Princípios para a prática da filosofia: Estudos metodológicos em debate

Seção inaugurada em 2 de Setembro de 2013

Da autoria de João Borba

 

O tema das práticas filosóficas tratado nesta seção

 

Os assuntos a serem tratados

Esta é uma seção voltada para questões metodológicas em filosofia — e que acabam envolvendo também, necessariamente, questões de metafilosofia, a começar pelo problema fundamental que consiste no próprio modo de se conceber a filosofia.

Aqui você vai encontrar, mais precisamente, minhas anotações e estudos metodológicos e metafilosóficos sobre a prática da filosofia, objeto de estudo que inclui também entre suas áreas específicas:

  • a Metafilosofia, compreendida aqui como estudo sobre o que é filosofia — tema inevitável quando pretendemos tratar mais a fundo e refletidamente as questões práticas e metodológicas nessa disciplina;
  • prática da História da filosofia e a do Ensino de filosofia (que contam já com alguma bibliografia e reflexão no Brasil até o presente ano de 2013);
  • a prática da Filosofia comparada (que no Brasil me parece contar por enquanto com mais realizações diretas do que reflexão metodológica sobre essas realizações);
  • e o que chamo de Filosofia aplicada (tanto a outras disciplinas de estudo quanto ao exame direto de realidades práticas, e não textos, colocadas como objeto de estudo filosófico)

 

A leitura estrutural de textos em debate — primeiras e gerais contraposições

Esta última das áreas acima listadas — a Filosofia aplicada — é uma área de atuação da filosofia bem pouco praticada no Brasil até atualmente (2013). Pouco praticada em função de posicionamentos no campo metafilosófico muito difundidos nacionalmente e que, alegando defenderem a consistência das pesquisas em filosofia, não obstante me parecem, sinceramente, perniciosos para o desenvolvimento da cultura filosófica nacional, e que portanto serão aqui objeto de contraposição da minha parte, o que significa que esta seção será portadora de um debate.

Quanto a este debate, um do principais objetos de atenção será a leitura estrutural de textos filosóficos, herdada pelos filósofos acadêmicos brasileiros de práticas filosóficas acadêmicas existentes na França, e depois cultivada por muito tempo em um dos melhores e mais sólidos focos de ensino de filosofia do Brasil, aliás reconhecidamente (e com toda razão): o Departamento de Filosofia da USP — que no entanto articulou ao longo de sua história, sob o signo dessa leitura estrutural, precisamente o que procuro combater aqui. Trata-se de uma redução do campo das práticas filosóficas no país que precisa ser superada (eu diria inclusive urgentemente, já que estamos em formação de uma democracia mais sólida... diria... se o próprio regime de "urgência" não fosse algo por princípio antifilosófico, segundo meu próprio modo de ver a questão).

A redução do campo da filosofia à leitura de textos tem sido acompanhada, aliás, de uma a meu ver ainda mais grave (e menos fundamentada filosoficamente), em que as diversas áreas da filosofia tendem a ser tratadas como especialidades à maneira da ciência, como se um estudioso da filosofia pudesse (ou devesse) dedicar-se a uma especialidade considerada isoladamente. A (in)compreensão a meu ver não apenas errônea, mas extremamente perniciosa para o aprendizado filosófico, de que haveria especialidades em filosofia que poderiam ser estudadas isoladamente, por um estudioso especializado apenas naquilo, a meu destrói o próprio cerne do que se pode compreender como fiosofia.

Isto é agravado enormemente pelo desconhecimento do assunto por parte dos estudantes principiantes, levados a crer que é assim que se pratica filosofia — apesar de os próprios clássicos da filosofia por ele estudados patente e flagrandemente não fazerem isso, pelo contrário, jamais se limitarem a uma "especialidade". Nem sempre é claro para um jovem estudante que a proposta uspiana da leitura estrutural pretende formar comentadores de textos de filosofia que não seriam eles próprios filósofos. Mas o fato é precisamente este. Esta é a proposta que acompanha tal redução de campo. E ela significa, literalmente, a morte da prática de filosofia, e não a prática de filosofia em si mesma. Recentemente, em contato com um grupo de jovens estudantes da USP em uma reunião informal, ao saberem que era um estudioso de filosofia, fui abordado com essa pergunta estarrecedora (a meu ver absolutamente absurda): — E qual a sua especialidade em filosofia?

A pergunta não traria nada de assustador e chocante, para mim, se não viesse claramente acompanhada de um sentido limitador, como o das especialidades em ciência. Seria preciso esclarecer a esses jovens que um "especialista" em algo, quando se trata de filosofia, é nada mais que alguém que tem certa preferência pelo estudo de temas ou autores específicos. Mas o estudo de um tema filosófico — qualquer que seja ele — força necessariamente à consideração não-especializada de inúmeros outros temas. O estudo de uma obra filosófica, igualmente, força necessariamente à consideração não-especializada de inúmeros outras, inclusive de outros autores (ao contrário do que o método da leitura estrutural tende a presumir). E o estudo de um filósofo força necessariamente à consideração não-especializada de inúmeros outros filósofos. 

Contudo ainda pior, em um primeiríssimo nível de gravidade, o mais problemático nesse modo de se compreender os estudos de filosofia é a tendência a bloquear o exame filosófico direto de realidades, para além do escrito nos livros.

 

Posicionamento quanto ao debate Flusser X USP (nunca realmente ocorrido)

Este debate com o Departamento de Filosofia da USP foi provocado persistentemente pelo filósofo ensaísta Vilem Flusser — ao qual me sinto biograficamente ligado por laços de formação e de afeição à sua família — durante o período de seu desenvolvimento filosófico no Brasil, mas tais provocações foram quase sem resultado. Apesar de minha formação flusseriana, optei (rebeldemente) já em minha fase de adolescência por inserir-me no Departamento de Filosofia da USP como aluno, e compreender também o outro lado do debate tão provocado e não ocorrido.

Confesso que, durante a quase uma década que levei para concluir o curso, me senti frequentemente como uma especie de espião. Era um aluno assiduo, capaz de seguir mais duas ou três vezes uma mesma disciplina depois de já a ter cursado porque o professor era outro, e queria captá-la de outro ponto de vista... no entanto, também frequentemente cursava uma disciplina sem entregar os trabalhos finais, quando havia cobrança de que fossem feitos na forma de leitura estrutural — o que era muito comum. O curioso é que eu era particularmente bom na tal leitura estrutural... fazia muito bem a coisa, quando finalmente me decidia a fazê-la. Mas era um serviço que considerava irritante, e no qual a muito custo acabei aprendendo a ver alguma utilidade — a meu ver, aliás, uma utilidade bem menor do que a campanha da maioria dos professores nesse sentido tendia a alardear, avaliação que ainda hoje, já com doutoramento em filosofia, assino em baixo.

Dos professores que, na USP, nos cobravam leitura estrutural (e que eram a grande maioria), o único que me parecia dar à coisa a medida certa (a de um mero instrumento auxiliar introdutório, que deveria garantir um mínimo de objetividade nas leituras para que pudéssemos logo em seguida refletir de fato sobre as questões postas por elas) era o professor Oswaldo Porchat Pereira, o cético neopirrônico do departamento — muito respeitado e que havia sido professor de grande parte dos outros professores. Os demais, quando propunham o método de leitura estrutural, normalmente empurravam a reflexão efetiva sobre os assuntos para um horizonte futuro apenas posterior ao curso de Filosofia naquele Departamento... e a seguir o exemplo deles próprios, esse horizonte deveria se tornar um ideal inatingível, pois seus textos publicados se limitavam no máximo a pontuar timidamente um mínimo passo aqui e ali de relfexão para além de meros esclarecimentos dos textos de filósofos clássicos.

Reflexões diretas sobre a realidade brasileira de um ponto de vista filosófico estavam fora de questão: isto, para a imensa maioria dos meus professores na USP, simplesmente não era filosofia... era aquela outra coisa, aquele ensaísmo inferior, praticado por pensadores sentenciados metodologicamente inconsistentes, como Flusser. O interessante é que nenhum deles se dispunha a de fato ler estruturalmente a obra de Flusser antes de decretá-la metodologicamente inconsistente. A leitura estrutural, para eles, estava reservada apenas aos grandes clássicos já historicamente reconhecidos, não era utilizável como ferramenta para a análise crítica de um texto atual — se fosse, asseguro, traria muitas surpresas aos nossos contidos leitores estruturais, que pressupunham inconsistências metodológicas no que não haviam chegado sequer a explorar em busca delas.

 

Benefício (e contaminação) de uma formação uspiana
sobre um "espião" flusseriano

Como resultado dessa minha camada "fria" uspiana de formação, derramada por sobre o magma flusseriano em mim, adquiri no entanto algo que meu genitor filosófico não possuía: uma certa paixão pelas "aborrecidas" questões metodológicas.

Talvez também como resutado dessa camada de formação uspiana, minha avaliação quanto ao não desenvolvimento desse debate com Flusser confirmou e reafirmou cada vez mais firmemente, ao longo dos anos como aluno do Departamento de Filosofia da USP, as mesmas suspeitas iniciais que haviam me levado a ingressar naquele curso: que parte do não desenvolvimento do debate se deve também ao próprio Flusser.

Digo que parte do não desenvolvimento desse debate se deve ao próprio Flusser, pelo fato de ele não ter buscado compreensão do ponto de vista adversário. Creio que teria obtido muito maior resultado em suas provocações se tivesse procurado dedicar-se mais a questões metodológicas.

Por outro lado, é preciso observar que Flusser não era nem pretendia ser um metodólogo em filosofia, isto não estava no centro de suas atenções (embora tenha refletido bastante também sobre esse assunto, em alguns de seus textos menos conhecidos e difundidos). E é preciso observar também que, para além do filosoficamente justificável, havia no Departamento de Filosofia, uma evidentíssima e indisfarçável dose (poderosa) de preconceitos anti-ensaísticos e favoráveis especificamente ao método da leitura estrutural, de modo que nada atiçaria sequer a consideração da relevância de um debate, ali, se não fossem levantadas críticas especificamente àquele método e a partir de algum outro ponto de vista igualmente meticuloso do ponto de vista metodológico.

A prática filosófica de Flusser é sim, meticulosa em seus aspecto metodológico (aliás, muito, embora ele praticasse isso rápida e fluentemente, porque a meticulosidade estava muito incorporada nele), mas a reflexão metodológica que faz sobre sua própria prática filosófica é esparsa e pontual em sua obra, tratada por ele próprio como uma questão em segundo plano, ainda que importante. Essas reflexões  nunca foram destacadas pelo próprio Flusser, e sua detecção no conjunto da obra dele exige estudo. Destarte, digo que o modo como Flusser procurava provocar o debate com os acadêmicos uspianos era ineficaz. Eles teriam que estudá-lo para poderem chegar ao que lhes pareceria relevante debater com ele... mas quem queria e pedia o debate era Flusser, não eram eles.

 

 

Pontos de partida para os estudos metodológicos
a serem desenvolvidos aqui (sob o signo da contraposição e da polêmica)

O tema desta seção, entretanto, não é a polêmica Flusser-USP, mas a questão do método em filosofia e das práticas que caracterizam a filosofia — e como decorrência, a questão do próprio conceito de filosofia.

Como pontos de partida, tomarei criticamente:

  • o livro de Dominique Folscheid e Jean-Jaques Wunenburger, Metodologia filosófica (São Paulo: Martins Fontes, 2002), que se dedica à leitura e ao comentário de textos filosóficos, circulando portanto no mesmo campo da leitura estrutural — observação importante: este não é um texto-referência básico para a compreensão profunda do método da leitura estrutural, é apenas um material didático de perfil muito sensato e útil que aponta em direção bastante próxima. (Para uma real compreensão do método da leitura estrutural aqui criticado, pesquise-se sobre Mathiau Gérroult, e para compreensão da versão bem mais moderada praticada por décadas a fio pelo Departamento de Filosofia da USP, combine-se o mesmo Guérroult com Victor Goldschmit, igualmente visado pelas críticas a serem desenvolvidas aqui);
  • alguns princípios gerais do livro de Mario Ariel González Porta, A filosofia a partir de seus problemas: Didática e metodologia do estudo filosófico (São Paulo: Loyola, 2007) — que avalio como o primeiro a abrir (ainda demasiado timidamente) uma via metodológica para a crítica da leitura estrutural no Brasil, infelizmente não explorando até o fundo consequências mais radicais interessantíssimas que poderiam ser extraídas de sua proposta;
  • os princípios metodológicos propostos por Pierre-Joseph Proudhon para estudos filosóficos e científicos, em diversas de suas obras;
  • os princípios metodológicos colocados pontualmente por Flusser, de maneira dispersa, em diferentes obras suas.

Os estudos aqui apresentados serão, basicamente, passos no processo de uma construção metodológica pessoal para as práticas filosóficas (incluindo a leitura de textos, mas não se limitando a ela), que começam pelos pontos de partida acima mencionados, mas irão colher material também em diversas outras obras e autores. Essa construção, de minha parte, já está muitíssimo mais avançada (com pelo menos duas décadas de avanço) em relação ao que o leitor encontrará aqui, mas isto não significa que os textos desta seção do site serão apenas material antigo "coletado" de minhas velhas anotações: esse material, aqui, estará em processo atual de autocrítica e revisão. Coisa que poderá ser acompanhada pelo leitor.

 

 

Postura geral em relação especificamente à leitura estrutural,
foco maior dos elementos críticos avançados nestes estudos

A postura geral na crítica mais direta à leitura estrutural será a de mostrar como estão implicadas nela própria as sementes de sua contradição rumo a algo que poderia ultrapassá-la no sentido do que pode ser chamado de uma escritura estrutural  — que deveria servir de base pedagógica inclusive. Entretanto, procurarei demonstrar (por exemplo via Flusser) que a mera leitura e escritura de textos (em linguagem estritamente verbal) não basta à prática filosófica, não atinge por si só o mínimo necessário para que uma prática reflexiva seja sequer aceitável como filosófica. Como na verdade os mais consistentes entre os próprios defensores da leitura estrutural concordariam, pois são professores que se dedicam à formação de futuros comentadores de textos filosóficos, e não de futuros filósofos.

Há nisto uma espécie de megavalorização da filosofia e de auto-humilhação perante a "grandiosidade" dela que, disfarçada de humildade, é a meu ver uma postura de indireta arrogância de dimensões assustadoras, pois coloca a filosofia, ou seja, o campo de atuação desses seus "fiéis serviçais", como algo especial e "superior" às demais atividades humanas, coisa com a qual absolutamente não concordo. Um filósofo é tão importante quanto um bom pedreiro, nem mais, nem menos — isto é: tem sua importância avaliável segundo aquilo que a filosofia, enquanto atividade humana, se propõe a fazer. Exatamente como ocorre com a atividade de pedreiro.

Essa equivalência em importância não significa de modo algum a desconsideração das especificidades dessas atividades, que revelam suas respectivas importâncias, é claro, em contextos de uso inteiramente diferentes.

 

O caráter histórico do debate em relação à
redução da prática filosófica pela leitura esturtural

Através do debate de Pierre-Joseph Proudhon contra o ecletismo francês de Victor Cousin no século XIX, procurarei demonstrar que o debate brasileiro não ocorrido entre Flusser e USP foi em parte o eco natimorto de um debarte histórico mais antigo, em torno da questão do ensino de filosofia, o que implica discussões de caráter político, envolvendo a política educacional brasileira (como de modo similar, já implicava discussões sobre isso na França de Proudhon versus Cousin).

A herança francesa na filosofia brasileira não se limitou ao método da leitura estrutural: trouxe também um certo gênero de interpretação e fundamentação hegeliana (à moda de Cousin) deste método, e do que ele implica em termos de ensino de filosofia, implicações cujas decorrências políticas fizeram o anarquista Proudhon, na época, sublevar-se contra isso.

A polêmica que Flusser pretendeu e não conseguiu levantar em confronto com o Departamento de Filosofia da USP (de maneira bem mais simpática e menos agressiva aliás, em comparação com Proudhon frente a Cousin ma França) tinha sentido muito similar, ligado à questão da aplicação direta da filosofia ao exame da realidade — este assunto foi aliás mencionado logo de início em minha defesa de tese de doutoramento sobre Proudhon, na PUC de São Paulo — já que havia um (aliás muito simpático e querido) antigo professor meu da graduação, na USP, entre os membros da banca examinadora (que procurou, é claro, minimizar minhas críticas e defender o Departamento de Filosofia da USP... mas insisti nas críticas, como sigo insistindo ainda hoje).

 

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