia, tão fácil quanto pular de um pé só, e que qualquer um faz mais ou menos do jeito como bem entende, sem qualquer critério. A qualidade do trabalho filosófico de Flusser, quando faz isto, não se atinge assim facilmente, e tal tentativa em geral só termina mesmo na pura e simples mediocridade em termos de produção filosófica.
A notória qualidade do trabalho filosófico de Flusser também não é produto de alguma espécie de mágico "dom" que ele possuía: é o produto de uma construção de vida realizada por ele em confronto com o que a vida realizou nele. É, em outras palavras, produto de uma intensa e constantemente realimentada autoformação filosófica — que não exclui de maneira nenhuma conhecimentos de história da filosofia, muitíssimo pelo contrário.
As referências veladas ou indiretas a obras clássicas da filosofia são constantes, na verdade quase omnipresentes na produção filosófica flusseriana. Já as referências explícitas, que muitas vezes se alardeia (de maneira aliás um tanto esquisofrênica) serem inexistentes, absolutamente não o são: estão lá, basta pôr os olhos em cima e ler. O fato de não seguirem os padrões acadêmicos somente para um burocrata fanático pode significar que elas "não existem". São imprecisas? Muitas vezes sim, algumas vezes não. Mas existem, estão lá, e tais dificuldades (muito comuns) nunca impediram o estudo cuidadoso de nenhum filósofo em toda a história da filosofia. Por que tantos "acadêmicos" recusam esse cuidado no caso específico de Flusser?
Mas por que tanta preocupação com isto, afinal? Pela mesma razão que leva os zelosos "burocratas" da filosofia a evitarem o estudo de Flusser, diante de sua emergência no cenário filosófico mundial, de um lado, e da algazarra mediocrizante em relação à atividade filosófica como um todo que tende a ser promovida pelos seus ainda mais zelosos fãs leigos sem experiência filosófica — a razão é o risco (real) de uma dissolução da sempre frágil (porque sempre exposta ao debate) espessura e consistência da filosofia, em sua caracterização enquanto atividade intelectual humana. A razão é o receio (infelizmente bem fundado) de uma contaminação generalizada da filosofia no Brasil por essa agazarra mediocrizante que — repito — não está em Flusser, mas em uma certa imagem péblica cultivada por fãs a respeito dele e de sua filosofia.
Atenção: algo bem similar ocorreu com a recepção de Nietzsche, outra maravilhosa "bomba" que assustou a comunidade filosófica mundial antes de revelar sua real (e imensa) consistência. Mas Flusser é o bodenloss, o sem-chão, o sem-fundamento, o sem-consistência! Propositalmente, assumidamente! Sim, ele é... e o é consistentemente. O tipo de coisa que exige uma certa experiência filosófica para compreender.
É possível fazer assim como tantos flusserianos leigos (eu diria que na verdade inclusive leigos em filosofia flusseriana) imaginam? É possível pensar aleatoriamente, sem critério nenhum, nesses assuntos que, sei lá, não sei muito bem, mas parecem tão... "filosóficos", tratar a filosofia como pura e simples provocação intelectual, seja lá o que queira dizer isso, sem maiores considerações sobre o assunto? — Claro que é! É exatamente assim que se tem praticado, a milênios, todo aquele caldo de reflexões medíocres que serviram de fundo do qual se destacou o que de fato demonstrou ter interesse historicamente relevante.
E asseguro: a filosofia de Flusser não está nesse fundo: está no destaque — e não está ali pelos confetes, pelo modismo instaurado pelos fãs (que na verdade atrapalha um pouco)... e sim precisamente pela sua consistência filosófica na ausência (aliás, de certa maneira, como o próprio Sócrates).