OBS.: Todos os posicionamentos colocados em seções "Posição pessoal" como esta estão sempre sujeitos a alterações, sobretudo a acréscimos e reinterpretações, mas também possíveis correções. Por isso os textos estarão claramente datados, e os mais recentes podem vir a apresentar essas correções, reinterpretações ou acréscimos.
sumário
(revisado em Junho de 2015)
O principal daquilo que colho de Aristóteles, como influência sobre meu pensamento pessoal, é talvez o exame do mundo a partir da perspectiva de que ele é composto de processos de geração, desenvolvimento e corrupção até a morte do processo. Mas entendo esses processos de modo diferente, embora não deixe de me utilizar de certos conceitos utilizados por ele nesse exame.
No exame desses processos, Aristóteles se vale da observação empírica e, onde ela deixa de ser operável, passa a valer-se daquele modo de raciocinar que formulou sob a alcunha de "lógica". Aceito esse lado empírico da teoria aristotélica, recuso esse lado logicista, assim como recuso também a pesada carga de idealismo que Aristóteles não deixa de herdar de seu mestre Platão.
É que Aristóteles julga detectar, como orientação máxima de todos esses processos, aquilo a que chama de "primeiro motor": algo perfeito que se caracterizaria como realização plena, e completa em todos os sentidos — de modo que nesse "primeiro motor", não resta nenhum potencial mais a ser realizado, ele se basta a si mesmo, já é em si mesmo "pronto" desde sempre, perfeito.
Minha primeira contraposição (aguém poderia dizer que bem afinada com meu ateísmo) é a essa noção de um "primeiro motor" perfeito — que seria, na linguagem de Aristóteles, a "causa final" (perfeita e exterior ao mundo) de todos os processos mundanos. Trata-se de um resto de platonismo em Aristóteles. Uma reedição, mais lógica e friamente raciocinada, da noção platônica de um Supremo Bem.
Deste ponto de vista aristotélico (contaminado de platonismo e do qual discordo radicalmente), todos os processos mundanos se desenvolvem necessariamente no sentido do seu melhor, e o seu "melhor" seria a sua completude, a sua condição mais completa possível, aquela que mais se aproxima do que é o primeiro motor (a única realidade absolutamente completa e por isso perfeita).
Destarte quando não está se desenvolvendo no sentido de sua condição mais completa e melhor, o processo está caminhando para sua morte: é um processo de "corrupção", de degeneração. Está se afastando cada vez mais do modelo de perfeição e completude oferecido pelo primeiro motor, e se tornando um processo cada vez mais incompleto, deficiente, carente de perfeição. Mais precisamente, carente daquilo que lhe falta para a sua específica perfeição — de acordo com a forma ideal que lhe seria própria se pudesse atingir essa sua perfeição. Mas não pode, nada neste mundo pode: só o primeiro motor é perfeito, e está fora do mundo, assim como o Supremo Bem de Platão.
Entretanto não é impossível que alguém interprete Aristóteles no sentido de que o tal primeiro motor não seria, afinal, uma substância que existe realmente fora deste mundo, à maneira platônica. Seria, isto sim, uma realidade puramente lógica, uma conclusão necessária do puro raciocínio lógico, e por isso, apenas por isso, real... real no mesmo sentido em que, se é verdade que 2 + 3 =5, então por isso mesmo é lógico e real (incontestável inclusive) que 5 - 3 = 2.
Pois bem: em nenhuma das duas interpretações aceito a noção aristotélica de um "primeiro motor" (embora considere a interpretação mais radicalmente platonizante ainda pior que a logicista).
E derivada desse resto platônico cravado no próprio coração do empirismo aristotélico como um punhal, temos ainda mais um resquício do (em meu ponto de vista quase absolutamente inaceitável) platonismo: a noção de que cada coisa no mundo tem sua forma ideal — reedição daquilo que Platão chamava às vezes de idéia, às vezes de eidos, e cuja melhor tradução talvez seja "essência".
Segundo Aristóteles cada coisa, então, caminha no sentido de ir preenchendo e completando uma "forma" essencial que, idealmente (se fosse possível) a caracterizaria quando atingisse a sua perfeição.
Valorizo a observação empírica dos processos mundanos, mas:
1) tendo a radicalizá-la eliminando muito (senão tudo) de seus resquíquios platônicos — à maneira do que Maquiavel, leitor desplatonizante de Aristóteles, fez em sua época. Apesar de que, por outro lado, combino meu empirismo com uma fortíssima dose de fenomenismo de perfil cético, ao invés de confiar no caráter puramente empírico dos dados que parecem empíricos (isto é, que parecem captados do munto extramental apenas e diretamente por nossos órgãos sensoriais).
Em minhas percepções sensoriais, não me parece tão simples, separar o que é do mundo fora de mim e o que é subjetivo, seja por minha condição humana, seja pela presença de minha subjetividade psicológica pessoal.
Na verdade, minha tendência é, à maneira dos céticos, não estabelecer essa distinção, e trabalhar com o que me aparece tal como me aparece, sem julgar o quanto tem de subjetivo ou de objetivo e inclusive nem mesmo se é de algum modo verdadeiro ou não. Apenas lido com as aparências tal como ocorrem para mim, e tal como me parece interessante ou por alguma razão útil lidar com elas.
2) como as coisas efetivamente parecem-me ocorrer processualmente, e como me parece por diversas razões interessante e útil levá-las adiante pensadas desse modo, tenho uma perspectiva processual das coisas, assim como a aristotélica, mas entendo o ciclo desses processos de modo diferente daquele de Aristóteles, embora me utilize, em meio a outros conceitos completamente diferentes, de uma reinterpretação livre de alguns dos conceitos aristotélicos, sobretudo suas noções de ato e potência. A noção de "potência", em especial, me interessa.
(revisado em junho de 2015)
Antes de continuarmos o resumo dos meus posicionamentos em relação a Aristóteles, um alerta.
O entendido em Aristóteles logo perceberá que a maneira como entendo esse filósofo já é uma interpretação pessoal, e quando digo que aceito certos traços do pensamento dele, e rejeito outros, estou na verdade aceitando ou rejeitando traços de um Aristóteles que já não é o original, mas um interpretado por mim. O conhecedor do assunto notará, em particular, que tendo a compreender a filosofia de Aristóteles como um todo coerentemente articulado — o que já não é algo de consenso entre os estudiosos, aliás, muito pelo contrário.
Os pensamentos aristotélicos nos aparecem no primeiro contato distribuídos em temas e áreas muito diversificados, e não é tão fácil e simples conectá-los em um todo coerente. A Lógica de Aristóteles, por exemplo, não chegou até nós como uma obra completa, clara, precisa e coerente, mas como um aglomerado de anotações suas e de alunos seus, muita coisa inclusive dispersa em livros tratando de assuntos diferentes — e as conexões entre o que ele diz no campo da lógica e o que diz no sentido da observação empírica de processos no mundo não são tão diretas quanto minha interpretação pode fazer parecer.
De qualquer modo me parece poder dizer sem muito risco de erro que Aristóteles opera sua observação empírica de todos os processos mundanos (físicos inclusive, mas não exclusivamente os físicos) a partir de conceitos que estão por exemplo em sua Metafísica e que são bastante conhecidos. (O fato de serem conceitos abstratos, e portanto algo que está para além do plano físico, não impede que sirvam como parte de um método de observação empírica dos processos que ocorrem inclusive no plano físico.)
A saber: além do conceito de primeiro motor imóvel, ele se utiliza também de sua teoria das 4 causas e de sua teoria da Potência e do Ato. Segundo ele, na observação dos processos é preciso detectar, em cada momento do processo, o que já está realizado nele (que é aquilo que Aristóteles diz já estar "em Ato", já estar atuando neste mundo em meio a outros processos, porque já tomou forma parcialmente, de modo que está presente no mundo). E também é preciso detectar o que ainda é apenas potencial, apenas uma possibilidade que pode vir a se realizar ou não no futuro, uma possível forma que aquele processo, tal como se encontra no ponto em que o examinamos, pode vir a assumir no futuro.
Em cada ponto de desenvolvimento de um processo, há muitas possíveis formas que esse processo pode vir a assumir em ato no futuro. Mas são todas meras variações de uma mesma forma ideal que é essencial ao processo, determinada pelo sentido em que ele está se desenvolvendo, e que é uma forma perfeita, que ele nunca atingirá de fato — mas que no entanto, define o que é "essencial" (e não meramente "acidental") nesse processo, porque é a conclusão lógica (logicamente real) desse processo.
O que é meramente "acidental" no processo são as pequenas variações que não impedem que esse processo seja ainda e sempre essencialmente o mesmo processo. Por exemplo: uma semente de laranjeira já tem o potencial de assumir todas aquelas formas que uma laranjeira pode vir a assumir em ato, isto é, aqui neste mundo... uma laranjeira com mais galhos ou menos, com aquele galho torcido para cá, aquele outro para lá etc. etc. etc. Mas sua forma essencial é a simplesmente a de uma laranjeira — e se desenvolverá rumo à forma mais perfeita, a mais estrita e puramente essencial de uma laranjeira que lhe for possível atingir. Contudo não há essências que se realizem no mundo sem inúmeras variações que lhe são meramente acidentais, e que impedem a realização dessa essência em toda a sua pureza.
Este é o modo como entendo o raciocínio de Aristóteles, quando ele usa as noções de Ato e Potência em relação aos processos que ocorrem no mundo.
(revisado em junho de 2015)
Quanto a mim... trabalho também com a noção de diversos potenciais inscritos em cada momento, em cada "corte" por assim dizer "fotográfico" (já fazendo alusão a Flusser) do fluxo (por assim dizer "histórico", em nova alusão a Flusser) de um processo. Mas digo que um processo em ato (para usar essa outra expressão aristotélica, que na verdade não costumo usar) não tem nada dessa necessária univocidade que Aristóteles parece ver nos processos.
O que é algo unívoco? Essa expressão se refere a algo que se exprime em uma voz só, no sentido de que entendemos o que significa e significa uma coisa só. Usamos dizer que algo é unívoco quando tem um único sentido que podemos distinguir claramente.
Para Aristóteles, aquilo que se realiza em ato parece ser (assim como mais tarde para Peirce) uma seleção de um único e exclusivo dos inúmeros potenciais que não são realidades mundanas, que são meras possibilidades. Uma possibilidade é materializada no presente e as outras desaparecem, então surgem de imediato nesse presente materializado novas possibilidades das quais novamente uma, única e exclusivamente, será realizada no futuro. E assim por diante. Assim, em cada momento presente, o que temos é uma multiplicidade de potenciais, mas apenas uma única e unívoca realidade "em ato", isto é, realizada e captável de imediato pelos nossos órgãos sensoriais.
Pois bem: digo que Aristóteles (e Peirce, e na verdade todo um imenso senso comum dominante na história da filosofia mundial) submerge aqui em um puro e simples preconceito fundado na tendência psicológica (para não dizer psicopatológica) humana para a abstração.
O preconceito está em que colocam-se as coisas como se houvesse uma realidade presente e imediata unívoca, dotada de um único sentido, como se cada coisa (para usarmos a linguagem da lógica) fosse idêntica a si mesma e não pudesse ser várias coisas ao mesmo tempo. E como se a pluralidade só existisse no campo das possibilidades futuras (ainda não realizadas, ainda não presentes e imediatamente em contato conosco).
Por esse mesmo preconceito, trata-se cada coisa no mundo como se ela fosse uma única e mesma coisa, e a multiplicidade só existisse nas variadas interpretações que mentalmente fazemos dessas coisas. Digo que não. Digo que as aparências que nos ocorrem, as coisas que nos aparecem tal como nos aparecem, podem apresentar em si mesmas os mais variados graus da univocidade à pluriunivodidade, da unidade à multiplicidade.
Mesmo que estejamos acostumados e até mesmo treinados para não aceitarmos isto em nossas percepções, e as reinterpretarmos imediatamente depois de as percebermos a partir de uma visão mais abstrata das coisas, esquecendo aquilo que estava evidente em nossa própria percepção. Especialmente quando começamos a falar a respeito de nossas percepções. Pois na fala, as distorcemos para nós mesmos e para os outros, e isto afeta inclusive nossa percepção a posteriori — de modo que passamos a precisar, à maneira dos artistas, de um certo treinamento de nossos órgãos sensíveis para tornarmos a captar as coisas de maneira desabstraída.
Entretanto o treinamento só é necessário para nos reacostumarmos a uma perspectiva mais desabstraída, porque captar uma vez alguma coisa sem esse nosso haitual excesso de abstração não é necessariamente um esforço assim tão difícil.
A dificuldade pode variar um pouco de pessoa para pessoa, mas nunca é realmente algo assim tão difícil de se fazer uma vez ou outra. O difícil é manter essa perspectiva na vida diária, para tudo aquilo de que vamos nos apercebendo momento após momento. É algo como exercitar a capacidade de ver, ouvir, saborear, cheirar e captar tatilmente as coisas com mais atenção (para não falarmos dos nossos sentidos orientadores de tipo vestibular, que nos trazem por exemplo a sensação de estarmos na vertical, na horizontal, na diagonal...).
Essa maior atenção (típica dos artistas) nos mostra, surpreendentemente, que as próprias aparências paradoxalmente não são como aparecem, ou melhor, não são captadas de imediato do modo como ficam para nós quando nos utilizamos delas em nossas ocupações diárias. Há uma degradação (entrópica) eu diria, e muito rápida, da riqueza das nossas percepções, contaminada por uma abstração que as toma de nós muito velozmente, mas nunca definitivamente, porque essa abstração é apenas um véu de desatenção que as recobre, como que embaçando-as. A psicologia da Gestalt nos dá, aliás, um atestado brilhante disto, em seus estudos sobre a percepção.
A imensa maioria das aparências captadas por nós sem abstração são bem mais ricas e ambíguas ou poliunívocas, bem menos precisas e homogêneas do que costumamos pensá-las no dia a dia.
Basta pensarmos, por exemplo, nas paredes que descrevemos como lisas e de cor homogênea... paremos um pouco com isso, e tornemos a olhar para essas paredes, simplesmente olhá-las. De perto e atentamente, examinando suas pequenas falhas e reentrâncias, suas pequenas manchas de sujeira ou desgaste da cor, as variações de tom devido a reflexos de luzes que a atingem de maneira não homogênea etc. etc. etc.
Há muitas coisas nas quais, inclusive, detectamos linhas e contornos que não estão realmente ali, ou não por inteiro, mas que por um processo mental de abstração generalizante, passamos rapidamente a tratar como se fossem linhas de contorno contínuas e precisas.
Quem já teve oportunidade de examinar os estudos sobre mensagens subliminares tel alguma noção a respeito do que estou dizendo. Exceto pelo fato de que não estou falando de mensagens propositalmente inscritas por alguém nas coisas. Estou dizendo que a própria realidade sensorial e perceptível, que está à nossa volta o tempo todo, é inteiramente carregada de subliminariedades às quais simplesmente não damos atenção.
Leia-se a respeito o interessante livro Subliminar de Leonard Mlodinow. Fala sobre o modo como nosso cérebro funciona em relação a isto. Mas ele prefere dar atenção àquele nível de incertezas perceptivas com o qual já não conseguiríamos conviver, e que por isso é reduzido pelas abstrações operadas no cérebro, que são, no limite, uma questão de sobrevivência, embora muitas vezes nos conduzam a péssimos erros em nossos julgamentos acerca da realidade.
O que estou dizendo é que há um nivel de desabstração com o qual podemos sim conviver, e muitíssimo bem, e que não seria realmente preciso um estudo sobre o cérebro para nos darmos conta disto: o treinamento de nossa sensibilidade artística poderia fazê-lo com muito melhor resultado.
Portanto (considerando tudo o que já disse nos demais tópicos acima), digo que se há, sim, perceptivelmente certas coisas que se comportam tal como descritas por Aristóteles (e Peirce, e o senso comum), isso por outro lado não pode ser generalizado para todas as coisas que nos aparecem. E inclusive muito pelo contrário, o que realmente e de imediato se comporta nas aparências, primitivamente, desse modo unívoco considerado por Aristóteles e Peirce, é um caso bem particular e nem sempre fácil de se detectar, porque a maioria das aparências não se dá imediatamente assim, com perfeita homogeneidade, clareza e distinção.
Nesse caso específico apontado pelas perspectivas de Aristóteles e Peirce, estamos falando de coisas que em si mesmas não têm nenhuma multiplicidade de sentidos, mas apenas um sentido que lhes é essencial e as descreve - e para essas coisas, podemos dizer que se parecem múltiplas é porque estamos fazendo mentalmente diversas interpretações de cada uma delas, mas cada uma delas é uma só.
Para sermos mais exatos, podemos dizer que neste caso específico, cada uma dessas coisas é um só processo que está aí se desenvolvendo no mundo (seja qual for o ritmo desse desenvolvimento) e tem um único sentido em que se desenvolve a partir de sua geração, até se corromper e morrer, ou se acabar, perder seus sentido, perder seu rumo característico, deixar de existir.
Mas repito: este é um caso muito específico e não pode ser generalizado. Sou contrário a essa generalização aristotélica, não a aceito. Digo que ela reduz (perigosamente, inclusive) nossa percepção do mundo ao nosso redor. Que ela nos despotencializa a vida em um sentido para o qual Nietzsche e os surrealistas já nos lançaram o melhor dos alarmes, e com consequências perniciosas contra as quais as quais o anarco-surrealismo de Artaud e os nietzscheanismos de Foucault e da dupla Desleuze-Guatary já tentaram nos armar.
Existem alguns sentidos precisos nos quais têm sido encaminhadas em conjunto as nossas humanas abstrações, que simplificam e empobrecem a nossa realidade perceptiva, e entre eles, os dominantes não são os que conduzem à nossa sobrevivência como organismos — são, isso sim, os que se desenvolvem sob a batuta dos mecanismos de funcionamento do capitalismo e da tecnocracia, mais do que quaisquer outros. Portanto, trata-se de uma questão política, e não apenas estética e ético e vivencial.
Cada processo que ocorre no campo aparencial que nos cerca contém em si uma multiplicidade de sentidos paralelos e nem sempre bem delineados, uma multiplicidade de rumos que vão se desenvolvendo na maioria dos casos simultaneamente e com frequência confundindo-se uns aos outros. E não existe propriamente um sentido essencial em relação ao qual os outros sejam meramente "acidentais" e menos caracterizantes — como pretendia Aristóteles. Muitíssimo pelo contrário: no meu entendimento, o que se pode talvez considerar como o "sentido essencial" de um processo é pura e simplesmente uma resultante vetorial de todos os microprocessos, cada qual com seu sentido próprio, que compõem esse processo maior.
E o "sentido próprio" (ou "essencial", mas prefiro mesmo a palavra "próprio", que aprendi com Stirner) de cada um desses microprocessos componentes de um outro processo é por sua vez a mera resultante vetorial, também, de outros processos componentes, e assim ad infinitum. A palavra "componente", aqui, não significa que tal processo esteja necessariamente "dentro" do outro... e inclusive a expressão "microprocesso" na verdade não é a mais correta, porque o processo componente só é "menor" quando o examinamos do ponto de vista daquele que é composto por ele e que o toma como um entre outros componentes.
Para mim, portanto, a "essência" não passa de uma espécie de "fantasmagoria" abstrata com a qual recobrimos o que na verdade é a mera (e variável, inclusive) somatória de inúmeros vetores que interagem uns com os outros e acabam, no conjunto, arrastando-se todos em um sentido conjunto aproximado, variável e impreciso justamente porque só por abstração o ententemos como "um".
As variações de algo não são "acidentes" que se penduram na essência e não precisariam estar ali: são a expressão direta de interações processuais no mundo, e a "essência" é que não passa de uma resultante incerta e que emerge e reemerge (oscilando a cada momento) dessas interações... e à qual, por abstração subjetiva, atribuímos essa "unidade" fantasmagórica de sentido em larga medida imaginária.
Quanto aos quatro tipos de "causas" que, segundo Aristóteles, participam do desenvolvimento desses processos — causas material, formal, eficiente e final — digo o seguinte. A noção de "causa", hoje já percebemos que não se ajusta bem ao que seria melhor chamar simplesmente de "matéria", "forma" e "finalidade". Mas temos a infelicidade de ainda atribuirmos "causa" àquilo que julgamos que produz um efeito sobre outra coisa, em suma àquilo que Aristóteles chamava de "causa eficiente".
De minha parte, concordo totalmente com Proudhon quanto a esta questão (leiam-se os primeiros três capítulos do livro Da criação da ordem na humanidade ou Princípios de organização política, que serviu de matéria prima a minha tese de Doutoramento em filosofia, acessível na seção Textos e Obras do site ProjetoQuem).
Apoiado em Proudhon — que radicaliza nisto a crítica de Hume dando-lhe um aspecto político-sociológico e histórico-antropológico — digo que a própria noção de "causalidade" não passa de uma histórica projeção antropomórfica, que parte das relações de poder que vivenciamos nos relacionamentos sociais, e se impõe hipnoticamente no campo do pensamento, interferindo (de maneira patológica e quase incontornável) nos nossos raciocínios. Supomos que algo, a que chamamos de "causa" exerce poder sobre alguma outra coisa, à qual chamamos de "efeito".
O raciocínio humano não precisa disso. Mas tem uma imensa dificuldade para se tornar refinado e liberto o suficiente para escapar disso. Consegue ocasionalmente, mas raramente consegue se manter por muito tempo de fato como um raciocínio livre. Destarte é preciso aprender a detectar quando e avaliar o quanto cada uma dessas coisas está ocorrendo em um processo de raciocínio, e a cultivar o raciocínio livre (e que nem por isso seja menos raciocínio) contra as interferências da causalidade, e não apoiado nela.
(Apenas uma observação de passagem, antes que alguém tolamente julgue um delírio isto que estou dizendo: a lógica matemática atual, por exemplo, já consegue se afastar consideravelmente das noções de "causa" e "efeito" — na verdade oficialmente ela não as utiliza... mas ainda carrega reflexos indiretos dessas noções. Por outro lado, infelizmente, essa lógica, no meu entender, acaba caindo em formulações de tipo tão indesejável quanto as do tipo "causalista". Proudhon já fazia também críticas nesta direção).
A noção aristotélica de "finalidade" — muito criticada desde Descartes até os dias atuais —, descontando o fato de que a mim também não parece cabível considerá-la como "causa" do que quer que seja, tem não obstante algo de muito útil e interessante: basta raciocinar mais ou menos como já raciocinei quanto às noções de "essencial" e "acidental".
A finalidade não é senão uma mera destinação para a qual ruma um processo, se considerarmos o caminho seguido por ele até o momento, e o prolongarmos imaginariamente. A "finalidade" é a resultante inscrita no rumo de desenvolvimento desse processo... se ele continuar nesse mesmo rumo. Nada mais que isso.
Mas isso já é muito. Compreender para onde está se encaminhando um processo segundo o rumo que ele vem seguindo ajuda a compreender melhor esse processo, e manter-se atento quanto a isto ajuda a compreender os desvios e transformações desse processo. Apenas diria que não há uma finalidade fixa, porque a finalidade é imanente ao próprio processo, está inscrita no seu sentido de desenvolvimento e, necessariamente, o acompanha em suas alterações de rumo. E é precisamente isto o que ajuda a compreender os processos.
Quando projetamos mentalmente uma finalidade para um processo, nós a projetamos a partir de processos já existentes, em nós e no próprio processo em questão — que também se altera, com nossa própria interação observadora como um dos demais processos componentes que o formam, seja qual for o grau de relevância desse componente que é a nossa presnça observadora em relação aos demais componentes. Marx já avançou algo nessa direção, em sua noção de "práxis"... mas nisto estava apenas ecoando à sua maneira o que Proudhon já vinha dizendo em diversos de seus textos.
Quanto às noções de "matéria" e "forma", a única coisa que consigo sinceramente pensar é... que espécie de esquisofrenia alucinatória (ou patologia platônica) levou homens como Aristóteles a separarem as formas materiais em dois conceitos? E ainda pior: o que levou Aristóteles a pretender fixar alguma forma como "puramente lógica" ou então "metafísica", como se uma forma pudesse não estar materializada?
Por outro lado, acho compreensível que Aristóteles tenha pretendido dar a seus connceitos uma utilidade que fosse além da mera observação de processos que se dão estritamente nas coisas materiais. Quando Aristóteles fala em "causas materiais" de algo, não está falando apenas e estritamente de matéria física, mas dos "conteúdos" de algo, daquilo de que esse algo é feito, daquilo que se junta para, em conjunto e sob a ação de certas forças (e segundo ele, de certa finalidade), tomar a forma desse algo.
Indo em direção similar, procuro também reinterpretar o conceito de "matéria" reduzindo-a caricaturalmente a especificamente uma de suas características: trabalho com a ideia de que é "material" aquilo que oferece alguma resistência a alterações, na medida em que essa resistência dependa diretamente da interaçõa entre esse algo e a força à qual esse algo resiste. E com isso quero dizer na medida em que não dependa apenas do contexto desse algo e das relações que esse algo tem com outras coisas nesse contexto.
Quando a resistência de algo depende do seu contexto e de suas relações com o que está no contexto (por exemplo a resistência que o significado de uma palavra oferece às alterações), direi que já não se trata de algo propriamente "material", mas de algo "submaterial".
Tudo o que é material ou submaterial tem a sua "forma". Então digo que "forma", para mim, é não apenas o contorno de algo material, os limites de uma determinada porção de matéria, mas em sentido mais amplo o modo de ser de algo. De modo mais preciso (já que não há propriamente uma "essência" à moda platônica), digo que a forma de algo é o conjunto dos traços característicos desse algo, que o descrevem e que, em conjunto ali, tendem a persistir nesse algo, a oferecer resistência a alterações.
Como já havia feito a crítica à noção (infelizmente ainda atual) de causa eficiente (que produz efeito), o leitor deve no mínimo estranhar que eu ainda utilize termos como "forças", "resistência" etc., que diante daquela crítica proudhoniana que não hesito em assinar em baixo, passam a ser dignos de um bom sorriso irônico. O uso dessas metáforas saborosamente materialistas por outro ainda infelizmente corre o rismo de nos manter apegados ao antropomorfismo pelo, conforme já criticado, qual projetamos no plano intelectual nossas relações de poder. Guardo esta discussão para mais tarde.
Apenas antecipo ao leitor que estou ciente do que estou fazendo, e que meu materialismo metafórico tem conexões com o que chamo de "política das palavras".
Pois há toda uma estratégia política a considerar quando escolhemos os termos que utilizamos no seio das relações de poder vigentes, em uma formulação filosófica nossa... (as palavras, em sua submaterialidade, não são neutras, seus sentidos oferecem resistência às nossas ações redefinidoras e às dos outros, provocando distinções e associações — elas nos posicionam politicamente, inclusive).
Assim, não se trata de simplesmente ignorar as relações de poder atualmente vigentes para construir um texto perfeitamente coerente com seus valores, mas de combatê-las de maneira realista, tal como estão aí, para poder defender de maneira também realista, e mais eficaz, os valores que se pretende defender. Uma filosofia se constrói inserida no mundo, e não deve ignorar isto em busca de uma coerência puramente lógica e interna, mas esquisofrênica.
O modo como utilizamos as palavras também afeta essa resistência que elas possuem, contribuindo para enrigecê-las ou maleabilizá-las na medida em que esse modo de utilizá-las se espalhe. Sexto Empirico já observava isso ao falar sobre o "rigor" no uso dos conceitos e opor a esse rigor o "discurso frouxo" defendido pelos céticos - como se pode conferir no livro I de sua obra Hipotiposis Pirronianas - mas (uma pena) tocou na questão sem explorá-la suficientemente a fundo e em todas as suas implicações.
(revisado em junho de 2015)
Quanto à lógica de Aristóteles... aqui meu posicionamento pode ser facilmente traçado em linhas bem gerais se acompanharmos um autor que tentou pensar diferentes obras aristotélicas como um conjunto coerente. Falo de Olavo de Carvalho e de sua teoria dos quatro discursos.
Carvalho, em um pequeno livro a meu ver muito bom, procurou conectar de maneira coerente quatro temas bem diversos tratados por Aristóteles em textos separados: a poética, a retórica, a dialética e a lógica. A teoria de Carvalho é a de que Aristóteles pretendeu construir, com o conjunto do que diz sobre esses temas, uma teoria dos diferentes tipos de discurso e do valor que cada um deles apresenta ou não para a pesquisa da verdade.
Desta perspectiva, os quatro tipos de discurso — poetico, retórico, dialético e lógico — considerados nesta mesma sequência, estariam colocados em ordem do menos propício para a pesquisa da verdade (o discurso poético, que tem declaradamente outra finalidade) até o mais propício para isso (o discurso lógico). Como a busca da verdade seria o critério supremo, aqui, de avaliação desses discursos, o discurso lógico seria o mais valoroso de todos, o mais importante... e o discurso poético o menos.
Minha posição quanto ao valor que deve ser atribuído a cada um desses diferentes tipos de discurso é aproximadamente (na verdade quase) o inverso desta. E é claro, o leitor pode extrair daí inúmeras considerações, sobre implicações as mais diversas disto no conjunto do meu pensamento. Julgo que neste sentido será inevitável uma aproximação de meu posicionamento com supervalorização das metáforas por parte de Nietzsche, dos duplos sentidos, ambiguidades significativas etc... sobretudo em seus usos poéticos, mas também em seus usos retóricos.