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Antes de falar sobre os comentários de outros a Sócrates (como por exemplo Nietzsche), importa falar sobre os principais comentadores da antiguidade que nos trouxeram alguma informação básica a respeito de Sócrates. Porque Sócrates se recusava a passar sua filosofia por escrito, de modo que só a conhecemos a partir desses comentários de outros.
Muitas vezes se parte apenas de Platão para o conhecimento de Sócrates, sob a alegação de que Xenofonte — o outro discípulo mais conhecido por escrever bastante sobre o mestre — não o teria entendido por ser um discípulo pouco brilhante.
Também se diz que Platão apresentaria, como referência sobre Sócrates, o defeito contrário, sendo brilhante demais e por isso distorcendo em favor de sua própria teoria aquilo que mostra de seu mestre.
E às vezes se leva em consideração também o exame da comédia difamatória de Aristófanes, que distorcendo caricaturalmente Sócrates para reagir contra ele, acabaria sendo muito reveladora a respeito do mesmo.
Todo o problema está na recusa de Sócrates de passar por escrito seus pensamentos filosóficos. Para conhecê-los, somos forçados a buscar informações em outros que escreveram a respeito, e são estes os "outros" que se costumam considerar: Platão, Xenofonte e Aristófanes.
Destes, o que mais escreveu sobre Sócrates foi Platão, e o que se costuma considerar é que estava mais próximo dos ensinamentos do mestre na fase de juventude, comumente chamada também de "fase socrática" ou "aporética".
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Pois bem: discordo dessa orientação tão comum. Não foram apenas estes os que se posicionaram em relação a Sócrates, que tinha além deles outros discípulos e outros adversários. O fato de um destes (Platão) ter feito mais referências a Sócrates não diminui em absolutamente nada a importância dos demis como referências (inclusive porque uma única referência pode ocasionalmente trazer mais informações úteis do que centenas de outras em conjunto).
Também discordo da ideia de que o Sócrates real corresponderia simplesmente ao denominador comum de todas essas referências, excluindo aquilo em que se diferenciam.
Não.
Não direi que encontrar o denominador comum entre elas seja inútil na busca da compreensão de Sócrates. Mas cada uma dessas referências é parcialmente influenciada por Sócrates em algo específico, e parcialmente o distorce (ou se afasta dele) numa direção específica. É preciso examinar por um lado qual a influência específica que alegam receber de Sócrates, e por outro examinar as biografias dos influenciados por Sócrates, examinar quem são — e fazer isto também quanto aos que reagiram contra ele — para detectar qual a direção em que o distorcem ou se afastam dele, a fim de filtrar e colher o que resta de mais socrático confrontando umas com as outras essas fontes de referência.
O maior ou menor "brilhantismo" dessas fontes seria coisa quase completamente irrelevante, se em certos casos a fonte não chegasse a desenvolver sua própria teoria, tornando melhor demarcadas as suas diferenças com Sócrates. Platão e sim, também Xenofonte, desenvolveram suas próprias teorias, e a qualidade de uma em comparação com outra é irrelevante. Relevante é apenas o fato de haver ali uma teoria própria e diferente daquela de Sócrates. Pois nessa diferença se pode localizar algo de Sócrates.
Neste sentido, pode-se dizer o mesmo de Aristipo de Cirene e de Antístenes, que foram discípulos diretos de Sócrates e desenvolveram respectivamente o Cirenaicismo e o Cinismo, parcialmente sob sua influência.
Em outras palavras devemos considerar igualmente, ao lado de Platão e Xenofonte, os Socráticos Manores (como costumam ser preconceituosamente chamados) — as escolas Cirenáica e Cínica, Epicurista (derivada da Cirenáica) e inclusive a Pirrônica, que operou uma regressão de Platão rumo à fonte Socrática e além. A escola estóica de Zenão é considerada pelos historiadores também como uma das "Socráticas Menores", e deve entrar nessa lista para exame.
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Temos então que considerar todos os discípulos e adversários de Sócrates de que temos informação, compreender em que direção cada um tende a ir em seu afastamento em relação a Sócrates (incluindo nesse afastamento as teorias dos que desenvolveram alguma). Fazer a comparação entre eles e também comparar o que resulta de tudo isto com as informações "frias", mais puramente factuais e menos teóricas, que temos sobre Sócrates, sua vida e suas ações.
Isto quer dizer que, nestes discípulos e adversários de Sócrates, temos também que fazer o levantamento do que é pura informação factual, e não informação teórico-filosófica (por exemplo: Sócrates era ateniense, e era pobre). Precisamos ainda examinar a possível contaminação dessas informações facutais pelas diferenças de quem informa rem relação a Sócrates.
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A partir desta perspectiva, muitas questões interessantes se abrem.
Por exemplo: por que Ésquino de Megara (mais conhecido como o Ésquino Socrático) é desprezado como fonte sobre Sócrates se ele escreveu a respeito tanto quanto Xenofonte ou até mais, e se tinha a fama de transcrever quase que literalmente o que Sócrates dizia, sem esforço de interpretação? De fato, o uso da capacidade de interpretação é seguramente importante para a compreensão de Sócrates, mas Ésquino poderia oferecer uma fonte documental mais fria e factual que serviria de base para nossa interpretação. Seria preciso verificar se esse material escrito por Ésquino chegou até nós e quanto dele chegou.
Outra questão: Platão e Xenofonte são oriundos da aristocracia, e Xenofonte (possível origem socrática do estoicismo) era simpatizante da cultura espartana: em que medida a formação aristocrática não interferiu em suas leituras de Sócrates distanciando-os do pensamento socrático original?
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A lista dos discípulos diretos de Sócrates vai muito além de Platão e Xenofonte. Ela abrange como já mencionado Ésquino de Megara, Aristipo, Antístenes e muitos outros. Seria interessante examiná-los a todos como referências. Eis uma listagem aproximada deles:
Alcebíades (aristocrata)
Antístenes (com ideais que antecipam o atual socialismo)
Aristodemo (de dedicação fanática ao mestre Sócrates, tido como ótimo ouvidor e expositor do que ouve)
Apolodoro de Falero (fanático como Aristodemo, mas fixado também nas ações de Sócrates e não só no que ele dizia)
(Ambos, Aristodemo e Apolodoro, criticados em seu fanatismo pelo próprio Sócrates segundo várias das demais fontes)
Aristoxenes
Aristipo de Cirene (com alguns ideais que antecipam o futuro anarquismo)
Cebes
Críton de Atenas
Ésquino de Megara
Fédon de Élis (escravo que havia passado pela prostituição forçada, tendo sido prostituído por seus proprietários)
Platão (aristocrata de uma das famílias mais ricas da aristocracia ateniense)
Símias de Tebas
Xenofonte (aristocrata simpatizante de Esparta)
Hipócrates (que se entusiasmava também com o sofista Protágoras)
Crítias
Cherefón
Euclides de Megara (que combinou Sócrates com Parmênides fundando a Escola Megárica).
Menedemo de Erétria
Aspásia (mestra de retórica, próxima aos sofistas e defensores da democracia direta, na linha de Protágoras) — aqui há uma dúvida, algo a ser checado: Aspásia teria sido discípula de Sócrates ou teria sido mestra dele? Ou ainda uma amiga com debates entre os dois de igual para igual? Poderia ser contada como uma adversária em termos filosóficos? Consta que usava argumentos de Sócrates para debater com o amante Péricles, que por sua vez era discípulo do sofista Protágoras.
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Entre os adversários mais conhecidos de Sócrates podemos contar:
Protágoras e os sofistas em geral (Górgias, Antífon) — relativistas e defensores da democracia direta quase nos mesmos termos em que ja era vigente em Atenas
Péricles (discípulo de Protágoras) — defensor mais influente da democracia direta, amigo de Sócrates (já eram amigos antes mesmo que Sócrates tentasse salvar a vida de seu filho de uma condenação sem defesa em um julgamento injusto)
Meleto (fanático religioso pouco inteligente e péssimo argumentador) — pouco ajustado à democracia direta, obediente a Diopeithes
Diopeithes (líder de fanáticos religiosos) — antidemocrático, e inimigo agressivo de Protágoras e de Péricles
Anito (comerciante rico) — democrata moderado com problemas pessoais com Sócrates, por julgar que seu filho desviou-se de carreira de sucesso como orador junto aos sofistas para seguir Sócrates. Anito era democrata, mas defendia privilégios para os mais ricos.
Cleon (sapateiro de origem humilde, democrata de perfil agressivo e um tanto fanático, discípulo que se voltou contra Sócrates por sentir-se pessoalmente ofendido quando Sócrates recusou como presente desmedido uma sandália luxuosa bordada com fios de ouro)
Crítias (aristocrata ateniense, ex-discípulo de Sócrates que se voltou contra ele por razões políticas, e se tornou um dos trinta tiranos que dominaram Atenas perseguindo, torturando e matando democratas quando a democracia direta foi derrubada pelos espartanos... Crítias condenou Sócrates à morte por desobediência, mas os democratas conseguiram retomar o poder antes disso, o que salvou a vida de Sócrates).
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Além dos discípulos e adversários de Sócrates e das informações factuais sobre sua vida e suas ações, para compreendê-lo importa também pesquisar suas fontes, suas referências filosóficas e seus mestres, de onde psrecem ter vindo várias de suas ideias.
Entre seus mestres e referências estão:
Diotima (uma mulher, o que é bastante significativo naquela época de extremo patriarcalismo cultural)
Possivelmente Aspásia (há quem diga que Diotima e ela são a mesma pessoa, mas não creio)
Anaxágoras (fundador da primeira escola filosófica de Atenas, que procurava conciliar a multiplicidade heracliteana com as críticas dos parmenidianos)
Arquelau (filósofo da escola jônica, discípulo de Anaxágoras, que tratava do mundo físico e natural concentrando-se no ar como elemento fundador, e na infinitude da mente conectada ao ar)
Pródico (sofista dedicado a questões lógicas e às questões da contradição e da clareza dos conceitos)
Também é notório e interessante que Sócrates tenha extraído ideias filosóficas de ocorrências concretas de sua vida, e não apenas de fontes ou referências filosóficas. É sabido que aprender algo para sua formação filosófica observando o trabalho de sua mãe como parteira, e o trabalho de seu pai como escultor. A partir de analogias com a realidade vivida, Sócrates extraía dessa realidade princípios e ideias de filosofia. O próprio fato de fazer isso parece fazer parte de seu posicionamento filosófico, a crer em Xenofonte, que aborda o assunto falando do que se pode chamar de um "princípio de integridade" em Sócrates, princípio pelo qual, entre outras coisas, se deveria evitar a ruptura entre a filosofia e a vida corriqueira.
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