Bicho Político

Na seção Bicho Político (reflexões) você vai encontrar reflexões críticas mais aprofundadas e amadurecidas a partir do material bruto colocado inicialmente na seção Bicho Político (palpites) do Blog Quemdisse.
      Portanto o material sobre colocado no blog sobre ocorrências éticas e políticas do momento, escrito "no calor dos acontecimentos", será retomado em comentários mais densos, escritos aqui com maior cuidado e reflexão, com maior autocrítica e aprofundamento conceitual e filosófico, procurando destacar (e onde necessário, corrigir ou mesmo construir) a coerência do ponto de vista geral filófico que se procurou apressadamente exprimir naqueles artigos que estão no Blog.
  

     É provável que sejam considerados também, nesta revisão da teoria por detrás dos artigos, diversos comentários deixados por visitantes do Blog Quemdisse.

João Borba             

 

Bicho Político

sumário

 

Reflexões pessoais sobre Poder - 25 de Maio de 2021


 

Autonomização da acumulação de poder

Existem processos impessoais de acumulação de poder que tendem a automatizar-se –– assim como se autonomizam as instituições, conforme Castoriadis, ou os aparelhos, conforme Flusser. A base inicial disso está na sistematização e automatização de procedimentos humanos, que vão recebendo reforços por parte de aparatos técnicos desenvolvidos para beneficiarem essa sistematização.

Mas para além dessa base inicial, para entender o que digo há de se pensar ainda numa fonte profunda, a gênese disto, que se deve supor a partir de interpretação da segunda lei Física da termodinâmica, a lei da entropia — em seus efeitos sobre a ação e a vida humanas.

A acumulação de poder em um foco de adensamento — aqui entra a entropia — é a contraface de um campo muito mais amplo de desadensamento que cobre os outros possíveis focos relacionados a este, na medida em que este se exerce como poder sobre eles.

O foco de adensamento faz valer suas características subjugando e precisamente por isto (necessariamente) indiferenciando no mesmo movimento os demais, na medida em que os instrumentaliza, isto é, na medida em que lhes imprime uma forma útil que é gerada, selecionada, ou enfim decidida para esse uso, fora deles. Não é vantajoso para um foco de acumulação de poder manter-se dependente de características que são únicas e exclusivas de um particular foco subjugado por ele como instrumento.

Trata-se de poder impessoal. O poder pessoal é uma fantasmagoria inicial espetaculosa, que recobre o poder impessoal instrumentalizando em seu favor o seu suposto detentor pessoal –– mas isto ocorre deste modo na medida em que se vai completando a automatização do processo  de acumulação de poder, transofrmando em (ou revelando como) poder impessoal o que pode ter começado na aparência (na efetividade) como poder "de fato" pessoal.

 

Poder de realização eficaz e poder de controle sobre os outros

O poder, macro ou micropoliticamente falando, é um desequilíbrio nas condições de agir sobre o outro numa interação. Mas é também um poder de ação realizadora. Na medida em que completa o seu desenvolvimento, o processo de acumulação de poder vai submetendo todas as realizações que permite à realização do próprio objetivo de acumular mais e mais poder, e acumulá-lo num foco impessoal de adensamento.

A realização cresce na medida de sua eficácia, e sua eficácia é medida em termos de custo/benefício –– sendo esse "benefício" o avanço orientado em direção ao que se pretende realizar.

A realização pretendida é um valor positivo inscrito no sentido de movimento desse processo de realização. Valor "positivo" para esse sentido de movimento porque o processo em movimento, avançando nesse sentido, como que "busca" alcançar esse valor (essa realização valorizada, colocada como objetivo), pois "aponta" para esse com o vetor de seu movimento. Essa realização é valorizada precisamente por ser "buscada", "apontada" pelo vetor do movimento, e porque o movimento vai aproximando dela o processo que assim se move.

 

Condições de desequilíbrio no poder realizador

Pensemos nessas condições de desequilíbrio quando se trata do aspecto realizador do poder –– poder como poder de realização.

Na ação eficaz, diversos "objetos" são utilizados como materiais ou como instrumentos no processo da realização focalizada como valor. Mas o termo "instrumentos" pode ser compreendido em sentido mais geral, abrangendo também esses materiais. Entre tais "objetos" instrumentalizados, há sujeitos que, então, são objetificados, reificados, coisificados em alguma medida, e colocados nessa medida em condição de submissão ao poder realizador.

O poder (o desequilíbrio nas condições de um agir sobre outros) só é realizador na medida em que seja, direta ou indiretamente, o poder pessoal de alguém de realizar o que deseja. Já não faz sentido falar em realização quando o poder revela e atinge sua essência auto-acumuladora. O mais próximo que o poder pessoal pode chegar dessa essência é o poder dirigido pelo puro desejo pessoal de mais poder sem nenhum outro objetivo, caso em que o titular do poder se sente identificado com o próprio processo de auto acumulação do poder de que está fazendo parte. Mas ainda assim, ele é apenas um instrumento de um processo impessoal que está (e é quase certo que continuará) para além de seus limites, e esse processo impessoal não visa realizar nada para ninguém, não tem beneficiário visado, o que é o mesmo que dizer que, humanamente falando, ou mesmo vivencialmente falando, não realiza nada.

O poder realizador cuja realização se faz com a contribuição de sujeitos instrumentalizados, que são submetidos a ele como extensões suas sob seu controle, é poder também em sentido político precisamente por esse desequilíbrio –– que retira da decisão e do controle sobre a ação aqueles que lhe estão submetidos. O mesmo desequiíbrio (e portando o mesmo caráter político do poder realizador) será responsável a certa altura pelo colapso de sua própria eficiência, e por sua derrubada, devido ao que chamo de "idiotice intrínseca do poder" (do grego idios: o que está focado em si mesmo em detrimento do que lhe é externo) –– o que será esclarecido mais adiante. Mas o poder realizador não está necessariamente colado a esse desequilíbrio que faz dele também poder em sentido político.

voltar↑

Como o poder realizador pode se descolar da concentração de poder político

O poder realizador se descola do poder político na medida em que há condições de equilíbrio entre os envolvidos, tanto como beneficiários da ação quanto (e principalmente) como agentes no processo. Neste caso de equilíbrio, há politização maior no sentido de maior abertura à participação nas decisões sobre o uso do poder, mas essa mesma distribuição maior do poder político significa menor concentração dele, e nesse sentido, menor poder político, e correlativamente, maior participação conjunta no processo de realização — um poder mais socializado, mais social talvez do que propriamente político.

Essa menor concentração de poder político não significa de modo nenhum menor poder de realização, desde que os envolvidos sejam eficazes conjuntamente em condições de equilíbrio, coisa perfeitamente possível, mas que demanda um certo desenvolvimento dos envolvidos em termos de autonomia –– entra em cena aqui o que chamo de coeficácia, ou coeficiente de eficácia conjunta (o que pode ser mensurado, e poderia ser colocado num paralelo com os indicadores de desenvolvimento humano do IDH).

Advogo que o próprio processo de distribuição de poder pode, gradualmente, atuar como principal fonte de desenvolvimento dessa autonomia dos envolvidos (contra a autonomização dos processos de acumulação de poder), desde que estrategicamente bem direcionado nesse sentido pedagógico. O mesmo processo de distribuição de poder, no entanto, se for realizado subitamente e sem o tempo de digestão pedagógica do que está acontecendo pode resultar no contrário, servindo de combustível ao autoritarismo — como se vê nos processos de acumulação de poder na forma fascista, em que a vontade popular se volta de modo suicida contra si própria, tendendo a desautonomizar-se em favor de um foco de acumulação de poder.

Essa digestão pedagógica envolve uma utilização das instituições subvertendo a tendência delas para a total autonomia, buscando o controle popular delas. Mas sem destruí-las nem esvaziar-lhes o sentido. envolve utilizá-las de modo a quebrar a força contrária da intensificação das paixões, pois tal intensificação as transforma em combustíveis para a acumulação de poder.

Em suma, é preciso jogar com um certo jogo de equilíbrios entre a força das instituições e a força da paixão popular decisória — cada qual freiando as tendências autoritárias da outra.

Isto deve se realizar de modo a gerar condições de que a força da paixão popular decisória se desenvolva num apredizado de auto-contenção racional, num aprendizado de autocrítica — tornando cada vez menos necessária a força das instituições. As instituições devem ser mantidas com força equilibrada sempre que puderem ainda exercer esse papel pedagógico, mas devem-se buscar mecanismos para conter seu poder quando se tornarem instrumentos de pura acumulação de um poder desconectado da vontade popular. Jogá-las umas contra as outras e contra a vontade popular é o caminho natural para conter os excessos das instituições.

Desequilíbrio gradual em favor da vontade popular, pedagógico por parte das instituições, e racionalmente auto-controlado (com autocrítica desenvolvida gradualmente por esse processo pedagógico promovido pelas instituições). Não há contradição em colocar as instituições como instrumentos dessa pedagogia, porque não estariam em condição dominante nela: seria muito mais que isso uma pedagogia pela práxis, pela própria experimentação prática constante e gradualmente crescente do exercício da vontade popular, com as instituições apenas como aparatos auxiliares e de contenção de excessos autoritários.

 

No poder realizador ainda colado à concentração de poder político,
esta última vai se revelando como essência do conjunto

Voltemos ao poder realizador ainda colado ao poder político.

Nessa situação o poder realizador, conforme completa seu desenvolvimento, revela mais e mais sua essência reflexiva de poder "sobre" e não "para", perdendo mais e mais esse aspecto realizador, até que reste como objetivo de realização apenas a pura concentração do próprio poder em um foco de adensamento impessoal. Poder "sobre" o quê? Sobre os instrumentos (materiais e demais instrumentos) de seu exercício. E em particular sobre os que mais lhe resistem: os sujeitos que se esforça por objetificar.

As puras "coisas" não sentem o poder que se exerce sobre elas como poder, visto que não "sentem" nada. Mas os sujeitos coisificados sim, de modo que é mais precisamente para eles que, do ponto de vista vivencial, se pode falar em "poder". Para esses vivos coisificados, a essência do poder que se vai revelando é também a de um poder coisificador, um poder no limite thanático. Um poder moritificador, entrópico, de aceleração da entropia –– neste sentido, essa sua essência é, paradoxalmente, o oposto do caráter realizador inicial que a mascarava.

 

A representação simbólica a serviço da concentração de poder

Não há como coisificar uma subjetividade por inteiro a não ser pela sua morte (esta tese otimista contudo não é inquestionável) –– de modo que a coisificação é parcial, parcelar. O todo da unidade viva vai sendo representado parcialmente, em parcelas instrumentalizáveis. A representação (simbólica) medeia a interação entre quem exerce o poder e quem sofre esse exercício sendo parcialmente instrumentalizado.

Essa intermediação simbólica:

  1. Constrói esse parcelamento abstrato na percepção de quem exerce o poder (o titular que na verdade o exerce em nome do processo no fundo impessoal de acumulação de poder).
  2. Constrói esse parcelamento para a percepção do próprio parcelado e coisificado/instrumentalizado

Em "1", ou seja, para quem exerce o poder, o parcelamento e a coisificação da parte abstrata resultante também operam o que chamo de uma informação produtiva (um dar-forma que conduz em favor de..., isto é, adaptando a...). Uma informação produtiva em que se dá forma útil à parte coisificada do outro.

Em "2", ou seja, para quem sofre o poder, a abstração simbólica retorna numa informação produtiva reflexiva modelada para justificação desse desequilíbrio de poder.

Nos dois casos, ainda, as partes abstratas de quem sofre o exercício de poder são representações sígnicas suas, ainda que parciais. Re-apresentam separando a parte representada da presença original direta daquele todo vivo que ele é. Uma parte dele se separa imaginariamente e passa a autonomizar-se, adquirindo o peso de coisa real.

voltar↑

As representações simbólicas adquirem peso de realidade

O processo de aquisição de peso de coisa real por parte dessas representações imaginárias, abstratas e parciais, resulta do sistema simbólico em que estão inseridas e do sistema funcional em que são utilizadas no processo de acumulação de poder –– pois a princípio só nessa insersão em sistemas adquirem resistência. Porque a sistematicidade de um sistema transfere resistência a suas partes.

Além dessa resistência por insersão em sistemas, as representações parciais imaginárias se beneficiam também de elementos presentes nos sistemas simbólicos (e também nos sistemas funcionais, embora de modo diferente) que, construindo-se tanto para os que exercem poder quanto para os que sofrem esse exercício, provocam e estimulam um reforço no pathos deles: provocam e estimulam a crença dos envolvidos na realidade dessas abstrações.

 

O processo de acumulação de poder
vai abrindo mão do uso de titulares pessoais

Em sua forma mais completa e acabada, como resultado final de seu desenvolvimento (e portanto também em sua forma mais depurada e essencial), o processo de acumulação de poder já não carece mais de titulares pessoais que o exerçam: o processo se autonomiza e se despersonaliza por completo. As novas tecnologias o permitem, porque como resultado histórico da somatória desses processos de acumulação de poder, já são capazes de simbolizar e operar mapeamentos perceptivos, inclusive otimizados ao máximo na busca da eficácia, sem recurso a "detentores pessoais de poder" sobre tais processos.

 

O poder espetacular dos sistemas simbólicos de representação
aumenta com seu "peso de realidade"

Nos sistemas simbólicos temos mapeamentos perceptivos porque as representações parcelares e abstratas dos sujeitos submetidos ao poder estão inseridas nesses sistemas junto com representações do contexto, com seus objetos e outros agentes –– tudo formando campos de ação.

As representações do contexto e de seus objetos e sujeitos (agentes) são separadas da presença dessa totalidade complexa e re-apresentam num plano mais abstrato imagens alteradas dessas coisas. Alteradas em favor dos processos de acumulação de poder envolvidos. E essas imagens tendem a se organizar em grandes sistemas imagéticos de representação da realidade como um todo –– aumentando o poder das imagens envolvidas sobre os sujeitos envolvidos. Também tendem a assumir formas sensíveis diretamente resistentes, empíricas.

Todas essas imagens são "espetaculares" e formam cada vez mais um grande "espetáculo" de representação –– em sentido debordiano. O objetivo não é apenas subordinar passivamente mas incorporar os sujeitos como pseudoagentes (na verdade extensões do processo que se autoagencia) no espetáculo da própria subordinação deles. Esse espetáculo de sua própria subordinação na qual os (pseudo)agentes participam, aparece, para eles, sob outras formas, e só se revela como espetáculo de subordinação ao exame crítico.

Nos sistemas de representação simbólica que mapeiam os contextos de ação, esse mapeamento é um apeamento de relevâncias, principalmente, mas também de sentidos e valores. Há supervalorizações artificiais de elementos no mapa. Indicações de sentidos e valores que não são os reais também. E avaliações distorcidas das ações.

voltar↑

A luta contra desequilíbrios de poder

Não se trata de lutar contra qualquer poder realizador, mas de lutar pelo compartilhamento equilibrado do poder realizador e de suas realizações, sem exclusões nesses compartilhamentos. E de lutar contra o dersenvolvimento autônomo –– em sentido castoriadiano –– da concentração de poder. Isso passa pela luta contra qualquer concentração de poder em condições de desequilíbrio para os envolvidos, mas vai além, pois de nada adianta conseguir condições equilibradamente miseráveis para todos no que diz respeito às realizações desse poder, e também de nada adianta conseguir condições equilibradas de grande submissão a poderes impessoas que se autonomizam e sobre os quais já não há qualquer medida de controle popular.

Por outro lado, é sempre preciso estar atento para o fato de que o controle popular, em si, não resolve o problema: porque pode ser subvertido em favor da autonomia do processo de concentração impessoal de poder. Podemos falar disso em termos de aparelhos de concentração de poder no processo deles de realização de suas possibilidades, para utilizarmos uma linguagem mais flusseriana –– acrescento aqui que há nisto não apenas um movimento de esgotamento entrópico de possibilidades, mas um movimento desses que se dá sob a forma de concentração/desequilíbrio crescente de poder.

Sempre há condições em que tal processo de acumulação de poder pode fazer de seu titular pessoal (por exemplo uma multidão decidindo coletivamente em democracia direta, mas arrastada por fanatismo) um títere manipulado, um instrumento de cujas paixões cegas se alimenta por meios espetaculares. É preciso saber fazer o contrário: é preciso saber jogar com a impessoalidade aparelhística e institucional, para subvertê-la em favor do controle pessoal coletivo em condições de equilíbrio para todos os envolvidos. A impessoalidade aparelhística e institucional em algums medida pode contribuir para evitar que grandes paixões coletivas atuem como forças de arraste em favor da concentração desequilibrada de poder. Mas subvertê-la deste modo por outro lado é sempre uma operação de risco.

Considerados em si mesmos, os aparelhos institucionais e impessoais são um mal desnecessário e pernicioso, mas do qual não conseguimos nos livrar, porque parece inscrito na própria ação da entropia sobre nós. São um mal também porque largados ao seu próprio desenvolvimento natural tais aparelhos institucionais nos conduzem a subordinação e correlativo baixo desenvolvimento humano, o que é também baixa qualidade de vida, mesmo quando ilusoriamente parece alta sob outros aspectos (vide a utopia negativa de Huxley em Admirável mundo novo).

Mas se temos que conviver com esse mal, por que não subvertê-lo a nosso favor? Isso parece possível mantendo sob controle tais aparelhos institucionais e permitindo que se desenvolvam só até certa medida. E livrando-nos deles quando escapam ao nosso controle. Poderíamos combater por outros meios esse movimento da entropia que nos arrasta para focos de concentração de poder em condições de desequilíbrio para os envolvidos. Mas continuaríamos tendo que lidar com os aparelhos institucionais (assim como com todos os demais aparelhos e aparatos técnicos em geral), porque o recurso a essas coisas como extensões nossas (ou colocando-nos como extensões delas) está inscrito no modo como os seres humanos tomam forma e se desenvolvem no seio da entropia natural.

Em outras palavras, um poder realizador em certa medida despersonalizado mas, por outro lado, mantido sob controle compartilhado e pessoal de todos os envolvidos (e com benefícios equilibrados para todos), pode ser interessante –– enquanto for possível mantê-lo nessas condições e ele nao se desequilibrar e escapar ao controle, ou seja, enquanto não for necessário desmanchá-lo ou abandoná-lo por outro, até mesmo passando a combatê-lo com outro, se for o caso. De qualquer modo, será preciso lutar sempre e incessantemente contra as tendências intrínsecas do próprio processo de acumulação de poder, que podem se manifestar em um ritmo historicamente lento... ou em um ritmo muito veloz.

voltar↑

Aparelhos institucionais de concentração de poder
e suas interfaces espetaculares

Existem esses movimentos entrópicos, irresistíveis, mas que podem ter ritmos diferentes, e podem também ser acelerados ou desacelerados pelos agentes envolvidos. Em certos casos podem ser até dissolvidos, detidos... mas logo a entropia (ou vivencialmente falando, a morte) reaparece manifestando-se sobre outras formas.

Aquele que estamos examinando aqui –– o processo de acumulação de poder –– é um desses movimentos entrópicos. Onde o poder se concentra de modo desequilibrado, desempodera um campo muito maior em suas redondezas. É um processo que ocorre pluralmente, com muitos e diversos focos de ocorrência simultâneos, sempre rodeados de desempoderamento dos envolvidos, com exceção dos próprios titulares desse poder –– que tendem também a ser superados ao longo do processo de acumulação de poder. Tendem a ser superados porque o que se inicia como um poder instrumental de realização de desejos do seu titular (ou dos envolvidos) tende a se tornar maior que todos os envolvidos, a se despersonalizar e a instrumentalizá-los a todos, mesmo os seus mais altos titulares, que acabam por se fazerem descartáveis.

Há diversas formas de poder acumulando-se: poder econômico, político, militar, de influência sobre as opiniões... poder técnico ou tecnológico etc. Este último tem algo de especial: ele está presente em todos os outros numa posição estrategicamente fundamental, uma vez que a técnica é o modo de agir que buscou meios eficazes, e toda forma de poder tem seus meios eficazes (isto é, suas técnicas e tecnologias) de ação.

Tais processos de acumulação de poder, com seus correlativos focos de adensamento de poder, muitas vezes podem ser dissolvidos ou detidos, mas nem sempre. E dissolvidos ou detidos, tendem a reaparecer sob outras formas. É uma serpente de múltiplas cabeças que vão nascendo, mais e mais delas, e que renascem quando se corta.

A despersonalização em que o caráter entrópico do poder vai a certa altura se manifestando mais e mais, conforme ele cresce, faz com que o processo de acumulação de poder assuma a forma de grandes aparelhos institucionais com um sistema próprio de funcionamento, que vão ganhando autonomia em detrimento da autonomia dos agentes envolvidos. 

Tais aparelhos institucionais de concentração de poder tiram (roubam) a autonomia dos envolvidos coisificando-os e instrumentalizando-os, assim como recorrem também a toda uma aparelhagem auxiliar, feita de aparelhos e aparatos técnicos com funcões mais específicas dentro do processo. A coisificação dos agentes envolvidos não consegue completar-se porque são vivos, e não coisas. Só se completa com a morte deles. Então o substrato vivo desses agentes, mesmo que eles sequer se dêem conta disto, sempre resiste em alguma medida. Confrontados com essa resistência, os aparelhos institucionais de concentração de poder só captam dos agentes vivos aquilo que podem controlar, uma imagem parcial controlável. Mas na medida em que essa imagem é representativa, conseguem de fato, por meio ela, um controle parcial de cada agente.

Uma parte dos agentes vivos que, para os aparelhos institucionais de concentração de poder, é importante coisificar e instrumentalizar, são os sentimentos, as paixões... pois elas arrastam esses agentes às ações necessárias para a manutenção do funcionamento dos sistemas aparelhísticos. As paixões humanas são como combustíveis consumidos no funcionamento dos aparelhos institucionais de concentração de poder. Como elas são provocadas, estimuladas e absorvidas por esses aparelhos?

Na aparelhagem auxiliar dos aparelhos de concentração de poder, há aparelhos de interface com os agentes humanos, que podem ser chamados de aparelhos espetaculares –– têm a função de alimentar o processo de concentração de poder atuando como estimuladores, captadores e direcionadores de paixões, visando mobilizá-las instrumentalmente.

Tais aparelhos espetaculares oferecem aos agentes vivos envolvidos um quadro de possibilidades passionalmente informativas –– que dão formas a suas paixões estimulando-as numa direção –– mas há em seguida um processo de resfriamento das paixões conforme vão sendo utilizadas, como que consumidas pelo processo de concentração de poder, ao mesmo tempo que as possibilidades passionalmente in-formadoras vão se esgotando. Elas vão se esgotando seja por não haver mais alternativas seja (na maioria dos casos) por amortecimento entrópico do estímulo passional que conseguem oferecer.

voltar↑

Algumas referências deste texto

Esta minha linha de pensamento não surgiu do nada. Pode-se notar uma referência evidente a Debord quando falo do espetacular. E Castoriadis é referência sempre presente quando falo em autonomia. Mas há outras referências presentes aqui também.

Flusser por exemplo já intuia vagamente algo semelhante a coisas que digo neste texto –– na passagem de seu exame dos mitos, em diferentes ensaios de livros como Natural:mente, para o exame dos aparelhos e das imagens técnicas, em livros como Filosofia da caixa preta. Os mitos eram vistos por Flusser como "programas" carregados de possibilidades, que nos programam para a realização de desejos, e conforme vamos realizando o que está neles, os mitos vão perdendo a sua qualidade mítica e se reduzindo a sua essência de puro desejo irrealizável (cf. ensaios como Pássaros no livro Natural:mente). O leitor poderá notar algo similar no que digo sobre a redução do poder pessoal realizador e de submissão à sua essência de poder impessoal que visa puramente sua própria concentração.

Flusser raciocina de modo similar não apenas quando fala de mitos, mas também quanto aos aparelhos: são programas que programam, condicionam, nossas possibilidades de ação, e o constante esforço de esgotamento de suas possibilidades revela sua essência, digamos assim, prisional, de prisão em um campo de possibilidades virtualmente infinitas, mas sendo a ultrapassagem do campo em si (e do programa) ocultada e afastada por essas possibilidades dentro do programa. Acrescento a Flusser o seguinte: esses campos de ação prisionais, que são os campos de possibilidades programadas nos aparelhos com os quais nos envolvemos (e que acabam por nos envolver), não são apenas prisões disfarçadas em uma variedade virtualmente infinita de possibilidades todas igualmente pré-programadas.

Essas possibilidades de ação programadas não são apenas um disfarce para o ocultamento de sua condição prisional: são também um meio de exploração de nossas ações dentro do programa aparelhístico, exploração em favor dos processos de concentração de poder. O caráter espetacular dos aparelhos, manifesto no campo de possibilidades de ação que eles oferecem, que parecem (ilusoriamente) libertadoras, serve à captação de paixões e ações dos vivos envolvidos para redirecioná-las em favor da concentração de poder nos aparelhos. As ações e paixões são espetacularmente consumidas nesse processo enquanto as possibilidades vão esgotando seu apelo passional –– exigindo do aparelho novos recursos espetaculares.

Raciocínio similar se encontra ainda no exame que Flusser faz da estrutura das imagens e dos textos: há sempre um rol de possibilidades que vão sendo realizadas na fruição de texto e de imagem, e que realizadas vão sendo entropicamente esgotadas. Flusser declara haver nisto algo de uma livre-interpretação do "eterno retorno" de Nietzsche. Minha linha de pensamento, como se vê, também corre pelo leito desse rio. E colho ainda mais de Nietzsche do que Flusser, mas combino Nietzsche com Stirner de um modo que ainda não transparece neste texto. Assim como o combino também com algo de Maquiavel, e Maquiavel com muito da dupla La Boétie e Montaigne.

Outra de minhas fontes de referência é Proudhon.

Proudhon dizia que era preciso lutar pela liberdade composta ou coletiva, pois a liberdade simples –– seja a do indivíduo como unidade isolada, seja a do todo coletivo como unidade –– pode tornar-se tirânica. Dizia também que para evitar tais unidades tirânicas era preciso equilibrar força coletiva (a força das paixões unidas numa mesma direção) com razão coletiva –– a razão pública entendida como debate argumentativo e equilibrado, justo, entre as diferentes e divergentes facetas, subgrupos e individualidades dentro do coletivo. Acrescento que tal equilíbrio entre razão coletiva e força coletiva pode participar frutiferamente da tomada de controle do poder realizador e de sua contenção para que não se desenvolva em poder de submissão, porque é um equilíbrio capaz de romper a força espetacular de instrumentalização das paixões por parte dos aparelhos de interface.

Acrescento ainda que tal equilíbrio entre razão e força coletiva pode ser realizado com maior facilidade e realismo com recurso a alguma medida de institucionalização e despersonalização de procedimentos decisórios –– desde que se atente para o fato de que recorrer a eles para evitar o risco das grandes paixões de arraste, coisificáveis em combustível aparelhístico, também é uma operação de risco, visto que a institucionalização é em si mesma uma imersão parcial na entropia e a entropia é sempre crescente.

voltar↑

Os limites dos focos de acumulação de poder, e as relações entre eles

Focos de acumulação de poder podem exercer seu poder sobre outros focos de acumulação de poder, que o exercem sobre outros e assim por diante. Deste modo, pode haver toda uma rede oscilante de focos de concentração de poder em que cada um ora está em posição dominante ora na posição de submissão, e pode haver também longas escalas hierárquicas de poder.

Abstrações parcelares instrumentalizadas também tendem a se acumular umas sobre as outras: o processo de acumulação de poder abstrái imaginariamente do todo vivo submetido uma parcela (imaginária, simbólico-representativa) para ter controle sobre ela, depois sente ainda um limite ao crescimento de seu poder sobre essa abstração. Sente um limite precisamente porque ela não é o todo real  que ela esconde (ao mesmo tempo que representa). Essa parcela imaginária, simbólico-representativa, do todo vivo, não é o próprio todo nem é viva como ele, mas esse todo vivo interfere nela –– já que ela o representa parcialmente, mesmo estando "fora"dele", e nesse sentido apresenta correspondências com ele. Mas no todo em si não há "partes", e isso também produz efeitos na representação que se pretende "parcial". Um desses efeitos –– de especial importância –– é que o todo vivo em si em alguma medida falsifica a representação, diminuindo o seu poder representativo.

Como resultado, o processo de acumulação de poder, "sente" (esta palavra é evidentemente uma metáfora, pois o processo em si não é vivo e sensciente, apenas reage ao que capta), enfim, "sente" então essa limitação ao tentar controlar o todo vivo através de uma representação parcelar imaginária. Mas não tem como acessar com seu controle o todo vivo em si diretamente, de modo que, captando a ineficiência da representação abstrata como se ela é que lhe escapasse ao controle, o processo de acumulação do poder tende a realizar uma abstração da abstração.

Mais claramente falando, tende a agir sobre uma parte imaginária da parte imaginária, e assim por diante, num processo que vai perdendo o contato com a base real do submetido a esse poder, que é aquele todo vivo inacessível. Base sobre a qual indiretamente –– e sempre indiretamente –– se exerce (...por que? Porque o que caracteriza o vivo como "vivo", do ponto de vista da ação do poder, é precisamente esse escapar em alguma medida ao controle. Somente objetos, coisas, são completamente controláveis e previsíveis).

Assim, o poder, conforme vai se acumulando, vai ao mesmo tempo perdendo mais e mais o acesso direto à base real de sua sustentação enquanto poder "sobre", que é o todo vivo sobre o qual se exerce. Vai se afastando mais e mais desse todo vivo que é sua base e se apoiando mais em mais em meras abstrações que se distanciam e o distanciam (cada vez mais) dessa base... Até que o poder desaba por ineficiência.

O mesmo processo de alienação em relação a suas próprias bases (aquelas sobre as quais se exerce) pode se dar com o poder absorvendo mais e mais parcelas diferentes abstratas e imaginárias  do todo vivo original, e unindo essas parcelas num todo também abstrato e imaginário (espetacular) que vai ganhando um peso de realidade que se fragiliza, paradoxalmente, com a crescente alienação em relação ao todo original.

Pode parecer que muitas abstrações parciais diferentes do todo aproximariam mais desse todo, mas ocorre que elas tendem a interagir umas com as outras formando um sistema simbólico e funcional com dinâmica própria, diferente daquela do todo vivo, gerando uma alienação ainda mais potente, com maior peso de realidade e independência em relação à base real viva, sem que o processo de alienação já descrito anteriormente, com abstração das próprias abstrações, deixe de estar presente ao mesmo tempo.

Enquanto ainda é poder pessoal e realizador, o poder se fundamenta no acesso como usuário, por parte de seu titular, de meios para a realização dos desejos (considerando "desejo" em sentido muito generalizado, e, no mesmo movimento, a necessidade como uma razão de desejo, e a vontade como um modo de desejo). Os meios primários disponíveis são as capacidades do corpo e da mente, em conformidade com os limites e possibilidades, e também referências, do contexto e das demais condições de exercício desse poder em ações. O processo de acumulação de poder faz com que se agreguem "instrumentos" (novos meios) como extensões dos primários. Entre esses instrumentos, conforme já dito, há agentes vivos, sujeitos, que são coisificados nessa sua instrumentalização. E o poder vai então se desenvolvendo mais e mais no sentido de revelar sua essência derradeira de puro processo de acumulação de poder não de realização, mas de submissão.

voltar↑

Registro de posicionamento político geral - 26 de Maio de 2021


Deixo registrado aqui meu posicionamento político mais geral, para além de posições em relação à cisrcunstância política atual no Brasil e no mundo. É o mesmo posicionamento que já defendo há vários anos. No essencial não mudou: apenas se aprofundou ganhando melhores fundamentos, muitos dos quais estão resumidos no texto acima.

De onde vim

Na juventude fui militante anarquista (aliás preferia considerar-me "anarca", fugindo de toda classificação que tivesse algum "ismo"). Falo aqui do anarquismo autêntico, aquele que emergiu historicamente da luta das classes trabalhadoras por seus direitos –– e não do pseudoanarquismo de que frequentemente se fala no nosso século XXI, que na verdade se caracteriza como um liberalismo capitalista desenfreado que deixa os cidadãos à mercê da "lei" do economicamente mais forte (sobre esse liberalismo capitalista que tenta difamar o anarquismo roubando-lhe o nome para propor o que é quase o contrário, não me interessa não me interessa sequer ir além de uma mera menção de alerta). O anarquismo autêntico não aceita desequilíbrios de poder de qualquer espécie, e jamais aceitaria uma simples troca da submissão ao Estado pela submissão ao poder do Capital.

Dos anarquistas autênticos há os que têm um certo traço ligeiramente utópico, que acreditam na chegada da humanidade, no futuro, em uma condição em que nenhum poder seria necessário e as pessoas se autoorganizariam. Meu entendimento do anarquismo nunca foi este: entendia o anarquismo como uma luta infinita e sem tréguas contra toda e qualquer forma de poder, numa realidade em que o poder infelizmente sempre se restauraria sob alguma forma e precisaria ser sempre novamente combatido.

Quando deixei de me considerar "anarca" (uma decisão ou constatação dolorosa) foi por uma combinação de pessimismo ainda maior com pragmatismo e realismo. Queria fazer uma crítica política a partir de um ponto de vista menos transcendente à situação real do presente, mais imanente a ela no sentido de ser um posicionamento crípico possível e praticável a partir dessa mesma situação real presente em que estamos, mesmo que apontando para algum horizonte futuro imaginário, utópico, colocado apenas como referência. Que fosse ao menos um caminho plausível e possível a partir da realidade política atual.

O que passei a defender

Mantendo enorme simpatia e mesmo admiração pelos "anarcas", e mantendo também entre minhas principais referências grandes pensadores anarquistas como Proudhon, Stirner, Malatesta, Feyerabend, Artaud, e outros próximos ao anarquismo, como Castoriadis, Clastres e Debord, passei no entanto a me considerar um "pensador independente" em política.

Passei a defender primeiro democracia direta, estudando e adaptando para a realidade atual os modelos da democracia ateniense e da organização tupi-guarani exposta por Clastres. Em seguida, passei à posição que mantenho hoje: defendo uma democracia participativa de pressão popular constante sobre os representantes, com divisão de poderes, e que seja levada constantemente a um aprofundamento cada vez maior em seu participacionismo rumo a uma democracia direta (sem prepresentantes) mas ainda com divisão de poderes. E mantenho nos fundamentos que desenvolvi mais tarde para isto (resumidos no texto anterior acima) muitos elementos que podem ser úteis também para os "anarcas", que me deixariam honrado se pudessem extrair dali algo para apoio também a seus próprios posicionamentos.

Respondendo a algumas críticas a meu posicionamento

Alguns pensam que democracia direta é incompatível com divisão de poderes: não é. A divisão de poderes depende de definições do funcionamento institucional de cada poder, e da independência entre os poderes. Costuma-se julgar que essa independência fica comprometida em uma democracia direta, porque os mesmos cidadãos participam de todos os poderes. Mas não necessariamente.

Depende por um lado de quanta força o aparelhamento institucional tem para manter a independência dos poderes sem escapar ao controle popular. Por outro lado, depende da organização e distribuição da participação popular nos poderes. Pode haver por exemplo um sistema de revezamento nas participações do cidadão, de modo que em certas ocasiões ele possa fazer parte de um poder, mas já tendo feito sua parte nesse poder, da proxima vez só possa atuar em outro dos poderes, e voltar ao primeiro depois de completar um ciclo de participação em todos os poderes.

Pode-se argumentar que nesse sentido sempre haveria uns decidindo em nome de outros e a democracia não seria direta, mas representativa. Acho esse um argumento meramente retórico. O percurso da democracia representativa-participativa até a democracia direta é um percurso, é gradual, e não um salto –– a menos que as condições orgânicas para isso, na mentalidade social, já o estejam exigindo e as condições reais estejam bloqueando o que é exigência orgânica... ai sim, pode ocorrer algum "salto".

O que quero dizer quando digo que é algo gradual é que, havendo "salto" ou não, não há exatamente democracia pura ou direta e sim democracia mais depurada ou mais direta, não há um ponto exato em que podemos dizer "aqui deixamos de ser uma democracia representativa e passamos a ser uma democracia direta". Há situações que podem ser alcançadas nas quais já não se pode nomear com precisão classificando a democracia como direta ou representativa. Mas independentemente do nome que venhamos a dar para a coisa, há também uma situação em que podemos reconhecer que a figura de "representantes eleitos" já não existe e há atuação direta de enormes parcelas da população nos três poderes, sem que ninguém esteja excluído de participar. Eis a situação-alvo que chamo de "democracia direta" –– e que pode ser facilmente reconhecida como tal por qualquer um que não se apegue a rigorismos retóricos.

De qualquer modo, como já disse, é para mim no momento presente apenas uma situação-alvo –– uma situação a ser buscada pela democracia representativa-participativa através da crescente distribuição do poder dos representantes aos próprios cidadãos para o execrício direto pelos mesmos. E por que meios buscar isso? Por meio do estímulo à constante e crescente vigilância, controle e pressão popular sobre os representantes eleitos, realizada com este alvo em vista: a tomada popular do poder retirado aos representantes.

Por outro lado, isso deve ser feito com os cuidados já mencionados no outro texto acima: busca do equilíbrio entre razão coletiva e força coletiva, cuidados para que as pessoas não se deixem levar por paixões de arraste, fanatismo etc. –– cuidados que podem incluir o recurso cuidadoso e comedido a aparelhos institucionais, sem deixar por outro lado que escapem ao controle humano.

Na verdade, digo que essas grandes ondas de paixão de arraste, em especial as coletivizadas, são quase sempre provocadas em nós pelo próprio mecanismo cego dos aparelhos institucionais de concentração de poder. Quando falo em utilizar aparelhos institucionais contra isso, estou falando em última análise de usar aparelhos institucionais contra os próprios aparelhos institucionais que se utilizam dessas paixões de arraste, subvertendo a tendência natural dos mesmos.

Resumindo

O que defendo?

Democracia de pressão popular com participação crescente, definindo seu rumo conforme a referência oferecida pelo que seria um democracia direta sem fanatismo e sem a dominação das pessoas por paixões de arraste –– visto que elas operam em última instância contra o próprio espírito democrático servindo de combustível a processos de concentração de poder. Esse é o posicionamento que defendo e procuro difundir e alimentar. Mas continuo pensando que sempre haverá movimentos de concentração de poder (que entendo contrários ao espírito democrático e ligados inclusive à própria entropia natural) a serem combatidos.

Os anarcas talvez me critiquem a defesa de "democracia" como sendo ainda a defesa de uma forma de kratós (poder político). Mais uma vez considero esta uma crítica meramente retórica, se considerarmos a diferença entre democracia direta e democracia representativa, e a diferença entre organizações políticas democráticas e espírito democrático –– visto que meu apego está mais no espírito da coisa, e em sua busca radical e sempre mais aprofundada, do que em mecanismos específicos de organização, que a meu ver podem muito bem variar nesse caminho e nessa busca de sempre maior distribuição e menor concentração de poder, maior equilíbrio e menor desequilíbrio de poderes em todos os campos, político, econômico etc.

Deixo para falar em outro momento sobre essas diferenças e também sobre as diferenças entre paixão intensa e paixão de arraste –– pois não são de modo algum a mesma coisa.

voltar↑

 

 

Reflexões pessoais sobre poder - Parte 2: A auto-aniquilação dos processos de concentração de poder, e outros assuntos.

24 de junho de 2021


 

Retomando

 

1. Processos de concentração de poder são desenvolvimentos da entropia.

2. Absorvem como vírus as formas e qualiforças ao seu redor parte por parte desempoderando-as e indiferenciando-as qualitativamente. ("Qualiforças" são traços característicos que se apresentam com alguma força, isto é, com alguma intensidade. E "formas" são conjutos organizados de qualiforças. De um ponto de vista fenomênico, a forma é, para todos os efeitos, aquilo que as coisas "são"... elas fenomenicamente são apenas "formas".)

3. Ao “parti-las” para absorvê-las pedaço por pedaço, faz isso a princípio apenas com uma imagem (ou representação) delas, porque são realidades inteiras. As partes são apenas imagens parciais construídas pelo processo de concentração de poder.

4. Essas realidades que são todos inteiros só se comportam como se estivessem efetivamente partidas em pedaços na medida em que sigam agindo coladas às imagens parciais que o processo de concentração de poder faz delas.

voltar↑

 

Processo de alienação do poder em sua ignorância intrínseca

5. O processo de concentração de poder vai se complementando com essas imagens parciais, e se preenchendo com elas.

6. Vai construindo uma bolha dessas imagens parciais ao seu redor, isolando-se cada vez mais da base real delas (que são aqueles todos inteiros do qual elas são imagens parciais).

 

Início do processo de autoaniquilação do poder

7. Os processos de concentração de poder são constituídos por ações sistematizadas de tais imagens parciais de coisas vivas ou não ao seu redor — coisas que são esses “todos inteiros”. (Stirner tinha já percepção disto) Eles não têm um “núcleo duro”, são apenas camadas de aparências parciais sistematizadas em ação. (Cf. Flusser quanto ao ser humano — o que ele diz quanto a isto vale na verdade para os focos de concentração de poder: busca-se depuração rumo a um núcleo duro, mas não há núcleo duro)

8. O processo de autoconstrução dos focos de concentração de poder é um processo de representação que vai perdendo cada vez mais a presença das coisas representadas (cf. Rousseau).

9. É um processo que vai se autonomizando em função da ignorância intrínseca e crescente daquilo que está representado nas imagens parciais que gerencia.

voltar↑

 

Paralelo com o pensamento de Flusser (corrigindo-o)

10. O processo de concentração de poder realiza o que Flusser julga ser realizado pela cultura humana por meio da tecnologia. Ele “se descasca” a si próprio descascando em imagens parciais aquilo que ele instrumentaliza — e o ser humano é apenas um entre outros todos inteiros com os quais ele faz isso. A tecnologia não é uma extensão direta do homem, mas de tudo o que existe de vivo ou não na vivência do homem, inclusive do homem.

11. A centralidade do homem nisto não está na ação dos processos de concentração de poder em si (com o uso que fazem da tecnologia), mas no interesse que temos em nós mesmos ao examinarmos isso, focalizando o que nos é mais relevante e nos colocando a nós mesmos no centro desse processo, quando na verdade não estamos no centro. Somos indiferentes para os processos entrópicos de concentração de poder.

12. Os processos de concentração de poder caminham para a superação de todas as imagens parciais e instrumentalizadas que os constituem — portanto, caminham para a superação de si mesmos em direção a nada, à dissolução, à sua própria aniquilação completa.

13. A condição humana nisto é tragicamente mais lateral, o efeito dos processos de concentração de poder sobre os seres humanos é um efeito colateral. O ser humano não está no centro da coisa: ele é um joguete na situação de “descascamento e autodescascamento” estabelecida por essas formações da entropia, que são até certo ponto como buracos negros, mas caminhando para sua própria dissolução num colapso final.

14. Em conclusão: o que tenho aqui é um ponto de discordância em relação a Flusser que deve mais precisamente ser compreendido como uma livre-reinterpretação: ao contrário do que ele diz (mas de certo modo retomando-o por outro ângulo) não são os seres humanos que buscam com a cultura e a tecnologia vencer a natureza com representações que os vão afastando dela, e vão se autonomizando e vão “descascando” o ser humano procurando “realizá-lo” objetivamente em lugar da natureza. Nada disso — ou melhor, não é precisamente disso que se trata.

voltar↑

 

Autoaniquilação do poder, do ponto de vista de seu
paralelismo com o que Flusser dizia do ser humano

15. O que ocorre é que a entropia age no sentido de formar processos de concentração de poder que fazem isso: vão se libertando e se autonomizando em relação ao que está ainda organizado na natureza, e vão “descascando” e instrumentalizando tudo o que podem (inclusive os seres humanos), por meio de imagens, representações, parciais e construídas para serem instrumentalizáveis…

16. Nisto vão perdendo cada vez mais o contato com essas realidades representadas até colapsarem por falta de base real, tendo se distanciado cada vez mais dessa base em seu processo de autonomização.

17. Conforme “descasca” as coisas, o processo de concentração de poder se vê cada vez mais na necessidade de se autodevorar, “descascando” também a si próprio, isto é, às imagens parciais das coisas que tomou para si (para constituir-se) e instrumentalizou fazendo-as de complementos seus.

18. Se vê nessa necessidade por falta crescente das realidades com as quais fazia isto antes.

voltar↑

 

Ausência de determinismo histórico ou genético definitivo
nessa autoaniquilação do poder: necessidade do voluntarismo no combate

19. Mas essa autoaniquilação dos processos de concentração de poder não é um resultado necessariamente decorrente de seu desenvolvimento, em sentido absoluto. os resultados podem variar.

20. A entropia por exemplo tende a buscar caminhos de perpetuar processos de concentração de poder que se mostrem eficazes na dissolução/indiferenciação de formas e qualiforças ao seu redor. Por isso é preciso encontrar meios de resistir eficazmente a eles, e/ou de levá-los ativamente ao colapso.

voltar↑

 

Natureza e cultura

21. Não se pode simplesmente considerar a natureza como território da entropia e a cultura como território neguentrópico — discordo de Flusser aqui. Na natureza, o curso da entropia não é homogêneo. Há regiões em que é mais acelerado, e regiões em que é menos. As regiões de desaceleração da entropia são neguentrópicas em relação às de maior aceleração.

22. Na cultura, o contraste, a tensão, entre o entrópico e o neguentrópico, se intensifica. Num extremo temos o adensamento neguentrópico da informação, do qualitativo, da vida e da arte, no outro extremo o desadensamento da comunicação, do quantitativo, do automático e do funcional. Tudo caminha para o nada, mas o que está no primeiro desses extremos caminha mais devagar.

23. O que está no extremo da informação, do qualitativo da vida e da arte caminha mais devagar no rumo da entropia… exceto pelo caso de vírus (ou algorítimos automatizados) como os processos de concentração de poder, que se adensam e se ralentam no caminho da nadificação realizando o densadensamento e a nadificação de tudo o mais ao redor, alimentando-se do que desadensam e nadificam.

voltar↑

 

A face trágica da luta neguentrópica

24. Para resistir à entropia, entropiza-se outra coisa — e é o que os processos de concentração de poder fazem, oferecendo caminho melhor (mais livre curso) para a entropia porque são processos autodestrutivos, que tendem a construir o seu próprio colapso em conjunto com a destruição de tudo o que destroem.

 

Novo paralelo corretivo com Flusser

25. Metaforicamente, os focos de concentração de poder são como diques que se enchem até explodir mas explodir para dentro, implodir… e se enchem desde o início com o objetivo de implodir. Como balões osmóticos num ambiente em que absorvem todo o caldo que houver em volta até romperem sua capacidade de contê-lo, mas que quando se rompem não devolvem o conteúdo ao meio. Como buracos negros que produzissem sua própria carga de radiação Hawking acumulando-a até a lançarem toda de uma vez contra si mesmos.

Ao invés de estarem programados para a busca de um núcleo duro inexistente (como o que Flusser diz dos seres humanos, que então seriam destinados a falhar nessa busca) os processos de concentração de poder estão programados para a busca do vazio por meio da absorção do que não é vazio e está ao seu redor — de modo que estão destinados ao sucesso nessa busca, mas também a realizá-la pelo colapso final de um meio (ou caminho) contraditório. É que estão destinados a “ser” cada vez mais para poderem ter a força de anular tudo ao seu redor e depois também implodir e anular tudo em si mesmos.

voltar↑

 

Entre os processos de concentração de poder e seus instrumentos,
as representações que se formam têm 4 faces

26. Entre os processos de concentração de poder e seus instrumentos se constituem quádruplas representações — que são mais nítidas nos instrumentos vivos porque neles podemos compreender essas representações como “mentais”.

27. (Podem-se detectar também o equivalente a “representações” que as coisas inanimadas fazem de outras coisas vivas ou não ao seu redor. Isto se detecta recorrendo a uma versão ampliada da teoria dos referências na relatividade de Einstein, verificando como se dão as outras coisas para esta que está em exame, do ponto de vista dela, tomando-a como referência relativística.)

28. Cada uma das representações é quádrupla porque contém ao mesmo tempo 1) uma autorepresentação que se oferece ao instrumento enquanto tal; 2) uma representação do foco de poder que se apresenta para o instrumento; 3) uma representação do instrumento que se apresenta para o foco de poder; e 4) uma autorepresentação que se oferece ao foco de poder.

29. As alterações dessas quatro faces da representação vão determinar o desenvolvimento do processo de concentração de poder.

30. Cada face deve ser examinada por sua vez para detecção de sua posição entre a apropriação e a possessão em sentido stirneriano, e entre a representação e a presença em sentido rousseauísta.

31. As relações de poder podem ser de sentido politizador ou despolitizador, e equilibrador ou desequilibrador. É nas de sentido desequilibrador que se encontram os processos de concentração de poder.

32. Nas relações de poder existe uma política dos signos e representações, ligada aos “jogos de linguagem wittgensteinianos tais como os reinterpreto, ampliando-os também para a condição de “jogos de associações” em geral — existe essa política porque as pessoas reagem ao modo como percebem as coisas, e não ao modo como as coisas “são”. Reagem ao modo como as coisas são para essas mesmas pessoas, e não ao modo como as coisas são em si mesmas.

33. A política dos signos e representações afeta diretamente as quádruplas representações que existem entre os processos de concentração de poder e seus instrumentos.

voltar↑

 

Os processos de concentração de poder são um caso particular
de uma ocorrência mais ampla que recobre todo o mundo fenomênico

34. Todas as coisas se comportam de maneira em certa medida similar à dos processos de concentração de poder, mas apenas sem essa concentração de poder: as coisas são ocas. Porque são penetradas pela entropia. E são “do avesso”, porque todo o seu ser está projetado para fora, para outras coisas, na sua aparência para elas, nas suas relações.

35. Tudo é oco. O vazio essencial das coisas vai se revelando conforme se realizam suas variações possíveis, em suas diversas associações/relações com outras coisas. Esse realizar é um “descascá-las”. É um realizar comunicativo, que difunde, difusor (desinformador, que tira novidade) atuando entropicamente — e é assim não só por ir esgotando o que era imprevisto, mas por tornar as possibilidades objetivas, isto é, intersubjetivas, comunicáveis. Realiza as aparências possíveis rumo ao seu esgotamento, e não há nada além das aparências. Nada que se possa afirmar além delas, pelo menos.

Quanto mais se preenche com suas aparências, isto é, com as aparências que lhe são possíveis, quanto mais as suas relações se realizam, mais a coisa se projeta para fora e aproxima de sua implosão no vazio... ainda que essa aproximação possa talvez ir ao infinito sem nunca chegar a esse fim.

 

voltar↑

rodapé