sumário
Este é um belo livro sobre os arquétipos profundos que, segundo a psicologia de Jung, marcam as fantasias do imaginário humano coletivo desde o nível inconsciente, e através delas, a vida como um todo de cada indivíduo. Também é um belo livro sobre mitologia grega, porque se esses arquétipos estão, como diz Jung, presentes no inconsciente coletivo atravessando todas as épocas, é a imaginação mítica e sagrada da sociedade grega antiga que está sendo focalizada aqui.
O livro examinha especificamente os mitos gregos que são ligados à água e a tudo o que ela costuma simbolizar para os seres humanos, mostrando ao mesmo tempo relações deles com outros mitos, de outras culturas e épocas — principalmente com mitos de culturas orientais, como Índia e China por exemplo. Os autores mais citados por Raïssa Cavalcanti são Mircea Eliade, Bachelard, Jung, Kerényi, Junito de Souza Brandão e o Bhagavad Gïta.
Segundo a autora, a água nesses antigos mitos gregos tende a representar principalmente algo de feminino, misterioso e profundo, que seria básico na estrutura da natureza como um todo. E ao mesmo tempo simboliza algo do inconsciente profundo da mente humana, ou da ligação entre o mundo consciente dos indivíduos humanos e esse inconsciente profundo que é natural, misterioso, básico e tem algo de feminino.
Apesar dessa ligação íntima com algo de feminino, os mitos gregos mostram muitas entidades masculinas representando também as águas e seus mistérios profundos. Mas a autora procura mostrar que todas elas têm alguma conexão especial com esse lado feminino, de um modo ou de outro. Os casos mais marcantes nesse sentido são os do deus Oceano, um dos mais antigos da mitologia grega, que vem da era arcaica, e o de Zeus, deus dos relâmpagos e tempestades, que mais tarde, já nas narrativas míticas do início do mesmo período clássico em que foi surgir a filosofia, passou a ser considerado o rei dos deuses.
Vejamos o caso do deus Oceano.
Oceano na verdade era imaginado pelos gregos como um grande deus-rio que dava a volta em todo o mundo girando constantemente e contornando-o, como um anel (e o mundo não era imaginado como algo redondo, mas sim como algo achatado, à maneira de uma moeda). Segundo a autora, essa circularidade do deus Oceano está relacionada com a figura mítica (e feminina) da cobra uroboros, que morde o próprio rabo, e que é um símbolo do círculo e da eternidade sem começo e sem fim.
Esse mesmo símbolo da cobra uroboros está ligado também à imagem circular de um grande "ovo cósmico" primordial que está na origem do mundo segundo alguns mitos gregos ainda mais antigos (é preciso lembrar aqui que ovos são colocados por seres femininos), e muitas culturas extremamente antigas (como a mesopotâmica por exemplo) acreditam em uma grande deusa que seria uma espécie de mar ou oceano infinito dentro do qual teria sido gerado esse ovo. No caso dos gregos, apenas algumas religiões míticas (como a dos mitos órficos, narrados pelo poeta sagrado Orfeu) descreviam a origem do mundo a partir de um "ovo cósmico".
Mas de qualquer modo, esse símbolo do círculo que aparece no ovo e na cobra uroboros, também está ligado à imagem dos vasos, potes e tinas, que podem conter água — e em quase todas as crenças míticas dos gregos antigos, se o Oceano era um deus-rio, esse rio devia ter um leito no qual pudesse correr, e então havia sempre nessas crenças uma antiga deusa das águas chamada Tétis, que representava o fundo do deus Oceano.
Apesar de ser feita de água também, Tétis era como uma espécie de grande vaso dando forma ao deus Oceano. Portanto, para os gregos antigos as águas masculinas do deus Oceano no fundo se misturavam com as águas femininas da deusa Tétis, que era a esposa dele e que servia de base para ele, como se fosse uma espécie de grande vaso circular feito de água também.
A grande diferença entre os dois estava em que o deus Oceano era ao mesmo tempo um princípio ativo, porque estava sempre em movimento correndo em círculos atrás de si mesmo, e um pincípio passivo e receptivo, sendo sempre alcançado e atingido por essas águas que vinham dele mesmo. E sua esposa, a deusa Tétis, era um principio mais básico e passivo, formado por águas mais profundas e quietas, imóveis, no fundo de toda essa agitação do Oceano e servindo de base e de suporte para tudo isso, tornando possível para to deus Oceano toda essa sua eterna agitação, todo esse seu movimento circular incessante.
Assim, como se vê, Oceano e Tétis, masculino e feminino, eram um casal de deuses um tanto misturados um com o outro, ambos representados pelo símbolo feminino da cobra uroboros e também pela imagem do círculo, cada um à sua maneira — ele pelo movimento que volta sempre ao mesmo ponto, assumindo a forma circular, e ela por essa forma de círculo que dá direção a esse movimento, e na qual esse movimento incessante vai sendo mantido.
O caso de Zeus é mais simples e bastante claro: a deusa Tétis teve uma filha chamada Métis, e essa deusa Métis representava a malícia, as artimanhas e a esperteza femininas, que muitos heróis (homens) precisavam também aprender a desenvolver para conseguirem realizar suas façanhas e vencer a todos os desafios — como é o caso do herói Ulisses, um dos mais espertos e que mais foram capazes de utilizar essa malícia, essa métis. A deusa Métis, profundamente ligada às águas, era imaginada como uma mulher com rabo de peixe.
Pois bem: Zeus, o rei dos deuses também precisava ser o mais esperto deles para conseguir dominá-los e manter o seu reino. Então os mitos gregos mais aintigos contam que ele se casou com a deusa Métis... mas isso parece não ter sido o suficiente, porque depois, com medo de uma profecia que dizia que ele podia ser destronado por um filho mais esperto que ele, Zeus acabou devorando a deusa Métis. A deusa Métis continuou viva dentro dele — passou a fazer parte dele — e deste modo, toda a esperteza dela passou a estar sempre nele, e qualquer filho mais esperto que ela tivesse também nasceria dentro dele e também passaria a ser parte dele.
Mas não devemos nos preocupar, que nem todos os filhos de Métis e Zeus ficaram presos dentro desse pai super poderoso e super esperto: a deusa Atena conseguiu escapar de dentro dele: a deus Atena conseguiu escapar, nascendo de dentro da cabeza de Zeus — mas isto já é outra história.
O importante para nós, nesta resenha crítica, é apenas entendermos mais ou menos de que modo as águas vão aparecendo direta ou indiretamente nos mitos gregos como um símbolo do feminino (mesmo na figura dos deuses masculinos), e também como um símbolo da base ou fundamento das coisas, da esperteza e da sabedoria, e das profundezas do inconsciente.
O livro diz muito mas coisas sobre os deuses Oceano, Tétis, Zeus e Métis do que as que estamos resumindo d, enesta resenha, e fala também sobre muitos outros deuses e deusas gregas e de outros povos. É um livro bastante denso. Aqui vamos apenas resumir muito rapidamente alguns dos principais assuntos tratados em cada capítulo, e fazer a crítica de algumas coisas que poderiam ter sido tratadas de uma maneira mais interessante.
Uma primeira crítica que podemos fazer é ao modo como a autora organizou os capítulos. Eles estão divididos em duas partes. Na primeira parte do livro cada capítulo trata de um dos deuses masculidos ligados à água e a forças femininas na natureza, ou a um grupo deles; e na segunda parte, cada capítulo é dedicado a alguma deusa aquática feminina ou a um grupo delas.
O que podemos criticar nisso é que talvez fosse mais interessante a autora tratar dos deuses masculinos e femininos casal por casal — por exemplo o capítulo sobre a deusa Tétis poderia ter vindo logo depois do capítulo sobre seu marido, o deus Oceano, e assim por diante. Isso evitaria a necessidade de algumas repetições, porque para falar sobre Tétis é preciso lembrar o que foi dito sobre Oceano, já que os dois estão muito relacionados um com o outro, e como a autora deixou o capítulo sobre Tétis para muito depois — e a quantidade de informações é sempre muito grande, difícil de lembrar — é natural que ela tenha começado a se repetir bastante em todos os capítulos da segunda parte (já que eles sempre complementam de algum modo os capítulos da primeira parte).
Um dos efeitos dessa decisão da autora de dividir sua obra em uma parte só sobre deuses masculinos e outra só sobre deusas é que a segunda parte acaba ficando um pouco desvalorizada em relação à primeira, já que poa parte do que é importante para entender essa segunda parte já foi tratada na primeira. E isso se agrava mais porque a autora preferiu deixar para a segunda parte justamente o lado feminino, que é aquele que ela mais pretendia focalizar e valorizar, porque é o mais profundamente conectado com a água.
Talvez ela tenha decidido fazer isso — começar pelos deuses e não pelas deusas — justamente para equilibrar um pouco o lado feminino com o lado masculino. Ou talvez tenha sido alguma influência dos professores que participaram da orientação e avaliação dessa sua pesquisa (porque na verdade o livro começou como um trabalho acadêmico, uma Dissertação de Mestrado que ela depois organizou em uma obra para publicação). Mas provavelmente foi decisão da própria autora.
O fato é que efeito geral acabou sendo esse: a gente percebe que ela pretendia valorizar o lado feminino dos mitos gregos, mas o lado masculino ficou mais em evidência — pelo menos até o penúltimo capítulo, sobre os lagos e as ninfas dos lagos. Porque nesse penúltimo capítulo — que é talvez o mais rico em simbologias profundas de todo o livro — as as informações de todos os capítulos "femininos" da segunda parte acabam sendo envolvidos.
Por outro lado o último capítulo, sobre sereias, acabou sendo o mais fraco de todos — apenas um complemento final ao conjunto da obra. Talvez porque o mito das sereias na verdade só apareceu muito mais tarde, a partir da Idade Média. Elas não existiam exatamente da mesma maneira na antiga mitologia dos gregos. Para eles existiam muitas deusas e deuses aquáticos diferentes com rabo de peixe, mas que não se chamavam sereias, e até havia também as "sirenes" — que é de onde veio a palavra "sereia". Mas as tais sirenes não eram mulheres com rabo de peixe, e sim mulheres amaldiçoadas com metade do corpo de pássaro.
Se podemos dizer que "provavelmente foi uma decisão da própria autora", é que apesar de toda a enorme densidade e riqueza de informações, o livro realmente apresenta uma tendência geral para a repetição, pelas mais variadas razões, e a organização dos capítulos é apenas uma delas. É um livro bastante repetitivo, e isto pode cansar um pouco, apesar de por outro lado ajudar a gente a não se esquecer da imensa e super variada quantidade de informações que nos traz.
Além do modo como os capítulos estão organizados, outra das duas principais razões que tornam o livro repetitivo demais é uma decisão muito mais profunda da autora, a respeito do próprio conteúdo pesquisado por ela. Para examinar os mitos gregos comparado-os aos de outros povos, e fazer isso buscando os arquétipos psicológicos que estão por detrás deles, ela decidiu comparar todos esses mitos procurando ressaltas sempre as coincidências e semelhanças entre eles, e dando bem pouca atenção às diferenças. Isto provoca a constante repetição de mitos que já haviam sido descritos e explicações que já haviam sido dadas, a cada novo elemento que a autora vai acrescentando a essas coincidências e semelhanças. O livro vai constantemente retomando o que já disse.
E finalmente, como se não bastasse, o próprio estilo de escrita da autora é repetitivo. Na verdade, de tantas em tantas páginas ela chega inclusive a repetir muitas e muitas vezes, e desnecessariamente, quase as mesmas frases, de maneira idêntica ou com pequenas variações.
Mesmo assim (já que estamos falando de repetições) nunca é demais repetir que continua sendo um bom livro. Um verdadeiro tesouro de imagens e metáforas que aparecem constantemente nos sonhos e fantasias da imaginação humana, e que ajudam a explicar muita coisa a respeito dos nossos sentimentos e da meneira como nos comportamos na vida, porque são imagens que parecem exprimir e influenciar nossa maneira de encarar e viver muitas coisas no dia a dia.
Oceano e Tétis são focalizados cada um no primeiro capítulo de uma das duas partes do livro (o Capítulo 1 da primeira parte se chama Oceano: A Água Primordial, e o Capítulo 1 da segunda parte se chama Tétis: Senhora das Águas Universais).
Oceano (deus-rio que circunda a “pizza” que oe gregos acreditavam que era a forma do mundo) representa, conectado à serpente oroburos, a materialidade phisis em sua profundeza enquanto matéria-prima criadora, carregada de potenciais, fértil, ativa, sempre corrente.
Tétis, ao mesmo tempo irmã e esposa de Oceano (ambos filhos de Uranos, que é o céu e Géia, que é a terra), é a forma continente do círculo em que o movimento uroburônico de Oceano se configura. Circular, é o ovo, o vaso contentor de tudo, representa o fundo do Oceano. Mas também representa de modo geral as profundezas, a matéria passiva que é fonte de gênese de todas as formas fecundáveis pelo Oceano. E Tetis é ao mesmo tempo que vaso contentor, também a porta ou passagem para dentro e para fora de si mesma enquanto profundeza de que tudo pode emergir, e em que tudo pode submergir e se dissolver e morrer. (É a meu ver uma nova configuração, grega arcaica, da Ereskighal mesopotâmica).
Juntos, Oceano e Tétis (mas especialmente Tétis), formam o mistério, a profundidade misteriosa em que tudo é virtualmente possível.
O mar, entre a escuridão de Oceano-Tetis e a “pizza” da terra com todas as suas formas claras e definidas visíveis à luz, é a fronteira dinâmica e viva em que as coisas tomam e perdem suas formas.
Estas ideias, entre várias outras, podem ser encontradas nos capítulos 2, 3, 4 e 5 da primeira parte do livro.
As entidades mais representativas do mar (além de Posseidon, é claro), são os Velhos do Mar ― Fórcis, Proteu e o semi-peixe Nereu (pai das Nereidas). São representações da sabedoria, pois detêm o poder da metamorfose (por saberem o segredo do tomar forma por detrás de todas as formas); e também representam a experiência secular e a eternidade por detrás da fluidez das formas que tomam. Têm também o poder mântico da previsão e da profecia e “adivinhação” (mais por sabedoria profunda) das verdades quanto a passado, presente e futuro.
É importante notar que o poder mântico ― dos aedos por exemplo ― está aparentado diretamente a esse poder metamórfico dos Velhos do Mar. O deles vai além, porque ultrapassa as formas linguístico-mentais atingindo o já mencionado poder sobre as próprias formas físicas. Mas receber ou extrair deles essas informações é um desafio. Os três têm as mesmas características básicas, mas cada um representando uma dessas características dos três: Proteu a sua antiguidade, Nereu sua sabedoria, e Fósculo, precisamente essa dificuldade de qualquer humano para obtê-la com eles, pois é preciso descobri-lo e capturá-lo e amarrá-lo de modo que não escape por mais que mude de forma para esconder-se, intimidar o captor ou escapar.
Tritão (que é “sereio”, digamos assim) é o braço direito de Posseidon, e atua junto a outros tritões e às nereidas. É também mensageiro de Posseidon, e com as nereidas, protegendo as criaturas marinhas e protegendo ou ameaçando marinheiros, controla calmarias e tempestades no mar.
O livro não diz nada a esse respeito, mas é possível imaginar se mais tarde os três velhos do mar não acabaram representando juntos, no pensamento dos gregos, aqueles problemas e desafios da sabedoria que foram enfrentados pelos primeiros filósofos, se esses primeiros problemas filosóficos não estavam indiretamente ligados aos mistérios do oceano e se eles não imaginavam as diferentes teorias tão criativas qwue foram aparecendo como se estivessem ligadas à infindável flexibilidade e potencialidade recriadora de formas do mar. Alguns dos primeiros filósofos (a começar pelo primeiro de todos, Tales) consideravam a água como uma espécie de base primordial da qual tudo no mundo teria nascido.
(Teria sido muitíssimo interessante se a autora explorasse essa conexão, tentando pensar os detalhes dessa provável relação. Mas não podemos cobrar de um autor algo que não estava nos seus planos quando escreveu a obra, não é?)
Este é um assunto bastante interessante no livro, que pode ser encontrado nos capítulos 6 e 7 da primeira parte do livro, e também no capítulo 4 da segunda parte.
Mais do que as fontes, os rios — e principalmente alguns rios subterrâneos imaginários — possuíam uma carga simbólica enorme para os gregos gregos, sigificando muitas coisas de grande importância no imaginário daquelas sociedades. O assunto se estende por dois capítulos da primeira parte (a parte masculina), um somente sobre os rios que correm na superfície, e outro só sobre os supostos rios subterrâneos. Mas avança também para um capítulo da segunda parte (a parte feminina), que é onde se fala sobre o significado simbólico das fontes e sobre ninfas ligadas a elas — as náiades ou crenéias. Também é mencionada a forte ligação das musas com as fontes, em torno das quais costumavam dançar uma dança mágica de poder criador.
Os principais deuses-rios, segundo o livro, são Aquelôo, Escamandro e Céfiro. Às vezes os rios aparecem na mitologia associados à imagem dos chifres (Aquelôo por exemplo tem chifres, além de cauda de peixe longa e serpentante). às vezes aparecem também associados à imagem da serpente. Eles representam a fertilidade, mas também a potência agressiva das águas. Os rios representam a potência agrssiva das águas por causa de suas enchentes.
Além disso os também representam também a ligação e o desligamento (ou corte de separação) entre as coisas. Porque o caminho do rio sugere uma linha de divisão. E a travessia de um rio está ligada a rituais de passagem.
Há uma conexão entre os rios e a morte, mas também uam conexão deles com a transformação — que é necessária para o crescimento e desenvolvimento pessoal. Havia muitos rios em toda a Grécia, e a presença constante deles como caminhos, que se percorre pelas margens ou em barcos, está ligada para os gregos antigos à presença constante da morte e do inconsciente como coisas que seguem paralelamente a vida e a consciência, e a qualquer momento podem sair desse paralelo e nos surpreender cruzando de repente a nossa vida. Essa ideia pode ser um tanto assustadora, e não é à toa que as Sirenas, que eram criaturas voadoras destrutivas, capazes de surpreender os navegantes com um ataque, eram consideradas filhas de Aquelôo.
Os rios do mundo inferior, simbolicamente mais interessantes, eram o Estinge, o Aqueronte, o Piriflegetonte, o Cocito e o Lete. O livro fala sobre eles no capítulo 7 da primeira parte, e também nos capítulos 4 e 5 da segunda parte.
Estinge é na verdade uma nascente ou fonte que desce de um rochedo escarpado e cuja água mergulha e some entre as pedras. No imaginário mítico dos gregos, depois desse mergulho o rio passava pelo reino dos mortos, e por isso entrar em suas águas trazia invulnerabilidade. Quando os deuses faziam juramentos, os faziam segurando um jarro com águas do Estinge (isso equivalia de algum modo a uma espécie de juramento de morte). O fato de vir do alto para o fundo ligava esse rio ao uroborus e à noção da totalidade que englobava o reino da luz e o reino ctônico (isto é, o reino das sombras subterrâneas).
O que é a totalidade? é o conjunto de tudo o que existe. E na totalidade, segundo o modo dos gregos de pensar, havia indiferenciação, havia uma massa sem formas e carregada de possibilidades (justamente porque não tendo forma nenhuma tinha a possibilidade de assumir qualquer forma).
As águas do Estinge eram muito, muito geladas — provavelmente daquelas que fazem a gente ficar com uma sensação amortecida na pele — e essa pode ter sido uma das fontes dos mitos ligados a ele. Na imaginação mítica dos gregos, o que dava a quem mergulhasse nele o poder de tornar essa pessoa invulnerável era essa pessoa sobreviver ao frio das suas águas. Ficar naquela água por algum tempo e resistir a esse frio tornaria a pessoa invulnerável, invencível (quem sobrevivesse a isso sobreviveria a qualquer coisa).
Mas examinando isto mais a fundo, simbolicamente podemos dizer que mergulhar no Estinge era se arriscar a perder a forma, a se dissolver e morrer. Resistir ao frio que amortecendo a sensação da pele era como manter a forma resistindo ao poder mágico de dissolução gelada do Estinge, que “resfriava”, “escurecia” e dissolvia todas as formas, fazendo-as desaparecer, mergulhando-as na escuridão ctônica, do mundo subterrâneo (por onde se imaginava que o Estinge passava). Simbolicamente, tudo o que se formasse diante dos nosso olhos na luminosidade que vinha do céu, podia ser dissolvido no frio do Estige. Dizia-se que o Estige podia dissolver até os metais.
Aqueronte era o rio subterrâneo navegado por Caronte, o barqueiro da morte, quando levava as almas para o reino dos mortos. Aqueronte estava no mundo inferior por castigo, por ter matado a sede dos Titãs durante o combate de Zeus contra eles para se tornar rei dos deuses. Este rio — representa tristeza, dor e sofrimento, coisas que estão ligadas ao significado de seu nome. Havia um rio (talvez real) numa região selvagem e deserta do Épiro que também era chamado Aqueronte, e que passava pelo subterrâneo, depois saía para desembocar, em um pântano, com suas águas estagnadas. Essa imagem do Aqueronte real "morrendo" em um pântano provavelmente era o que provocava os gregos a imaginarem uma continuação dele no mundo subterrâneo dos mortos.
O Piriflegetonte (ou segundo os poetas latinos Flegetonte) era um rio muito longo em que rolavam “torrentes de chamas sulfurosas” ao invés de água — um rio imaginário que corria em sentido oposto ao do Cocito, e cercava a prisão dos maus. Seu nome é composto por fogo ou chama, e pelo verbo brilhar, ou inflamar. Esse rio é descrito por Homero na Odisséia (em X, 513).
(Aliás, é interessante notar — e aqui estamos acrescentando algo que a que a autora de Mitos da água não chegou a dar muita atenção — que para os gregos nem sempre a água e o fogo eram vistos como radicalmente opostos no sentido de serem coisas incompatíveis, porque as águas espumantes e agitadas, e também as águas quentes, como o sangue e os fluidos corporais, eram frequentemente associadas ao fogo na imaginação deles, como se sob certas condições houvesse uma espécie de fogo oculto nos líquidos.)
Sobre o rio Cocito (nome que nas palavras da própria autora significa “lançar um grito agudo e dorido”) é um afluente do Aqueronte que cercava a região mítica e assustadora do Tártaro. As sombras dos mortos sem sepultura eram obrigadas a errar durante cem anos nas margens desse rio dos gemidos, antes do julgamento que decidiria sua sorte. Conta-se que suas águas eram formadas pelas lágrimas dos maus. Em sua vizinhança ficava o próprio portal do inferno.
O rio Lete (nome que quer dizer “esquecer”) era um rio marcantemente feminino. Lete — a deusa que estava incorporada nesse rio — era a filha de Éris (a Discórdia) e mãe das Cárites, que segundo a autora “traduzem a alegria de viver”. O nome "Lete" vem do de uma Fonte do Esquecimento da qual os mitos gregos falam. Dizia-se que os mortos bebiam sua água para esquecerem da vida na terra.
Segundo a noção de reencarnação dos cultos órficos e da filosofia de Platão, as almas bebiam dessa água antes de retornarem em outro corpo (o que no caso de Platão, evidentemente, era utilizar os mitos de maneira metafórica para exprimir noções filosóficas sobre a existência humana — a autora não chega a fazer essa ressalva, mas ela é bastante óbvia). Em Lebaldia, na Beócia, quem se fosse se consultar no oráculo sagrado de Trofônio precisava beber de duas fontes, essa do Esquecimento, e uma outra, que seria a fonte da Memória. Para esquecer o profano e lembrar o sagrado. Para os gregos havia então uma fonte da Memória, simetricamente oposta à Lete enquanto fonte do esquecimento — fica a ideia, então, de que o rio Lete muitas vezes aparece nos mitos sob a forma de uma fonte.
Segundo a autora, os rios ctônicos — das profundezas subterrâneas ou infernais — representam (como já mencionamos de passagem nesta resenha) toda a ritualística da passagem provisória pela morte para a renovação e o renascimento, ou para uma grande transformação. E cada um deles parece ter um papel específico ou dar ênfase a um elemento específico nesse processo, de modo que se pode vislumbrar a possibilidade de toda uma jornada espiritual pelos rios e fontes mágicas da Grécia em busca de prurificação do passado e renovação transformafora para o futuro.
Neste sentido, o Piriflegetonte representa a “prova de fogo” em que se queimam e purificam as coisas ruins e tudo o que deve ser superado. E é preciso beber da fonte do esquecimento (Lete) para esquecer da vida pregressa, e da fonte da Memória para não esquecer do que se pretende, do destino, do objetivo de transfomação. Só assim se pode passar pelo gelado Estige para endurecer e resistir à dissolução da morte, numa espécie de prova do gelo, a fim de morrer para o passado a ser esquecido e poder se reconstruir para o futuro. E dotando-se dessa resistencia, seria então possível entrar no Aqueronte para morrer e apodrecer, dissolver-se, a fim de renascer outro. Mas a sequência de toda essa jornada espiritual de desenvolvimento que o conjunto desses mitos parece sugerir não é clara nem precisa, de modo que poderia ser pensada em outra ordem.
Os rios ctônicos, em sua conexão simbólica com passagens e portais para a escuridão abissal, a dissolução ou perda de formas e a morte, são também conectados à imagem da boca e da garganta, da goela que leva às terras infernais ― e por essa via, associados também à devoração da consciência e das formas efetivas pela massa escura, subterrânea e irracional, em que se dissolvem na travessia da morte, travessia na qual sempre é possível fracassar e se perder, morrer definitivamente e por completo ao invés de se transformar.
Essa passagem pela morte (ou em caso de fracasso, mergulho definitivo perdendo-se nela) parece ser representada com muita frequẽncia pelo afundar-se dos rios reais nas grutas ou florestas escuras, o que sugeria à imaginação dos gregos que esses rios, esses caminhos de água, essas veias da natureza, estariam entrando na região sombria da morte e se transformando nos rios ctônicos de seus mitos.
Isto é tratado no capítulo 2 da segunda parte do livro, chamado precisamente "As Ninfas", mas o asunto reaparece ao longo de quase todo o livro, misturado a outros assuntos.
A palavra "ninfa" quer dizer "noiva". Mas na mitologia grega as ninfas são entidades mágicas ligadas a coisas da natureza, como os deuses, mas não são imortais. Mesmo sendo mortais, têm vida longuíssima,muitíssimo além da humana, mas são representadas sempre jovens e belas. Sua beleza extraordinária representa a perfeição a ser buscada, e o contato e cuidado com o self profundo e divino no qual essa perfeição deve ser buscada, e casar-se com uma ninfa significa entrar no caminho para a perfeição. Essa perfeição é divina. As ninfas estão ligadas às coisas da como se fossem as almas perfeitas dessas coisas. Ao mesmo tempo, elas intermedeiam a relação dos humanos com os deuses e o mundo divino em geral.
Segundo a autora Raïssa Cavalcanti, elas “regem o desenvolvimento da consciência no seu início e, mais tarde, na individuação. Por isso tmbém simbolizam a fertilidade em todos os seus aspectos”. As ninfas aparecem sempre casando-se com deuses ou heróis, e gerando filhos divinos ou com espiritualidade potencialmente ou já evidentemente elevada, como os heróis míticos por exemplo, semidivinos. E também, complementa a autora, “como todo nascimento tem uma ligação com a morte, as ninfas participam do processo evolutivo de nascimento-morte-renascimento”.
É por meio do contato com elas que os heróis míticos da Grécia adquirem a consciência e a responsabilidade de sua condição. Na linguagem psicanalítica de Jung, muitas vezes utilizada pela autora, elas são simbolicamente as intermediárias entre o ego e o self profundo… “é através da relação com o self que o ego se torna fértil e se dispõe a ser um instrumento e veículo para a manifestação da totalidade” ― diz a autora, que neste capítulo desenvolve uma breve análise do processo de individuação no mito de Narciso.
Há um caráter erótico e sedutor nas ninfas ― e essa sedução não representa um desvio pernicioso mas pelo contrário, um desvio da superficialidade rumo a um impulso no aprofundamento e amadurecimento espiritual no processo de individuação, no processo pelo qual desenvolvemos e assumimos nossa personalidade indiviual. Para se desenvolver, em certo momento o ego precisa se demarcar em contraste com o self, o que significa em certa medida recusar a continuidade desse aprofundamento no fundo irracional que o self representa, porque continuar sempre se aprofundando nele acabaria levando, no limite, à dissolução do ego individual na totalidade maior da qual ele faz parte.
A presença de uma ninfa, com sua beleza que nos faz antever a perfeição divina, antever o mergulho nessa totalidade que está para além de nós mesmos e de nossa individualidade. E apesar de tudo o que isso sinaliza de bom, é um encontro que pode gerar um entusiasmo perigosamente enlouquecedor, e um assombro que pode chegar a ser apavorante, aterrador ― e por esse entusiasmo e esse assombro a pessoa pode se perder. Pode nunca mais recuperar a razão, ou até mesmo morrer.
Se não tiver um ego suficientemente forte, a pessoa que encontra uma ninfa pode se deixar levar para as profundezas do inconsciente, do irracional e da dissolução, sem conseguir se conter o necessário para extrair disso o seu desenvolvimento e amadurecimento rumo à individuação.
Nos mitos, as próprias ninfas podem chegar a aconselhar essa contenção, para que a pessoa não perca a cabeça diante da perfeição divina que elas representam. “Em sentido literal” ― diz a autora ― “entusiasmo quer dizer ‘ser tomado pelo deus’, e corresponde ao estado e extase. Mas quando o ego não está preparado para esse encontro, ele pode se desestruturar diante da numinosidade da experiência ou, por outro lado, não reconhecer o poder do Self, se identificando com este. Ao se apropriar desse poder como sendo seu, entra num estado de inflação que corresponde à loucura.”
As ninfas, não por acaso, tendem a se revelar no meio dia, no momento de maior luminosidade e no qual não há sombras, e sua manifestação pode se dar com uma sensação de parada do tempo, de alargamento temporal desse momento de luz.
Este assunto é tratado no capítulo 4 da segunda parte.
As fontes (com suas ninfas protetoras, chamadas náiades ou crenéias) representam a purificação, a genese e a “alimentação” das formas da realidade, representam a regeneração do já existia ou do que estava decaído, morrendo, se desmanchando, do que estava degenerado ou em degeneração. Está ligado a isso tambpem um forte poder de cura das ninfas protetoras das fontes, ou da própria água que jorra ou escorre dessas fontes. Isso porque a fonte é a água vista como “ainda em nascente”, ainda pura e sem contaminação.
Em sua associação com a feminilidade da terra, com as fendas na pedra das quais escorrem — e “náiade” significa o justamente que escorre ou é secretado, ou pelo menos é uma palavra derivada de verbos nesse sentido — a fonte tem ao mesmo tempo um sentido erótico, lembrando o órgão sexual feminino. E como também há muitas fontes em que a água emerge do chão, brotando para o alto, às vezes isso sugeria para os gregos antigos a ereção do órgão sexual masculino.
Algumas vezes, o próprio sentido vertical em que a água de uma fonte desce escorrendo por uma fenda na pedra poderia sugerir isto. Combinando então a imagem de fenda úmida na terra com a da água que corre na vertical como uma ereção (especialmente quando brota do chão para o alto), as fontes de tendem a ser consideradas no imaginário mítico como algo de caráter bissexual ou hemarfrodito.
Na mitologia greta, as fontes constumam ser consideradas sagradas e as musas costumam dançar em volta delas. E há toda uma série de proibições ao redor das fontes, porque algumas ações (como pescar na fonte, sujar suas águas ou cortar árvores ao seu redor) costumam ser consideradas sacrílegas e ofensivas.
Os mitos contam ainda que as fontes costumam brotar de lágrimas de ninfas ou, principalmente, das patadas de cavalos mágicos (como Pégasus, o cavalo alado), que na imaginação grega são criaturas diretamente ligadas a Posseidon, ou então são criadas por outros deuses e entidades aquáticos.
Diz Raïssa Cavalcanti (a autora) que em diferentes culturas míticas e religiosas “as bebidas consideradas divinas como a ambrosia, o néctar, o soma, o hidromel, o haoma, o raki dos xiitas, e o elixir da juventude e da imortalidade dos alquimistas, são todas elas representações simbólicas da fonte como distribuidora do conhecimento, da juventude da imortalidade e da vida espiritual”.
A autora menciona também aqui (como em outras passagens do livro) certas plantas, em geral ervas, que teriam significado e poder semelhantes, muito frequentemente vegetais dos arredores de alguma fonte: “As plantas e a água estão intimamente ligadas como representações do tema arquetípico do líquido do líquido ou alimento que fluem de um lugar santo, de uma fonte, e que têm o poder de conferir juventude, imortalidade e espiritualidade.” ― os esclarecimentos quanto a isso no livro ressaltam sempre o tema do "alimento espiritual".
Fonte da vida e árvore da vida são também dois símbolos nessa mesma direção, que sempre aparecem juntos nos mitos, e que frequentemente aparecem como estando no centro do paraíso e do cosmo ou universo ― como uma espécie de fonte alimentadora do conjunto do paraíso, associado a uma vegetação carregada dessa simbologia purificadora, regeneradora, e rejuvenescedora.
Raïssa Calvalcanti destaca fortemente a simbologia do “centro” como “ponto inicial”, de gênese das coisas, que está associada à fonte, frequentemente comparada também à imagem de um “umbigo do mundo”. A fonte imaginada como “centro” ou “umbigo” do mundo costuma estar associada a rios que fluem dela em diversas direções, distribuindo sua influência regeneradora para a totalidade da natureza. Nesse sentido, a fonte pode aparecer como centro e foco de origem do próprio self inclusive. E além do umbigo, é frequentemente associada à imagem do coração (coração do mundo).
Há uma conexão simbólica entre a água da fonte e o leite, enquanto primeiro alimento e enquanto líquido de cor que representa pureza (branco) e que teria surgido da mágica transformação do sangue nesse leite, no organismo feminino. Por vezes há também associação da água da fonte com o próprio sangue diretamente, enquanto fluido que circula no organismo mantendo-o alimentado de vida
Vejamos as palavras da própria Raïssa Calvalcanti: “A fonte como centro cardíaco de onde flui a vida em suas várias direções, manifestações e formas é uma representação visível de Deus, de onde tudo se origina. Toda a criação é uma manifestação da plenitude de Deus como fonte, um transbordamento de sua energia. Em termos psicológicos, toda a vida psíquica se origina do Self, é um transbordamento da energia do arquétipo central.”
Há também, segundo a autora, uma conexão da fonte como centro com a ideia de círculo ― as musas, por exemplo, dançam em círuculo ao redor da fonte. E o círculo remete ao (urobórico) circular movimento infinito. O círculo ininterrupto formado da dança das Musas simboliza o fluxo ininterrupto e inesgotável da fonte, e portanto do Self simbolizado por ela.
Neste sentido a fonte se assemelha à memória. E a autora relembra, quanto a isto, a imagem mítica de que há duas fontes mágicas no subterrâneo, segundo a mitologia grega: a Lete, do esquecimento, e a fonte Mnemósina, da memória.
Estando no centro de tudo, a fonte contém todo conhecimento, e sendo ponto de origem, contém o vazio, o “zero” de conhecimento, o esquecimento. “Por ser a fonte a detentora do conhecimento profético, os oráculos estavam muitas vezes localizados nas proximidades das fontes.” Quem respondia em versos enigmáticos às indagações lançadas aos oráculos, era frequentemente um sacerdote que, para isso, antes bebia de alguma fonte considerada sagrada.
Existe “a concepção de que o poder profético emana das fontes”. Tanto as ninfas das fontes (náiades) quanto as próprias fontes apresentavam tais poderes. “A ninfa Calipso aparecia representada sentada no ‘Centro do Mundo’, ao lado do ‘omphalos’, da ‘Árvore da Vida’ e das quatro nascentes.”
As fontes eram guardadas por monstros e dragões e estavam sempre em lugares de difícil acesso, povoados por demônios. Havia todo um processo de iniciação para a travessia dessas barreiras até a “conquista” da fonte com sua náiade. A luta do herói contra o dragão simboliza sua luta interior contra suas tendências negativas e regressivas em busca dessa conquista. “A busca da fonte da sabedoria que está situada no centro do Paraíso simboliza a jornada simbólica de profunda transformação interior” — nos conta Raïssa Cavalcante.
Os três parágrafos finais deste capítulo ― em que a autora se serve também de citações de Mircea Eliade ― tratam da nostalgia e da ideia de retorno presentes nessa busca da fonte-centro-origem de tudo. E são bastante representativos de toda a tendência à unidade que estou criticando na obra:
(…) “Como diz Eliade, é ‘a Nostalgia do Paraíso, o desejo de recobrar o estado de liberdade e beatitude anterior à ‘queda’, o desejo de restaurar a comunicação entre a Terra e o Céu; numa só palavra, de abolir todas as mudanças feitas, na própria estrutura do cosmo e no modo humano de ser, pela disrupção primordial’ (…) ‘A nostalgia das origens é uma nostalgia religiosa. O homem deseja recobrar a presença ativa dos deuses.’”
“Embora o homem moderno esteja afastado da consciência de pertencer a uma unidade, ele traz na memória a ‘nostalgia do paraíso perdido’, que revela o seu desejo de reencontro com a Fonte Divina de todos os bens. O homem deseja fazer sua religação com Deus, do qual estava apartado, e sua busca se refere ao seu anseio de retorno ao centro, à origem, à fonte primordial, ao Éden, para a realização de sua integração na fonte da Totalidade.”
“É essa nostalgia das origens que leva o homem à procura das fontes da imortalidade e da juventude, onde ele pode beber a água real, fresca, pura e forte vinda das mãos do Deus Pai-Mãe Criador.”
O rei dos deuses, segundo os gregos antigos do período clássico, era Zeus. O livro fala sobre ele no último capítulo da primeira parte (Capítulo 8), que tem o título “Zeus, o deus chuvoso” ― trata-se do deus da chuva, dos relâmpagos e dos trovões, portanto também o deus das tempestades.
Segundo a autora, Zeus representa a potência masculina fertilizadora, a chuva sob seu controle representa o esperma que fertiliza a terra, complexificando a mesma simbologia em Uranos, porque lhe acrescenta o relâmpago, com sua luz, não apenas como arma e sinal de poder, mas como símbolo também de fertilização masculina da mãe-terra (o relâmpago atingindo a terra como um falo ereto) e de iluminação súbita no sentido tanto físico quanto espiritual, iluminação de sabedoria com a qual se percebe os contornos (e limites) das coisas, determinando a cada coisa o seu justo lugar.
Essa iluminação súbita representa também ao mesmo tempo o momento de criação (ou recriação e reafirmação) desses contornos e limites, principalmente quando há forças da escuridão e da dissolução dos limites entrando em ação contr o reino de Zeus, isto é, da luz.
O trovão representa a voz divina de Zeus, incompreensível para o humano mortal e comum. Voz divina atuando em uma ação criadora similar àquela cristã (e de outras religiões) que diz que “no início era o verbo”. A criação (ou recriação, reinstauração da criação) de todas as coisas que existm vai sendo firmada na tempestade pelo som (do trovão) e pela luz (dos relâmpagos), que cai fazendo as coisas aparecerem na escuridão, e irem tomando forma mais clara para nós com forme vamos percebendo que coisas são essas e que formas elas têm a cada relâmpago.
É como se o fato de irmos percebendo que coisas são essas fosse a própria criação dessas coisas acontecendo diante de nós, como no escuro elas ainda não existissem por completo e estivessem apenas vagamente esboçadas, mas fossem tomando forma conforme fossem aparecendo à luz dos raios no meio da tempestade do "esperma criador" que desaba do céu.
Na verdade, na imaginação dos gregos não apenas o relâmpago mas o brilho em geral ― e em especial o brilho do ouro ― tem miticamente o poder de fecundar a alma, de fazer as coisas tomarem forma e aparecerem nela. Existe por exemplo um mito, mencionado pela autora, em que Zeus se transforma em chuva de ouro fino para conseguir penetrar na cela onde Dânae, a futura mãe de Perseu, estava presa, e foi ele (Zeus) que a fecundou. Esse é o mito de origem do herói Perseu (aquele que cavalgaca o cavalo alado chamado Pégasus.
Muitos séculos mais tarde, depois da Idade Média, a busca dos alquimistas pelo ouro também esteve ligada a essa simbologia do brilho como uma espécie de poder fecundador desse metal.Tanto nesseas alquimistas quanto na antiga mitologia grega, existia a ideia de que o brilho purificador fecunda o lado espiritual das coisas e especialmente das pessoas. Faz nascerem coisas na alma. E o desenvolvimento pelo qual os alquimistas achavam que os metais podiam passar até serem transformados em ouro está ligado a essa ideia de "fecundação" desses metais por algum pedaço de ouro.
Essa ideia, para os alquimistas, também estava ligada à noção de um "amedurecimento" das coisas que seria provocado pelo brilho do ouro. A ideia era a de que todo metal tende a transformar-se em ouro naturalmente com o tempo, conforme vai "amadurecendo", só que num processo muitíssimo lento.
Então, segundo a crença alquímica, era preciso usar algum outro já formado para "fecundar" os metais e com isto acelerar o processo, fazendo-os "amadurecerem" mais depressa. Achavam que assim seria possível produzir mais ouro. O mesmo valia para todas as coisas e para os seres humanos, em seu amadurecimento físico e mental. Amadureciam pela penetração crescente de algo brilhante, como por exemplo o fogo, era como se existisse um "dourar" vital e espiritual na sua matéria, e a matéria pprecisasse amadurecer pelo contato de coisas tão brilhantes como o fogo para se tornar mais espiritualizada e começar a "brilhar" também.
Em termos simbólicos, quando estamos falando de seres humanos, esse amadurecimento que faz" brilhar o espírito", segundo a autora Raïssa Cavalcanti, representa o amadurecimento psicológico pelo qual as pessoas se individuam, isto é pelo qual elas vão tomando consciência de sua individualidade e de suas características e diferenças pessoais, após sua re-ligação com o self profundo — seu reencontro religioso com esse fundoda alma no qual estava dissolvido e misturado ao nascer, um fundo espiritual coletivo, gigantesco, na verdade até infinito, que é inconsciente e irracional, e do qual a gente se destaca conforme vai tomando consciência de quem a gente é individualmente.
Este é o assunto tratado nos capítulos 3 e 6 da segunda parte do livro.
As nereidas, segundo a leitura junguiana sempre retomada pela autora, são ninfas que representam o ponto de transição entre o inconsciente carregado de possibilidades e as formas que as coisas tomam à luz e na consciência. Representam as ondas do mar, e estão ligadas à atividade da tecelagem — são tecelãs marinhas, que tecem as formas das coisas, participando do processo de sua criação conforme as coisas vão emergindo do mar, da escuridão, do sem-forma.
Se os marinheiros podem se afogar atirando-se ao mar atrás delas, é por causa do entusiasmo extático excessivo, e do despreparo para enfrentar a beleza, o magnetismo delas. Porque as nereidas representam na verdade o processo positivo de tomada de formas quando as coisas emergem das profundezas. Só é preciso lembrar que esse processo passa pelo mergulho e pela dissolução nas profundezas, e sem o preparo para resistir a isso sem fugir, e para tirar disso o proveito para o autodesenvolvimento, a pessoa se perde. Ela enlouquece ou morre ― o que está simbolizado no afogamento e no desaparecimento no fundo do mar.
Por representarem esse aspecto criador das forças divinas, as nereidas controlam o clima, as tempestades etc., assim como Zeus. Mas tendem a apaziguar as tempestades e proteger os navegadores e seus navios.
As nereidas, a partir da Idade Média, foram sendo cada vez mais ser confundidas com as sirenas — das quais nasceu o nome "sereias".
Assim como outros monstros marinhos, as sirenas (e suas versões mais atuais, as sereias) não representam de maneira nenhuma um papel positivo no desenvolvimento psicológico humano, como as nereidas. Pelo contrário, são de certo modo apenas o lado ou aspecto negativo das mesmas nereidas, sem o seu lado positivo. Podemos dizer que são o duplo negativo das nereidas: representam forças ativamente dissolutoras, dissolventes, mortais ― estas seduzem e arrastam a pessoa para as profundezas de seu inconsciente, como as nereidas, mas n]ão paraq ajudar a pessoa a crescer psicologicamente, e sim para devorar a vítima.
As sirenas (ou sereias) são obrigadas a isso, são amaldiçoadas.
Sua sedução está ligada não só à beleza, mas ao canto. Originalmente (no caso das sirenas gregas míticas da antiguidade), elas eram mulheres-pássaro, condenadas a essa condição, segundo alguns dos mitos, por torturarem os homens seduzindo-os e depois lhes recusando o amor.
A autora não deixa isso claro, mas podemos deduzir, a partir de suas explicações, que ao recusarem se entregar sexualmente as sirenas estariam recusando também a fertilidade e o papel de ninfas quie lhes cabia, daí o seu amaldiçoamento pelos deuses (o fato de fazerem isto como parte de uma condenação não está trabalhado claramente no livro). Podemos imaginar que estariam destinadas a esse papel de "ninfas" por sua beleza e sedução, característica desse tipo de entidade mítica e descrita sempre nos mesmos termos com que se descrevem a beleza e a sedução das ninfas em geral.
Mas as ninfas seduzem para as profundezas da perfeição e do sagrado, e oferecem acesso a isso, ainda que esse acesso passe pelo desafio perturbador e assustador da proximidade do enlouquecimento e da morte. As sirenas por outro lado, levam a pessoa só até o meio do caminho, de modo que só oferecem a loucura e a morte.
A maldição das sirenas é terem sua própria atitude — de seduzir e destruir psicologicamente os homens — radicalizada e eternizada. Passam a se alimentar de carne humana, e a dispor de sua sedução como forma de atrair esse alimento.
O que resume a interpretação — marcantemente psicológica — da autora em relação às sereias/sirenas é a seguinte passagem: “No plano psicológico, o canto das Sereias representa os apelos irresistíveis dos impulsos do Id, do princípio do prazer, que buscam a satisfação de forma indiscriminada, imediata e absoluta, e que abolem o controle e a mediação do princípio de realidade da consciẽncia. As Sereias encarnam a noção do inconsciente freudiano: o lado mais sinistro e grotesco do inconsciente, que abriga os desejos de satisfação das paixões, não importa a que preço, e a ação dinâmica das pulsões reprimidas que visam burlar e assumir o governo da consciência”.
Os lagos, as lagoas e suas ninfas, as Limneidas, são tratados no capítulo 5 da segunda parte do livro.
Para os gregos antigos os lagos eram santos, e se acreditava que no fundo deles podia haver passagens para a região subterrânea. Templos eram feitos à beira de lagos e lagos artificiais eram feitos junto a templos. Rituais de purificação eram praticados nos lagos.
O fato de refletirem o céu era também um símbolo, que faz da água algo como um céu líquido. Os lagos eram locais de hierofanias e epifanias, isto é, de manifestações do divino indiretas e diretas.
Há conexão também do lago com a fertilidade.
Mas Raïssa Cavalcanti ressalta que os lagos estão sempre associados ao olhar, à visão, e simbolicamente referem-se à visão do divino e do sagrado, e a um contato entre essas coisas e os seres humanos através da visão: “O homem é o lago onde os deuses se olham, é o espelho que reflete a criação e onde Deus se vê refletido” ― o lago integra o humano e o divino em uma mesma totalidade através do olhar. Isto se associa ao “tema arquetípico” de Deus como um grande olho que tudo vê. “O lago é o olho de deus querendo ver a si mesmo, desejando se olhar através de sua própria criação. A criação é o seu reflexo e o lago é o olho da natureza, olhando a si mesma.”
O lago exerce um chamamento para a interioridade, e propicia a introspecção. A autora conecta toda essa significação do reflexo do lago ao mito de Narciso. “O olhar do lago é a metáfora do olhar do outro que revela aquele que o fita. O olhar é o espelho que revela de forma recíproca quem olha e quem é olhado".
Ainda nesta mesma direção, ela cita uma mais ou menos longa passagem de Platão em que Sócrates, conversando com Alcebíades, fala do reflexo do rosto de uma pessoa no olho de outra como uma metáfora para o autoconhecimento por meio do conhecimento do melhor do outro, que é o que o outro ( e nós mesmos ) temos de comum e de mais próximo do divino. Esse conhecimento seria a sabedoria. A autora conecta isto à questão da necessidade psicológica humana de, desde a infância, olhar outros humanos para desenvolver sua própria identidade, e daí retorna ao mito de Narciso, levando mais longe essa sua interessante interpretação.
A comparação do lago a um olho recebe um tratamento especial neste capítulo.
O lago, segundo a autora, “tem um olho que olha para dentro”, para o sagrado e o divino, reencontrando o self, e “um olho que olha para fora”, para o profano, refletindo a natureza. Olhar sozinho para o lago é um caminho para a interioridade e o self, a totalidade em que estamos imersos.
Além do reflexo, o lago traz a simbologia do “outro lado”, do lado sombrio e obscuro e profundo, oculto por detrás da superfície espelhada. A travessia do espelho, quebrando-o por exemplo, ou atravessar o reflexo no lago, mergulhando, representa o salto de entrada em um outro mundo, em uma realidade profunda diferente desta da superfície.
A autora menciona uma cena do “Orfeu” de Jean Cocteau e Alice através do espelho, de Lewes Carrol, como exemplos dessa imagem de travessia do espelho. No caso de Carrol, há também o tema desse “outro lado” além do espelho como uma versão de algum modo invertida da realidade externa (além de mais profunda). Assim também entre os gregos, na superfície o lago reflete o céu, na profundidade reflete o Hades, o mundo dos mortos, o “outro lado”. Para Cocteau, o espelho reflete o envelhecimento, e por isso serve de caminho para o mundo dos mortos.
O mergulho no lago representa, ao mesmo tempo que o possível mergulho de encontro com o self e a totalidade, também a “solutio”, a dissolução na morte e/ou no “lado negro”, na sombra, na versão inaceitável de nós mesmos. Entregar-se à sedução da “solutio” (e das Limneidas, ninfas dos lagos) resulta em morte, o que ocorre com os egos fracos. Essa representação está inscrita na passividade do lago, na calma de sua superfície e, por extensão via sugestão, de sua profundidade oculta. Mas é também somente com esse mergulho atravessando-a, com o autoconhecimento e reconhecimento e assumção do “lado negro”, do self profundo, que se atinge a totalidade e a divinização espiritual, a ascenção de um renascimento em estado purificado.
O lago, na sua verticalidade, integra o céu, o mundo terreno e o mundo subterrâneo, ao refletir tudo isso, fazendo o papel de ponte, de canal de comunicação entre essas polaridades. E na sua horizontalidade e reflexo da natureza ao redor é que está seu reflexo do mundo da superície terrena, representação na qual se incluem as ondas circulares concêntricas que se formam nele, e que representam instâncias da realidade em vconexão com o divino e infinito, representado pela circularidade (topologicamente falando) da própria forma do lago como um todo.
O centro de minhas críticas a esta obra está na tendência da autora a valorizar exageradamente a unidade — exagero que a meu ver empobrece, des-historiciza e despolitiza as informações, por buscar por detrás de todos os mitos em toda a diversidade de culturas examinadas e em suas variadas épocas apenas o que há de comum, as coincidências entre esses mitos
Ao buscar os pontos comuns entre os mitos inclusive de época para época, a autora infelizmente acaba ignorando os processos e transformações históricos do imaginário coletivo de cada povo e cada cultura. Também acaba ignorando as divergências de sentido e tensões internas que aparecem na mitologia de cada povo.
No livro Mitos da água esses sentidos divergentes e tensões internas nos mitos de um mesmo povo acabam ficando reduzidos no fundo a uma mesma e única grande oposição que atravessaria inclusive todas as mitologias de todas as culturas do mundo em todas as épocas, que é uma oposição entre o "lado luminoso, consciente e construtivo" do imaginário, e o lado osccuro, assustador e que pode nos engrandecer e ajufar em nosso desenvolvimento, mas pode também nos destruir.
Acontece que reduzir as tensões internas dos mitos de um povo a esta única oposição é na verdade uma simplificação empobrecedora da realidade. Não é difícil (e é muito mais profundo e interessante) verificar que em cada povo as tensões e divergências de sentido que cada mito apresenta são conectadas direta ou indiretamente às divergências no sentido de desenvolvimento dos variados grupos sociais, que na verdade têm cada um o seu próprio imaginário particular e diferenciado que interfere no imaginário coletivo geral alterando-o. E isto não é examinado no livro. Na verdade, cada grupo social tem as suas prórias interpeetações e versões dos mitos que circulam em sua sociedade, em sua época, valorizando e ressaltando também certos elementos e aspectos de cada mito em detrimento de outros.
Toda essa rica diversidade das diferenças de um mito para outro, dos mitos de um povo e de uma época para os de outro povo e de outra época, e das versões e interpretações diferentes que cada grupo social de um mesmo povo faz dos mitos gerais de sua cultura, tudo isso se perde quando adotamos com tanta força essa supervalorização da unidade entre os mitos, do que existe de comum entre eles, como Raissa Cavalcanti infelizmente faz neste seu livro — que nem por isso deixa de ser mesmo assim, e apesar dessa enorme deficiência, um bom e belo livro para o estudo de certos aspectos bem gerais da mitologia grega como um todo e principalmente de suas relações com a psique humana.
Se levarmos um pouco mais longe essa nossa crítica à falta de atenção da autora em relação às tensões entre mitos e as contradições internas no próprio sentido de desenvolvimento de cada grupo social, acabamos percebendo o seguinte. Todas as tensões e contradições, para a autora, em última instância acabam se reduzindo indiretamente à tensão moral bem X mal (típica por exemplo do cristianismo, do islamismo e do judaísmo) — que parece embutida por detrás de sua oposição entre a individualidade consciente que procura se construir e as forças inconscientes que ela precisa aceitar enfrentar nesse processo, mas que podem destruí-la.
Esse ponto de vista um tanto reducionista escamoteia não apenas a diversidade do imaginário, mas também um certo traço singular e comum ao modo de ver as coisas de inúmeras das culturas pagãs mencionadas pela autora no que diz respeito a concepções éticas e valores morais. Digo isto porque muitos desses povos pagãos (para não dizer a maioria deles) não tratam essa distinção deste modo. Não trabalham exatamente com noções que possam ser assimiladas assim tão facilmente às noções cristãs de "bem" e "mal". As noções morais e religiosas de muitos desses povos são bastante diferentes disto, e não se encaixam tão bem nisto, a menos que a gente distorça um pouco os fatos.
Até podemos encontrar de fato traços consideravelmente fortes dessa oposição bem X mal em algumas culturas pagãs, mas é interessante notar que este bsolutamente não é o caso grego — que é justamente o caso mais focalizado no livro Mitos da água!
Lembrando mais uma vez que o livro continua sendo bom e interessante apesar de tudo isso, podemos no entanto fazer-lhe, com um pouco mais de dureza, a seguinte crítica: há nele uma tendência empobrecedora, entrópica, indiferenciante, que o livro apresenta rumando sempre à redução de tudo à unidade ou no máximo a uma única grande oposição (indiretamente contaminada por traços de moralismo cristão), o que não permite apreciar os traços mais característicos e diferenciados das culturas míticas pagãs que estão sendo examinadas ali.
Essa mesma tendência para a unidade é parte do que conduz o livro ao seu estilo excessivamente repetitivo já criticado em outro tópico desta resenha, e à notável e constante confusão linguística entre a “divindade” enquanto mera qualidade caracterizadora dos diversos deuses pagãos (plural) e “Deus” enquanto deus uno especificamente do cristianismo, do islamismo e do judaísmo ― como se aliás fossem meras concepções ou interpretações diferentes do mesmo, o que é discutível.
Isto é ainda mais discutível e questionável quando o livro, buscando essa equalização ou unidade comum a todas as diversas culturas míticas examinadas, acaba associando a esse "divino" o vazio do budismo ou o “caminho vazio” que é sacralizado por certas concepções religiosas orientais (tao, por exemplo, quer dizer "caminho"), como se esse "vazio" ou "caminho" fosse a mesma coisa que "Deus" ou que uma grande e geral "divindade". Para intrepetar deste modo tais concepções, infelizmente, é preciso na verdade uma considerável dose de distorção dos fatos.
É também por essa exagerada tendên cia para a unidade que acapa por se perder de vista por completo, no livro, o caráter de magma histórico mutável desse imaginário coletivo (como diria Cornélius Castoriadis), magma que é formador de agentes históricos (coletivos), ou seja, de grupos sociais pom valores, propostas e sentidos de desenvolvimento divergentes uns em relação aos outros. Esse imaginário coletivo, em outras palavras, na verdade está conectado a tensões políticas na sociedade, e por esta, entre outras razões, é plural e rico em contradições — coisa que o livro simplesmente deixa de lado sem qualquer exame.
Esse estudo dos mitos poderia ser acompanhado em suas tendências mutuamente conflitantes e em suas transformações ao longo do tempo, paralelas à história político-cultural desses povos, e também poderia ter sido feito o exame da dialética pela qual todas as construções culturais de cada sociedade (do plano espiritual ao material) vão interagindo com esse imaginário coletivo tenso, múltiplo e mutante, remoldando-o ao mesmo tempo que sendo remoldadas por ele.
De minha parte, se me é permitido avançar uma sugestão mais pessoal, eu ressaltaria em especial a dialética que existe entre esse imaginário e coisas como a tecnologia de cada povo, que por sua vez estão envolvidas em interações com tudo o mais na vida desses povos, pelas vias da política tecnológica e da tecnopolítica (que é como costumo chamar as implicações políticas indiretas do modo particular como se desenvolve "por dentro" uma certa tecnologia) — mas é evidente que aqui já estamos avançando para um campo em que não é justo cobrar qualquer coisa da autora.
Não é justo porque aqui já estou colocando de fato sugestões e posicionamentos pessoais. Coisas que eu, pessoalmente, gostaria de ter encontrado em um livro como este, mas que na verdade já de saída nunca fizeram parte dos propósitos da autora. Não é exatamente justo cobrar de uma estudiosa a responsabilidade por não ter feito algo que ela própria nunca pretendeu fazer, porque não estava mesmo em seus objetivos.
Mas me permitam (e que ótima pesquisadora me perdoe) a pequena grosseria de, nesta resenha crítica a seu livro, avançar um pouco mais naquilo que eu gostaria de ter encontrado no texto — embora reconheça que não faz sentido nenhum que eu tenha esperado encontrar algo assim, porque os objetivos da autora eram claros desde o começo e não eram esses.
Quando falo de elementos externos aos mitos e ao puro imaginário, coisas de outras campos da produção humana, como por exemplo a tecnologia, que estão conectados direta ou indiretamente, superficial ou profundamentea a esses mitos, estou falando também por exemplo de construções urbanísticas, do design de objetos, de construções jurídico-políticas, institucionais em geral e até econômicas ― todas construções ligadas a uma certa normatividade que está presente nas sociedades, a certos padrões ou regras de comportamento. Acho que tudo isto deveria ser também examinado em suas relações com o imaginário mítico.
Se digo que o imaginário mítico de um poco é um dos fatores formadores de seus agentes históricos (coletivos), de seus grupos sociais, é porque entendo que esse imaginário não apenas exprime poeticamente a psique desses agentes, mas ao fazê-lo e pelo modo como o faz, também exerce pressões modeladoras sobre as ações e comportamentos desses agentes. E nada de todo esse riquíssimo e interessantíssimo quadro de relações com a realidade externa que está, digamos assim, costurada por dentro nos mitos, modelando-os e sendo remodelada por eles, nada disso, enfim, parece ter sequer comparecido nos objetivos da autora ao produzir este livro.
A interação viva e mutuamente recriadora entre toda essa realidade social e cultural e material externa aos imaginários coletivos de um povo (faço questão de dizê-lo no plural), está infelizmente fora do escopo, do objetivo de estudo delimitado por Raïssa Cavalcanti para este livro. Toda a realidade dessas ricas interações sociais com o mundo mítico de cada povo desaparece dissolvida em sua concepção junguiana, que neste sentido acaba parecendo talvez um tanto dogmática, eternizante, indiferenciante e unificante.
Tudo isso (que tanto me encanta pessoalmente, confesso) se perde. Nada disto é sequer mencionado com alguma atenção em todo o livro, não há menção nem mesmo à ausência de tudo isto e a opção (talvez metodológica) da autora de delimitar o seu tema excluindo tudo isso. Uma pena, para uma obra que apesar de tudo continua tão bela, mas que poderia ter sido ainda mais bela.
Uma das principais fontes de toda essa perda de tanto rico conteúdo que poderia ter sido tratado é, aliás, a indistinção entre o imaginário mítico e tudo aquilo que é objeto sacro, de fé. É a não percepção pela autora de que são coisas inteiramente diferentes e de mito e sacralidade modo nenhum são coisas necessariamente interligadas, como ela tão enfaticamente nos dá a entender que são.
Em outras palavras, além de indiferenciar todas essas coisas ora em uma grande unidade, ora em uma oposição simples a princípio de caráter psicológico, o livro conduz essa indiferença rumo ao que parecem ser certas influências provavelmente cristãs que subdeterminam seu estudo, porque sob o caráter a princípio psicológico da tal oposição se percebe uma clara contaminação de valores religiosos de tipo cristão ou bem próximo ao dos valores cristãos.
A autora não parece se dar conta muito claramente dessas interferências da oposição bem X mal (tipicamente cristã, ou de religião semilar) em sua oposição psicológica sustentada pela teoria junguiana. Ou não parece se dar conta de que essas interferências em certa medida invalidam o caráter de “verdade” com valor universal que ela parece pretender dar ao que “descobriu” em suas pesquisas ― pois são no fundo tendenciosas, e este é o solo básico em que se assenta toda esta minha crítica, que poderia talvez se resumir ao seguinte: faltou a essa moça, ao elaborar sua bela obra, para se tornar belíssima, um pouco daquele tipo de trabalho realizado pela psicologia histórica de autores como Jean-Pierre Vernant e Marcel Detienne.
As principais conquistas atingidas na realização desta obra e das quais o leitor pode tirar bom proveito são as seguintes: em primeiro lugar o livro realiza com bastante sucesso o que parecem ser dois de seus objetivos mais almejados. Em segundo lugar, o livro consegue obter um resultado talvez inesperado, adquire uma utilidade — uma enorme utilidade, na verdade — que provavelmente não estava prevista, e que será o assunto dos últimos parágrafos desta resenha crítica, encerrando-o.
Comecemos então pelos dois objetivos explicitos e bem realizados do livro.
Primeiro objetivo realizado: o livro nos oferece uma consistente visão da maneira como alguns aspectos da psicologia humana se exprimem no imaginário mítico de diferenes povos. E que aspectos são esses? São os aspectos que nossa psique assume quando passa por processos de grande desenvolvimento e de transformação. O imaginário mítico reflete e exprime o processo por meio de uma série de metáforas que parecem caracterizar o que Jung chama de arquétipos do inconsciente coletivo. Deste modo, podemos tirar bom proveito do livro como uma fonte de orientação e esclarecimento quando estamos passando por algum processo desses, de desenvolvimento e transformação.
Nesse sentido ocorre uma coisa tão evidente no livro que a autora nem chega a mencionar que iria ocorrer, porque não havia necessidade. O que ocorre é que conforme vamos lendo suas descrições das imagens míticas e compreendendo os arquétipos psicológicos que elas exprimem, vamos muito facilmente percebendo como as imagens descritas, presentes nos mitos gregos e de outros povos, estão também frequentemente presentes em nossa própria vida, Estão presentes nas coisas que sonhamos, imaginamos, nos filmes que vemos, nas músicas que ouvimos, nos livros que lemos... etc. Percebemos que não são imagens presentes apenas nos mitos, porque ecoam e se repetem de diversas formas e em diversas variações no conjunto todo do nosso imaginário e do imaginário social expresso publicamente.
Portanto, o livro cumpre muito bem seu papel como fonte auxiliar para o nosso autoconhecimento terapêntico em nossos processos de desenvolvimento e transformação.
Segundo objetivo realizado: o livro atinge uma clara e vivaz focalização da água em suas diversas manifestações nesse imaginário mítico como representação de elementos femininos ou com traços de feminilidade que acompanham os processos de desenvolvimento e transformação da psique humana. Mesmo que a estruturação dos capítulos tenha diminuído um tanto essa ênfase no feminino — conforme mencionei em uma de minhas críticas neste artigo — ela continua claramente presente e nítida.
Assim, ao mesmo tempo que nos ajuda a compreender de um ponto de vista psicológico e arquetipal os nossos processos de maior desenvolvimento individual e de transformação, o livro nos ajuda também a compreender um pouco dos aspectos arquetipais que caracterizam e tipificam de um modo geral a alma feminina.
Lendo o livro, é possível sentir a presença disto, deste sentido de uma feminilidade, como uma sombra que vai acompanhando as explicações a cada parágrafo, de modo que com um pouco de reflexão o livro talvez nos ajude a entender um pouco mais a alma feminina, por um lado, e por outro certos aspectos um tanto femininos que não deixam de estar presentes, ao que parece, mesmo na alma masculina em geral.
Um resultado talvez imprevisto, e de enorme utilidade: se o leitor tem algum interesse por arte e poesia, e digo que especialmente se tem ele próprio uma veia poética, se compõe poemas ou letras de música, irá encontrar neste livro, seguramente, um enorme tesouro de inspirações profundas, e muito preciosas.
As imagens que o livro filtra e associa umas com as outras a partir daquilo que exprimem de psicológico não são apenas de uma extrema beleza: são também imagens densamente carregadas de significações, e significações psicologicamente profundas, produzindo garnade impacto emocional, e ao mesmo tempo fornecendo um riquíssimo estímulo à reflexão. Eu diria que é, acima de tudo, um livro de excelente proveito para os poetas e músicos.
E esta é a principal razão pela qual o leitor não deve de maneira nenhuma presumir que esta resenha crítica possa substituir a leitura do próprio livro. Não só porque o papel de uma resenha crítica é o de orientar em relação à leitura de um livro, e nunca substituí-lo, mas acima de tudo porque a densidade dos conteúdos tratados não está nem de longe representada aqui. E está ainda menos representada — não poderia estar — quando falamos desse traço poético envolvido. É algo que é preciso mesmo ler o próprio livro para captar.
Os elementos poéticos que este belo estudo realizado pr Raïssa Cavalcanti faz emergirem e brilharem nos mitos são, a meu ver, o seu ponto mais forte, e aquele que não seria possível transmitir nem para o mais brilhante dos resenhadores, aliás eu diria que nem mesmo esboçar. É preciso ler a coisa. No correr da leitura, conforme os caṕítulos vão se acumulando, vai se formando em nossa mente um verdadeiro arsenal de recursos poéticos e de suas possíveis utilizações — mesmo que a autora não faça nunca qualquer comentário neste sentido. É muito, muito interessante esse efeito que a leitura provoca cada vez mais nititamente conforme avançamos.
Sem dizer uma palavra a respeito disto, o livro nos provoca, ele praticamente nos "empurra" em direção à prática poética, nos faz pensar um pouco como poetas, e imaginar aquelas imagens fantasticamente significativas aplicadas a outras situações da vida humana.
O livro, então, acaba por nos fazer pensar o seguinte: os mitos apresentados, não são puras e simples criações de poetas individuais específicos... são formulações do imaginário coletivo que acabam emergindo inclusive em nós quando nos exprimios. E nos dá vontade de nos exprimirmos assim para melhor descrevermos os nossos próprios sentimentos. Então... não somos todos um pouco poetas, pelo menos quando vivemos coisas difíceis de exprimir, e tentamos nos entender a nós mesmos por meio de metáforas, captar em imagens um pouco do que se passa em certos estados profundos da alma?