Ética
Avaliações éticas
Educação ética, educação moral
Elementos que podem compor um debate ético
Coerência e sensibilidade
A sensibilidade ética e o pensamento político das esquerdas revolucionárias
Levar em consideração a sensibilidade ética pode ter implicações políticas? | A consideração dos prós e dos contras na ética tem implicações especificamente no pensamento político de esquerda? | A consideração dos prós e dos contras na ética tem alguma relação com economia política? | A proposta de pensar a ética como campo de confronto entre a coerência e a sensibilidade traz alguma influência cética?
A palavra "ética" vem da palavra grega "ethos", que quer dizer modo se ser. Quando falamos de ética, estamos falando do modo de ser das pessoas. Mais precisamente, estamos avaliando o modo como são nossos comportamentos, costumes, atitudes e ações — em relação a nós mesmos e às outras pessoas com as quais convivemos em sociedade.
A ética diz respeito ao modo como avaliamos que as pessoas deveriam ou não deveriam agir. Dizemos que está sendo ético quem age da maneira correta, e antiético quem age como não deveria. Uma ação ética não é o mesmo que uma ação eficaz, nem é tampouco uma ação que satisfaz os nossos próprios interesses. Pode haver coincidência entre essas coisas, mas pode não haver.
Uma pessoa pode saber perfeitamente e sem fifa a menor sombra de dúvida que é impossível salvar uma criança que foi levada pela enxurrada em uma inundação, porque ela já está longe demais. E mesmo assim, essa pessoa pode achar que seria antiético ficar ali parada, olhando. Por um impulso ético, pode achar que deve pelo menos tentar salvar a criança, porque sente que é o certo a fazer, mesmo sabendo que é impossível.
Além disso, uma ação também não deixa necessariamente de ser ética quando prejudica o agente. A pessoa pode agir eticamente mesmo sabendo que sairá prejudicada.
Digamos que existisse alguma chance de salvar a criança na enxurrada, mas muito pequena, e quem tentasse tivesse grandes chances de acabar morrendo junto com ela. Mais do que isso, digamos que a morte fosse quase certa se tentasse salvar a criança. Alguém poderia pular na água mesmo assim, com perfeita consciência de estar arriscando a própria vida, apenas por achar que isso é o certo a fazer.
Essa pessoa do nosso exemplo está agindo de acordo com seus próprios valores morais, de acordo com aquilo que ela considera uma boa maneira de agir, acredita estar fazendo um bem. Talvez esteja fazendo o que acha que todos deveriam fazer, talvez não. Talvez não ache que todos deveriam pensar do mesmo modo. Mas provavelmente está fazendo o que acha que tem o dever de fazer, mesmo que talvez outros tenham o direito de não considerar isso um dever.
Muitas vezes a ética está ligada a esse sentimento de dever. Mas esteja ou não, parece estar sempre ligada a uma decisão que, em última instância, é da própria pessoa. Se ela faz algo muito bom (ou evita fazer algo ruim), mas só porque mandaram que agisse desse modo (ou por medo de alguma punição), neste caso não está de fato agindo eticamente. Só existe dever ético se a própria pessoa decide ou aceita e concorda que aquilo é um dever.
Não estou defendendo nenhuma tese aqui, ou pelo menos não propositalmente. Estou apenas procurando descrever o que se costuma chamar de “ética”. Há quem não aceite por exemplo que exista realmente essa “liberdade de decisão”, e ache que somos todos como pedrinhas rolando no fundo de um rio, ao sabor das águas... pedrinhas que pensam que têm vontade própria, mas no fundo são apenas mais uma peça na grande engrenagem da natureza. Talvez as coisas sejam assim, talvez não exista liberdade. Mas ilusoriamente ou não, a noção de “ética”, aquilo que se costuma reconhecer por esse termo, envolve essa noção de uma “liberdade de decisão” (os católicos dizem “livre arbítrio”, mas o termo me parece restrito e enquadrado demais no catolicismo, por isso só descreve a coisa para os católicos).
Os filósofos que não aceitam que exista uma “liberdade de decisão”, mas não desistem simplesmente de dar valor e atenção às questões de ética, têm um desafio especialmente saboroso a enfrentar ― porque é difícil desenvolver uma noção de ética que não se apoie em algum sentido de liberdade. É algo que Nietzsche, por exemplo, parece ter tentado. Para ele não há exatamente decisão nossa: são aglomerados de forças e impulsos irracionais em nós que decidem por nós.
A ética é uma das maneiras pelas quais avaliamos essas coisas, mas não é a única, e algumas pessoas acabam confundindo-a com essas outras formas (que não são do campo da ética) de avaliar as ações.
A ética tem uma importância enorme na vida humana, mas é apenas um dos pontos de vista a partir dos quais podemos avaliar as ações que realizamos na vida.
Podemos avaliar os comportamentos, costumes, atitudes e ações das pessoas de diferentes maneiras. Por exemplo a partir do ponto de vista do que é vantajoso ou não para quem está agindo. Ou do ponto de vista do que é eficaz para se atingir um objetivo e do que não é.
Mas quando avaliamos essas coisas do ponto de vista ético, nada disso interessa. Não interessa se os comportamentos, costumes, atitudes ou ações que estamos avaliando são vantajosos ou não para quem quer que seja. Nem interessa se servem ou não servem para se atingir um objetivo qualquer.
Do ponto de vista ético, a única coisa que interessa é saber se aqueles comportamentos, costumes, atitudes ou ações que estamos avaliando são bons por si mesmos ou não são. Se as pessoas deveriam agir assim ou se deveriam evitar agir assim — independentemente de qualquer vantagem ou desvantagem que essa ação traga para quem age.
Mas uma ação não pode ser avaliada eticamente de acordo com os seus objetivos?
Na verdade pode sim. Quando avaliamos uma ação do ponto de vista ético, realmente não interessa saber se essa ação é eficaz ou não é para se atingir um certo objetivo... a menos que o próprio objetivo seja colocado por razões éticas ou então seja avaliado por alguém de um ponto de vista ético. Isto é, se o próprio objetivo for o de realizar uma ação ética, ou for examinado por alguém do ponto de vista de seus resultados no campo da ética.
No campo da ética, podemos avaliar as ações dos outros ou as nossas próprias ações. E quando avaliamos as nossas próprias ações, podemos avaliá-las antes ou depois de as termos realizado.
Se antes de realizarmos uma ação, para decidir se vamos realizá-la ou não e de que maneira, nós a avaliamos do ponto de vista ético, podemos dizer que essa ação foi eticamente orientada. Isso porque, nesse caso, nós orientamos essa nossa ação de acordo com a avaliação ética que fizemos antes. Pensamos em questões éticas que podiam estar envolvidas nela, e nos apoiamos nisso para dar uma direção ao que íamos fazer.
Uma ação não está orientada pela ética se o próprio objetivo final dela não for justamente a realização de uma ação ética. Se o objetivo final for de qualquer outro tipo, já não se pode dizer que aquela ação esteja orientada por avaliações éticas do agente.
Além disso, se quem agiu só parou para pensar se essa ação era ética ou não depois de já ter agido, também não podemos dizer que foi uma ação orientada pela ética. Mas mesmo que uma ação não seja orientada eticamente pelo agente, ela pode ser avaliada eticamente por alguém que a examine de fora.
Portanto, os costumes, comportamentos, atitudes ou ações, independentemente de terem sido eticamente orientados ou não quando foram realizados, mesmo assim podem ser avaliados depois eticamente, tanto pelo próprio agente que os realizou, quanto por alguém que os avalie de fora.
Dizemos que uma ação é aética quando não foi realizada a partir de uma orientação ética ou com objetivos éticos. Uma ação que é feita visando em primeiro lugar alguma vantagem ou algum resultado eficaz, não pode ser considerada logo de saída como uma ação de tipo ético ou antiético.
Não pode porque é uma ação que foi realizada fora do campo de avaliação da ética, sem que o agente pensasse se o que estava fazendo era ético ou não. Ela só pode ser avaliada como "ética" ou "antiética" a posteriori, isto é, depois que foi colocada para nós para que a avaliássemos... por exemplo depois que alguém nos mostrou a intenção de realizar essa ação, ou depois de ela já ter sido realizada mesmo.
Uma ação desse tipo — realizada sem orientação ética, sem se apoiar em nenhuma reflexão ou pensamento sobre as questões éticas envolvidas nela — é uma ação que começa sendo aética. Dizemos que é aética justamente isso, uma ação que não está sendo avaliada no campo da ética. Uma ação desse tipo, que começa sem o agente pensar a respeito da ética, só se torna "ética" ou "antiética" quando alguém avalia isso. Ou seja, ela passa a ser "ética" ou "antiética" quando alguém começa a avaliar se ela boa ou ruim do ponto de vista ético.
Dizemos que um costume, comportamento, atitude ou ação é ético quando o avaliamos como eticamente positivo, ou "bom"; e que é antiético quando é eticamente negativo, ou "ruim". Mas com base em quê nos fazemos essas avaliações?
Para avaliarmos se um costume, comportamento, atitude ou ação é ético ou antiético nos apoiamos em nossos valores morais (ou éticos). E esses valores podem (ou não) estar expressos em normas, regras morais; assim como podem estar expressos também em exemplos (reais ou imaginários) daquilo que avaliamos como ético ou como antiético, daquele tipo de coisas que achamos que as pessoas deveriam fazer ou daquele que achamos que as pessoas deveriam evitar fazer.
Por exemplo: "Faça aos outros somente o que você gostaria que fizessem a você" é uma regra que procura exprimir certas noções éticas a respeito do que devemos fazer e do que devemos evitar fazer. Mas ao invés de dizer isso, ao invés de colocarmos essa regra, poderíamos apenas descrever alguns exemplos de casos em que uma pessoa faz outras pessoas sofrerem o que ela própria não gostaria de sofrer, e depois desses exemplos, poderíamos esclarecer que "esse tipo de coisa não se faz". Ou poderíamos ainda fazer o contrário: dar exemplos de casos em que alguém fez para outras pessoas o que gostaria que fizessem a ela, e dizer "é assim que se deve agir".
Muitas vezes os pais educam eticamente os seus filhos através de exemplos, porque eles são muito mais vivos, mais fáceis de entender e impressionam mais do que as regras. E às vezes, para reforçarem a lição, acabam colocando algum final infeliz para o personagem do exemplo que agiu antieticamente, ou algum final feliz para o personagem do exemplo que agiu eticamente.
Mas é preciso entender que esse reforço corre o risco de desvirtuar o sentido ético da coisa, porque se a criança deve aprender a agir eticamente, deve aprender também a agir assim pura e simplesmente porque esse é o modo certo de agir, e não na expectativa de que isso traga alguma "felicidade" (ou algum outro tipo de vantagem) no futuro.
Muitas vezes as próprias Igrejas, que costumam ser as maiores guardiãs da moral em uma sociedade, reforçam demais a ideia de um "prêmio" para os que agirem eticamente (mesmo que seja um prêmio após a morte, em uma outra vida). Ao reforçarem demais essa ideia de "prêmio", acabam desvirtuando o próprio sentido moral daquilo que estão tentando ensinar, porque muitos fiéis começam mesmo a agir da maneira que a Igreja ensinou que é a certa — mas só porque estão interessados no "prêmio", e não porque realmente acham aquilo certo.
Educar as pessoas desse modo, através de prêmios ou da promessa de prêmios, só serve para fazê-las seguirem regras, normas, códigos de ética que foram colocados para elas pelo próprio educador. Mas isso não ajuda a pessoa a realmente avaliar eticamente, de maneira profunda, as suas ações e as dos outros com quem convive.
Os exemplos ajudam a entender valores e regras morais que queremos ensinar para alguém, porque são mais próximos do que as pessoas podem experimentar na vida, em situações reais, e provocam a pessoa a imaginar outras situações do mesmo tipo. Mas nem sempre servem para passar uma ideia precisa do que se deve e do que não se deve fazer, porque essa imaginação pode voar solta e caminhar por caminhos imprevisíveis.
De repente podemos encontrar a pessoa encaixando nos mesmos exemplos algo que não tem nada a ver com eles. Além disso, nem sempre uma série de exemplos ajuda a pessoa a avaliar com clareza se uma situação real se encaixa no mesmo tipo de caso desses exemplos ou não.
Por outro lado, as regras também têm seus pontos positivos e seus pontos negativos: podem ser bem formuladas, ou mal formuladas, mas mesmo quando são bem formuladas, elas não resolvem tudo em termos de educação ética. Se forem bem formuladas, podem servir para muitos casos diferentes e orientar as pessoas nas mais variadas situações.
Mas as boas regras morais são mais difíceis de formular, e além disso são menos vivas, mais frias e menos impressionantes do que os exemplos. Contudo, o maior problema delas ainda não é este. O maior problema das regras é que elas envolvem um risco muito grande: o de substituírem o próprio senso ético da pessoa. A pessoa começa a seguir regras mecanicamente, sem pensar a respeito delas... e se fizer isso, ela não está sendo realmente ética.
Ser ético não é seguir regras. Muitas vezes, quando se diz estar ensinando ética, na verdade se está ensinando apenas um código de ética em particular, um conjunto de regras que se espera que as pessoas sigam quando fazem parte de determinado grupo ou instituição. Ser ético envolve muito mais do que isso: envolve uma tomada de decisão e uma tomada de atitude diante de cada regra e de cada situação que envolve problemas éticos ou morais.
A maior lição que se pode tirar disto é a seguinte: não existe ética sem liberdade. Não se pode dizer que uma pessoa está agindo eticamente só por estar seguindo regras que dizem o que é ético e o que não é. Para agir eticamente, a pessoa precisa a avaliar por si mesma, livremente, o que é ético e o que não é. Precisa avaliar quais as situações ou exemplos que mostram realmente aquilo que é ético e quais mostram aquilo que não é ético. Quais as regras que deve seguir, e quais não deve. E se for preciso, essa pessoa deve ser capaz inclusive de formular ela mesma os exemplos do que acha ético e do que acha antiético, e formular ela mesma as suas regras morais.
A pessoa deve se responsabilizar pelas suas próprias orientações a respeito do certo e do errado, deve aprender a julgar por si mesma as orientações que os outros ensinam a ela, e separar aquelas com as quais concorda daquelas das quais discorda. Deve ser capaz de decidir isso por si mesma. Nenhuma educação ética está completa sem isso.
A palavra "ética" vem do grego "ethos", que quer dizer modo de ser, mas também pode ser traduzido como costumes, comportamentos. A palavra "moral" vem do latim mores. Ela surgiu quando os romanos tentaram traduzir para o latim a própria palavra "ethos".
Mas na tradução, os romanos não entenderam a palavra "ethos" no seu sentido mais profundo, porque viviam de uma maneira diferente daquela dos gregos. acabaram fazendo uma tradução que deixou essa noção um pouco mais superficial. Para os gregos, o "ethos" de alguém era algo que vinha do seu interior, das suas próprias decisões, do seu modo de pensar, de sentir, de agir etc., e que se refletia nos seus costumes e comportamentos.
As pessoas de uma mesma sociedade tendiam a desenvolver o mesmo "ethos", o mesmo modo de ser e de se comportar, os mesmos costumes... ou pelo menos um "ethos" parecido. Mas o "ethos" nascia no fundo de cada um, e cada um ia ajustando o seu "ethos" ao dos outros. No caso dos romanos, o "mores" era, já de saída, um conjunto de comportamentos e costumes que seguia os valores da sociedade. Portanto, o modo de ser de uma pessoa dependia do modo de ser da sociedade em que ela vivia.
Isso quer dizer que o "mores" dos romanos estava mais ligado às regras da sociedade a respeito dos costumes e comportamentos que deviam ser seguidos ou evitados, do que ao modo de ser de cada pessoa e à decisão de cada um a respeito de seguir ou não esses costumes e comportamentos da sociedade em que vivia.
A palavra "ética" vem do "ethos" grego, e carrega todo aquele sentido original que tinha no início. A palavra "moral" vem do "mores" romano, e tende a ser mais usada quando se quer ressaltar as regras da sociedade que dizem quais são os costumes e comportamentos a serem seguidos ou evitados.
No Brasil, muitos professores e autores de livros de introdução à Ética (ou Filosofia Moral, que é a mesma coisa) se acostumaram a dar uma importância exagerada para essa diferença. Mas o fato é que ela não tem importância absolutamente nenhuma. É uma bobagem dar muita atenção a isso, a não ser que estejamos estudando especificamente a diferença entre os valores morais dos gregos e os dos romanos.
Nem tudo nesse campo (ou em qualquer outro campo que queiramos imaginar) vem dos gregos e dos romanos, e quando os filósofos estudam esse tipo de assunto, fazem isso cada um usando a sua própria língua, e não usando o grego ou o latim.
Só durante a Idade Média as pessoas usavam todas o grego ou o latim para estudar ou escrever um livro (isto é, todas aquelas poucas que eram alfabetizadas e chegavam a estudar filosofia naquela época). Em outras palavras, o costume de dar muita importância a essa suposta diferença entre "ética" e moral" é um costume um tanto antiquado, mas que até hoje ainda é infelizmente seguido pela maioria dos educadores no Brasil... é um costume no fundo medieval, que o Brasil continuou usando desde o período em que ainda era colônia de Portugal, e que já devia ter abandonado faz tempo, porque não esclarece quase nada de importante a respeito das questões de ética.
Se dermos tanta atenção assim para o sentido que a ética tomava entre os gregos e entre os romanos, seremos forçados a responder a seguinte questão: por que não darmos a mesma atenção ao sentido que a ética tomava entre os diferentes povos africanos?
E entre os hindus? E entre os chineses? E entre os egípcios? E entre os maias, os astecas, os incas etc.? E hoje entre os alemães, os franceses, os ingleses etc.?
A resposta costuma ser a de que no mundo ocidental de formação europeia nos acostumamos a seguir noções que vieram dos gregos e dos romanos. De um modo geral, isso é verdade. Mas por outro lado, é falso quando tentamos usar para justificar a diferença entre "ética" e "moral".
Porque?
Porque o que aprendemos com esses dois povos chegou até nós como uma espécie de mistura de tudo o que eles nos trouxeram, e foi assim que essas duas noções tão parecidas mas não idênticas, a de "ethos" e a de "mores", se espalharam pelo mundo ocidental: misturadas. Quando os filósofos discutem esse tipo de assunto, discutem hoje usando cada um a sua própria língua, e traduzindo para ela essa mistura dos termos "ethos" e "mores". Em algumas línguas de hoje nem mesmo chegam a existir duas palavras diferentes para esse assunto. É provável que em outras existam três ou até quatro.
No Brasil, existem essas duas palavras para tratarmos dos assuntos éticos (ou morais): "ética" e "moral", mas querer diferenciar as duas causa um bocado de confusão, porque na prática são usadas pelas pessoas de maneiras muito variadas, com uma variação de sentido muito grande.
Os educadores brasileiros tentam "corrigir" essa variação de sentido (e me pergunto sempre, "corrigir" por quê?) dizendo que são palavras com sentido muito diferente, mas nem sempre concordam quando tentam explicar qual é a diferença. Então vão pesquisar nos livros de quem entende do assunto: os filósofos. E acabam ficando ainda mais perdidos: porque para os filósofos, dificilmente essa questão sequer chega a ter o menor interesse.
Será que devemos mesmo "corrigir" essa variação de sentido com que as duas palavras aparecem no modo de falar do povo brasileiro? O melhor não seria entender tudo o que está envolvido nessa variação, já que são palavras usadas para expressar o que o povo pensa a esse respeito? É interessante observar que essa atitude dos educadores brasileiros não condiz com o que a gente vê na própria filosofia, que é a disciplina que estuda essas questões — pois é na filosofia que existe essa área de estudos chamada "Ética" ou "Filosofia moral".
Na verdade, essas palavras, "ética" e "moral", nem sempre (aliás quase nunca) são diferenciadas pelos filósofos, que são justamente quem estuda esse assunto. Essa noção de "ética" e "moral" como se fossem coisas diferentes depende de usarmos o sentido grego ou o sentido latino da palavra, porque uma é apenas uma tradução da outra, com uma variação de sentido normal, como a que acontece em qualquer tradução de uma língua para outra — porque não existe, nunca existiu, nenhuma tradução absolutamente perfeita de uma língua para outra.
O que é realmente importante entender quando estudamos Ética ou Filosofia moral é aquilo que nos ajuda a aprender a nos orientarmos eticamente nas nossas ações, e a refletirmos a respeito disso, entendendo as diferentes maneiras possíveis que existem de se encarar um problema ético ou moral, e como avaliar as atitudes dos envolvidos e as nossas próprias, decidindo o que é o melhor a fazer e o que deve ser evitado.
Isso envolve também, evidentemente, a questão das regras morais colocadas pela sociedade, o que pensamos a respeito de cada uma delas e que atitudes tomamos a respeito de cada uma delas. Concordamos com elas? Discordamos delas? Por que? Em que medida? Se discordamos, o que fazer? Existe espaço para que os nossos valores individuais sejam reconhecidos e aceitos pelas pessoas e pela sociedade como um todo? Devemos lutar por isso? Por outro lado, ´dependendo do modo como lutamos por isso, não corremos o risco de impor aos outros nossos valores, que talvez não sejam aceitáveis para eles? Temos o direito de fazer isso? Ou o mais correto é nos ajustarmos às regras, mesmo que não concordemos exatamente com elas, porque as regras sociais são mais importante do que as individuais?
Todas essas questões, e mais uma porção de outras que podemos derivar delas, são questões do campo da ética, ou da moral (qualquer que seja o nome que venhamos a dar a esse campo). São questões importantes, que ajudam a nos orientar no nosso comportamento ético (ou moral). São também questões muito difíceis de responder, e a resposta pode variar muito dependendo de qual a regra social ou qual o valor individual de que estamos falando, e de qual é a sociedade em que estamos vivendo. Mas estas são as questões realmente importantes.
Para aprendermos a lidar com esse tipo de questões, é importante estudarmos por exemplo aquilo que nos ajuda a entender os debates e discussões sobre ética que ocorrem na nossa vida diária; os que ocorrem no campo da Filosofia, onde são desenvolvidos os estudos mais cuidadosos e aprofundados sobre o assunto; e também os debates e discussões de outros povos e de outras épocas (por exemplo os gregos e os romanos da antiguidade, mas não apenas eles), porque esse tipo de estudo pode nos oferecer caminhos possíveis e comparações extremamente úteis.
Para podermos analisar com clareza um debate ético entre filósofos que se aprofundaram a vida toda em estudos sobre o assunto, ou mesmo uma discussão ética qualquer com a qual nos deparamos na nossa vida — envolvendo por exemplo pessoas que não tem conhecimento nenhum de filosofia (e nem por isso deixam de ter cada uma a sua formação ética ou moral, que pode ser bem sólida) — algumas noções podem ser sempre bastante úteis.
Vamos definir aqui certas noções que são especialmente úteis:
Este é um assunto que já foi tratado nos primeiros tópicos deste texto. Mas numa definição mais simples e direta, podemos dizer que as ações (ou comportamentos, costumes, atitudes etc.) eticamente orientadas são aquelas em que o próprio agente leva em consideração questões éticas, e orienta suas ações por essas questões e pelos valores que decide seguir ao realizá-las.
Uma ação sem orientação ética é aquela em que o agente não está se orientando por questões ou valores éticos. Por exemplo, a ação de comprar um DVD pode não ter nenhuma orientação ética. Uma pessoa está simplesmente comprando um filme que está interessada em assistir, e a princípio não há nenhuma questão moral que esteja necessariamente envolvida nisto, de modo que a pessoa normalmente não sente nenhuma necessidade de se orientar por algum valor moral quando vai comprar esse filme. Se orienta, na maioria dos casos, pelo simples gosto: pode estar apenas pensando, por exemplo... “gosto de comédias, esta parece ser boa, vou levar para ver.”
Mas talvez a pessoa não esteja comprando um filme por diversão ou prazer ou curiosidade ou interesse... talvez seja, por exemplo, um filme religioso, sobre a bíblia, e essa pessoa queira mostrar esse filme aos seus filhos como parte da educação religiosa deles.
Neste caso, trata-se sim, claramente, de uma ação orientada por certos valores morais. Uma ação eticamente orientada, porque parte da ideia de que os valores morais da religião cristã são importantes e devem ser passados aos filhos. A pessoa está seguindo certos valores morais quando compra aquele filme. E está, inclusive, escolhendo seguir certos valores morais em detrimento de outros, porque está escolhendo um filme especificamente cristão, pensando em educar os filhos com ele, e não um filme budista, islâmico, judaísta, ou sobre umbanda ou candomblé ― sendo que todas essas são outras religiões que também trazem outros ensinamentos morais, diferentes dos cristãos, outras ideias a respeito do que é certo e do que é errado no modo de agir das pessoas.
E o que é a ação de julgar ou avaliar eticamente? Se imaginarmos uma pessoa comprando, por puro prazer, um filme pornográfico, podemos dizer claramente que essa pessoa não está agindo de maneira eticamente orientada. Mas isso não quer dizer de maneira nenhuma que esteja sendo antiética. Apenas não está pensando nesse tipo de questão. Está pensando só no prazer de ver o filme.
Mas ao lado dessa pessoa, pode haver uma outra ― aquela mesma do exemplo dado no tópico anterior, que está comprando o filme sobre a Bíblia ― que pode olhar feio para o comprador do filme pornográfico. Por quê? Porque está realizando a ação eticamente orientada de um tipo muito específico: a ação de avaliar e julgar eticamente o comportamento dos outros.
Ao olhar feio para o comprador do filme pornográfico, o comprador do filme religioso está fazendo um julgamento ético. E isso quer dizer que a ação do comprador do filme pornô, a própria ação de comprar um filme pornô, está sendo eticamente avaliada pelo outro comprador.
Se, em cada caso de julgamentos desse tipo, é certo ou errado julgar, já é uma questão ética, uma questão de debate e discussão no campo da ética, seja por parte de filósofos ― que tentam levar esse tipo de discussão até o fundo ― seja por parte de pessoas quaisquer que, na sua vida diária, acabam se envolvendo ou sendo envolvidas nesse tipo de discussão (com ou sem razão, pois como já dissemos, o próprio fato de ser válido ou não o julgamento ético de uma determinada ação que não foi realizada com orientação ética, já é um ponto a ser debatido).
Se esses dois compradores estão comprando seus filmes em uma banca de camelô que vende filmes pirateados, e estamos em um país no qual se faz uma campanha pública na televisão contra os filmes pirateados, dizendo que a venda desses filmes está ajudando a financiar o crime organizado, uma pessoa influenciada por essa campanha pode passar ao lado da banca e olhar feio para os três: o comprador do filme pornô, o do filme religioso, e o próprio camelô. E estará, deste modo, fazendo um julgamento ético das atitudes de todos os três, tornando essa situação ética mais complexa (e mais interessante para a examinarmos).
As discussões sobre ética podem acabar envolvendo também discussões sobre as leis oficias de uma sociedade. Podemos perceber isso levando adiante o mesmo exemplo dos tópicos anteriores. Vamos imaginar a seguinte situação.
Vamos imaginar que na verdade, nesse país, a venda dos filmes pirateados não esteja realmente servindo para financiar o crime organizado, mas apenas para sustentar esses camelôs, que vendem os filmes sem pagar impostos e sem respeitar os direitos “autorais” envolvidos (coloco isto entre aspas, porque na verdade o que está em jogo é bem menos o direito dos autores dos filmes, e bem mais os direitos das distribuidoras, grandes empresas poderosíssimas que fazem e vendem oficialmente as cópias desses filmes).
Vamos imaginar que os logistas, que pagam impostos, não conseguem concorrer facilmente com os preços baixos dos camelôs ilegais, que não pagam, e que tanto eles quanto as grandes e poderosas distribuidoras de filmes têm interesse em eliminar essa concorrência dessa gente pobre (os camelôs) que malandramente arranjou um meio ilegal (criminoso) de sobreviver vendendo produtos pirateados sem pagar as taxas e impostos cobrados por lei pela cópia de filmes.
Depois de imaginarmos tudo isso, imaginemos então que a tal campanha dizendo que o crime organizado se sustenta com base nesses camelôs seja uma campanha falsa.
Atenção: não estamos dizendo que é falsa no caso real do Brasil ― isto já é uma questão de examinar pesquisas sérias e cuidadosas feitas a esse respeito, por órgãos de pesquisa confiáveis e por estudiosos sérios do assunto. Pois nunca (nunca, jamais, em hipótese nenhuma!) é bom seguir cegamente uma campanha de TV, mesmo que seja do governo, sem examinar os fatos com cuidado, porque existem profissionais chamados “lobistas”, que defendem interesses poderosos junto aos governos, de modo que uma campanha como esta pode ser sim, seríssima e muito bem fundamentada... ou não.
Aqui, estamos apenas levantando um raciocínio por hipóteses, pensando em um país imaginário, usando a nossa imaginação para criarmos uma situação ética ainda mais complexa e mais interessante de ser examinada... e, é claro, para provocar um pouco de reflexão, questionamento e senso crítico.
Fica aqui, então uma provocação para você, que está lendo. Tente avaliar eticamente os diferentes agentes que estão envolvidos nessa nova versão, mais completa, do caso que estamos usando como exemplo. De todos esses agentes envolvidos, quem você acha que está sendo ético? Quem não está? Por quê?
Tomando esse mesmo exemplo com o qual viemos trabalhando até aqui, temos apenas pessoas envolvidas em toda essa questão ética?
Evidentemente que não. Temos pessoas (os compradores e vendedores de filmes piratas e de cópias legalizadas de filmes, considerados individualmente). Mas também temos grupos com interesses diferentes (os logistas e os camelôs, por exemplo, que muitas vezes se organizam em grupo e tomam decisões coletivamente). E instituições, como a igreja, o governo ou as próprias lojas... porque quando são pequenas, sofrem muita influência de seus donos, que são pessoas individuais, mas quanto maiores são, mais rigidamente tendem a seguir as regras do mercado e funcionar como máquinas de produção de dinheiro, agindo sempre da maneira que dê mais lucro ― até mesmo independentemente da vontade dos seus donos.
Portanto, como uma maneira de entendermos as coisas com mais clareza, podemos dividir esses agentes todos em três categorias ou “tipos” de agentes diferentes. Três tipos de agentes que podem estar envolvidos em uma situação ética qualquer, agindo de modo eticamente orientado ou tendo as suas ações eticamente avaliadas por algum outro agente: pessoas, grupos e instituições.
É preciso tomarmos cuidado para não confundirmos, então, os valores individuais com valores coletivos (de grupo), e para também não confundirmos grupos de pessoas com instituições. Quando as pessoas convivem ou desempenham juntas uma mesma atividade por muito tempo, vão desenvolvendo certos costumes, comportamentos e valores morais que são do grupo como um todo, e que nem sempre coincidem completamente com os de cada pessoa que faz parte desse grupo individualmente.
sumário↑
Existe sempre uma espécie de ajuste, uma espécie de negociação em que o grupo deixa um pouco menos rígidas suas regras para que as pessoas possam ter algum espaço para suas seguirem suas regras individuais e/ou as pessoas deixam suas próprias regras individuais um pouco menos rígidas para se acomodarem ao grupo e serem aceitas nele. Muitas vezes as regras do grupo são mais fortes que as de cada pessoa, e algumas vezes as de cada pessoa são mais fortes que as do grupo. Mas dificilmente as pessoas concordam em tudo, total, completa e absolutamente, com as regras do próprio grupo do qual fazem parte; e do mesmo modo, dificilmente as regras de um grupo como um todo coincidem total, completa e absolutamente com as regras individuais que cada um no grupo gostaria que fossem seguidas.
Do mesmo modo, as regras de uma instituição não coincidem com as do grupo de pessoas que fazem parte dessa instituição, nem com as regras de cada pessoa que faz parte dela individualmente. As igrejas, por exemplo, são instituições normalmente muito tradicionais, muito fortes e muito antigas, e costumam manter muitos valores inalterados, sem mudança nenhuma, às vezes durante séculos... e isto quer dizer que todas as pessoas que são membros de uma igreja depois de um certo tempo já não são as mesmas, o grupo todo dos fiéis já não é o mesmo, e nem por isso a igreja enquanto instituição vai seguir regras necessariamente diferentes das que sempre seguiu.
Às vezes ocorrem até mesmo grandes conflitos entre os fiéis e suas igrejas, porque elas não acompanharam a mudança na mentalidade das pessoas, e desses conflitos, muitas vezes, nascem facções diferentes daquela igreja ou até novas religiões. O protestantismo, por exemplo, nasceu assim. Em suma, os agentes éticos podem ser: pessoas individualmente grupos (coletividades) instituições.
Este é um assunto já tratado nos primeiros tópicos do presente texto. Não há nada de muito difícil a entender quanto a isto.
Para discutirmos questões de ética, muitas vezes usamos exemplos de situações possíveis ou reais envolvendo diferentes agentes éticos, imaginamos esses agentes com seus valores e tomando certas atitudes, para então podermos examinar o caso e pensar a respeito. Podem ser também exemplos de decisões tomadas por certos agentes e que consideramos corretas, ou exemplos de decisões que consideramos erradas.
O que chamamos de “dilemas éticos” (ou “dilemas morais”) são aquelas situações em que um agente qualquer está entre duas decisões possíveis, e precisa decidir qual dessas decisões é eticamente a melhor.
Para tomarmos um exemplo diferente desse do camelô e dos DVDs piratas levantado nos tópicos anteriores, vamos imaginar uma pessoa em coma, que está em vida vegetativa e sem sonhos, com a vida dependendo de um aparelho que fica sempre ligado alimentando a pessoa através de nutrientes injetados nas veias e ajudando seus pulmões a funcionarem e continuarem respirando.
Digamos ainda que essa pessoa é de uma família pobre, que está penando terrivelmente para mantê-la viva nesse estado. E que um amigo da família começa a defender que o aparelho seja desligado (estamos falando do que se costuma chamar de “eutanásia”), para que a pessoa possa morrer em paz de uma vez e a família levar sua vida adiante. Mas um outro amigo, ligado a uma Igreja que considera a vida sagrada não importa em quais condições, e que não aceita a eutanásia de maneira nenhuma, fica indignado, e aconselha a família a não escutar aquele outro e manter o aparelho ligado a todo custo, até o fim.
Os dois amigos da família estão aconselhando com a melhor das intenções, procurando o que acham que é eticamente o mais correto. Um acha que uma vida assim não é digna de ser vivida por um ser humano, porque é viver como um vegetal, e seria melhor morrer em paz, ao invés de ficá-la estendendo. E acha também que a pobre família, gastando uma fortuna com isso, tem o direito de viver um pouco mais dignamente. O outro, acha que jamais se pode tirar a vida de quem quer que seja em qualquer que seja a situação mesmo que não haja nenhuma esperança, porque a vida é o mais sagrado de todos os bens e tirá-la é o pior de todos os pecados, de modo que desligando aquele aparelho, a pobre família estaria de algum modo estragando suas almas, nada menos que isso.
Uma situação como esta é o que chamamos de um “dilema ético” (ou “dilema moral”), porque é uma situação que nos pede uma tomada de decisão entre duas opções contrárias possíveis, que são ambas igualmente orientadas pela ética, ambas são orientadas no sentido de se fazer o que se julga o melhor, mas são discordantes, incompatíveis: ou se decide uma coisa, ou a outra. Não há solução simples e direta possível. Isso é um dilema moral.
Os “códigos de ética” (ou conjuntos de “normas morais”) são as regras de que já falamos em outros tópicos no início do texto.
Os valores morais de uma pessoa, e mais frequentemente os de um grupo ou os de uma instituição, podem ser expressos na forma de regras, normas, leis, códigos desse tipo. Assim como podem ser expressos também na forma de exemplos de atitudes éticas ou antiéticas praticadas em situações imaginárias (mas possíveis) ou reais.
Essas regras, normas ou códigos de ética ― que são mais comuns em grupos ou instituições do que em pessoas individualmente ― costumam ser de dois tipos possíveis.
Primeiro tipo: os códigos podem ser explícitos, isto é, registrados de alguma maneira (em geral por escrito), para que todos os agentes que o seguem possam consultá-los... e neste caso costumam ser além disso assumidos oficialmente, às vezes até com a obrigação de os agentes fazerem juramento de segui-los e punições oficiais para os que não os seguirem.
Segundo tipo: os códigos podem ser tácitos, isto é, podem ser aceitos tacitamente pelos agentes que o seguem, aceitos implicitamente, subentendidos, sem precisarem estar registrados oficialmente em algum lugar. Neste caso, os agentes se entendem entre si a respeito das atitudes, comportamentos etc. que devem ser evitados por eles, e daquilo que, pelo contrário, eles devem procurar fazer sim e repetir sempre que possível. Eles vão se entendendo naturalmente a respeito do que é certo e do que é errado fazer, e de vez em quando conversam uns com os outros sobre o assunto para se certificarem de que estão mesmo no caminho certo. São regras mais informais do que as explícitas e oficiais.
Um valor moral é uma espécie de avaliação, em que a pessoa decide o quanto uma ação deve ser valorizada como sendo um bem ou deve ser rejeitada e evitada como um mal. As ações éticas e antiéticas são orientadas por essas avaliações, por esses valores.
Isso é fácil de entender: se tudo tem o mesmo valor, não há por que irmos para uma direção ao invés de outra, mas se certas coisas têm um valor positivo, podemos orientar as nossas ações para caminharmos na direção delas, e também no sentido de nos afastarmos das coisas que têm um valor negativo.
As pessoas são éticas quando suas ações concordam com os valores (se movem em direção ao que é “bom” e se afastam do “mal”), e antiéticas quando contradizem esses valores (ou seja, quando fazem ou tentam fazer o que é um “mal” e se desviam do que seria o “bem”).
Não é nenhum absurdo dizer que há uma certa contradição em ser antiético. O primeiro problema que costuma gerar as controvérsias e os debates éticos, é que as pessoas não agem orientadas pelos mesmos valores, não concordam umas com as outras quanto ao que deve ser considerado eticamente “positivo” e o que deve ser considerado eticamente “negativo”. E esse desacordo não está só nas ações e nos valores que estão embutidos nelas conscientemente ou não, mas também no modo como as pessoas avaliam as ações como “éticas” ou “antiéticas”. Existem valores em relação aos quais o acordo é ou parece ser mais fácil, porque combinam com os costumes da maioria, também porque não estamos acostumados a examinar os detalhes, onde os desacordos costumam aparecer mais facilmente.
Mas se sairmos dos exemplos clássicos de ação ética ou antiética e prestarmos atenção às situações reais do dia a dia, veremos que na maioria dos casos não é tão fácil decidir se uma ação é a mais ética ou não, ou mesmo se não chega a ser antiética. O que parece um bem para certas pessoas, frequentemente parece um mal para outras, e vice-versa.
A lógica — uma outra área da filosofia, bem diferente da ética e que muitas vezes se aproxima da matemática — tem sido sempre a guardiã da nossa coerência de pensamento, da coerência entre as nossas ideias. É ela quem discute o que é um raciocínio correto, propõe normas para raciocinarmos melhor, e a partir dessas normas, aponta e corrige nossas incoerências.
A lógica pode nos ajudar no campo da ética. A coerência entre nossas próprias ideias a respeito do que é um bem e do que é um mal pode nos ajudar a agirmos de maneira mais ética. Quando nossos valores morais indicam caminhos incompatíveis para nossa ação, a lógica pode nos socorrer, porque pode nos ajudar a encontrar talvez, lá no fundo, alguma coerência entre esses valores que faça nos sentirmos um pouco mais seguros em nossas ações. Ou então pode nos ajudar a entender por que esses valores nos empurram para ações opostas ou incompatíveis, e corrigindo essa incoerência talvez consigamos tomar alguma decisão.
Mas esta só pode ser uma contribuição bem pequena da lógica para a ética. Não pode ser muito grande por causa de uma coisa fácil de constatar. É que infelizmente — sejamos um pouco mais céticos em relação a isto — não há nenhuma garantia de que descobrir quais são nossas incoerências e coerências vai realmente nos ajudar a tomar alguma decisão. Pode ser que não ajude em nada, a não ser por nos deixar um pouco mais lúcidos diante dos nossos dilemas morais.
Perceber mais claramente que estamos em um dilema moral pode nos ajudar a sair dele? Talvez. Mas — para lembrar um velho amigo que gosta de repetir isso — diria que não necessariamente. Além do mais, como se não bastasse, existem muitas “lógicas” diferentes umas das outras, muitas diferentes maneiras de se raciocinar “corretamente”, e apesar do que os lógicos costumam sugerir, nada nos garante que um raciocínio lógico possa realmente e fora de dúvida nos conduzir sempre à mesma resposta. Destarte nosso empenho em raciocinar corretamente a respeito da coerência ou não entre um mesmo conjunto de valores, pode nos levar a concluir que essa coerência existe, mas também pode nos levar a concluir que ela não existe, dependendo do modo como raciocinamos, da lógica que utilizamos nesse raciocínio.
Talvez a única contribuição da lógica, quanto à coerência entre os nossos próprios valores morais, afinal, esteja em ajudar a justificar por que nos sentimos coerentes ou incoerentes, depois de examinarmos bem como é que nos sentimos.
Isto não deixa de ser importante, porque a ética não diz respeito só aos nossos valores morais, mas ao modo como agimos em relação a eles, e a segurança que um raciocínio logicamente mais bem organizado pode nos dar em relação à nossa coerência ou incoerência, pode nos dar maior ou menor segurança na hora da ação. Pode inclusive acabar determinando o modo como agimos — se agimos mais incisivamente ou com maior cuidado e atenção ao fato de podermos estar errados. Há situações, segundo me parece, que pedem um tipo de ação, e situações que pedem outro.
Na verdade, na medida em que a ética se pauta pela ideia de "coerência", que é fundamentalmente uma ideia do campo da lógica, podemos falar de um paradigma lógico na ética. Um certo padrão de raciocínio, com suas referências, que vem da lógica, e que é utilizado nas reflexões sobre ética.
Mas a maior contribuição da lógica para a ética, um verdadeiro paradigma que tende a ser adotado por todos aqueles que se debruçam sobre a questão moral, o primeiro modelo ou ideia básica que tendem a adotar, parece estar em uma coisa que costuma ser chamada de coerência ética — e que, apesar das aparências, não é exatamente a coerência entre os nossos valores.
A coerência ética não é meramente uma coerência entre coisas que se passam na nossa cabeça, não é simplesmente essa coerência de que estávamos falando, dos nossos valores morais uns em relação aos outros, “dentro” da nossa mente. Ela é um outro tipo de coerência, muito mais importante porque transborda para para fora do nosso pensamento, no nosso comportamento em relação a tudo o que existe ao nosso redor: é a coerência entre os valores morais e a ação de quem tem esses valores, na prática.
A coerência ética é um paradigma que a ética herdou daquele modo de pensar que é típico da lógica, uma regra geral em que toda ética se apoia em alguma medida: se uma pessoa tem certos valores e age de acordo com eles, está sendo eticamente coerente, porque existe coerência entre as ações dessa pessoa e aquilo que ela valoriza como um bem. Mas se ela age contra seus próprios valores, se ela acha que não deveria agir de uma certa maneira, porque reprova esse modo de agir, e mesmo assim age desse modo, então não está havendo coerência entre seus valores morais e seu modo de agir, ela está sendo eticamente incoerente, e isto quer dizer também que está sendo antiética mesmo em relação aos seus próprios valores.
Já mencionei as dificuldades que envolvem a questão da coerência (ou incoerência) entre dois valores morais de uma mesma pessoa ou agente ético, e de que modo o exame dessa coerência ou incoerência pode ser útil, apesar dessas dificuldades, mas também de que modo pode acabar não sendo útil. Agora, ao que parece, estamos em um território que é completamente outro, não é? — Não necessariamente.
Essa coisa que chamamos de “coerência” permanece a mesma. Podemos transferir facilmente os mesmos questionamentos de antes para a questão da coerência (ou incoerência) entre um valor moral que deveria orientar uma ação, e essa ação que deveria ser orientada por ele. Aqui, entretanto, o sentimento de firmeza e segurança que acompanha a sensação de estar sendo coerente — ou então, por outro lado, a preocupação de ser mais cuidadoso que acompanha a sensação de incerteza em relação a essa coerência — torna-se um ponto fundamental para quem procura agir eticamente.
Com base nisto, as questões de ética, dependendo do ponto de vista, passam a girar em torno de oposições entre firmeza e insegurança no agir — se pensamos isso em registro nietzschiano (e é difícil decidir se Nietzsche é ou não uma espécie de cético) — ou pelo contrário, prudente senso de justiça e precipitação impensada — se preferimos um registro cético tradicional, à moda dos filósofos céticos da antiguidade.
Perceba-se que são dois jogos de valores opostos, e nossas dificuldades quanto à garantia da coerência se transferem para cá tomando a forma de um dilema bem claramente definido. — O que devemos preferir? Aquele modo de agir firme e seguro, que não fraqueja diante de nada nem se perde em hesitações, porque se apoia em uma intensa sensação de coerência, e resolve as questões de maneira decisiva, mas que pode estar se precipitando em uma decisão sem pensá-la o suficiente, arriscando-se a graves erros que muitas vezes não têm mais retorno? Ou aquele modo de agir prudente e cuidadoso de quem não se sente assim tão firmemente coerente, e que por esse cuidado corre menores riscos de errar, mas pela mesma razão tende a caminhar com insegurança e sem firmeza em suas decisões, de maneira talvez até perigosamente morosa, ziguezagueante e desmotivadora, correndo o risco de perder de vista qualquer objetivo?
Talvez não seja propriamente o caso de decidir por uma postura ou outra, mas de observar em nós mesmos, em cada situação, se nos sentimos coerentes ou não, e como devemos agir em função disto... será?
De qualquer maneira, o paradigma lógico sugere que que a coerência é algo bom, e tudo passa a depender do nosso otimismo ou pessimismo em relação a nós mesmos quanto a isso — e certamente, também da nossa disposição para tentarmos tornar nossos próprios valores sempre mais coerentes e garantir que se mantenham coerentes, uns com os outros e, principalmente, com as nossas ações.
Um problema para refletirmos a esse respeito: em uma época recém-saída da Idade Média, um padre chega a uma terra coalhada de indígenas que andam nus e fazem sexo a qualquer momento sem nenhuma vergonha, e que adoram as forças da natureza como se fossem uma multidão de deuses.
Para o padre, esses pobres coitados estão condenados, irão todos diretamente pro inferno. Então, agindo de maneira perfeitamente coerente com seus próprios valores e na melhor das intenções, e talvez até com um certo sentido de urgência salvadora, ele abre uma escola e passa a ensinar uma porção de verdades às crianças da tribo (que ainda são inocentes e podem ser salvas). Ensina que elas devem ler a Bíblia, que andar nu como seus pais é pecado (mesmo naquele calor tropical), e que é preciso se sentir culpado quando se faz sexo, porque existe um deus invisível que vê tudo e está em todos os lugares, vendo tudo o que fazemos e até o que pensamos, e que pode ficar muito zangado, porque não gosta dessas coisas — e esse deus invisível que está em toda parte é o mais poderoso de todos os deuses, porque os outros são todos falsos, e ele é o único verdadeiro.
E para concluir, o bem-intencionado padre da nossa historinha ensina às crianças que seus queridos avós, que contam as histórias dos deuses, estão todos condenados a queimarem eternamente em uma fogueira gigantesca, porque esses deuses que eles amam, e que estão em cada coisa da natureza que cerca a aldeia, na verdade são demônios disfarçados que querem levar todo mundo para a fogueira...
Não quero ser desrespeitoso em relação à história dos jesuítas no Brasil ou qualquer coisa assim. Talvez seja uma referência evidente aqui, mas também uma referência evidentemente caricata e distorcida. Circunstâncias históricas envolvendo conflitos entre diferentes jogos de valores humanos, são algo que precisa ser examinado com mais cuidado em seus detalhes e com maior profundidade, em todas as suas dimensões ― e nunca assim tão chapadamente.
Mas cá entre nós... em uma situação que fosse realmente como a do exemplo (que não deixa de ser um exemplo perfeitamente plausível e visualizável) teria sido mesmo ético o comportamento desse padre tão coerente e tão bem-intencionado? — ... E será que situações como esta, em que a coerência com nossos próprios valores nos leva a atropelar os valores dos outros, são assim tão incomuns?
Existe uma ciência que se desenvolveu e se aperfeiçoou acima de todas as outras na arte de captar, justamente, valores diferentes daqueles aos quais estamos acostumados: a antropologia. Se a compararmos com a lógica, podemos dizer que ela oferece, justamente nesse sentido, um outro paradigma para a ética.
A antropologia tornou-se, no mundo de hoje, talvez a maior guardiã da atitude de observar e levar em consideração valores que são diferentes dos nossos, e luta incessantemente contra a tendência autoritária dos que têm uma maneira específica de pensar e viver, e tentam forçar os outros a pensar e viver dessa mesma maneira. Quando um grupo étnico, por exemplo, distorce todas as informações e toda a sua percepção a respeito de outro grupo para entendê-las à sua maneira, e com isso indiretamente começa a pressionar esse outro grupo para que ele seja, viva ou pense dessa sua maneira, sempre encontramos os antropólogos denunciando e combatendo essa atitude, que é uma atitude “etnocêntrica” — porque coloca uma etnia no centro da atenção e só compreende as outras a partir dela.
O mais clássico inimigo da antropologia, em sua luta pelo respeito às diferenças, é justamente o etnocentrismo. Em outras palavras, a antropologia, entre as ciências, é hoje a grande guardiã do respeito às diferenças entre os grupos humanos.
Geralmente, em política, quando falamos das “diferenças” que existem na sociedade, logo pensamos nas diferenças econômicas, em quem tem mais e quem tem menos, na minoria rica e na imensa maioria pobre, como se todos fossem iguais e essa fosse a única diferença — e como esta é uma diferença ruim, ficamos com a ideia de que as diferenças em geral são coisas ruins.
Acontece que essas diferenças econômicas (assim como as diferenças de poder), por maiores e mais graves que sejam (e são), são diferenças superficiais. São superficiais porque são diferenças apenas de quantidade. Para considerarmos que “A” tem mais dinheiro ou poder do que “B”, estamos pressupondo que “A” e “B” são dois pontos (iguais) em uma mesma linha (igual para ambos), que vai da pobreza até a riqueza ou da submissão até o poder.
É preciso sim lutar contra as diferenças quantitativas, superficiais... mas deveríamos chamá-las de “desequilíbrios”, e não de “diferenças”, porque para combatê-las é preciso justamente aprender a reconhecer e aceitar as diferenças em seu sentido mais profundo, como a antropologia procura nos ensinar.
A sensibilidade ética está ligada à consideração que a gente dá aos valores dos outros. É um outro paradigma ético, de tipo antropológico, e bem diferente da coerência. E já vem se desenvolvendo há muito tempo discretamente, paralelamente, ao longo da história, de maneira mais modesta e sem nunca ter chegado, até o momento, a assumir clara e abertamente o status de “paradigma” do pensamento ético... — mas apesar de modesto, nem por isso é menos presente, ou menos eficaz em sua influência sobre quem procura pensar a questões éticas e/ou agir eticamente, desde a antiguidade até os dias de hoje.
É um paradigma que nasce à sombra daquela incerteza que às vezes podemos sentir em relação à nossa própria coerência, quando nos questionamos se no fundo não estamos sendo incoerentes ou antiéticos de algum modo, ou até mesmo se a nossa coerência, por mais firme que seja, é realmente suficiente para termos a certeza de que estamos agindo da maneira correta. Por falta de um nome melhor, vou chamar esse paradigma de “sensibilidade ética”.
A sensibilidade ética começa a se desenvolver a partir do momento em que paramos diante dos nossos próprios valores, e — mesmo quando parecem perfeitamente coerentes e agimos rigorosamente de acordo com eles — nos perguntamos seriamente: “Será que estou certo? E se todos os meus valores estiverem errados? Afinal, estes meus valores, este meu modo de pensar a respeito do que é certo e do que é errado, não é a única maneira de pensar que existe quanto a essas coisas...”.
Quando fazemos nossas avaliações e julgamentos éticos, quando estamos decidindo se uma conduta, ação ou comportamento — nosso ou de quem quer que seja — é ético ou não e em que medida, podemos nos orientar pela nossa própria coerência ética, e condenar aquilo que achamos errado porque não é coerente com os nossos valores. Ou podemos nos orientar pela nossa sensibilidade em relação aos valores éticos de outros, que pensam diferente de nós. Podemos, por exemplo, tentar entender o ponto de vista daqueles que julgam nossas ações, ou então o ponto de vista daqueles cujas ações estamos julgando.
O que importa notar é que, se estamos nos orientando pela sensibilidade ética, já não é mais o nosso sentido lógico e racional o que está à frente em nossa avaliação, e sim a nossa percepção do outro, que tem provavelmente valores diferentes dos nossos — e que pode considerar ético aquilo que consideraríamos antiético, ou considerar antiético aquilo que consideraríamos ético.
Por isso o termo “sensibilidade” combina bem com este paradigma. Trata-se da observação e da atenção em relação aos valores alheios, de captar os valores dos outros, como quando paramos para realmente prestar atenção em nossas sensações físicas, quando vemos, escutamos, tocamos em algo com a ponta dos dedos, sentimos um perfume ou saboreamos alguma coisa.
Não é uma questão de raciocínio.
Quando está em jogo a sensibilidade ética, nossas avaliações morais já não são mais tão racionais, e passam a depender da nossa percepção, da nossa capacidade de perceber o outro, aquele que é diferente de nós e que avalia as coisas de um outro modo. E agir de acordo com essa percepção significa respeitar o fato de que o outro tem seus próprios valores diferentes dos nossos, e levá-los em consideração.
Qualquer pessoa que queira sinceramente agir de manira ética terá que enfrentar e reenfrentar a todo momento, nas mais variadas situações, o problema de decidir o que é o mais importante em cada caso, seguir a sua coerência ética ou ter sensibilidade, consideração, respeito, por valores éticos diferentes, e até incompatíveis com os seus, que são defendidos por outros. Terá que colocar frequentemente os dois paradigmas na balança, e decidir qual deve ter o maior peso naquele cas, o paradigma lógico da coerência ou o paradigma antropológico da sensibilidade em relação às diferenças.
Em termos morais, o perigo de se agir unicamente com base na coerência ética está no autoritarismo, no etnocentrismo, no desrespeito às diferenças, em atropelar os valores dos outros em favor dos seus próprios. O perigo moral de se agir unicamente com base na sensibilidade ética, por outro lado, está mais do que bem documentado na linguagem popular, em expressões idiomáticas da nossa língua portuguesa: é o perigo de se perder a força de caráter, de se tornar um “maria-vai-com-as-outras”, um “banana”, de não ter opinião própria e só seguir a dos outros, de se tornar um “lambe-botas”, um “puxa-saco” dos outros — mas o essencial do que todas essas noções pejorativas descrevem, está no abdicar da própria liberdade, dos seus próprios próprios princípios e decisões morais em favor das opiniões alheias. E sabemos que sem liberdade, sem decisão própria, não é possível falar em ética.
Como já foi dito, ser ético não é “seguir regras” só porque todos acham corretas essas regras — (assim como não é rebelar-se contra as regras como um “adolescente em crise” só porque são regras).
Ser ético é seguir por sua própria decisão os valores que se julga os mais corretos, sejam eles de acordo com as regras e as opiniões alheias ou não... mas o fato é que não vivemos sozinhos no mundo, e às vezes, realmente julgamos correto dar um pouco mais de atenção aos valores dos outros, mesmo que esses valores acabem contradizendo alguns dos nossos próprios valores e princípios.
Certos posicionamentos políticos podem ser colocados diante de implicações inesperadas quando são confrontados com esta questão da sensibilidade ética.
Por exemplo: um marxista ortodoxo típico (essa interessante espécie em extinção) teria provavelmente uma dificuldade muito grande de conceber todo esse exame de questões éticas, e sobretudo a consideração da tal "sensibilidade ética", senão como uma visão “pequeno-burguesa” de autoproteção contra os que querem promover uma revolução... parece uma visão "pequeno-burguesa" já “conformada” com as mudanças por vir, e que aponta para uma suavização da luta de classes a fim de entregar o anel para não perder o dedo...
No entanto, apesar de escrever imaginando que a maior parte de meu público leitor realmente será — provavelmente e se não estou enganado — de grupos que esse marxista ortodoxo classificaria como “pequeno-burgueses”, o fato é que, nesta avaliação, ele estaria profunda e radicalmente errado em relação ao que está por detrás deste ponto de vista diferencial da ética que estou confrontando com o ponto de vista mais tradicional — que é o da coerência.
(Aliás... também creio que entre meus leitores, “pequeno-burgueses” como eu, pode haver bastante gente de formação direta ou indiretamente marxista... só não creio que essa classificação realmente descreva alguma coisa: todos nós que vivemos em cidades, ou seja em burgos, somos burgueses, no sentido mais forte, completo, profundo e evidente do termo... — que infelizmente, não é o sentido marxista).
Para compreender-me, o nosso hipotético marxista ortodoxo precisaria compreender, entre outras coisas, o que significa pensar a questão da luta de classes, de que Marx falava, sob a ideia de que talvez não haja nada desse papo de uma “revolução” final, definitiva e salvadora, e de que as grandes “revoluções”, quando ocorrem, não são sempre e necessariamente coisas boas, e nem apontam sempre e necessariamente para uma mesma direção, um mesmo “destino” histórico.
Na verdade, duas pessoas de formação originalmente marxista (ou talvez marxista e freudiana) me apresentaram bons argumentos nesse sentido: a professora Jeanne-Marie Gagnebin, da PUC de São Paulo, em um curso sobre o filósofo Adorno e a Escola de Frankfurt, em meus tempos de Mestrado, e antes dela o filósofo Cornélius Castoriadis, que sempre considerei e continuo considerando uma excelente leitura (os frankfurtianos e o grupo de Castoriadis não “se bicam” muito bem, mas são ambos de origem marxista e freudiana, uma dobradinha que tem rendido bons frutos).
É preciso reconhecer, aliás, que os marxistas heterodoxos (dos quais em geral também discordo) têm transformado o paralelepípedo economicista de Marx em uma das tendências filosóficas mais lúcidas, autocríticas e renovadoras de nossa era — o que é um fato observável e evidente seja qual for a nossa avaliação de seus resultados, no balanço final.
Examinando as coisas sob este ângulo, talvez fosse enriquecedor, para o nosso hipotético marxista ortodoxo, se permitir pensar um pouco no seguinte, nem que seja como um mero exercício intelectual: o que significa, exatamente, a constante luta, conflito e sofrimento em vista de um “mundo melhor” — em que não seria mais preciso lutar, conflitar, sofrer?
Como parâmetro para esse exercício intelectual, eu proporia levar em consideração o possível acerto da seguinte opinião: há lutas pela frente — aliás, prazerosos desafios, eu diria. Mas se alguma dose de suor e sofrimento tende a fazer parte delas, devemos dosar esse sofrimento em função de um objetivo que não esteja “lá adiante” não sei onde, e sim aqui, agora, na nossa vida de cada dia, que não deve ser vivida como se fosse uma dolorosa missão em função de uma felicidade “no além” (ou em um “destino” de felicidade que imaginamos em um futuro improvável... dá no mesmo).
Feito o exercício, ele — meu amigo marxista imaginário — deveria então necessariamente abandonar seu próprio modo de pensar em favor do meu, se acabasse concluindo que faz algum sentido o que digo? — Será mesmo? Até que ponto?
Porque todo um conjunto de valores que norteiam a vida de uma pessoa, especialmente valores bem estruturados e coerentes, não é algo que se deva necessariamente deixar de lado em bloco e por inteiro de uma só vez , mas um todo complexo que tem muitas facetas e componentes, alguns mais fixados e rígidos na mente da pessoa, outros menos, alguns menos interessantes e outros mais... (aliás, esse tipo de reviravolta sem uma atenção mais ou menos equilibrada aos “prós” e aos “contras”, geralmente não me parece uma coisa muito boa, para a formação ou o desenvolvimento de uma pessoa que se julgue dotada de um bom senso crítico).
No pensamento político de esquerda radical e revolucionário, há duas grandes tradições que são as mais fortes e mais antigas: o marxismo e o anarquismo. Das duas, o anarquismo é historicamente mais comprometido com o exame de questões de caráter ético como sendo centrais, enquanto para o marxismo elas muitas vezes tendem a ser consideradas secundárias ou até mesmo um subproduto da "mentalidade pequeno-burguesa".
No seio das próprias reflexões éticas anarquistas, a questão da consideração de prós e contras costuma ser controversa. Bakunin, em seu texto mais radical, escrito na juventude — A reação na Alemanha — lançou relâmpagos e trovões contra esse modo de pensar, que considera os prós e os contras. Entretanto, ele próprio não deixa consuduzir o seu pensamento muitas vezes dessa maneira. é um modo de pensar muito característico de Proudhon, e que foi mais abandonado por Marx, numa atitude mais coerente que a de Bakunin. O fato é que a desconsideração dos "prós" e "contras", ao se pensar as questões políticas, está diretamente conectada ao autoritarismo. Por isso Marx, que era autoritário, estava sendo mais coerente que Bakunin ao abandonar esse modo de pensar.
De que modo exatamente a desconsideração de prós e contras está ligada ao autoritarismo?
Façamos o esforço de pensar um pouco no assunto. Logo perceberemos que o que mais potencializa a consideração de prós e contras na reflexão é justamente a consideração crítica e autocrítica da opinião alheia, e o que mais potencializa a própria reflexão, como um todo, é a própria consideração crítica e autocrítica dos prós e dos contras — o debate argumentativo.
O acréscimo da sensibilidade crítica ao debate ético, ao lado do paradigma da coerência, promove precisamente isso.
Não é de admirar que certos pensadores revolucionários tenham encarado essa consideração da opinião alheia com certa desconfiança, pois o que significaria, para um grupo revolucionário, levar em consideração realmente e a sério por exemplo os posicionamentos dos próprios inimigos da revolução? A desconfiança de que isto conduziria a um posicionamento no mínimo mais moderado é de fato bastante compreensível. No entanto o próprio Bakunin (mais radical que Marx) não deixou de mostrar essa consideração, reconhecendo, entre seus inimigos, o caráter humanamente digno do posicionamento de conservadores e reacionários sinceros — e isto no próprio A reação na Alemanha, o mais bombástico e radical de seus textos de juventude, e aliás o mais radical de todos os posicionamentos de esquerda já manifestos publicamente até então, conforme foi reconhecido por todos os socialistas da época, inclusive a dupla Marx-Engels.
O estilo exageradamente agressivo com que os socialistas alemães da época começaram a tratar uns aos outros, com muito sarcasmo (e que Marx adotou com mais ímpeto que todos os outros) parecia, para esses jovens revolucionários, justificado e fundamentado graças a esse texto de Bakunin, que de certo modo fornecia base teórica para esse tipo de estilo.
Era um estilo em certa medida já presente nos textos de Proudhon. Mas neles havia uma diferença fundamental: Proudhon recusava-se a abandonar a consideração dos prós e dos contras, precisamente porque detectava nela — com toda razão — o mais sólido recurso contra o autoritarismo nos posicionamentos de um intelectual. O que ocorre é que, se a consideração dos prós e contras potencializa a reflexão, e é potencializada pela consideração das opiniões alheias, o que está implicado aí não é apenas a consideração (humanamente generosa) das opiniões dos próprios inimigos da revolução, mas — o que é muito mais importante — um debate acerca do modo como deve ser encarada a própria coletividade das forças revolucionárias. Deve ser encarada como uma massa una sem divergências ou como um complexo de posicionamentos dos quais emerge uma posição resultante forte e decidida?
É isto o que está no coração da questão.
Segundo Proudhon, não se pode simplesmente ignorar as divergências no seio das forças revolucionárias como se elas não existissem, pois elas são reais e constatáveis. Nem se pode simplesmente escolher entre elas uma posição, para, tomando-a como referência, passar a rotular as demais como "falsamente revolucioárias" ou como "moderadas"... porque essa suposta "falsidade" ou "moderação" denunciada seria na verdade apenas o reflexo da escolha daquela posição única como referência. Fosse escolhida outra, e tudo se inverteria, essa "única" legitimamente revolucioária passaria a ser uma das "falsas" ou "moderadas".
O problema todo está em que uma massa una e sem divergências é algo que se forma rapidamente, e assim que formada, já age de imediato também mais prontamente, mais rápida e decididamente. Um complexo de posicionamentos dos quais emerge uma posição resultante forte e decidida, por outro lado, é algo que se forma bem mais lentamente. Um tal complexo de posições tende inclusive a ter, no início, uma posição resultante bem mais indecisa, pois essa resultante só se potencializará na medida em que for se formando, nessa coletividade complexa, uma personalidade coletiva tão complexa quanto sólida e equilibrada — pode-se dizer aliás o mesmo acerca da formação conjunta das opiniões de um indivíduo. Não é à toa que Proudhon inscreveu no movimento anarquista com tanta ênfase a valorização da educação, e sobretudo da formação das personalidades. Não é à toa que o anarco-individualista Max Stirner também, sob influência de Proudhon, voltou-se para o desenvolvimento de uma teoria pedagógica personalista.
A questão toda está apoiada em um problema relativo ao tempo de amadurecimento do espírito revolucionário na coletividade dos que lutam por isso. Marx e Bakunin, impacientes quanto a isto, adotam uma postura belamente jovial e firme, mas ao mesmo tempo precipitada: apostam na unidade irracional das forças revolucionárias. Marx se arrisca menos nesse sentido, precisamente porque é autoritário. Ou, para sermos mais complacentes com ele, porque não acredita que uma liderança emergida do seio das próprias classes trabalhadoras possa vir a traí-las e manipulá-las com objetivos alheios aos interesses delas. (O que tal conplacência oferece em favor de Marx é duvidoso, pois o faz passar por ingênuo, ainda que ele não tenha vivido para presenciar absurdos feitos em seu nome como aqueles de Stalin).
Valorizar a união das forças revolucionárias sob a forma de uma massa una e irracional significa colocá-las à mercê de lideranças manipuladoras que raciocinem pela massa. Bakunin, que não aceita a autoridade de lideranças assim, vitimado por uma impaciência revolucionária juvenil que não soube superar, adota uma postura arriscada para os seus próprios objetivos.
Proudhon, igualmente impaciente, prefere no entanto apontar o perigo: a força coletiva, mais rápida, una e decidida, segundo ele no entanto só se torna efetivamente revolucionária quando é alcançada pela sua própria razão coletiva, que é precisamente o produto de seus debates internos, de suas divergências racionalmente assimiladas em uma cultura da confrontação argumentativa, que deve ir amadurecendo em uma personalidade coletiva complexa, mas coesa para que essas forças divergentes adquiram uma resultante efetivamente decidida. Somente mediante a razão coletiva é possível, para a coletividade das forças revolucionárias, dirigirem-se efetivamente a si mesmas, e sem se deixarem levar irracionalmente por lideranças manipuladoras.
A impaciência revolucionária de Proudhon é bastante clara para qualquer um que o lê. Mas ser impaciente não implica ser tolo. Proudhon, então, assume uma postura que em filosofia se costuma reconhecer como mais característica do ceticismo — filosofia que não se acomoda facilmente em soluções precipitadas. O que ele faz é colocar em termos claros e bem precisos o problema: como superar o descompasso entre as forças coletivas e a razão coletiva no processo de amadurecimento do espírito revolucionário em uma coletividade?
Não é à toa que Proudhon preserva, junto à ciência, um lugar bem maior e mais valoroso para a filosofia — essa atividade intensamente reflexivamente, que provoca a pensar, e calcada no debate argumentativo — do que Marx e Bakunin.
Curiosamente, sim — se pensarmos na ética a partir do ponto de vista de Proudhon.
Marx e Bakunin, apesar de se combaterem tanto, não deixaram de influenciar fortemente um ao outro — pois é... de tanto a gente olhar para o fundo do abismo, diz Nietzsche, o fundo do abismo acaba olhando para dentro de nós! — e no caso de Bakunin, pode-se notar nesse sentido o quanto ele valorizou a competência econômica de Marx. No entanto foi uma competência construída em cima de críticas superficiais (e a bem da verdade, em grande parte falsas) à teoria econômica de seu desafeto, Proudhon (que era amigo pessoal de Bakinin). A verdade é que Bakunin não soube compreender e valorizar o trabalho econômico de seu próprio amigo, que é muito mais interessante do que pode parecer à primeira vista.
Marx e Engels (e absurdamente acreditando neles, Bakunin), consideraram a economia de Proudhon a partir de uma leitura superficial (operada pelo primeiro desses três) do livro Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da miséria (publicado por Proudhon em 1846) e de críticas a Darimon, teórico da economia que era um amigo de Proudhon ainda mais próximo que Bakunin.
As críticas levam em consideração também, na verdade ainda mais superficialmente, a tentativa (prática, e não apenas teórica) realizada por Proudhon, a certa altura, de promover transformações sociais através da fundação de um banco de crédito gratuito para trabalhadores, em que os próprios correntistas eram acionistas com direito de decidirem em assembleia os créditos que seriam ou não concedidos, para os quais poderiam concorrer empreendimentos sob o controle dos próprios trabalhadores (por exemplo em sistema cooperativo).
Darimon costuma ser considerado um monetarista, posição dos que, em economia, consideram especialmente importante no controle da economia a questão da produção e difusão de moedas ou de papel-moeda (dinheiro, em suma). Ocorre que se a classificação é correta em relação a Darimon — coisa que seria preciso examinar com cuidado — então ele não pode ser considerado um economista proudhoniano.
Primeiramente porque para Proudhon, a questão do crédito tem uma importância incomparavelmente superior à do dinheiro... e ainda segundo ele, o crédito não está aliás na mesma categoria econômica da moeda ou do papel-moeda: é uma outra coisa. Mas em segundo lugar — o que é muito mais importante — porque as questões centrais de sua economia não estão aí, e sim no problema da organização do trabalho, próximo passo a ser tomado para além da divisão do trabalho em atividades parcelares. E para ele, é a organização do trabalho o que pode e deve vir a controlar a economia... tarefa para a qual a manipulação do crédito pode atuar como uma ferramenta auxiliar (entre outras).
Para Proudhon, todo o resto em economia, produção, circulação, sistema financeiro etc., decorre daí: da organização do trabalho a ser realizada (ou, lastimavelmente, de sua desorganização característica do capitalismo vigente). Para ele, a economia das sociedades precisam ter o seu rumo corrigido pela organização do trabalho — o que se pode dizer também da teoria econômica, que precisa ser reorganizada com base nessa consideração.
Considerar a economia proudhoniana a partir apenas dessas três fontes — o livro Sistema das contradições econômicas, o exemplo supostamente proudhoniano do economista Darimon, e a experiência do Banco do povo (o banco de crédito gratuito para empreendimentos dos trabalhadores criado por Proudhon) — induz a erros graves na compreensão de sua proposta.
É preciso lembrar que Proudhon foi o primeiro pensador socialista (antes de Marx) a considerar a economia como base fundamental (uma das bases, não a base) no exame das sociedades capitalistas. Esta foi aliás uma lição proudhoniana aprendida por Marx. Mas é preciso notar, também, o absurdo de se considerar Proudhon como alguém que "não compreendeu" o que é a economia, como as críticas de Marx e seus seguidores costumam sugerir. Porque Proudhon não pretendeu seguir a economia tal como era compreendida até sua época. Pretendeu, pelo contrário, reformular a própria ciência econômica, redefini-la. E forjou inclusive um novo nome para substituir a expressão "economia política", passando a falar em "socioeconomia".
A socioeconomia proudhoniana está espalhada em inúmeras de suas obras, e não se reduz ao que se pode captar por essas três fontes mais examinadas. Mas se quisermos buscar em alguma parte o coração dessa sua nova formulação da economia, devemos procurá-lo em um livro de Proudhon bem pouco lido e estudado: Da criação da ordem na humanidade ou Princípios de organização política (de 1843) — talvez a mais complexa, densa e profunda das obras proudhonianas. Politicamente, uma das mais radicais, e infelizmente também, de toda a sua imensa produção, a de leitura mais difícil.
O coração da socioeconomia fundada por Proudhon nesse livro — e também definida e cuidadosamente delineada nele em suas partes componentes, a fim de auxiliar futuros estudiosos do assunto — está em sua noção das "funções" em que as atividades laborais se dividem, e no modo como suas interações conduzem aos desenvolvimentos tecnológicos (porque ele examina também a divisão e organização do "trabalho" das ferramentas criadas pelos homens). É dessa base que Proudhon deriva decorrências nas demais áreas da economia.
Mas no que diz respeito às questões éticas, o que nos importa ressaltar aqui é um aspecto específico da economia de Proudhon, conforme foi se desenvolvendo em outras obras a partir dessa base formulada em 1843: o ancoramento dessa socioeconomia, em larga medida, em suas experiências profissionais posteriores como contador e como professor de matemática. Dessas experiências profissionais, Proudhon extraiu, em harmonia com as bases socioeconômicas desenvolvidas antes em sua teoria, o que veio a chamar de uma contabilidade moral — um raciocínio acerca de questões éticas calcado no modelo da contabilidade, utilizando os conceitos de "débito" e "crédito". Daí o seu cuidado (mal compreendido por Bakunin) com o exame dos prós e dos contras.
Não se trata apenas de uma metáfora contábil aplicada ao campo da ética: Proudhon pode ser efetivamente considerado como um (fortíssimo) precursor desconhecido do que hoje se conhece pelo nome de "contabilidade social", afastando os debates éticos do campo da pura e mera confrontação de valores no plano intelectual, ampliando-os para o que afeta a sociedade como um todo, amarrando-os à questão material dos recursos reais economicamente disponíveis — entre outros tandos efeitos bastante surpreendentes em contraste com que vinha sendo realizado em sua época nesses dois campos, o da economia e o da ética.
Fica aqui a dica para que o leitor desenvolva os seus próprios estudos quanto a isso... e aos marxistas (como aliás também a alguns bakuninistas um pouco afoitos demais) um alerta: tomemos um pouco mais de cuidado ao depreciarmos precipitadamente os gigantes nos ombros dos quais assentamos nossas próprias bundas, ok?
A tese de Doutoramento em Filosofia defendida academicamente pelo autor destas linhas que você está lendo — Relativismo e ceticismo na dialética serial de Proudhon — analisando a versão heterodoxa da dialética que Proudhon formulou em Da criação da ordem na humanidade ou Princípios de organização política, a fim de confrontar-se com as filosofias de Schelling e Hegel (e reformular em sentido materialista a de Fichte), procura justamente demonstrar — contra a auto-avaliação do próprio Proudhon — que sua filosofia acaba por resultar filiada ao ceticismo (também conhecido em filosofia como pirronismo).
A tese está disponível neste site, e pode ser acessada (e baixada em pdf) na seção Textos e obras.
Uma lembrança: o ceticismo pirrônico é uma filosofia que não aceita acomodar-se a soluções precipitadas... e não encontrando afinal solução nenhuma, precipitada ou não, acaba se limitando apenas à formulação de problemas e o acesso a impasses provisórios, de modo que se realiza no puro e incessante processo de investigação. Uma interrogação: mas o que seria de um ceticismo que desenvolvesse sua investigação não apenas no campo mental, mas através da experiência prática, e inclusive aquela em que há maior instabilidade e maior dificuldade para se atingir qualquer neutralidade — a experiência dos confrontos políticos?
Recorrendo a essa lembrança e a essa interrogação provocativa, e visando encerrar a questão (...por enquanto...), creio que o confronto entre a coerência com nossos próprios valores e a sensibilidade em relação aos valores alheios é, justamente, o principal dilema que o cético tem a enfrentar no campo da ética: qual é o melhor paradigma a seguir? A coerência ética ou a sensibilidade ética?
O que é mais ético?
Sermos realmente autênticos e coerentes em relação aos nossos próprios valores, sermos nós mesmos (e dane-se que estejamos de algum modo “fora de moda” ou isolados, sem quem se interesse por nos ouvir), ou sermos sensíveis ao apelo das diferenças, da presença do outro diante de nós, aceitarmos ser e fazer valer um pouco menos daquilo que somos, sermos um pouco menos autênticos, e nos tornarmos mais diplomáticos, políticos, negociadores...?
Sinceramente, não sei. Para parafrasearmos Shakespeare... coerência ou sensibilidade, eis a questão!