Resenha por João Borba - em maio de 2012
Dividida em subtítulos para melhor leitura no site.
Quem foi Mikhail Bakhtin? | Qual foi o livro mais famoso de Bakhtin? | Quais são os capítulos em que se divide o livro A cultura popular na Idade Média de Bakhtin? | A literatura de Rabelais pode ser considerada "erudita"? | Como os livros de Rabelais podem ter sido populares se a população de sua época era quase toda analfabeta? | Rabelais era ateu e materialista? | Rabelais foi perseguido pela Igreja? | Os livros de Rabelais são estudados em cursos de literatura, nas universidades? | Como Bakhtin se tornou historiador?
Mikhail Bakthtin é um caso especial entre os historiadores da Idade Média e do Renascimento. Trata-se de um filósofo russo, comunista, cuja principal atuação não é como historiados, mas nas áreas de linguística e filosofia da linguagem. Apesar de comunista, sofreu perseguição na ditadura comunista de Stalin. Bakhtin sofreu essa perseguição política por causa de suas ideias em estudos sobre literatura, que indiretamente inspiravam as pessoas a pensarem em um comunismo sem ditadura, com maior liberdade.
A filosofia da linguagem da Bakhtin, que se apóia na ideia de que tudo que se escreve ou diz no fundo é parte de um grande diálogo social, é mundialmente famosa, e acabou tendo influências em diversas outras áreas.
O livro mais famoso de Bakhtin é justamente este aqui comentado - A cultura popular na Idade Média e no renascimento: O contexto de François Rabelais.
Bakhtin não era exatamente um historiador até escrever esse livro. Então, como este livro surgiu? Como ele se interessou por história? A certa altura, Bakhtin resolveu estudar um famoso escritor e contador de histórias cômicas absolutamente escrachadas do final da Idade Média, chamado François Rabelais. E apesar de seu principal foco de atenção não ser a História, mas a Linguística, para entender melhor o modo como a obra de Rabelais dialogava com o contexto real à sua volta, acabou estudando também, a partir de Rabelais, toda a sociedade medieval e renascentista do ponto de vista da cultura popular - na qual se inseria a obra rabelaisiana. Bakhtin chegou a conclusões bastante interessantes neste estudo de historiador, especialmente a respeito do que costumava provocar o riso nessas épocas e em diferentes camadas da sociedade. Sua história da cultura popular na Baixa Idade Média e no Renascimento, realizada neste livro, foi o tema que o tornou mundialmente famoso.
O aspecto mais interessante do livro talvez seja o fato de ressaltar as festas e o humor popular no final da Baixa Idade Média - pois o período medieval inteiro tende a ser encarado como o de uma vida séria, triste e insegura, sombria e assustadora. Bakhtin nos mostra que, pelo contrário, as manifestações populares de alegria nas aldeias camponesas e nas cidades recem-fundadas eram muito maiores que as atuais, pois ganhavam a forma de festas pública muitíssimo mais frequentes e vivenciadas sempre de modo extremamente intenso.
O livro é dividido em uma introdução e sete capítulos.
Na introdução, intitulada Apresentação do problema, Bakhtin fala sobre o modo como a literatura de Rabelais foi sendo recebida pelo público leitor na Rússia e no mundo em diferentes épocas, e as distorções de informação que foram sendo geradas a respeito.
No capítulo 1 - Rabelais e a história do riso - Bakhtin faz uma belíssima (para não dizer genial) história das motivações que costumavam provocar o riso em diferentes épocas, mostrando que nem sempre se riu do mesmo tipo de coisas, e como essa história do riso foi afetando as leituras que foram sendo feitas de Rabelais ao longo do tempo.
Nos capítulos 2 (O vocabulário da praça pública) e 3 (As formas e imagens da festa popular na obra de Rabelais), Bakhtin mostra como a literatura de Rabelais estava inserida na cultura popular de sua época, sendo escrita com linguagem do povo e com referências acessíveis e habituias para o povo. O capítulo 2, em conjunto com o 1, ajuda a mudar a imagem séria e sombria que até este livro se costumava fazer da Idade Média, porque trata de um assunto até então quase tão pouco estudado quanto o riso: as festas e diversões coletivas populares.
O capítulo 4 (O banquete em Rabelais) trata de um tema que sempre aparece bem acentuado nesse autor medieval-renascentista: o da comida e do comer coletivamente, que envolvem situações encaradas por Rabelais sempre como festivas e alegres. Este capítulo associa o tema da festa e o apelo popular da literatura rabelaisiana ao tema da matéria e do corpo, e das relações com o mundo material em geral.
Nos capítulos 3 e 4 se acentua o aspecto materialista da obra de Rabelais mostrando (o que é extremamente interessante) que esse materialismo estava oresente na própria cultura popular medieval em geral, enquanto o que corresponde à imagem séria e sombria que se tem da Idade Média é apenas a fria formalidade da Igreja, de seu pensamento e de suas práticas oficiais, que não eram exatamente acompanhados pelo povo em geral, estabelecendo um contraste entre cultura popular e cultura oficial. Esse contraste é especialmente demarcado no capítulo 3, como um crontaste sobretudo entre uma postura oficial de formalidade, seriedade e frieza com relação à vida material, e uma postura popular de informalidade alegre, descontraída, e apegada à materialidade e ao corpo.
É interessante notar também como essa materialidade popular e rabelaisiana não toma o mundo material como feito de objetos matreriais distintos cada um com sua forma: trata-se de um materialismo que parece transcender os limites da formas de cada coisa material em particular - pois a materialidade e o próprio corpo humano são tratados como se houvesse uma espécie de massa geral em movimento, assumindo e perdendo formas variadas dinamicamente.
Nos capítulos 5 (A imagem grotesca do corpo em Rabelais e suas fontes) e 6 (O "baixo" material e corporal em Rabelais) falam sobre a estética do grotesco, sua história e seu caráter popular na época de Rabelais, e sobre o modo como ela, ligada ao materialismo rabelaisiano, formula uma certa imagem do corpo humano e de suas relações com o mundo material na Baixa Idade Média e no Renascimento.
O capítulo 7, finalmente - As imagens de Rabelais e a realidade do seu tempo - mostra de que modo a literatura de Rabelais se inseria nos debates direta ou indiretamente políticos de sua época, o que sua literatura cômica indiretamente defendia e o que atacava, seu aspecto crítico e seu lado propagandístico.
Rabelais tornou-se um grande clássico da literatura mundial, o que faz de seus livros uma peça de erudição para os leitores: é literatura reconhecidamente de primeira linha, o tipo de autor do qual não se deveria passar a vida sem ler pelo menos uma das obras. Mas além disso era sábio o suficiente para se tornar escritor naquela época de muito analfabetismo em que viveu, e mais do que isso: era ele próprio um erudito, e seus textos são carregados de menções diretas ou indiretas (e muito inteligentemente colocadas) a filósofos e estudiosos das mais variadas áreas, e textos da mais elevada literatura e poesia.
Por isso mesmo sua leitura pode ser desconcertante, e até chocante, para certos estudiosos acostumados ao bom comportamento, à sobriedade e sisudez que (aliás muitas vezes falsamente) se costumam atribuir às grandes obras clássicas da literatura.
À primeira leitura rápida e sem muita reflexão, Rabelais parece (dependendo da postura do leitor) terrivelmente desbocado e grosseiro, com o uso por exemplo de palavras chulas e linguagem obcena, combinadas a um humor simplório do tipo "pastelão". Ou pode parecer, pelo contrário, de uma inteligência ao mesmo tempo refinadíssima, elaboradíssima, com domínio de conhecimentos profundos nas mais variadas áreas, e no entanto perfeitamente mergulhado, até o fundo, na cultura popular, "de povão" mesmo, sem nenhuma afetação... combinação que o faz deliciosamente engraçado e subversivo - corrosivo mesmo - em relação a esse "verniz" de erudição tantas vezes buscado por tantos na literatura, e tantas vezes oco.
De fato Rabelais não era apenas um autor que escrevia na linguagem do povo: era sim famoso junto ao povo, por sua literatura cômica, mesmo esse povo sendo quase todo analfabeto na época. A fama de Rabelais junto ao povo se desenvolveu porque além de escrever histórias cômicas ao gosto do povão mais pobre, suas histórias iam sendo contadas em rodas de amigos e se espalhando por toda a França, daí sua fma mesmo entre os que não sabiam ler (imensa maioria). Seus personagens chegaram a virar fantasias de carnaval utilizadas por muita gente.
Rabelais era sem sombra de dúvida bastante materialista, no sentido de que dava um valor imenso ao mundo material. O herói principal de suas histórias cômicas é, aliás, um gigante muito carnudo, e a cada instante sua literatura está sempre nos lembrando de que somos feitos de carne e vivemos num mundo muito material, e essa lembrança, em Rabelais, vem sempre um certo tom de alegria e prazer, de modo que temos sempre a sensação de que ele não só é materialista mas, de certo modo, se delicia com isso, saboreando a vida material.
Além disso, Rabelais era alquimista e médico (um dos raros em toda a Europa), duas atividades que lidam muito com a matéria e a valorizam. E era suspeito sim de ateísmo, coisa que naquela época sempre punha a Inquisição nos seus calcanhares. O ateísmo sincero e completo seria algo ainda mais raro naquela época, e essas posturas dele chamavam muito a atenção. Na verdade há um debate mundial aliás a respeito disso, desde que Bakhtin publicou seu livro: alguns defendendo que Rabelais era ateu e materialista, concordando com o próprio Bakhtin; outros defendendo que não. O estudo de Bakhtin é até hoje, de longe, o mais reconhecido mundialmente sobre o assunto, de modo que a tendência é dar-lhe razão.
Mas os argumentos contra um suposto ateísmo puro e simples de Rabelais são bastante fortes. Porque na verdade o ateísmo não combina muito bem não apenas com a situação da idade média como um todo, daí sua raridade, mas também com o fato (bastante conhecido) de Rabelais ser alquimista. Isso porque a alquimia, na época, estava sempre muito carregada de uma espécie de religiosidade considerada profana pelos mais conservadores na Igreja oficial, e era até quase impensável sem isso.
Para compreender melhor o debate o que se recomenda é ler o livro de Rabelais e também por exemplo as críticas a ele feitas por Lucien Febvre no livro O problema da incredulidade no século XVI: A religiosidade de Rabelais. Quanto ao autor desta resenha que você está lendo, tende seguramente bem mais para o lado do próprio Bakhtin: Febvre me parece aproximar Rabelais demais do cristianismo, como se oferecesse uma outra visão dessa religião. Por outro lado, me parece de fato exagero bakhtiniano firmar Rabelais como um materialista sem crenças de tipo religioso: Rabelais na verdade me parece filiado a certas linhagens bem materialistas de um pensamento religioso pagão influenciado sim, mas de maneira limitada, pelo cristianismo, linhagem pagã que, ao contrário do que se imagina, havia penetrado no cristianismo da maior parte da população da Europa e se misturado com ele, contrapondo-se às crenças oficiais e mais depuradamente cristãs da Igreja oficial.
Rabelais sofreu perseguição da Igreja, e foi sendo sempre salvo e protegido por nobres de quem tinha salvo a vida como médico, mas acabava se desentendendo com muitos dos seus protetores por defender muito o povo mais pobre e simples do campo e fazer muita sátira política contra os mais ricos e poderosos na época.
Pelos estudiosos de literatura, Rabelais costuma ser considerado um dos maiores escritores de todos os tempos, principalmente no campo da comédia. Mas como seus escritos usam uma linguagem muito "suja", recheada de palavrões, não costuma ser muito citado ou recomendado nas universidades (em muitas partes do mundo, os professores universitários de história da literatura reconhecem a importância e o valor de Rabelais, mas parecem ter certo pudor em falarem dos textos dele, ficam envergonhados e sempre evitam citar partes desses textos).
O estudo de Bakhtin sobre Rabelais é o mais famoso até hoje. E como Bakhtin, em sua filosofia da linguagem, considera que qualquer texto no fundo está sempre dialogando com toda a sociedade de sua época, para estudar Rabelais ele estudou também toda a sociedade do final da Idade Média e início do Renascimento e do Capitalismo. O resultado foi esse belíssimo livro de história que surpreendeu os historiadores de todo o mundo e se tornou um grande clássico no assunto, mostrando um lado da mentalidade medieval que nunca havia sido visto antes.
Para falar sobre a época de Rabelais (fim da Idade Média, início do Renascimento) Bakhtin acabou fazendo uma história das festas medievais até essa época, e também uma impressionante história do riso, isto é, um profundo estudo sobre aquilo que, ao longo da história da humanidade (não só na época medieval, mas inclusive desde a antiguidade e até os dias de hoje) as pessoas dessas diferentes épocas achavam "engraçado". Ele mostrou que pessoas de épocas diferentes e de classes sócio-econômicas diferentes têm um tipo de riso diferente, porque riem de coisas diferentes.
Deste modo, conseguiu mostrar com clareza como a literatura cômica escrachada e materialista de Rabelais era popular, feita especialmente para o "povão" e, em parte para os jovens e baderneiros "estudantes" das primeiras universidades da História, fundadas pela Igreja dos últimos séculos da Idade Média.