sumário
Entrei em contato com os estudos de lógica na graduação em Filosofia, no Departamento de Filosofia da USP. Tinha enorme simpatia pela professora, mas profunda e visceral aversão pela disciplina, que consistia basicamente no exercício de cálculos de predicado e outras práticas da Lógica Elementar Matemática de Primeira Ordem. Apesar de odiar a matéria, era um dos dois melhores da classe (fomos os dois únicos a tirar nota máxima).
Mas dos dois, eu era seguramente o mais inadequado para os estudos lógicos, embora a (excelente) professora tivesse insistido muito para que eu me tornasse monitor da disciplina para ajudar outros alunos nela. Respondi que não seria possível porque para mim seria um pesadelo. Não escondia meu desgosto pela matéria. Achava que deveria ser uma disciplina optativa e não obrigatória como era.
Queria estudar filosofia da lógica, discutir filosoficamente os fundamentos do pensamento lógico em suas diferentes vertentes, e não ficar fazendo cálculos e resolvendo probleminhas lógicos, embora tivesse facilidade com isso. A professora, aliás, concordava comigo que a disciplina deveria ser optativa e não obrigatória.
Se digo que era o mais inadequado ––– e muito inadequado –– dos dois melhores alunos na matéria na sala, não é exagero: a lógica matemática é uma linguagem artificial extremamente abstrata com o uso da qual, como já disse, resolvemos problemas por meio de uma espécie de cálculo com operações similares àquelas da teoria matemática dos conjuntos, manipulando símbolos que representam conjuntos de unidades e as próprias unidades (ou termos) relacionadas nesses conjuntos (e também, é claro, os símbolos que representam essas manipulações, ou "operações").
Pois então: cheguei ao ponto de resolver uma prova inteira de lógica, problema após problema, cálculo após cálculo, sem usar nenhum dos operadores lógicos e nenhum dos cálculos propriamente lógicos, nem implicação nem conjunção nem disjunção nem coimplicação nem negação nem quantificadores universais ou existenciais... pelo menos nada no modo formalizado da lógica. Respondi tudo por extenso numa longa redação em linguagem do dia-a-dia, e acertei tudo, sem nenhuma escorregadela de raciocínio, sem uma vírgula de margem para erro ou interpretação equivocada –– embora uma das mais orgulhosas justificativas para a própria existência da lógica fosse, precisamente, a sua imensa precisão em comparação com a linguagem ordinária do dia-a-dia nos procedimentos de raciocínio (como eu sabia muito bem).
Cada mínimo gesto meu como aluno de lógica era uma declarada e assumida afronta contra a lógica, por mais que o fizesse sempre com enorme respeito pela (como já disse excelente) professora. De lá para cá, confesso com certa ironia, minha capacidade de precisão diminuiu ao invés de aumentar. Entretanto não estou tão preocupado assim com precisão logo à primeira redação do que escrevo, desde que possa corrigir depois. Minha lógica e patológica mania de "acertar" tudo com absoluta precisão logo na primeira tacada aos olhos dos outros foi superada. E é por isso que me permito tornar públicos esses rascunhos manuscritos ainda tão crus e já ultrapassados por mim.
Muitos e muitos anos depois de saído da faculdade, comecei a desenvolver algo similar a uma lógica, porque era também uma linguagem artificial e formalizada –– mas com fundamentos inteiramente diferentes daqueles da Lógica clássica matemática. Eu chamava aquilo de "linguagem ludoplástica". Mas o que desenvolvi era gigantesco e absurdamente, ridiculamente complexo e abstrato. Neste extato momento em que escrevo estas palavras, estou no ano de 2021, e esse material manuscrito que estou começando a publicar aqui é de aproximadamente uns 15 ou 20 anos atrás, quando ainda cursava a Pós-Graduação.
Hoje mantenho e continuo desenvolvendo, numa versão muito mais simplificada e muito mais prática e útil, essa mesma linguagem artificial. Ela agora combina algo da abstração formal da lógica com algo da topologia de Kurt Lewin e dos sociogramas de Jacob-Levy Moreno, e com uma versão muito peculiar e eclética de dialética, à qual chamo dialética multivariante. O que mantive da linguagem abstrata de formal da lógica é apenas o que chamo de princípio de formalização, no duplo sentido da palavra "princípio" –– pois trabalho com esse princípio, essa ideia, de formalização, mas por outro lado, propositalmente recuso avançar para além do princípio ou início do processo de formalização.
O que colocarei aqui em seguida é a antiga versão, excessivamente complicada e já superada por mim, dessa linguagem artificial que criei, com os seus fundamentos.
Apesar do título "Brigando com a lógica" que coloquei aqui, pode-se dizer que a "briga" não é tão intensa assim, uma vez que minha proposta de maneira nenhuma exclui a lógica. Apenas se apresenta em paralelo (à maneira de uma "paralógica", digamos assim) como uma proposta divergente que, utilizando até certo ponto a mesma ideia de criar uma linguagem artificial formalizada, faz isso em busca de algo bastante diferente e em certa medida oposto àquilo que é buscado pela lógica, visto que a "linguagem ludoplástica", apesar de sua abstração, se coloca a diretamente e desde seus fundamentos a serviço do manuseio de descrições ou do mapeamento de campos de ação, e da ação.
A Lógica (e falo principalmente da pura Lógica Clássica Elementar Matemática de Primeira Ordem) é em si mesma centrípeta em relação à abstração e centrífuga em relação ao mundo concreto e prático –– ainda que possa ser usada como instrumento para pensar sobre o mundo. A linguagem ludoplástica está também, de fato, num plano de alta abstração, mas está em si mesma e desde seus fundamentos virada em sentido oposto, centrípeto em relação ao mundo concreto e à ação nele. Lógica e linguagem ludoplástica têm propostas divergentes, mas não se excluem e podem coexistir.
Espero que a leitura seja útil para alguém como um jogo para exercitar o pensamento, ou como uma fonte de ideias, ou como uma maneira de compreender um pouco do caminho pelo qual vim a chegar num modo de pensamento (incomparavelmente mais simplificado e mais prático) que utilizo hoje, e que, apesar de diferente, ainda mantém muito dessa versão antiga especialmente em seus fundamentos.
O título que dei ao caderno no qual anotei tudo o que se verá a seguir foi: DIAGRAMAS. Símbolos da linguagem ludoplástica: Suas funções, sua semântica e sua sintaxe.
Começo por dois quadros esquemáticos em que listo e inter-relaciono a assustadoramente imensa quantidade de operações da linguagem ludoplástica, com seus respectivos símbolos. O título desses esquemas é Operadores descritivos (símbolos da linguagem ludoplástica).
Estou publicando, além da presente Apresentação, esses quadros esquemáticos, a Introdução, e o texto integral até a página 193, que é a última. Passarei em seguida, lentamente, a comentá-lo página por página, incluindo sua correção a partir de minha nova visão da coisa, atual, simplificada e mais prática.
Comentários de 5 de Junho de 2021
Comentário 1.
O primeiro ponto a comentar é a quantidade absurda de símbolos que havia criado originalmente para esta linguagem ludoplástica. Uma das grandes vantagens da lógica matemática está em ser uma linguagem simples, com poucas operações simbolizadas. Mesmo que os termos que irão ser utilizados nessas operações possam ser virtualmente infinitos, os símbolos que traduzem esses termos também são mais simples que os termos em si (são letras, acrescentadas de números quando precisam ser repetidas). Você traduz o que tem a dizer para a linguagem da lógica e cada dez páginas, digamos assim, se transformam em meia página ou menos.
Aqui já se vê que minha linguagem ludoplástica, na formulaçõ original, resumiria bem menos.
Além disso, nessa versão original dela, criei uma imensa variedade de símbolos ultra-personalizados para serem escritos à mão, sem nenhum paralelo com aqueles que podemos encontrar nos teclados de um computador, o que deixa bem mais complicado o trabalho.
Comentário 2.
Mas outra das razões pelas quais a lógica matemática resume tanto, está em que ela é muito seletiva quanto ao conteúdo do que estamos pretendendo exprimir. Desse conteúdo o que pode ser traduzido em linguagem lógico-matemática são apenas as afirmações que poderiam ser consideradas verdadeiras ou falsas. No processo de tradução, a lógica matemática recolhe apenas essas afirmações e joga fora todo o resto.
Afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas são afirmações do tipo "A é B", por exemplo "Sócrates é pai de Platão e de Protágoras". Para a lógica matemática, o fundamental aqui está no verbo ser, na palavra "é". É graças a essa palavra que poderemos dizer se aquilo é verdadeiro (se as coisas realmente são como estamos afirmando) ou se é falso. É o verbo "ser" que estabelece uma relação entre os termos Sócrates, Platão e Protágoras, mas também é fundamental o resto que determina como é essa relação, no caso se trata da relação "ser pai de Platão e Protágoras". Essa é a relação (que passa então a ser tratada como um conjunto, matematicamente falando).
Podemos então verificar se é verdade que o elemento Sócrates faz parte do conjunto em questão (se ele faz parte dos elementos que estão na relação "ser pai de Platão e Protágoras". Poderíamos raciocinar de modo contrário: afirmar que Platão e Protágoras estão na relação "serem dois filhos de Sócrates" (que fazem parte desse conjunto de filhos de Sócrates em que cabem dois elementos) –– e em seguida podemos verificar se essa afirmação é verdadeira ou falsa (válida ou não) do ponto de vista lógico.
Essa verificação não se faz observando se existem ou existiram realmente esses dois filhos de Sócrates no mundo, e sim comparando essa afirmação com um conjunto abstrato pré definido de quem seriam os elementos chamados "filhos de Sócrates" (aqui estamos esboçando questões de semântica da lógica, mas é ainda uma semântica com conteúdos puramente abstratos, e é só o que a lógica pura pode aceitar). Isso porque se formos verificar nos fatos se Platão e protágoras são ou foram filhos de Sócrates, já não estaremos verificando a validade puramente lógica da afirmação, do raciocínio, e sim fazendo uma correspondência da lógica com a realidade empiricamente observável. Estaremos saindo da lógica rumo ao positivismo lógico, que faz esse tipo de correspondência dos termos e predicados lógicos com relações (ou conjuntos) e elementos da realidade.
As operações da lógica matemática são então manuseadas para descobrirmos se tais afirmações são válidas ou não do ponto de vista lógico ("verdadeiras" ou "falsas" do ponto de vista exclusivamente da lógica, isto é, se a lógica do raciocínio pelo qual chegamos a elas não está errada, porque se estiver esse raciocínio as falsifica).
Comentário 3.
Note-se que, na lógica, há elementos, assim como conjuntos de elementos, e operações realizadas com esses elementos e conjuntos de elementos. Os elementos e seus conjuntos, ou termos e predicados, não se confundem com as operações entre eles. Na linguagem ludoplástica as coisas aqui se passam de modo inteiramente diferente (do ponto de vista lógico, escandalosamente inclusive), porque conjuntos de elementos e mesmo elementos podem se transformar em operações e vice-versa.
Comentário 4.
A linguagem ludoplástica que imaginei além disso não tem o mesmo objetivo que a lógica (de verificar se raciocínios são válidos ou falsificam o que afirmam) –– por isso ela já de saída não faz a mesma seleção das coisas quando traduzimos nela o que estamos dizendo (ou vivenciando, porque ela não traduz apenas sentenças, podendo traduzir diretamente situações). A linguagem ludoplástica não seleciona apenas afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas.
O objetivo é fornecer uma descrição simplificada das coisas apontando o que pode ser alterado ou não nelas, em que medida e como, ou seja, fazendo um mapeamento que as descreve como campos de ação. E possibilitar também a simulação de situações alterando esse mapeamento, de modo a proporcionar a possibilidade de planejamentos estratégicos. Também não é uma linguagem que pretenda resolver as coisas 'automaticamente" por meio de cálculos, mas apenas oferecer ferramentas auxiliares para que o próprio usuário possa decidir mais facilmente, por si só, como mapear o seu campo estratégico de ação.
Comentário 5.
De qualquer modo, a simplificação, a redução a poucas operações, é uma conquista preciosa da lógica, e neste sentido ela tem uma primeira vitória inicial sobre minha proposta antiga de linguagem ludoplástica. Entretanto essa proposta antiga mudou, e atualmente está muitíssimo mais simples, aproximando-se um pouco mais, nesse quesito, da lógica. Mesmo assim a complexidade ainda é maior.
Em meu último rascunho, de maio de 2021, cheguei a 9 pequenos conjuntos de símbolos –– cuja escolha não é tão importante e que não precisam ser exatamente estes, podendo ser alterados para cada usuário da linguagem ou até mesmo para cada operação realizada por ele, desde que a pessoa esclareça antes que símbolo está usando para cada operação... É claro que conseguir firmar mais ou menos os mesmos símbolos com uma certa permanência facilita as coisas e ajuda a evitar possíveis confusões por distração. Devido a facilidades mnemô icas e às condições do teclado de meu computador, estou procurando usar sempre os seguintes (anoto as teclas aqui apenas para minha própria consulta, a fim de facilitar meu uso até me acostumar com elas):
Esses recortes representam basicamente regiões topológicas, segundo uma noção similar à da psicologia topológica dew Kurt Lewin.
As operações de Desenraizamento podem ser reduzidas a uma combinação das outras, as Dosagens puras quase sempre podem ser reduzidas a uma única dosagem simples (%). Os Giros ou Reflexões, combinados às operações de Associação servirão para representar diferentes tipos de operações dialéticas –– dentro do que chamo de "dialética multivariante" (lembrando aqui que as operações são em primeiro lugar operações descritivas, de modo que se procuram captar e descrever relações que podem ser consideradas "dialéticas", segundo diferentes variantes dessa noção... por outro lado, sempre é possível procurar descrever uma ação que estamos realizando ou imaginando realizar). Outras das operações descritivas da linguagem ludoplástica podem participar também nessa detecção de relações dialéticas.
O praticante da linguagem ludoplástica não precisa utilizar necessariamente estes símbolo para representar as operações. Eu os utilizo porque me ajudam a lembrar a operação e são fáceis de produzir em meu computador.
Comentário 6.
Em parênteses: as operações descritivas da linguagem ludoplástica nunca são completas, no sentido de que já presupõem de saída que nunca podem se realizar com completo acabamento em todos os detalhes. Portanto suas descrições são sempre um esforço tateante, um tatear errante que se corrige a todo momento a partir da confrontação reflexiva (em giro reflexivo) com o indescrito ou indescritível, aquilo que não cabe na linguagem. Também se pressupõe uma relação assim entre a linguagem e o pensamento que raciocina estrategicamente, em que ambos, o raciocínio estratégico e a modelagem de situações e simulações em linguagem ludoplástica, vão se corrigindo mutuamente um pelo feedback do outro.
Comentário 7.
As operações dialéticas mencionadas (no Comentário 5) aparecerão sempre atuando num campo topológico (num sentido mais lógico-intuitivo do que matemático do termo), alterando as características de cada recorte do campo ou mesmo a própria topologia do campo. O conjunto dá forma ao que chamo de "topodialética".
Comentário 8.
Os significados de todas essas operações da linguagem ludoplástica e como lidar com elas ficará claro no curso dos comentários que irei fazendo à minha antiga versão da coisa.
Comentário 9.
Uma afirmação paradoxal e que pode deixar alguns perplexos –– mas que pode ser feita desde já –– é a de que esta linguagem artificial ludoplástica não precisa ser utilizada para ser utilizada, e inclusive já é em alguma medida utilizada quando raciocinamos estrategicamente sobre as coisas pensando-as como campos de ação, coisa que fazemos muito mais vezes no dia-a-dia do que normalmente percebemos. E quando a utilizamos, não é necessariamente preciso que utilizamos os seus símbolos: podemos construir mentalmente nossas esquematizações e simulações ludoplásticas e estratégicas das coisas.
Ocorre que nossos raciocínios estratégicos na vida corriqueira podem estar mais formalizados ou menos, e a linguagem ludoplástica pretende por um lado auxiliar nessa formalização de modo a torná-la proveitosa, e por outro ajudar a evitar que essa formalização "se aposse" do nosso pensamento em sentido centrípeto quanto à abstração, sem retornar ao concreto e produzir efeitos práticos, fazendo-a mais proveitosa especificamente nesse sentido prático.
Apesar de altamente abstrata, e de não deixar de ser útil também como mero jogo ou exercício de simulações estratégicas se for esse o interesse do usuário, ela é no entanto inteiramente construída visando o proveito prático de caráter estratégico para o raciocínio e os processos decisórios no mundo concreto, e para exercer um certo magnetismo centrípeto em relação a isso, centrífugo em relação à permanência no nível da pura abstração.
Comentário 10.
Uma última observação: trata-se de uma linguagem de dupla-face: uma face diagramática (linguagem de diagramas, ou mind maps) e uma face linear. Minha sugestão é que se dê muito mais atenção aos diagramas do que à linguagem em estrutura linear, porque se verificará que um mesmo diagrama pode permitir traduções diferentes na linguagem linear que utiliza os símbolos acima, e os diagramas normalmente traduzem ("mapeiam") melhor e mais facilmente as realidades e situações hipotéticas em jogo. Além disso, as dificuldades de tradução da linguagem diagramática para a linear, quando se leva com excessivo rigor o apego a esta última, podem levar a excessos perniciosos de abstração.
A linguagem ludoplástica foi feita para ser trabalhada em forma mista, ora diagramática, ora linear, com ênfase na primeira dessas formas. E foi feita também para ser utilizada parcialmente, entrelaçada com os raciocínios em linguagem natural.
Creio que esta última observação (especialmente no último parágrafo acima) coloca em sua devida dimensão até que ponto esta linguagem artificial ludoplástica difere da lógica matemática e se opõe ao sentido centrípeto desta última no que diz respeito à abstração.
(OBS.: As páginas iniciais estão em azul por falta de flash quando as fotografei. Preferi mantê-las assim ao invés de refazer as fotos, porque estão legíveis, e porque achei que ajudaria o leitor a se localizar no conjunto de todo o material ter algo em cor diferenciada a certa altura. Ele pode se lembrar por exemplo se parou a leitura antes ou depois "daquela parte em azul".)
A página 91 do caderno está em branco.