Tópicos de vida e obra de Schmitt

Pesquisa & Texto da autoria de João Ribeiro de A. Borba

Fev/2021

 

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Schmitt: a lei não passa de um jogo de forças no aqui e no agora,
a crueza realista do decisionismo jurídico-filosófico

 

Quem foi Schmitt?

Schmitt na primeira fase de seu pensamento foi um dos pensadores mais originais de toda a história da filosofia do direito, mas sua filosofia jurídica desa fase foi também uma das mais controversas e potencialmente perigosas, e na segunda fase de seu pensamento cometeu um ato filosoficamente imperdoável: reduziu e distorceu toda a sua filosofia para que ela pudesse servir aos interesses de um partido político, e não de qualquer partido, mas do partido nazista. Evidentemente, ao fazer isso, teve que retirar de seu pensamento o que fazia dele uma filosofia. Deixou de atuar como filósofo e seu pensamento deixou de ser qualificável como filosofia para tornar-se mera ideologia política nazista.

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Entretanto, ditaduras (como o nazismo) nunca foram terreno fértil para a produção de boa filosofia. a filosofia se desenvolve melhor em debate livre e aberto e sem restrições em seus questionamentos, de modo que o que se produz de filosoficamente bom nessas condições (em ditaduras) costuma ser produzido apesar delas. Por conta dizzo, uma filosofia tão original e polêmica quanto a da primeira fase de Schmitt não poderia passar facilmente aceita pelo nazismo, o partido nunca perdoou esse filósofo pela primeira fase de sua produção.

Apesar de fiel ao nazismo, Schmitt então sofreu forte perseguição do partido quando este asumiu o poder. Perdeu empregos, sofreu pressões e vigilância constante, e quando o nazismo terminou, foi viver nos Estados Unidos. Mas lá, seu passado nazista foi revelado, foi acusado falsamente de crimes de guerra, e depois que sua inocência ficou provada sua reputação já estava manchada, de modo que passou mais uma vez a sofrer perseguições, vivendo em dificuldades financeiras e morrendo cedo.

Aqui vamos nos concentrar na primeira fase da filosofia jurídica de Schmitt, que é a única filosoficamente relevante. Da segunda fase vamos fazer apenas uma apontamento breve para que se saiba do que se tratava.

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Qual o melhor ponto de partida para se compreender a obra de Schmitt?

O melhor ponto de partida para se compreender a obra de Schmitt é o seu conceito de política, porque é um pensador jurídico mas todo o seu pensamento jurídico está condicionado pela sua compreensão do funcionamento das coisas no mundo político.

Segundo Schmitt, a política se organiza com base na dicotomia amigo-inimigo. A base das relações políticas é a decisão de pessoas e grupos a respeito de quem deve ser considerado "amigo" e quem deve ser considerado "inimigo". Mais precisamente, quem deve fazer parte da nossa própria identidade, quem faz parte do grupo quando definimos quem somo "nós", e quem é parte dos "outros" a serem combatidos.

Esse combate segundo Schmitt não significa nem poderia significar a eliminação do "inimigo", porque o lado dos "amigos" tem a sua identidade definida precisamente pela oposição ao lado dos "inimigos", de modo que eliminar o inimigo é eliminar-se a si mesmo, deixar de existir.

Esse pensamento, em Schmitt não diz respeito tanto às relações privadas, mas acima de tudo às relações internacionais, entre diferente Estados. Mas é possível captar, com clareza, o forte eco dessa dicotomia em inúmeras outras facetas do seu pensamento –– a tal ponto que ajuda a compreender boa parte de todo o resto de sua filosofia e mesmo de sua fase de decadência filosófica e adesão ao nazismo.

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Quais as principais influências da primeira fase da filosofia de Schmitt?

A primeira fase do pensamento jurídico de Schmitt se chamava "decisionismo", e combinava influências de Hobbes, Nietzsche e principalmente do existencialismo.

De Hobbes, Shmitt herdou a ideia de que a condição humana é uma condição de conflito constante contra outros homens, o que os conduziria a sentirem a necessidade de recorrerem a um poder superior pacificador.

De Nietzsche, Shmitt aprendeu algo semelhante: a noção de que tudo, inclusive as próprias ideias (como a ideia de "lei" por exemplo) seria constituído internamente por um jogo de forças em conflito.

Do existencialismo em geral Schmitt absorveu a ideia de que só existe "o aqui e o agora" –– e esta influência foi a que trouxe maior originalidade para o pensamento dele.

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De que modo o existencialismo trouxe originalidade
para a teoria jurídica de Schmitt?

O que significa dizer que para o existencialismo só existe "o aqui e o agora"? Vamos tentar explicar com um exemplo: para o existencialismo não existe por exemplo algo que possa ser chamado de "o amor". Existem esses sentimentos que a pessoa tem no momento presente (aqui e agora) em relação a essa outra pessoa e que estão mudando constantemente, e a pessoa que sente esses sentimentos pela outra estã a todo momento rebatizando esses novos sentimentos diferentes com o mesmo nome de "amor", reinventando de novo e de novo e de novo o que é "amor", porque quer que esses sentimentos sejam sempre "amor", quer estar amando aquela pessoa, quer acreditar que os sentimentos sejam sempre o mesmo sentimento.

Isso de certo modo, aliás, é bastante romântico. Ou bastante cínico, depende do ponto de vista.

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Mas a filosofia de Schmitt não trata do amor: é uma filosofia jurídica, ela trada de direito. E a grande questão que se coloca é a seguinte: para Schmitt o que acabamos de falar sobre a visão existencialista do amor vale igualmente para o que chamamos de "lei". E como é possível definir "lei" a partir de um modo de pensar existencialista como esse? Como é possível definir a noção de "lei" a partir do "aqui e agora"?

Schmitt diz o seguinte: a "lei" não é aquilo que está registrado por escrito na forma de uma norma a ser seguida. Aquilo é apenas um registro. A lei na verdade é o resultado de um jogo de forças sociais e pessoais que está acontecendo aqui e agora –– um jogo de forças no qual alguém tenta impor alguma coisa a alguém, e tenta se justificar dando a essa imposição a forma de uma norma ou fazendo essa imposição como se ela fosse a interpretação de uma norma já registrada. Não há nada mais do que isso. As leis na verdade não são as normas nem o registro delas: são apenas esse jogo de forças que se dá no momento presente tomando essas normas como justificativas.

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Por que a filosofia jurídica da primeira fase de Schmitt
se chama "decisionismo"?

Essa filosofia jurídica Schmittiana de primeira fase se chama "decisionismo" porque Schmitt diz que por detrás das normas existem sempre forças opostas tomando decisões. Alguém decide impor uma norma a alguém, e para isso se utiliza da força de que dispõe.

Esse outro alguém a quem a norma é imposta, decide se  vai seguila ou se vai correr o risco de sofrer as consequências recusando a imposição –– o que vai depender provavelmente da avaliação que fizer de suas próprias forças, mas pode depender também de outras coisas como princípios éticos por exemplo. Entretanto, para Schmitt o que está por detrás dos próprios princípios ético são também, no fundo, jogos de força como os do direito.

Cada um quer exercer seu poder (cada um é regido por sua "vontade de poder", diria Nietzsche).

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Uma filosofia jurídica como o decisionismo de Schmitt é perigosa?

Essa filosofia de Schmitt costuma ser considerada perigosa ou pelo menos arriscada precisamente pelo seu decisionismo, porque coloca tudo o que se dá no campo jurídico nas mãos de agentes que tomam suas decisões sem nenhuma base racional ou moralmente justificada. Numa filosofia jurídica assim, as instituições perdem a sua força e tudo passa a depender de pessoas, das decisões humanas, com todo o risco de erro humano e de contaminação por ambições e outras motivações pessoais que isto traz.

Em favor de Schmitt, neste caso, pode-se argumentar que ele não está propondo uma coisa, mas pura e simplesmente descrevendo os fatos, descrevendo a realidade cruamente como ela é, sem fantasias e idealizações, à maneira de Hobbes. Examinada nesses termos, a teoria decisionista de Schmitt passa a ter uma face crítica que a aproxima curiosamente da crítica do direito marxista, assim como também, por outro lado, da crítica do direito feita por Michel Foucault.

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Entretanto, mesmo nessa primeira fase da filosofia de Schmitt já encontramos elementos de sua conexão com um posicionamento político preocupantemente autoritário. Não é a toa que Schmitt costuma ser estudado como um pensador do estado de exceção –– aquela condição em que a separação entre os poderes executivo, legislativo e judiciário é suspensa provisoriamente por causa de alguma grave emergência. Schmitt trata o estado de exceção como o verdadeiro estado normal das coisasm oculto por detrás de uma fachada de normalidade jurídica e institucional, e declara que o poder soberano, no sentido hobbesiano de poder superior a qualquer outro dentro do Estado, é aquele que for capaz de decidir sobre essa condição de exceção.

Em Schmitt parece haver a noção de que há necessidade de um poder assim, e é famoso o debate entre Schmitt e Kelsen (outro grande pensador jurídico, aliás de ascendência judia) sobre quem seria o "guardião da Constituição", quem deveria estar "acima" da Constituição. A resposta de Kelsen nesse debate, simplificando, é ninguém, ou pelo menos nenhuma força personalizada, individual ou coletiva. A norma institucionalizada vale por si só.

A resposta de Schmitt aponta hobbesianamente na direção de alguém em posição superior à da Constituição –– com a missão de servir como seu guardião,  mas com um poder decisório suficiente para o estabelecimento de um estado de exceção. Isso porque uma Constituição não seria capaz de prever a situação em que o estado de exceção seria necessário. Por mais previsões que uma Constituição procurasse fazer de situações assim, elas nunca dariam conta dos imprevistos da realidade social e política. Um posicionamento perigoso para democracias.

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Como foi que Schmitt reduziu sua filosofia
a uma mera ideologia política nazista?

Schmitt fez isso ao se afastar de seu decisionismo puro da primeira fase e combiná-lo com um institucionalismo (valorização das instituições), numa espécie de terceira via a meio de caminho entre o decisionismo e o normativismo (valorização das normas) –– pois o nazismo, uma vez no poder, havia estabelecido normas e instituições para manutenção do Estado ditatorial de Hitler, normas e instituições que precisavam de justificação para se sustentarem na propaganda do partido junto à opinião publica, e a ideia inicial de Schmitt de que tudo não passava de jogo de imposições decididas irracionalmente passou a parecer inadequada para o partido.

Essa fase da produção de Schmitt ficou conhecida como "pensamento da ordem concreta".

Schmitt diz que ao invés de pensarmos apenas em Estado e Povo, deveríamos pensar em Estado, Movimento e Povo, divisão em que o poder de conduzir o Estado e o Povo está no Movimento –– mais precisamente, no Movimento Nazista, capaz de colocar o Estado a serviço da unidade do Povo, superando os conflitos dos jogos de forças em oposição.

Para isso seriam necessárias "garantias institucionais" em defesa de "direitos fundamentais", mas ao contrário do que se pode imaginar, esses "direitos fundamentais" não seriam de modo algum direitos humanos universais dos indivíduos, e sim direitos da nação como um todo definidos pelo Movimento, e as tais "garantias institucionais" seriam garantias para a continuidade e o bom funcionamento das próprias instituições contra as liberdades individuais que poderiam pôlas em risco, e não garantias oferecidas pelas instituições para os indivíduos.

Schmitt, assim, transformava seu pensamento em um instrumento de justificação da ordem concreta estabelecida pelo movimento nazista na Alemanha.

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