Tópicos de vida e obra de Roland Barthes

Pesquisa & Texto da autoria de João Ribeiro de A. Borba

Revisão em Jan/2021

 

Sumário


 

Roland Barthes: um pensador da linguagem de percepções sutis,
questionador e questionado

 

Quem é Barthes?

Barthes é um estudioso das formas de comunicação verbais e não verbais e de suas interações com a cultura. Sua teoria avança também para os campos da estética e da crítica de arte e de literatura, e para os campos da sociologia e da psicologia social, oferecendo contribuições muito úteis também para os estudos de antropologia e de História — embora pessoalmente não tenha avançado na aplicação de seus métodos de estudo neste último terreno. Levantou também aplicações muito consistentes de sua teoria e de seus métodos no exame do que, após Foucault, vem sendo chamafo de micropolítica (o exame microscópico de relações de poder extra-oficiais difusas na sociedade).

Barthes, no entanto, nem sempre é claramente reconhecido como filósofo.

Em seu percurso intelectual, assimilou o marxismo, sendo influenciado sobretudo por Bertold Brecht, combinando depois a isso a fenomenologia e o estruturalismo. Mas manteve-se em todo o percurso ligado também à semiologia (próximo à linha de pensamento de Saussure). Sua teoria tende a oferecer recursos práticos para a reflexão e o exame crítico aprofundado de situações concretas com as quais nos deparamos na vida diária (por uma via similar à de filósofos outsiders como Vilém Flusser) — e destaca frequentemente os valores culturais envolvidos nas situações que examina, e suas implicações políticas e sociais.

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Barthes pode ser considerado filósofo?

Se Barthes pode ou não ser considerado filósofo, a princípio é uma questão em aberto.

O Dicionário dos filósofos de Denis Huisman abre o verbete "Barthes" (que vem logo após o verbete "Bakunin") dizendo o seguinte:

 

Barthes não é filósofo. É um crítico, talvez sociólogo, de qualquer modo um teórico. Nas suas obras finais, porém, faz incursões pela filosofia.

HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos.
São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 117.

 

O mesmo dicionário, no entanto, contraditoriamente reconhece mais adiante a presença de uma "filosofia do Eu" em uma pequena obra de Barthes sobre a música (O óbvio e o obtuso), e pouco mais à frente, mencionando além dela o exame de outra obra de Barthes, A câmara clara, realizado por um comentador (Eric Marty), acaba concluindo que:

 

Através da evocação desses últimos textos, acreditamos poder dizer que essa obra de crítico, de sociólogo de significações, mitos e textos, depreende-se ao fim e ao cabo uma filosofia do sujeito. uma teoria do Eu, que encontra sua identidade no reconhecimento de sua singularidade. Haveria em Barthes um filósofo.

HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos.
São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 117.

 

 

O dicionário acrescenta ainda que segundo Manfred Frank, professor de filosofia da Universidade de Dusseldorf, na Alemanha, Barthes é lido naquele país como filósofo, e mais lido nas universidades do que Sartre, porque costuma ser citado por um grupo conhecido como Escola de Constança e por teóricos da recepção, no campo dos estudos filosóficos sobre a questão da comunicação. Mas Susan Sontag por outro lado, apesar de leitora entusiasmada de Barthes, o vê apenas como escritor.

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De onde vem essa dificuldade de decidir se Barthes é filósofo ou não?

Essas ambiguidades quanto ao tratamento de Barthes como filósofo ou não derivam de duas circunstâncias.

Primeiramente, da dificuldade que existe quanto à definição da filosofia, definição que é ela própria um tema de debates filosóficos, o que causa dificuldades na classificação, quanto a isto, de autores que não percorrem os caminhos mais usuais entre os estudiosos da comunidade filosófica mundial. É o caso de autores que estudam temas incomuns por exemplo.

No caso de Barthes, o vemos examinando as linguagens dramáticas e visuais, e a comunicação como um todo, em sentido mais amplo e em suas relações com a cultura, enquanto a filosofia da linguagem (área filosófica que mais se aproxima disto) costuma limitar-se tradicionalmente à comunicação verbal — limitação que, a partir do século XX, alguns filósofos passaram a lutar explicitamente para que seja ultrapassada, como é o caso de Vilém Flusser, por exemplo (embora ele ainda se apegasse à tradição em sua fase inicial).

Esta é a razão pela qual Huisman, talvez pouco familiarizado com esses esforços de ultrapassagem no seio da própria filosofia, procura checar se há em Barthes uma filosofia do Eu... pois este é um tema com tradição e  bom lastro na história da filosofia, em especial nos campos da antropologia filosófica e da psicologia filosófica — principalmente a existencialista, junto à qual o posicionamento esboçado por Barthes neste sentido, aliás, o colocaria próximo não exatamente a Sartre, mencionado por Huisman, mas a Kierkegaard.

Se há (e provavelmente há) em Barthes uma filosofia do Eu, o centro da atenção dele enquanto pensador sem dúvida nenhuma não está aí, mas na questão da linguagem e, mais amplamente, na questão da comunicação como um todo. Barthes circula no mesmo campo de interesses que domina grande parte da filosofia de Flusser, assim como da filosofia de Jean Baudrillard.

Outra circunstância que conduz a dúvidas na classificação de Bartes como "filósofo" está no fato de que a filosofia não se desenvolve, não existe e não tem como existir (a não ser metaforicamente) fora da rede dos debates históricos da filosofia. E Barthes, se pretendemos considerá-lo como filósofo (como pretendo sim) teve então um desenvolvimento intelectual anormalmente lento nessa direção — visto que apenas no final da vida começa a se preocupar mais com a insersão direta e explícita de sua obra de pensamento nos debates históricos da filosofia, passando a confrontá-la argumentativamente com outras obras, de outros pensadores, já inseridos nessa rede de debates.

Ele parece ter apenas iniciado esse trabalho de inserção na rede de debates históricos da filosofia, esboçando-o, para vir a falecer, infelizmente, antes de chegar a dar uma forma realmente consistebte a esse movimento.

Assim, para tomá-lo como filósofo, somos obrigagos a completar por nós mesmos o trabalho, levantando quais seriam as confrontações filosóficas logicamente implicadas em sua obra, e que argumentos se poderia extrair de suas obras nessas confrontações.

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Se compararmos o caso de Barthes com outros semelhantes,
fica mais fácil ou mais difícil classificá-lo como filósofo?

O esboço de inserção na rede dos debates filosóficos históricos deixado por Barthes, apesar da dificuldade em classificá-lo como filósofo, parece ser ainda mais consistente que o deixado por exemplo por Sigmund Freud (cuja real intenção de inserir-se nessa rede de debates em vida é questionável). Freud avançou muito mais consistentemente e explicitamente rumo à fundação de uma nova ciência ao longo de sua vida do que rumo à filosofia no final dela.

O esforço de fundação de uma nova ciência (como no caso de Freud) não deixa de exigir necessariamente um contato íntimo, para não dizer mesmo um mergulho inicial, em questões filosóficas. Mas o fundador de uma ciência, se procura fazê-lo refletidadente, está no limite, na fronteira entre filósofo e cientista, podendo-se julgá-lo filósofo ou não dependendo de como o faz; e não inquestionavelmente no centro da atividade filosófica. Não obstante, Freud foi absorvido ativamente pelos próprios filósofos para dentro da rede dos debates históricos da filosofia, como acontece muitas vezes a cientistas e fundadores de novas ciências que, de algum modo, despertam especial  interesse em meio à comunidade filosófica mundial.

Barthes, em comparação, é na verdade um caso mais simples que o de Freud (aliás, muito mais simples) no que dia respeito a sua assimilação como filósofo. Ela é dificultada apenas pelo fato de que, embora renomado, não tem a mesma estatura em sua influência sobre a comunidade filosófica mundial. Muitos indiscutíveis filósofos, aliás, não têm sobre ela a mesma influência que o não-filósofo Freud — ou filósofo por procuração, ou mais precisamente, filósofo quase que apenas por absorção, por iniciativa da própria comunidade filosófica.

A absorção de Barthes na filosofia foi de certo modo iniciada por ele próprio, e é mais fácil por exemplo, para traçarmos aqui uma outra comparação, que a absorção de visões de mundo orientais às quais frequentemente se dá esse título.

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As "filosofias orientais" — como erroneamente costumam ser chamadas — também podem passar por um tal processo de absorção pela filosofia como parte dela. Mas em sua origem, não foram criadas como parte da rede de debates histórica que constitui a filosofia, não entraram em debate com as teorias filosóficas já existentes. E portanto, a rigor só deveriam ser classificadas assim precisamente na medida em que absorvidas a posteriori pela comunidade filosófica mundial.

Tal absorção do pensamento oriental, por enquanto, embora consideravelmente volumosa, ainda tem se dado de maneira vaga, imprecisa e indireta, como uma espécie de inspiração mal definida (e frequentemente mal informada sobre o assunto,aliás) no fundo de diversas teorias filosóficas.

Uma cosmovisão oriental, na medida em que seja fechada sobre si mesma ou só se relacione com outras por assimilações pela via dos costumes e tradições, ou por aproximações e semelhanças, distanciamentos e incompatibilidades evidenciados, mas sem efetivo debate, sem confrontação argumentativa, só pode ser chamada de "filosofia" metaforicamente, ou no sentido de que há ali uma semente, ou princípio ainda incipiente, de pensamento de tipo filosófico — mais ou menos do mesmo modo como se fala em uma "filosofia de vida" de um cidadão qualquer sem contato nenhum com a história da filosofia. Exceto pelo fato de que uma cosmovisão oriental já é algo historicamente desenvolvido, e muito bem desenvolvido... mas em uma direção diferente, que não é a da filosofia.

Isto não diminui o valor a importância, a dimensão dessas cosmovisões orientais na vida humana e social: seria uma tolice avaliá-las apenas a partir dos critérios da filosofia. Se fizéssemos o contrário, se avaliássemos a filosofia a partir dos critérios que definem as cosmovisões orientais, certamente seria a filosofia que pareceria "incipiente" em relação a elas. Mas se estamos nos posicionando aqui no ponto de vista da filosofia, decidindo se as cosmovisões orientais podem ser consideradas "filosofia" oriental, ou aceitamos os critérios da filosofia ou admitimos dois sentidos bastante diferentes para a palavra "filosofia" (o que significa manter as duas coisas separadas).

A filosofia teria muito a ganhar com uma absorção metódica, refletida, argumentada e cuidadosamente bem informadas (isto é, realmente filosófica) das diferentes formas assumidas pelo pensamento oriental. Ainda há muito caminho a ser percorrido neste sentido — o orientalista francês François Julian oferece um excelente exemplo de trabalho filosoficamente útil nesse sentido... assim como frequentemente muito a ganhar com a absorção de grandes e influentes pensadores científicos como Freud.

O caso de Barthes, como já dissemos, é muito mais fácil e simplesmente caracterizável, sim, como o de uma filosofia.

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Existe algum exemplo claro de entrada de Barthes nos debates filosóficos?

Barthes não deixa inclusive de entrar em debate com grandes filósofos. Um exemplo é seu livro Sade, Fourier, Loyola, que até certo ponto pode ser considerado uma resposta (corrigindo-se) a uma crítica bem formulada que Michel Foucault havia diridido ao modo como Barthes analisava textos literários.

Barthes considerava o texto como fechado sobre si mesmo em relação ao autor: era desnecessário examinar as relações do texto com o autor. Foucault criticou essa exclusão do Eu em Barthes como uma descorporificação (é conhecida a posição de foucault por exemplo em relação a Platão. Platão dizia que o a alma estava presa a um corpo do qual precisava se libertar, e Foucault respondia que pelo contrário, o corpo estava preso a uma alma da qual precisava se libertar. Dirigiu crítica semelhante a Barthes, e este, no livro Sade, Fourier, Loyola, respondeu reconsiderando a escritura a partir do ponto de vista corpóreo, do que ela significa para o corpo do autor e do leitor.

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Qual a principal obra de Barthes?

É difícil definir qual a obra mais importante de Barthes, porque são obras com temas diverisificados e dificilmente comparáveis umas com as outras para uma avaliação. é difícil dizer que algo seja mais "entral" e que outras obras seriam "complementares". Ficamos assim limitados a considerar quais as obras mais famosas junto ao público.

A obra mais famosa de Barthes talvez seja Mitologias. Mas existem outras obras também famosas, como O grau zero da escritura, Fragmentos de um discurso amoroso, A câmara clara e um livro com o estranho título S/Z.

 

De que trata a obra Mitologias de Roland Barthes?

Na obra Mitologias o autor procura examinar a estrutura linguística do pensamento de tipo mítico, apresentando toda uma série de interessantes mitos presentes na mentalidade contemporânea, passando por coisas curiosas como o mito do bife com batatas fritas e o mito do escritor em férias. São imagens que construímos das coisas atribuindo um significado extra para elas.

Na verdade, a estrutura do mito segundo Barthes é basicamente a seguinte: temos um signo que significa alguma coisa, e então o signo, junto com o próprio significado, se torna um novo supersigno, ao qual é atribuído um novo significado. A imagem (mental, desenhada, fotografada, pouco importa) de um bife suculento com belas batatas fritas significa comida –– mais especificamente um bife e batatas fritas... mas miticamente o conjunto todo da imagem e do que ela significa se torna um supersigno que passa a representar a comida (qualquer comida) especial super suculenta, objeto de desejo. E Barthes vai longe no detalhamento de tudo o que está implicado nessa condição mítica da coisa.

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De que trata a obra O grau zero da escritura de Barthes?

O grau zero da escritura trabalha com grande sensibilidade temas muito sutis ligados à história da literatura e da escrita em geral.

No livro, Barthes fala sobre as diferenças e interações entre forma e conteúdo na linguagem escrita, e como essas diferenças foram vindo à tona ao longo da história.

Conforme vem à tona essa diferença, há uma evolução do trabalho com a forma da escrita. Forma que vai ganhando densidade, espessura, para o escritor e para o leitor, tornando-se algo como um objeto a ser manuseado. Algo como aquela densidade e espessura que um material como a argila tem para um escultor, uma densidade e espessura que exige do escritor um trabalho atento em relação à forma do texto, quase um artesanato das palavras, e que exige do leitor uma atenção para essa forma do texto, impedindo-o de focar apenas e diretamente o conteúdo do que está lendo: o modo como está escrito ganha importância.

Depois, a história da escrita começou a evoluir num sentido um tanto diferente: essa densidade ou espessura da forma, que havia tirado a importância do conteúdo, passou a se esvaziar, a se anular, como se a escritura procurasse ser cada vez mais direta e transparente, caminhando para o que Barthes chama de "o grau zero da escritura".

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De que trata a obra Fragmentos de um discurso amoroso de Baarthes?

O sentimento de amor tem sido considerado algo tão íntimo que ninguém seria capaz de sentir o que outra pessoa sente do mesmo modo, e isso rompendo o discurso amoroso, tratado pelas pessoas como desnecessário ou fútil, mas esse discurso, mesmo fragmentado, foi encontrando novas formas de exprimir-se, porque necessário para exprimir por exemplo essa mesma condição em que as pessoas julgam estar o amor.

Barthes faz então uma análise fria, científica e até mesmo cínica dessa condição do discurso amoroso.

A obra teve um grande impacto no público leitor mundial, e chegou a inspirar filmes, com um por exemplo Juliette Binoche e Gerard Depardieu.

 

De que trata a obra A câmara clara de Barthes?

A câmara clara é um livro sobre fotografia, a estrutura da fotografia como signo e da linguagem fotográfica. Apresenta vários exemplos mostrando na prática como analizar uma fotografia esteticamente e compreender o significado que está isncrito na disposição das formas, luzes e sombras, cores etc.

Barthes nos ensina por exemplo que uma fotografia costuma ter um "punctum" central, que não está exatamente no centro da imagem, mas no centro do foco de atenção, um ponto para o qual nossa atenção é atraída pelo jogo das formas, luzes etc., e a partir do qual podemos construir nossa "leitura" da imagem.

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De que trata a obra S/Z de Barthes?

Em S/Z Roland Barthes propõe uma forma de analisar um texto literário. Ele faz isso acompanhando passo por passo um conto de Honoré Balzac chamado Sarrasine e examinando em cada passo o conto a partir de diferentes códigos temáticos, semióticos e semiológicos que vão se entrelaçando, recusando-se a privilegiar um único viés de análise e insistindo ao invés disso na riqueza da pluralidade de camadas que o texto apresenta.

Esta obra de Barthes, no limite entre estruturalismo e pós-estruturalismo, com influências de Saussure mas também com fortes contribuições originais, causou grande impacto entre estudiosos de linguística e análise literária. Mas o que Barthes realizou neste livro mereceria uma revisão com um complemento, pois um dos elementos característicos da análise de texto proposta por ele (a consideração do texto como suficiente em si mesmo sem a necessidade de recorrer ao autor) foi repensado no livro Sade, Fourier, Loyola. Os livros não se contradizem exatamente, mas lidos em conjunto oferecem uma nova dimensão bastante inusitada ao que estava em S/Z.

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