O cunhadismo indígena e a igualdade política entre os tupi-guarani
Cunhadismo é o nome que os portugueses, no período da colonização do Brasil, deram para a instituição mais importante na vida dos tupis guaranis que encontraram nessa colônia, em torno da qual esses indígenas organizavam a vida em suas tribos.
Era uma organização baseada nas relações entre cunhados, visando principalmente o trabalho — e também a guerra, considerada ela própria um trabalho como qualquer outro, embora mais perigoso e arriscado, e por isso mesmo mais glorioso e heróico para os guerreiros. O que mais chama a atenção dos estudiosos de antropologia política é o fato de que, ao se basearem a organização de sua sociedade na relação entre os cunhados, os tupis guaranis acabavam se diferenciando muito da imensa maioria das sociedades indígenas tribais de todo o mundo.
Isso porque em quase todo o mundo, as sociedades tribais normalmente pensam nas suas lideranças política seguindo o modelo das relações entre pais e filhos. O líder tende a ser comparado a um pai de família a quem os liderados devem obediência assim como as crianças devem obediência aos seus pais. É um modelo baseado na hierarquia de poder que se observa no interior das famílias.
O interessante é que os tupis guaranis fugiam a esse padrão quase mundial de organização das sociedades indígenas tribais, e se organizavam de uma maneira extremamente original e interessante. Embora não deixassem de se organizar segundo o modelo das relalões familiares, para eles a referência imitada em sua organização política não era a relação de poder entre os pais e os filhos, mas aquela relação de relativa igualdade que se observa entre os cunhados. E mais do que isso: ao contrário dos irmãos de sangue, os cunhados são pessoas de fora da família que são acolhidos como novos membros dessa família, e em condição de igualdade — pois se por um lado o irmão de sangue pode muitas vezes ser considerado "mais próximo" que o cunhado nesta família em que ele foi acolhido, por outro lado, na família original da qual esse cunhado veio as relações se invertem e se equilibram: quem é irmão de sangue nesta família é cunhado na outra, e quem é cunhado na outra é irmão de sangue nesta.
Além disso, o modelo do cunhadismo valoriza também a união entre famílias diferentes, o que por um lado respeita melhor os laços de sangue e diferenças de uma família para outra do que a ideia artificial de imaginar toda a sociedade como membros de uma só família; e por outro lado, ao mesmo tempo, estabelece laços mais verdadeiros e sólidos entre essas famílias, porque estimula a ideia de que o outro, o diferente, pode ser aceito como novo membro da família (sem deixar de no entanto continuar fazendo parte também de uma outra família).
Os reflexos da utilização dos cunhados como referência para a organização de toda a sociedade, entre os tupis guaranis, acabam por produzir uma cultura política fortemente igualitarista, e até mesmo avessa às desigualdades e aos desequilíbrios de poder. De fato, até mesmo na língua tupi guarani, a ideia de superioridade de alguém sobre outras pessoas costumava ser traduzida em palavras que expressavam sempre algo ruim, um mal a ser evitado. Tais palavras sempre apareciam opostas a outras, pelas quais os tupis guaranis se descreviam a si mesmos, em tom de orgulho, como "nós, os iguais" ou coisa similar.
Destarte, o que temos aí é toda uma cultura voltada para a igualdade e o equilíbrio de forças, carregada não de respeito por autoridades, mas de receios e até mesmo de certa aversão à própria noção de "autoridade" — embora isso não os impedisse de valoriazar muito certas pessoas sob certas circunstâncias, especialmente aquelas que se mostravam mais capazes de organizar e fazer render melhor o trabalho das demais.
Os tupis guaranis eram polígamos, para eles cada homem podia se casar com várias mulheres. Originalmente aceitavam também o casamento de mulheres com vários homens. Dessa poligamia surgiam famílias enormes, muitíssimo numerosas. Mas a influência que foram recebendo dos portugueses logo nos primeiros contatos começou a quebrar rapidamente essa igualdade entre homens e mulheres, e a estabelecer a superioridade dos homens, concentrando cada vez mais apenas neles o direito à poligamia.
A palavra "cunhadismo" é portuguesa, mas deriva da palavra tupi "cunhã", que quer dizer "parceira, companheira ou esposa" — uma palavra importante na língua tupi, bastante usada e da qual derivavam várias outras. Mas os portugueses que se casavam com moças tupis guaranis, interessados em tirar proveito de suas relações de trabalho com os irmãos dessas suas esposas indígenas, usavam a palavra "cunhadismo" para se referir, especificamente, às leis pelas quais os tupis guaranis atribuíam certos deveres e obrigações mútuas aos cunhados.
Entre os tupis-guaranis, sempre que alguém solicitasse, seus cunhados eram obrigados por lei a prestar serviços (inclusive de guerra) sob as ordens dessa pessoa, e vice-versa. Os resultados do trabalho eram divididos por igual entre todos os membros da tribo, tivessem ou não participado diretamente. Quando havia participação de tribos diferentes, a produto era dividido entre elas, e cada tribo fazia sua partilha igualitária do seu quinhão. As vilas coloniais portuguesas eram vistas como outras tribos.
Quando um português de uma vila colonial participava do trabalho a pedido de seus cunhados indígenas, recebia a metade de tudo para levar à "sua tribo" portuguesa e dividir entre seus companheiros... o que evidentemente não acontecia. Destarte os portugueses envolvidos iam enriquecendo, e para espanto dos indígenas, eram valorizados em suas "tribos" portuguesas apesar de não dividirem nada e ficarem com tudo. Não demorou que indígenas começassem a cobiçar essa situação, e a abandonar suas tribos originais para tentarem ser "adotados" por alguma "tribo" de portugueses.
Decerto poderiam reformular suas leis e recusar dividir os produtos com seus cunhados portugueses nesses termos, o que teria, pelo contrário, promovido a igualdade nas vilas coloniais portuguesas. Mas eram leis de uma tradição milenar, difíceis de se modificar; e como dificuldade ainda maior, a pressão do valor que davam às ferramentas de metal de que os colonos dispunham para o trabalho era muito grande, e colocava os portugueses sempre em condição de vantagem quanto aos termos desses acordos.
Nessa prestação de serviços obrigatória por parte dos cunhados, frequentemente participavam de maneira voluntária, oferecendo ajuda, muitos outros membros diretos ou indiretos das famílias envolvidas, e inclusive amigos de membros dessas famílias. Destarte havia sempre muita mão de obra voluntária envolvida além do trabalho obrigatório dos cunhados. Esses esforços coletivos eram chamados de "mutirões" — palavra até hoje utilizada no Brasil para situações semelhantes.
Os resultados do trabalho, como já dito, eram divididos igualmente por toda a tribo, mesmo entre os que não tivessem participado diretamente na produção desses resultados. Mas quem trabalhava sempre bem, e principalmente quem mostrava sempre boa capacidade para organizar o trabalho de seus cunhados, parentes e amigos, fazendo esses mutirões renderem sempre proveitosamente para toda a tribo, a certa altura acabava sendo premiado pela tribo com o direito de se casar (e de se casar mais uma vez se já fosse casado), desde que houvesse alguém com quem se desejasse casar e que aceitasse isso, é claro — o casamento era um forte sinal de status, de que a pessoa era responsável, competente e valiosa para a tribo, e fazia a pessoa se sentir importante.
O casamento, portanto, era um prêmio a ser conquistado com muito trabalho e muita competência organizadora, e trazia para a pessoa o direito oficial de liderar seus cunhados na realização de certas atividades — e o dever de obedecer à liderança deles na realização de outras.
Havia afetividade na escolha de parceiros ou parceiras para o casamento, mas entre os tupis guaranis o sexo era livre, fazia-se amor com quem se bem entendesse — mas era preciso o consentimento de algum dos esposos ou esposas (o que normalmente não era uma exigência muito rígida, mas uma questão de respeito e gentileza, e era de bom tom, do mesmo modo, o marido ou esposa consentir essa liberdade). Relações sexuais livres, portanto, e não restritas aos maridos e esposas. Quanto aos possíveis filhos fora do casamento, esses indígenas conheciam medicinas contraceptivas e abortivas — mas ter filhos, mesmo fora do casamento, não era um problema tão grave, pois além dos cuidados e atenções da família, as crianças, mesmo aquelas que tinham sim os pais claramente definidos, costumavam ser "adotadas", protegidas, alimentadas e educadas conjuntamente por toda a tribo, e não só pelos pais de sangue.
Nessas circunstâncias, o casamento era considerado acima de tudo uma união de famílias por afeição e por afinidades e boas relações para o trabalho em mutirão, união realizada para o bem de toda a tribo. De modo que os casamentos eram propostos pelo casal interessado — que por lei poderia decidir pelo casamento mesmo que outros não gostassem da ideia, e desde que um dos dois tivesse conquistado esse direito e os dois quisessem isso — mas extraoficialmente, era importante, fundamental mesmo, a aceitação e o apoio das famílias envolvidas, e um certo entendimento e aceitação mútua entre elas, já que aquele casamento significava futuros trabalhos realizados em conjunto.
Quase sempre as famílias dos noivos acabavam sendo as principais responsáveis pela decisão. Sem esse apoio e esse entendimento entre as famílias, o casamento poderia mesmo assim se realizar, já que as relações afetivas eram importantes e tinham o seu peso. Mas os mutirões promovidos pelo casal provamente só contariam com os cunhados (talvez inclusive desgostosos de terem que trabalhar uns com os outros) e com uns poucos amigos, e teriam menor resultado, tanto para a tribo como um todo quanto para o status e a valorização do próprio casal na tribo.
Tudo isso era perfeitamente previsível observando as relações entre as famílias — o que desestimulava casamentos indesejados e menos produtivos. Se a questão fosse puramente afetiva, o sexo livre e as relações extraconjugais livres tendiam também a oferecer, inclusive, uma possibilidade para o casal, que dificilmente teimaria em insistir em um casamento oficial em um caso como o de desentendimento grave entre suas famílias.
Por outro lado, poderia acabar havendo pressão de toda a tribo no sentido de que as famílias aceitassem aquele casamento, se a tribo entendesse que aquilo serviria justamente como uma forma diplomática de reduzir os conflitos entre essas famílias para que se tornarem mais amigas. Isso poderia acontecer nos casos em que os desentendimentos entre essas famílias fossem muito graves e frequentes e tendessem a prejudicar união da tribo como um todo.
Embora seja um assunto muito pouco estudado, podemos dizer sim, com toda segurança, que houve considerável influência do conhadismo indígena tupi guarani brasileiro sobre a noção de igualdade nos filósofos políticos europeus a partir do século XVI. Foi muito grande o impacto das informações sobre esses povos brasileiros trazidas à Europa pelos portugueses, e em seguida reforçadas nos contatos de europeus com inúmeros grupos de tupis guaranis que viajaram em diferentes momentos para o continente europeu, acompanhando portugueses e franceses justamente com a finalidade de expor ao público ou à nobreza e aos reis sua cultura exótica. E esse impacto se espalhou duradouramente por toda a Europa ao longo de pelo menos os dois séculos seguintes.
Houve por exemplo na Normandia (território francês) um hotel chamado Hotel dos Brasileiros, cuja fachada era toda esculpida com motivos indígenas. E nas terras de lingua alemã, durante todo um ano (até ser proibida) uma publicação semanal escreveu sobre o modelo de igualdade dos tupis guaranis, criticando em comparação a ele as monarquias europeias. Thomas Hobbes (o famoso filósofo político inglês) chega a mencionar os "canibais" encontrados nas Américas, e falava dos tupis guaranis, porque os indígenas norteamericanos sabidamente não eram canibais, e não se tinha notícia de outros povos canibais americanos.
As evidências históricas dessa influência são muitas e muito evidentes, e podem ser encontradas nas mais variadas línguas e regiões da Europa — mas não somente — principalmente em França e Normandia, Portugal, Espanha, Inglaterra, Holanda, Alemanha e cidades italianas.
Por outro lado, as informações a esse respeito, na Europa — mesmo com a presença lá de tupis guaranis procurando divulgar sua cultura — eram tremendamente deformadas por preconceitos, fantasias e distorções ideológicas de todos os matizes. O exotismo e a excitação do contato com a diferença venciam qualquer exame consistente e cuidadoso dessas informações. A principal deformação vinha do imaginário religioso cristão.
Os europeus, em sua fantasia, tendiam muitas vezes a associar a igualdade (e também uma suposta "inocência") dos tupis guaranis às condições em que imaginavam a vida de Adão e Eva e dos primeiros seres humanos, ainda pouco corrompidos pelos males do pecado.
Outras vezes, pelo contrário, associavam a "libertinagem" (sobretudo sexual) dos tupis guaranis a alguma especie de selvageria demoníaca que os afastava da condição de seres humanos, feitos à imagem e semelhança de Deus (no imaginário cristão da época, os demônios tendiam a ser representados (mais ou menos conforme se vê nas pinturas de Hieronimus Bosh) como animais estranos e ferozes, ou misturas estranhas e assustadoras de animais diferentes, ou ainda, mais assustadoramente, misturas de animais e homens... o que fazia medo era o contato e a fusão com a natureza, isto é, com o mundo material, tão venerado pelas antigas religiões pagãs, e que agora (e já desde a Idade Média), sob um olhar carregado de preconceito, pareciam apenas diferentes variações de um mesmo "culto ao demônio".
Muita e sólida informação sobre tudo isso pode ser encontrada no livro de Ferdinand Denis, Uma festa brasileira em Rouen em 1550 (publicado em 2007 pela editora Usina de Ideias, de São Bernardo do Campo — edição bilíngue). E também em dois livros mais conhecidos no Brasil: O índio brasileiro e a Revolução Francesa (de Afonso arinos de Melo Franco) e Visões do paraíso (de Sérgio Buarque de Holanda).
De qualquer modo, todo esse caldo de fantasias cristãs estava sob a inspiração e influência do contato com os estranhos e exóticos tupis guaranis — e teve sim forte influência, facilmente verificável, sobre as filosofias dos famosíssimos Montaigne e Laboetie, depois sobre as teorias políticas dos humanistas, combatidas por Maquiavel, e finalmente, sobre a filosofia contratualista de Hobbes e a de Rousseau, assumindo formas diferentes em cada um deles.