(Sobre anticomunismo, leia também, nesta mesma seção Tendências e Grupos, no tópico Macartismo, o artigo Macartismo e idiotice)
por João Borba, março de 2014
sumário
O anticomunismo não é exatamente uma tendência filosófica. Na verdade, raramente é. Quase sempre se trata de uma tendência irracional, carregada de preconceitos e medos sem fundamento, que se espalha em uma sociedade, promovida por inimigos políticos do comunismo através de boatos e desinformação, e por meio da propaganda. Entretanto não é impossível uma filosofia chegar a definir parte de seus contornos justamente pela oposição ao comunismo.
Normalmente o fundamento do anticomunismo está na difusão de boatos que atiçam nas pessoas o medo e os sentimentos persecutórios, como se houvesse uma espécie de "complô" de comunistas disfarçados em "cidadãos comuns" querendo difundir o comunismo e destruir as liberdades democráticas. O anticomunismo, considerado nesses termos, é evidentemente uma espécie de surto patológico social, que ocorre sob certas circunstâncias políticas muito específicas — e não realmente uma tendência ou posicionamento que de algum modo seja justificável sequer colocar em debate.
O que piora as coisas, é que de fato algumas versões reais do comunismo instauradas no mundo (e em geral justamente as mais famosas e influentes) foram totalitárias — coisa que, nessas ocasiões de surto patológico anticomunista, ajuda a justificar o medo coletivo e a promover as generalizações que escondem os casos diferentes, em que o comunismo promoveu alguma libertação e demonstrou até mesmo espírito democrático (em alguns casos maior do que o observado nas próprias democracias). Há quem questione (não sem alguma razão) se esses regimes totalitários não são inclusive uma das principais razões de surtos patológicos sociais como estes, o que chega a explicá-los melhor... mas não a justificá-los. continuam representando uma espécie de patologia, e não um posicionamento.
Algumas vezes a postura anticomunista chega a gerar pensadores e teorias mais ou menos refletidas, mas que em geral atuam mais como forma de propaganda e justificação do anticomunismo irracional do que qualquer outra coisa, fazendo coro a coisas como boatos e preconceitos tolos, e estimulando medos sem nenhum fundamento consistente. Mesmo nste caso, que é o mais comum quando se trata de um anticomunismo que se esforça para se tornar um posicionamento, podemos dizer que é bem mais o caso de uma tendência antifilosófica, inclusive antiintelectual (e quase sempre até estupidificante) do que o de uma tendência filosófica, porque essas "teorias" anticomunistas superficiais e ligadas ao anticomunismo irracional normalmente trabalham mais com a desinformação do que com fatos e argumentos.
São raros os pensadores anticomunistas realmente consistentes, e que inclusive combatem o preconceito (mesmo o preconceito contra o próprio comunismo) para tentar realmente esclarecer as coisas e tomar uma posição sólida, honesta e bem fundamentada. Raros... mas existem. E mesmo estes — como por exemplo o filósofo anticomunista Karl Popper, para citarmos o nome mundialmente mais famoso nesse sentido — algumas vezes dão também suas "escorregadelas" para o campo do preconceito irracional.
Entre os posicionamentos politicamente de direita, que defendem o capitalismo, os anticomunistas mais consistentes (ou menos inconsistentes) na verdade costumam estar mais no campo da economia do que no campo da filosofia. São principalmente economistas que se colocam como adversários da teoria de Marx sobre o valor das mercadorias.
Fazendo um resumo simplificado e grosseiro desse debate, mas que pode dar um vislumbre geral dele, qual é o posicionamento de Marx nele? Marx e os marxistas trabalham com a teoria de que o fundamento do valor das mercadorias está, em última instância, ou na força de trabalho que foi gasta para produzi-la, e que se transferiu para ela, portanto, simplificando, é o trabalhador que dá valor às coisas.
O debate se dá em geral contra uma tese econômica oposta, em algumas versões bastante refinada, conhecida como teoria da utilidade marginal. É uma teoria que fundamenta o valor das mercadorias com base na utilidade que o mercado de consumo atribui a elas — o que leva a colocar a responsabilidade pelo valor das coisas mais nas mãos do consumidor (comprador, o que significa também quem tem dinheiro que utiliza comprando) do que nas mãos do trabalhador que as produz.
É interessante notar aliás como ambas as teorias, a de Marx e a dos marginalistas, passam a maior parte do tempo tratando do trabalhador e do consumidor como se fossem coisas completamente distintas, e não aspectos de uma mesma pessoa, que ora trabalha, e ora consome o que foi produzido pelo trabalho, seu e/ou de outros.
No caso de Marx isto é ao menos compreensível, visto que desenvolveu sua teoria numa época em que os direitos trabalhistas eram raramente reconhecidos e levados a sério, de modo que os trabalhadores, principalmente os operários industriais, não tinham poder de consumo tão relevante a não ser considerados em massa, pois o poder de consumo de um trabalhador individualmente, ou de sua família, era de fato irrelevante em relação ao que se via em outras camadas da população, de modo que fazia bastante sentido nçao confundir consumidor relevante (classes média e alta) com trabalhador. Aliás, os camponeses também não consumiam tanta mercadoria, mas por outras razões: porque tendiam a produzir parte de seus próprios bens de consumo, sobretudo alimentos.
Já quanto aos economistas marginalistas, essa distinção entre trabalhador ("produtor", diria Marx) e consumidor não se justifica tão claramente. Sobretudo no caso dos marginalistas do século vinte em diante, pois o trabalhador, desde o século XIX, foi deixando cada vez mais de ser um consumidor pouco relevante (inclusive porque o trabalho se diversificou e as classes mais abastadas passaram a ser de algum modo também trabalhadoras).
Nem todo marginalista em economia (defensor da teoria da utilidade marginal contra a teoria marxista do valor-trabalho é necessariamente um "anticomunista", um adversário radical do comunismo. Mas é entre esses economistas marginalistas que, em geral, há mais possibilidade de encontrarmos anticomunistas realmente consistentes e intelectualmente honestos.
Fora do campo dos direitistas políticos, ultraconservadores e defensores do capitalismo em geral, por exemplo dentro do campo do próprio socialismo, a probabilidade de encontrarmos anticomunistas teoricamente honestos e consistentes é maior — principalmente entre aqueles conhecidos como anarquistas. Porque estes normalmente não são movidos pelo medo ou por boatos irracionais contra um inimigo na verdade desconhecido. Suas críticas às tendências autoritárias inscritas na tradição marxista (e até mesmo no próprio pensamento original de Marx) partem de uma compreensão do comunismo como uma espécie de concorrente em face de um mesmo objetivo comum, que é o combate ao capitalismo e, de um modo mais geral, à exploração das camadas menos favorecidas da população pelos poderosos.
Assim, os anarquistas tendem a circular no mesmo meio que os comunistas, disputando a posição de defensores das mesmas camadas da população, e não da camada oposta. Quando a postura deles se radicaliza em oposição ao comunismo e persiste nisto, ou seja, quando se tornam anticomunistas, esse seu anticomunismo tende a assumir a forma de um debate muito mais refletida e consistente do ponto de vista das razões e argumentos em jogo (e nem por isso menos tenso).
É preciso observar isto com clareza: que apesar da constante disputa com o comunismo, só em casos específicos o anarquismo chega a se tornar realmente uma postura anticomunista. Mesmo discordando, nem sempre o anarquismo é anticomunista, no sentido de se definir (mesmo que parcialmente) em função dessa oposição ao comunismo. Normalmente o que define o posicionamento anarquista é coisa bem diferente de algo como uma oposição ao comunismo. Na verdade, aliás, isto raramente acontece.
Por outro lado, há pequenas subtendências ou facções anarquistas (as do anarcoindividualismo de Max Stirner) que já não podem ser consideradas exatamente "socialistas", e tendem mais à defesa ultra-radical das liberdades individuais do que à defesa de camadas específicas da população — e isto aparentemente pode se aproximar de posicionamentos dos anticapitalistas conservadores autointitulados "liberais". Mas apenas aparentemente.
Max Stirner — precursor de Nietzsche — em certa medida pode sim ser considerado anticomunista... assim como anti qualquer espécie de "ismo" aliás. Mas apenas porque não aceita a submissão do indivíduo a qualquer tendência ou posicionamento coletivo. De modo que é do mesmo exato modo anti capitalismo também.
Na verdade o que Stirner faz, neste sentido, é se apropriar de uma noção típica dos capitalistas, a de "propriedade", tomando-a como movimento ativo de apropriação — e radicalizá-la até o absurdo. Até um ponto tal, que ela se torna absolutamente irreconhecível para os próprios defensores do capitalismo. Nas mãos de Stirner essa noção (de "propriedade") se transforma em uma atitude incessante de "apropriação radical" (e personalização) de tudo e inclusive de si mesmo, que promove a constante transformação (de tudo)... e estoura por dentro toda a estrutura dos pensamentos que justificam ou defendem a propriedade capitalista. Bem como aliás qualquer "acumulação" do que quer que seja — admitindo apenas, em última instância, a construção e manifestação da personalidade.
Infelizmente, existem (sobretudo nos Estados Unidos) seguidores de Stirner que são tão fervorosos quanto superficiais na sua leitura, apegando-se apenas à valorização do "indivíduo" acima de tudo, quando para Stirner o indivíduo consiste, basicamente, em um fantasma do intelecto, uma ilusão, um vazio, um nada, e a única coisa de que se pode realmente falar é não o "indivíduo", mas uma complexa e divididíssima personalidade que vai incessantemente se construrindo como um todo integrado que nunca realmente se atinge, e superando suas divisões (mas adquirindo outras novas).
A palavra indivíduo significa não-divisível, de modo que o "anarco-individualismo" de Stirner tem mais a ver com uma autoconstrução individual incessante e incessantemente frustrada do que com um indivíduo dado a ser valorizado, e cujas liberdades deveriam ser defendidas contra o Estado (ou contra o comunismo ou qualquer outra coisa). Essas defesas são feitas, mas não em nome da liberdade de um indivíduo dado entendida como garantida de que possa manter suas propriedades econômicas, e sim puramente em nome da luta constante contra as barreiras externas à sua autoconstrução personalizada.
A questão real que poderia consistentemente opor stirnerianos ao comunismo é a de saber em que medida o comunismo apresenta ou não barreiras à construção e expressão livre da personalidade... e o simples o fato de ser um "ismo" por si só já as apresenta sim, em alguma medida — porque o posicionamento de Stirner é tremendamente radical quanto a isto. As barreiras estão aí sempre presentes por todos os lados, e essa autoconstrução é um processo de luta incessante.
No campo do direito há também posturas que podem de certo modo ou em certa medida ser consideradas anticomunistas, como a do neocontratualista John Rawls — que se constrói em parte com base precisamente numa crítica à noção marxiana de que em um Estado justo cada um deveria oferecer (com seu trabalho) segundo a sua capacidade, e receber segundo a sua necessidade.
Teoricamente muito consistente e muito distante daquele anticomunismo irracional e preconceituoso, Rawls no entanto desenvolve, de fato, toda uma argumentação no sentido de justificar que aqueles que contribuem para uma maior produção a ser distribuída por todos, deveriam também receber mais por isso, caso contrário, se desestimulariam e diminuiriam a sua produção, resultando em prejuizo para todos — de modo que todos acabariam sentindo-se injustiçados. Se parte de sua filosofia da justiça se constrói e se define com base na recusa de teses comunistas, podemos sim considerá-lo em alguma medida como um anticomunista.
Entretanto, Rawls está bastante longe de ser alguma espécie de defensor de um capitalismo desenfreado. Muitíssimo pelo contrário, sua posição enquanto pensador liberal é bastante moderada e propõe planejamento político do Estado de modo a assegurar condições de vida justas para as camadas sociais menos favorecidas. Mas sempre preservando o livre capital e mantendo-o estimulado a produzir mais para todos na sociedade.
Ainda no campo do direito pode-se mencionar como filosofia jurídica anticomunista o pseudo anarquismo (falso) de Robert Nozick, filósofo neocontratualista (como Rawls) mas dedicado basicamente a atualizar a filosofia liberal (e pró-capitalista) de John Locke (da época das primeiras grandes revoluções liberais, no início do capitalismo).
Sua filosofia do direito acaba por ser muito próxima da postura mais radicalmente capitalista de todas, o neoliberalismo — que defende a tese do Estado mínimo — isto é, um Estado que atue apenas preservando a livre iniciativa econômica e deixe o mercado correr livremente, sem qualquer interferência no sentido de distribuição de renda. Utiliza para como base para essa defesa o princípio de Kant de que uma pessoa não deve ser utilizada como meio ou ferramenta para se atingir algum objetivo... então o Estado não pode atuar controlando os comportamentos econômicos dos cidadãos para ajudar aos menos favorecidos, nem para qualquer outra finalidade. Que vençam então os economicamente mais fortes, e ponto final.
Nozick portanto defende a propriedade capitalista e o direito de enriquecimento mesmo que isto gere o empobrecimento de outros, e chama esse seu posicionamento de "anarquismo". Com isto desvirtua por completo a postura anarquista (para a qual ser dominado pelos detentores oficiais do poder do Estado é tão pernicioso quanto ser dominado pela força econômica de gente mais rica). O título de "anarquismo" que ele próprio atribui à sua filosofia é uma difamação evidente e na verdade até ostensiva do sentido desse posicionamento político, essa classificação portanto é falsa, e não deve ser levada a sério no caso de Nozick, que é basicamente um anticomunista neoliberal (um capitalista radical).