por João Borba, em Março de 2013
1. Transgressão é uma atitude humana de ruptura de limites quando essa ruptura é considerada proibida, inaceitável ou chocante, impactante.
2. A ruptura de limites é uma das faces da liberdade, e nesse sentido tende a ser sedutora. A transgressão intensifica os efeitos psicológicos dessa ruptura de limites, o que pode incluir o efeito de sedução, e pode vir a intensificar também os efeitos práticos dela.
3. Essa face da liberdade, se for considerada isoladamente e não tiver efeitos práticos alteradores da pessoa ou do que há ao redor dela, pode se tornar uma liberdade ilusória.
4. Por outro lado, se tiver efeitos práticos desse tipo, e principalmente se for considerada de maneira privada, sem levar em conta os outros envolvidos (indivíduos e grupos), essa liberdade considerada isoladamente na sua face transgressiva ou de ruptura de limites (sem a face "construtiva" da liberdade), pode se tornar perigosa — inclusive para a própria liberdade, isto é, por causa de seus efeitos pode se tornar uma espécie de suicídio da liberdade, destruindo seja a liberdade dos demais envolvidos, seja a do próprio transgressor.
5. A face "construtiva" da liberdade é a que constrói, cria, novos limites (novos parâmetros de ação, comportamento, sentimento, pensamento etc.) — que podem mais tarde vir a se tornar alvos de novas transgressões, se a sua estrutura passar a ser considerada "inaceitável" ou "proibida".
por João Borba - original manuscrito de 07/09/2008
(a partir de uma outra formulação ainda anterior, de junho de 2004)
e digitalizado aqui (com correções) em Agosto de 2013
A proposta aqui é a de considerar as relações de poder estritamente do ponto de vista dos seus possíveis resultados, construindo a partir deles o esboço esquemático de uma tipologia geral dessas relações. Vou procurar descrever resumidamente esses tipos gerais de relações de poder um a um.
Esta é a relação que resulta no poder de um polo sobre o outro, que se conclui com um polo dominando o outro, ou que, em seu balanço final, consideradas suas oscilações, se resume a isto.
Esse tipo de relação se subdivide em outros dois:
1a) a relação de poder em que o agente com maior iniciativa se torna o polo dominante, e retira iniciativa de seu seu objeto de ação, que se torna o polo dominado (relação de dominação);
1b) a relação de poder em que o agente de maior iniciativa se torna o polo dominado, transferindo sua iniciativa para o seu objeto de ação, que se torna polo dominante (relação de autosubmissão, ou servidão voluntária).
Chamarei esse primeiro tipo de relação de desempoderamento, guardando a ideia de que podem haver ainda outros tipos de relação de desempoderamento. Nestas relações, a somatória das forças de enfrentamento, das forças de oposição — de resistência ao outro e de alteração do outro ou de suas condições — é extremamente baixa, ou nula.
Note-se que para considerar a situação deste modo, é preciso considerar as coisas tal como se visualiza o seu desenvolvimento mais extremo e completo, no balanço final das forças em jogo — expressão que admite oscilações da situação, mas toma a relação em seu resultado médio mais estável e também imaginando-a desenvolvida até o fim do desenvolvimento do processo de relacionamento, conforme o sentido para o qual esse processo efetivamente parece caminhar, ou pelo menos até o momento em que o processo parece estabilizado nas condições em que está, sem expectativa de grande alteração nessas condições.
Um possível questionamento: se o resultado médio no balanço final do jogo (com o processo de constituição da relação concluído ou pelo menos estabilizado) é de fato um polo dominante e um dominado, poderíamos ainda imaginar a situação em que o polo dominante exerce uma força constante para manter o outro dominado, mas o outro ainda exerce uma resistência constante e forte o suficiente para exigir esse esforço do polo dominante.
Neste caso, poderíamos dizer que a somatória das forças de oposição exercida pelo conjunto dos polos não é tão baixa, e isto tornaria difícil compreender por que estou chamando esse tipo de relação de relação de desempoderamento...vejamos: se pnsarmos vetorialmente nas forças em jogo, isto é, considerando os sentidos das ações envolvidas, e atribuirmos valor 10 à força com que um polo A se opõe ao sentido da ação de um polo B (força de valor 10 atuando a arrastar esse polo B no sentido de ação do polo A), e em comparação a essa força concluirmos que devemos atribuir um valor 2 à força de resistência de B (isto é, uma força de valor 2 puxando A para o sentido da ação de B), a somatória dessas forças será 10 menos 2, portanto uma força total de valor 8 arrastando o par AB no sentido da ação do polo A... e uma força de valor 8 aqui parece alta.
Entretanto não estaríamos somando exatamente os exercícios de poder envolvidos. Continuemos então a atribuir valor 10 à força do poder exercido por A sobre B, e valor 2 à força do poder exercido por B sobre A, mas calculemos então de outro modo: quanto poder é exercido por cada polo sobre o outro, e qual a soma desses poderes exercidos? A soma é 12! Parece ainda mais alta, e ainda mais estranho qua digamos que essa relação deva ser chamada de desempoderamento!
Entretanto, visualizando a situação em seu caso mais extremado, segundo o sentido final e global para o qual ela aponta — ou em termos mais simples, considerando a relação pelos seus resultados (ou pelo que é resultante), as coisas ficam diferentes. Trata-se de uma relação que aponta para a dominação de A sobre B, e é isto o que se precisa considerar como seria em seu caso mais extremo.
E o que se deve observar, então, é o seguinte: no caso mais extremo de dominação de um polo A sobre um polo B, a oposição se anula. O sentido da ação do polo dominado passa a ser considerado como mero complemento no sentido da ação do próprio polo dominante. A relação entre os polos seria mínima, tendendo à fusão entre eles, ou melhor, à absorção do polo dominado (no caso o que chamamos de polo B) pelo polo dominante (aquele que chamamos de polo A) em uma mesma e única unidade de ação. A baixa resistência do polo B atingiria o nível do irrelevante, e no balanço final do jogo teríamos, em suma, naquilo que se pode considerar relevante para todos os efeitos, apenas um polo A, um único sentido de ação (dentro do qual teríamos a ação do polo B como um complemento interno à própria ação de A).
Neste caso, não há mais exercício de poder relavante a ser considerado na somatória: o resultado da relação de poder foi, precisamente, que todo exercício de poder relevante o suiciente para ser considerado na somatória reduziu-se a zero, visto que, sem resistência de B que lhe exija isto, também o polo A não precisa mais exercer poder sobre ele: sua dominação é completa, não carece de exercício de força sobre o outro polo. Como resultado, o que temos é precisamente o que deve ser chamado de desempoderamento do conjunto, visto que o poder só pode ser compreendido como força de oposição que reside em algum polo de relação e se exerce sobre outro, e que portanto se exerce pelos polos envolvidos na tensão entre eles. A força com que a ação do conjunto AB se desenvolve em um único sentido já não deve ser compreendida como "poder", pois se dá como que inercialmente, sem que resida em um polo exercendo-se sobre outro... no caso, reside sobretudo em A, mas não se exerce sobre resistência alguma.
Essa força pode tornar a ser considerada em termos de poder na medida em que esse conjunto AB, com sua força, exerça pressão sobre um outro polo externo (digamos C), para arrastá-lo (força de arraste de C no sentido da ação de AB), e C exerça uma força relevante de resistência a essa força de arraste do polo AB. Neste caso, o polo AB, se dominar a ação de C mas não sem resistência relevante, exerce poder externamente, sobre C, mas esse exercício de poder não é manifestação de um exercício de poder interno, porque na composição interna do polo AB, como vimos, já não há exercício de poder, mas a simples absorção da ação de B no sentido da ação de A, a simples complementação da ação de a pela ação de B.
Creio que seria bastante proveitoso repensar algo do que Nietzsche diz a respeito das relações de poder a partir destas considerações — porque na verdade é o que está no horizonte delas. Trata-se de acompanhar certas revisões críticas que Flusser faz do pensamento nietzscheano para fundamentar sua crítica à tencocracia, ou indo além e estendendo a noção flusseriana de "aparelho" aos "aparelhos burocráticos" (extensão na verdade já operada sim diretamente pelo próprio Flusser), para fundamentar uma crítica à tecnoburocracia.
A tecnoburocracia tende a ser desempoderante para os polos envolvidos ao mesmo tempo que (e precisamente pelo fato de que) reduz resistências a uma ação que se exerce em um sentido único dado. Produz-se resultado eficaz mas curiosamente em condição de desempoderamento dos envolvidos — o que acaba por incluir desempoderamento quanto ao controle do sentido que será tomado por essa ação, mesmo para os polos "dominantes" no conjunto... mas esta já é uma outra discussão, ligada à questão da importância do exercício de poder (frente a resistências relevantes, desafiadoras) na própria formação dos polos envolvidos, que só conseguem responder por suas ações na medida em que possuem, justamente, alguma formação, alguma forma que lhes é própria e única, singular, que os caracteriza.
Mas retornemos por ora àquele nosso raciocínio tipológico seco e aborrecido, para podermos mais tarde colher nele todo o proveito que ele tem a oferecer.
Pode-se dizer, então, dando continuidade ao raciocínio, que nas relações de poder deste tipo 1 há uma tendência à anulação da relação em uma unidade, ainda que heterogênea, feita de dois polos "internos" com um deles determinando o comportamento do outro. Quanto mais o polo dominante determina o comportamento do polo dominado sem ter o seu comportamento reciprocamente determinado por ele, maior a sua dominação sobre ele, maior o desequilíbrio de forças envolvido, e mais completa a caracterização de uma relação de poder de tipo 1 — de desempoderamento.
Na situação oposta a esta descrita como relação de tipo 1 (ou de desempoderamento), se houvesse dois polos desenvolvendo-se em sentidos bem diferentes, digamos contrárias, interagindo em condição de equilíbrio de forças, a tensão entre eles seria maior, e poderíamos examinar se ela acrescentaria às suas forças individuais somadas... destarte, também a somatória das forças envolvidas seria maior. A consideração disto exige a ultrapassagem do raciocínio de tipo meramente matemático, pois seria preciso considerar qualitativamente os polos envolvidos, suas ações e a interação entre elas.
Também há uma outra coisa ainda não considerada suficientemente aqui, e que precisaria de elaboração mais cuidadosa: as ações dos polos envolvidos têm uma certa força com que se exercem, e um certo sentido em que se exercem, portanto são vetoriais. As relações de força entre vetores de ação não deixam de estar presentes e de ser relevantes mesmo que o exercício do poder em si não deva ser somado de maneira vetorial. Isto quer dizer que raciocinar apenas com a ideia de que cada uma pode ter mais força ou menos para arrastar a outra em sua direção é uma simplificação extremada e que distorce os fatos, porque essas direções podem não ser pura e simplemente contrárias.
Mas essa simplificação inicial é pedagogicamente útil. Deixemos para complicar um pouco mais as coisas depois, quando tivermos entendido o raciocínio básico que está sendo seguido aqui. Por enquanto trabalhamos como se as forças em oposição nas relações de poder tivessem sempre pura e simplesmente sentidos contrários. Mais tarde raciocinaremos efetivamente com interações entre vetores como contexto dentro do qual ocorrem os exercícios de poder — isto é, com a ideia de que numa relação de poder duas forças podem não se exercer uma sobre a outra em sentidos simoplesmente contrários, mas em sentidos apenas divergentes, diferentes, podendo haver então um sentido de ação resultante que não é nem o da ação de um dos polos nem o da ação de outro, mas um sentido intermediário, mais puxado para perto do sentido de ação da força dominante.
Quando falamos em exercícios de poder, suas forças não devem ser somadas vetorialmente, porque não se confundem com a simples força da ação que se exerce em um sentido ou em outro, mas o sentido em que se exercem esses poderes em seu resultado pode sim ser calculado vetorialmente.
Para que isto fique claro, note-se bem, entretanto, que quando falo em poder, estou falando da força exercida por um polo sobre outro, e quando falo em somatória de poder presente em uma relação, estou falando da somatória de poderes exercidos deste modo, de um polo sobre outro, não estou falando da simples somatória de forças vetoriais, que é uma outra coisa, pois implica um cálculo diferente. Se dois polos de ação exercem forças de sentido contrário um sobre o outro, a somatória vetorial dessas forças, considerando que são de sentido oposto, teria que ser calculada subtraindo uma força da outra. Mas a somatória do poder envolvido é outra. O poder exercido por um polo sobre o outro se soma simplesmente ao poder exercido pelo outro polo sobre este primeiro, porque estamos tentando compreender apenas quanto há de poder sendo exercido ali.
Mas deixemos essas complexificações do raciocínio para mais adiante. Vamos por enquanto pensar no mais simples. Guardemos apenas a ideia de que um dos critérios gerais desta tipologia é justamente esse quantum de poder envolvido — quanto poder está sendo exercido ali, independentemente de quem o exerce. O outro critério é se esse quantum de poder está distribuído equilibradamente entre os polos ou não. E a tipologia, tal como está construída aqui — e em sentido oposto ao raciocínio de Nietzsche quanto a isto, aproximando-se mais de Proudhon e de Flusser — considera o desequilíbrio como condição desempoderante, de desadensamento de vitalidade (fazendo aqui a mesma associação que Nietzsche entre exercício de poder e vitalidade)... precisamente porque o desequilíbrio é o caminho para a anulação, o cancelamento, da tensão vitalizante caracterizada pelo exercício de poder.
Dialogando con Nietzsche, podemos dizer o seguinte: neste sentido, o desequilíbrio é a armadilha capaz de enganar o polo dominante, conduzindo-o à sua ruína em conjunto com o polo dominado. Porque manter-se dominante sem completar essa relação de domínio eliminando totalmente a tensão das resistências implicaria um pathos de contenção que não faz sentido para o forte nietzscheano. E eliminar a tensão (segundo o próprio nietzsche) é eliminar a própria existência de qualquer força, porque ela é pura e simplesmente um diferencial de forças. Por isso é que o forte nietscheano tenderia a se aborrecer rapidamente com sua condição dominante no exercício de poder, e a buscar amigos contra os quais pudesse gerrear em condições de equilíbrio (isto é interessantíssimo para uma boa leitura do início do mito de Gilgamesh, aliás).
De modo que a intuição dos anarquistas (fervorosos cultivadores da tensão em equilíbrio de forças) ao se apropriarem do pensamento nietzscheano foi tão perspicaz quanto foi tola de outro lado, estúpida, a apropriação em sentido oposto desse pensamento pelos nazistas (fervorosamente dedicados à eliminação de qualquer tensão ou resistência contra eles).
É a relação que resulta em um equilíbrio de poder entre os polos envolvidos.
Este tipo de relação também se subdivide em dois outros:
2a) relação de equilíbrio "forte" entre as forças envolvidas (que também podemos chamar de relação de empoderamento)
2b) relação de equilíbrio "fraco" entre as forças envolvidas (que também podemos chamar de relação de desempoderamento de tipo 2)
A relação de tipo 2a, ou de equilíbrio forte, é aquela em que, no balanço final e no seu desenvolvimento mais extremo e completo, tem cada polo seu determinando o comportamento do outro tanto quanto o seu comportamento é determinado por ele — é claro que em média, considerando as oscilações nesse equilíbrio.
Mas além disto, o equilíbrio se dá no sentido de um aumento das forças de confrontação em cada polo, um aumento das forças de oposição, isto é, das forças com que cada polo resiste ao outro mantendo sua independência, e das forças com que cada polo age sobre o outro no sentido de alterar-lhe o comportamento.
A relação de tipo 2b, ou de equilíbrio fraco (que é também uma relação de desempoderamento), mal chega a ser propriamente um tipo, porque é mais propriamente uma posição intermediária entre as de tipo 2 e as de tipo 3 (que ainda examinaremos). Isso porque se o sentido da relação que se esboça no tipo 2b (equilpibrio fraco) é visualizado em sua realização mais extrema e completa, a relação se desfaz em duas unidades uma alheia à outra no que diz respeito às relações de poder, e isto é precisamente o que caracteriza o tipo 3.
Mas pode ser muito útil demarcar essa posição intermediária — como aliás também pode ser útil demarcar aquela posição que não caracteriza ainda a visualização do resultado extremo e completo das relações de tipo 1 (posição na qual o polo dominante exerce constantemente seua força para manter-se dominante em relação ao polo dominado, que por sua vez exerce constante resistência a ele).
Esses pseudotipos cuja demarcação é útil entre os que são efetivamente tipos de relações poderiam, na verdade, ser chamados de "pseudotipo 1c" (ou pseudotipo da dominação impompleta) e "pseudotipo 2b" (ou pseudotipo dos pequenos equilíbrios de micropoderes).
É útil demarcar as relações de dominação incompleta porque estão entre as mais comumente encontradas nas relações humanas, e como de fato apontam para — caminham para, projetam-se rumo a — relações de dominação completa, podem gerar facilmente a prepotência (ilusão habitualíssima pela qual o polo dominante, ou o polo dominado, julga-se já em exercício de um domínio completo sobre o outro ou do outro sobre si, sem se dar conta de que isto não é um fato, de que a relação de domínio não está consumada e decidida). Tal ilusão tende a acelerar ou antecipar o processo de conclusão da relação em uma dominação completa.
Mas tal ilusão pode também (e muito frequentemente o faz) fixar-se no lugar da dominação completa. Os polos envolvidos na relação de poder podem atuar substituindo, em sua percepção, a dominação completa pela ilusão de que ela de fato já se consumou. Tem-se então uma situação de dominação ilusoriamente (mas eficazmente, pelo menos em caráter provisório) completa, que se mantém apenas porque a resistência não é exercida pelo polo dominado e/ou o polo dominante não a percebe, ou não a mede suficientemente bem (não percebe a sua extensão) — de modo que não se mobiliza mais para efetivamente completar o seu domínio.
Em tais casos (tão comuns) podemos verificar facilmente que, no julgamento do polo dominante e/ou do dominado, as resistências parecem ser já irrelevantes... quando na verdade ainda não são, e ainda poderiam alterar todo o balanço do jogo.
É interessante, por fim, demarcar o pseudotipo dos pequenos equilíbrios de micropoderes porque no cômputo geral de todo um conjunto de relações, esses pequenos equilíbrios, se muito frequentes, podem produzir efeitos de grande relevância que são muitas vezes difíceis de captar de onde surgiram. E que podem surpreender um polo dominante com baixa percepção dessas micro-relações entre os polos sob seu domínio. Mas atenção, é preciso não confundir "micropoderes" no sentido de poderes fracos em exercício, que é do que estamos falando aqui, com "micropoderes" no sentido da teoria político de Foucault. Em vista da popularidade do pensamento de Foucault é melhor inclusive evitarmos o termo "micropoderes" aqui para evitarmos essa confusão. Estamos falando apenas de poderes fracos e equilibrados uns com os outros em exercício.
Mas falemos um pouco sobre "microproderes" no sentido foucaultiano para esclarecermos de que modo esta noção de poderes fracos e equilibrados uns com os outros em exercício pode ser relacionada a esses "micropoderes".
La Boétie tem, neste sentido, uma interessantíssima avaliação do modo como, em sua época, o poder de um rei vai se manter apoiado na servidão voluntária de seus súditos: é que cada súdito abaixo do rei vai se satisfazer, por sua vez, com o seu próprio pequeno exercício de poder sobre alguém que está ainda mais abaixo na hierarquia, atuanto ele próprio como um pequeno tirano — que descarrega sobre seus dominados a tirania que sofre de quem está acima na hierarquia.
E assim, de baixo acima, a sociedade vai se organizando em uma vastissimamente ramificada árvore hierárquica de microexercícios de poder, de tiranias e servidões voluntárias que vão da base da árvore (o rei) até os últimos ramos fininhos da copa, até as últimas microscópicas relações de tirania e servidão. Não há resistência do dominado porque ele próprio se contenta em ser dominante em uma escala menor, sobre alguém que está abaixo dele, e em descarregar nesse seu dominado as injúrias que seu dominador descarrega sobre ele.
Mas o que ocorreria com essa estrutura se começasse a se espalhar o modelo das micro-relações de equilíbrio, em lugar do par tirania-servidão?... Será que é mesmo o rei o que está na base de tudo isso? Será que isto não pode ser reestruturado a partir da propagação de relações de equilíbrio de poder como aquelas entre os amigos por exemplo? — Esta é a indagação de La Boétie, que envolve aliás uma indireta referência elogiosa à sua própria amizade com o filósofo cético Montaigne, que tende a raciocinar na mesma direção. É a esta indagação laboetiana que Foucault de certo modo dá continuidade ao considerar os "micropoderes"difundidos nas mais variadas relações sociais.
Entretanto, aqui, nesta tipologia que estamos apresentando, já não estamos falando de pequenas instâncias de equilíbrio de poder em que o exercício de poder é no entanto intenso por parte dos envolvidos (o que, em sua proliferação, poderia ser sim revolucionário). Estamos falando de equilíbrios (entre instâncias de poder que descreveríamos como "pequenas" ou como "grandes", pouco importa) nos quais o exercício de poder é fraco de ambos os lados.
E neste caso específico (o de relações equilibradas, mas de baixo exercício de poder dos polos uns sobre os outros), as perspectivas deixam de ser animadoras quando retornamos a Foucault e a La Boétie. Estamos falando de uma desintensificação dos exercícios de poder — que são, como já mencionado de passagem a certa altura, uma das fontes da formação dos polos envolvidos, para que possam responder por suas próprias ações, com autonomia. Estamos falando, portanto, de um processo de despolitização, e não de uma revolução à moda foucaultiana, a partir das micro-relações de poder.
Na verdade, uma relação de equilíbrio fraco pode ser exercida tanto em pequenas esferas relacionais dentro de um contexto envolvendo muitas pessoas, quanto entre duas grandes esferas de poder, como dois partidos políticos, ou até dois países. Portanto de fato não estamos falando de maneira nenhuma das micro-relações de poder foucaultianas — embora nada nos impeça de dialogar com essa linha teórica.
Estamos então apenas esclarecendo aqui que, para a consideração dessas micro-relações de poder à maneira de Foucault, pode ser bastante útil demarcar o pseudotipo de relações de poder que estamos chamando de equilíbrio fraco — precisamente porque pode ajudar a diferenciar um processo revolucionário de multiplicação de pequenos equilíbrios de poder (intensamente exercido pelos polos envolvidos), de um processo de despolitização pela pulverização do exercício do poder em uma multiplicidade de micro-relações em que ele pode se exercer muito fracamente, sem que os polos se empenhem ou se interessem em interferir uns no sentido da ação dos outros: despolitização.
Existe algo aqui que precisa ser bem acentuado, e que talvez possa contribuir para a compreensão do que há de coerente no fato de um pensador libertário como Foucault valorizar algo como o exercício do poder. Normalmente se pensa no exercício do poder como algo que está necessariamente conectado ao desequilíbrio de forças entre os envolvidos, como se só houvesse exercício de poder quando há esse desequilíbrio. O que estou procurando demonstrar (e de modo que pode ser útil aos foucaultianos) é que a conexão supostamente necessária entre exercício de poder e desequilíbrio de poderes é uma falácia (como aliás já devia ser claro pela simples vigência da valha ideia democrática de um poder político exercido — e nem por isso menos exercido — por poderes que devem estar separados e equilibrados, o executivo, o legislativo e o judiciário). Exercer poder é uma coisa, que isto resulte em um desequilíbrio de poderes entre os que exercem esse poder uns em relação aos outros é coisa bem diferente.
Mais ainda do que isso: aquele exercício de poder específico que visa o desequilíbrio (e nem todo exercício de poder o visa necessariamente) tem como objetivo extremo, no horizonte, uma situação que será justamente de ausência do exercício de poder. De superação da necessidade de exercer esse poder (porque o outro polo já estará totalmente assimilado ao sentido da ação do polo dominante, como vimos).
E agora estamos falando de uma situação em que, mesmo em equilíbrio, o exercício do poder ainda assim se reduz. Por quê? Porque estamos falando de um equilíbrio que ocorre pela via de um nivelamento das forças por baixo, um nivelamento em que há menos exercício de poder de ambas as partes uma sobre a outra. Isto é muito diferente de uma situação em que as forças envolvidas se empenham intensamente no exercício de poder umas sobre as outras, e no entanto em condições de equilíbrio, cada uma interferindo muito na ação da outra, com interação intensa. Quando o equilíbrio de poder se dá por um nivelamento por baixo, com fraca interação no sentido de que cada polo exerce muito pouco poder de influência sobre a ação do outro, o que temos é a despolitização da relação.
Deixemos então por enquanto essas considerações sobre possíveis diálogos com a via foucaultiana e a via laboetiana, e voltemos à nossa seca e aborrecida tipologia para podermos entendê-la melhor. Ainda há muito o que esclarecer dela antes de começarmos a examinar o que ela oferece no exame de situações reais.
Vejamos. Nas relações de tipo 3 (que ainda não foram apresentadas em detalhe), que são relações às quais se chega visualizando a realização mais extrema e completa do sentido para o qual caminham as do pseudotipo 2b (equilíbrio fraco, entre pequenos exercícios de poder de cada polo um sobre o outro), o que ocorre? Assim como no caso do tipo 1, o que se manifesta no tipo 3 é a tendência à anulação do próprio caráter de relação, só que desta vez isolando os polos um do outro. É então de fato o que podemos chamar de alheiamento mútuo, ou despolitização equilibrada.
Neste caso, se continuar a haver relação, já não será uma relação de poder, já não será uma relação politizada — daquelas nas quais se põe em exercício o desafio da interação entre ações de sentido divergente. O desafio da interação com o divergente é traço característico incontornável de uma relação de caráter efetivamente político, de uma relação efetivamente politizada.
No balanço final e no seu desenvolvimento mais extremo e completo, as relações deste tipo 3 são aquelas em que cada polo determina tão pouco o outro, que já jão chega a haver propriamente uma relação de poder entre eles, embora possa haver relação de alguma outra espécie. Cada polo é alheio às relações de poder estabelecidas (ou não) pelo outro — isto é, cada polo é "terceiro" em relação aos jogos de poder nos quais o outro pode estar envolvido, porque não faz parte desses jogos. É "terceiro" naquele sentido em que se diz que uma relação "não diz respeito a terceiros"). O "terceiro", aqui, é o excluído da relação, ele não é polo na relação.
Note-se que as relações de poder dos tipos 1 e 3 são relações não apenas de desempoderamento do conjunto, no sentido de uma diminuição da somatória dos poderes em exercício envolvidos na relação, mas são também relações de despolitização.
Já aqueles dois pseudotipos 1c e 2b (desequilíbrio com resistência do polo dominado e equilíbrio entre poderes fracos, mas ainda poderes em exercício) podem ser considerados casos de relação de desempoderamento pelos fins para os quais tendem — tendem respectivamente para os tipos 1a ou 1b, e para o tipo 3.Também podem ser considerados relações de despolitização neste mesmo sentido. Mas em si mesmos, no momento em que se exercem e estão sendo realizados, sem terem ainda chegado aos seus fins, as relações dos pseudotipos 1c e 2b ainda são politizadas, ainda envolvem engajamento político dos polos relacionados.