Antes de qualquer coisa... NÃO EXISTE bibliografia filosófica de Sócrates (no sentido de uma bibliografia escrita por ele). Existe apenas bibliografia sobre Sócrates (escrita por outros).
Sócrates nunca escreveu um livro ou texto de filosofia, e o que sabemos dele é através de outras fontes que registraram seus pensamentos ou seus feitos.
As fontes que trazem mais informações de sua filosofia são livros escritos por seus alunos Platão e Xenofonte. Mas quantidade não é qualidade.
Os estudiosos do assunto costumam considerar que Xenofonte pode não ter entendido Sócrates em toda a sua complexidade, pecando nesse sentido por falta de brilho, e que Platão, por outro lado, falha como referência no sentido oposto, por excesso de brilho: é que Platão foi aos poucos desenvolvendo sua própria teoria, que se tornou ainda mais famosa e prestigiada que a de Sócrates. Mas ele fez isso usando sempre o Sócrates como um personagem que servia como porta-voz daquilo que ele (Platão) tinha a dizer.
Assim, os costuma-se considerar que os livros de juventude, quando Platão ainda estava sob muita influência de Sócrates e sua própria teoria ainda estava apenas levemente esboçada, são os mais confiáveis como referência. Porque neles, com prováveis acertos e possíveis erros e pequenas deturpações das ideias originais, pelo menos o que Platão pretendia passar ao leitor ainda eram — ao que tudo indica — os pensamentos de seu mestre Sócrates.
Por que a fase de juventude, "socrática", também pode ser chamada de "aporética"?
Responder isso é importante para os estudiosos de Sócrates, porque ajuda muito a compreender traços importantes de sua filosofia.
Os textos de juventude de Platão — que se supõe estarem bem mais próximos do pensamento original de Sócrates — são chamados de "aporéticos" no sentido de que não dão passagem para chegarmos a nenhuma "verdade" ou "resposta definitiva" a respeito de nada. O personagem principal desses textos é sempre Sócrates.
Mais tarde, já com sua teoria construída, Platão ainda continuou usando Sócrates como personagem principal em seus livros, e é isso o que causa tanta dificuldade para separá-lo de Sócrates. Platão deixou o personagem Sócrates de lado apenas no final de sua produção filosófica.
Então, para entender o Sócrates original, é preciso começar detectando as diferenças entre as duas fases de Platão.
Quem levantou essa linha de raciocínio, curiosamente, não foram os estudiosos de Sócrates (que apenas se aproveitaram dela), mas os estudiosos de Platão. Queriam descobrir o que era mais puramente de Platão e o que ainda era apenas uma interpretação platônica de Sócrates. E seus estudos os levaram a dividir a ´rodução toda de Platão em duas grandes fases: a fase de juventude (que também passaram a chamar de fase "socrática", ou de fase "aporética"); e a fase de maturidade, já definitivamente platônica, e não socrática (ainda que Platão nunca tenha deixado de apresentar alguns traços da influência de seu mestre). A palavra "aporética", em grego, significa "sem poros", sem passagem.
Os textos platônicos da fase madura, ao contrário daqueles "aporéticos" da sua juventude, partem da pressuposição de que existem sim verdades superiores, que estão em um plano puramente espiritual, para além deste mundo material (considerado imperfeito e inferior). Ao que tudo indica, Sócrates deixava em suspenso se realmente existem tais verdades ou não, mas achava importante colocá-las como objetivo, mesmo que não existissem. Já Platão (o Platão maduro, livre do domínio da influência socrática) defende não apenas firmemente a existência dessas verdades, mas também a noção de que existe todo um conjunto de procedimentos necessário (e descoberto por ele) para a busca dessas verdades — procedimentos que passam entre outras coisas por um certo tipo muito específico de diálogo racional.
Platão defende de que, seguindo esses procedimentos descobertos por ele, o pesquisador pode sim atingir essas verdades, ao menos tocando-as, por assim dizer, com a alma. Mas também pode, além disso, se aproximar cada vez mais, com passos consideravelmente sólidos e seguros, de uma única grande verdade, superior a todas as outras (o Supremo Bem), que ele vai assimilando gradualmente mas nunca completamente.
Entretanto, tocar uma verdade com a alma (estou fazendo aqui um esforço de tradução em termos simples da coisa, que é mais complexa) segundo Platão, não significa que se conseguirá o mais importante, que é captá-la em palavras (ou em alguma qualquer forma de expressão), oralmente ou por escrito. E captá-las em linguagem definindo essas verdades sem confundi-las umas com as outras, para poder compreender melhor as relações (ou mais precisamente as verdades superiores, de outro nível, ainda mais essenciais) que as interconectam.
Toda essa temática das verdades é de Platão, construída em sua maturidade. Foi preciso resumi-la para podermos, por contraste, mostrar o que pode ser influência de Sócrates nos textos platônicos de juventude. Está claro que nesses textos de juventude, é provavelmente de Sócrates o que não combina bem com aquilo que Platão foi esboçando até estruturar firmemente ao passar para sua fase madura. Platão esboça já desde o início uma tendência a firmar verdades num plano espiritual superior, e procedimentos para nos aproximarmos delas. Mas na juventude, os esboços que já existem nessa direção aparecem contrastando em diversos pontos e cada vez mais com o caráter aporético que serve de orientação básica — herdada de Sócrates, é o que se pode e o que se costuma supor.
O fato de tais textos serem aporéticos revela provavelmente uma forte influência de Sócrates, então. São textos em que o personagem Sócrates, dialogando com outros, chega sempre sempre (junto com eles) a um impasse no qual nenhum dos lados pode ir adiante e chegar a alguma verdade (na verdade a palavra "impasse" tem o mesmo significado de "aporia").
Além disso, nesses textos platônicos de juventude os diálogos são feitos tanto de falas do personagem "Sócrates" quanto de falas dos seus adversários — falas que são igualmente longas, refinadas e inteligentemente argumentadas. Nos textos platônicos de maturidade é quase sempre só o personagem Socrates quem fala e argumenta (passando as ideias de Platão), e o outro apenas se manifesta pontualmente aqui e ali, para fazer alguma pergunta ou "completar" o que Sócrates já vinha falando.
Depois dessas considerações sobre Xenofonte e Platão, é preciso contudo observar que eles não são de maneira nenhuma as únicas fontes sobre Sócrates. Há diversas outras pessoas que citam pequenas passagens do pensamento nunca escrito de Sócrates.
Uma terceira fonte é o comediante Aristófanes, que escreveu uma peça de teatro (As nuvenspara ridicularizar Sócrates. As informações ditas na peça diretamente sobre sócrates são muito distorcidas e não valem quase nada. Mas examinar com cuidado os temas em que a crítica dele contra Sócrates fica mais agressiva, e o fato de a peça ser dirgida ao público e procurar lidar com os sentimentos desse público na época, oferecem excelente pista nos estudos sobre Sócrates.
Todavia, essas três fontes (Xenofonte, Platão e Aristófanes), ainda não são as únicas. Todas as escolas "socráticas menores" — estoicismo, hedonismo cirenáico, hedonismo epicurista, cinismo, ceticismo e a própria Academia platônica — se pretendem em alguma medida influenciadas por Sócrates, e algumas delas, como a cirenáica e a cínica, têm membros que viveram em época bem próxima à de Sócrates. Isso significa uma influência recebida provavelmente com maior chance de fidelidade em relação ao pensamento original de Sócrates, seja para adotar alguns pontos dele, seja para criticá-lo e tomar outro rumo em alguns pontos.
Assim, é preciso cruzar os dados trazidos por Platão, Xenofonte e Aristófanes com os dados fornecidos pelo exame dessas escolas socrático-menores (e pelo exame de citações e menções a Sócrates que aparecem também em outros penssadores de fora desse círculo, como Aristóteles).
Mas acima de tudo é preciso deixar claro que, tomando todos esses cuidados, o pesquisador logo se dá conta de que Sócrates tem razões filosóficas para evitar escrever, e que elas estão ligadas, entre outras coisas, à ideia de preservar, com a oralidade, uma filosofia viva, praticada com a presença do indivíduo enquanto pessoa de carne e osso inserida em condições de vida muito concretas e específicas. De modo que se percebe que tudo isto ainda não basta, pois estamos diante de um filósofo que, mais do que qualquer outro, se recusa a separar a sua vida prática e emocional diária, e o seu contexto de vida, daquilo que desenvolve como reflexão, que tende a se definir bem mais como uma prática do senso crítico integrada com a vida do que como uma "teoria" separada da vida e que deve corresponder às suas estruturas profundas, como ocorre em Platão.
Assim, no caso de Sócrates é preciso ainda cruzar muito cuidadosamente as informações sobre suas ideias com as informações sobre sua vida e seu contexto concretamente vivenciado, que é o da democracia direta de Atenas. Na vida concreta de Sócrates, as esferas privilegiadas como referência parecem ser suas relações com outras pessoas, seus envolvimento nas guerras da cidade contra outras, seu envolvimento nos conflitos e acontecimentos políticos, seu posicionamento entre as crenças religiosas e espirituais da cidade em geral, seu envolvimento com a esfera jurídica (sobretudo sua condenação à morte), e conjugando tudo isso, suas atitudes críticas e polêmicas em relação aos costumes e valores dos cidadãos atenienses (incluindo os sofistas, mas não limitando-se a eles).
Na Bibliografia Sobre o autor, além dos básicos Xenofonte, Platão e Aristófanes, você pode encontrar uma seleção de bons estudos que, trilhando esses caminhos, enfrentam com muito bons resultados o difícil, saboroso e desafiador problema histórico-filosófico de compreender realmente Sócrates (diferenciando-o de Platão).