Quando ouvimos falar de "mitologia", logo tendemos a pensar na religião dos gregos antigos, porque quase todas as crenças sagradas e, de um modo geral, quase toda a vida espiritual daqueles gregos, estrava envolvida por todos os lados em aventuras míticas sobre deuses e monstros e grandes heróis como Hércules, Aquiles, Ulisses... E a cultura grega antiga, que acabou sendo espalhada por toda a volta do mar Mediterrâneo pelo Império de Alexandre o Grande, e depois pelo Império Romano, está na base da formação de toda a cultura ocedental.
Mas a verdade é que aquilo que chamamos de "mitos" na antiga Grécia (aliás aquilo que os próprios gregos antigos já chamavam de "mitos") tem fortes analogias, e profunda semelhança em certos detalhes importantes, com algo que encontramos também –– e muito claramente –– em outros povos e outras épocas. Há uma mitologia mesopotâmica, por exemplo, muito mais antiga, da qual encontramos registros escritos de mais de 2000 anos antes de Cristo, e que tem os seus próprios monstros, deusses e heróis. E uma mitologia egípcia também peculiar e quase tão antiga quanto a mesopotâmica.
Os romanos tinham também a sua mitologia, muito parecida com a dos gregos e muito influenciada por ela, mas não idêntica. Os povos tidos como "bárbaros" do norte da Europa também. E os chineses, e os indianos, e os diversos provos da África, bem como os povos indígenas das Américas. Na verdade, desde a antiguidade até os tempos atuais –– e inclusive nas grandes e modernas cidades do nosso temo –– encontramos com frequência uma forte presença desse mesmo tipo de coisa, desse mesmo modo mítico de pensar.
Entretanto a "mitologia" ou o "pensamento mítico" dos grandes centros urbanos de hoje não costuma sempre girar em torno de monstros, deuses e heróis quase divinos como nas mitologias das sociedades antigas –– ou então até apresenta sim algo análogo, mas de maneira bem mais discreta, ficando mais forte nas diferentes formas de expressão artística, principalmente as de mais forte apelo popular, como o cinema em sua superpopularização pela TV.
Quando se fala em "estudar mitologia" logo se pensa em ler ou estudar as narrativas míticas –– e era isto o que a palavra "mito" significava para os gregos antigos: "narrativa de ficção" (ou pelo menos uma narrativa que não apresenta necessariamente fatos históricos, uma narrativa de perfil mais literário ou poético).
Entretanto, considerar os mitos como meras narrativas de ficção se mostra gravemente insuficiente para a compreensão da coisa. Os mitos vão muito além daquilo que a palavra "mito" significa em grego antigo. E mesmo naquela época já íam muito além.
Os mitos têm sempre um caráter fortemente simbólico, procuram exprimir algo de profundo e importante a respeito da vida social e cultural de um povo. Destarte não basta entender as histórias, é preciso se aprofundar no exame daquilo que elas podem estar simbolizando para o povo que as cultiva.
Mas se queremos entender o nível silbólico de uma maneira mais profunda e metódica, e não apenas tateando às cegas para nos agarrarmos à primeira interpretação que vai surgindo em nossa mente, precisamos procurar entender também com maior cuidado e profundidade o que é o pensamento mítico, afinal, e de que maneira ele opera.
Essa é a primeira grande e dupla questão à qual precisamos responder, e que deve orientar nossas interpretações para as narrações míticas. O que é o pensamento mítico e como ele opera.
Precisamos então realizar esse movimento pendular: primeiro utilizar as narrativas míticas de diversos povos e épocas buscando o que existe de comum entre elas, para examinarmos a partir delas (de seus pontos comuns) o que é e como opera o pensamento mítico. E só depois examinarmos quais os diferenciais específicos daquela mitologia particular que queremos examinar.
Aí sim, finalmente, poderemos fazer uma interpretação consistente e profundade tudo aquilo que ela simboliza para o povo que a cultiva, e do que pode simbolizar para nós hoje.
O assunto pensamento mítico de que tratamos aqui é o primeiro movimento desse pêndulo, o movimento dos mitos particulares, considerando vários de diferentes épocas e povos, partindo deles para chegar a uma formulação a respeito do que é o pensamento mítico de um modo geral e a respeito de como ele opera.
Neste sentido, aqui, os mitos mencionados ou descritos vão servir apenas como casos exemplares dos quais vamos buscar algo mais geral que tenham em comum com outros casos.
Não há novidade em estudar isso. Existe uma vastidão inumerável de autores e obras que procuram exatamente isto: definir ou demarcar o que é e como age ou como funciona o pensamento de tipo mítico.
Este é um ponto a nosso favor nesse esforço. Estamos longe de começar do zero. Por outro lado, isso traz também uma dificuldade inesperada que afligiu a todos esses autores: não existe nenhum consenso ou resposta definitiva a respeito dessa dupla questão fundamental. Não há acordo entre os autores na demarcação do que é o pensamento mítico e na compreensão de como ele funciona. Mesmo se nos limitarmos apenas aos autores e obras mais renomados e influentes. Trata-se de um debate em aberto.
Também não são autores de uma mesma área. Temos, basicamente, teólogos, antropólogos, psicólogos, filósofos, linguistas, filólogos, sociólogos, cientistas políticos e historiadores envolvidos nesse debate.
Isso quer dizer que antes de tentarmos responder o que é o pensamento mítico e como ele opera, precisamos mapear esse debate, compreender pelo menos as posições dos principais debatedores, aqueles mais influentes. Entre eles podemos mencionar desde já Platão, Schelling, Cassirer, Barth, Eliade, Müller, Schwab, Otto, Vernant, Lévêque, Caillois, Kerenyi, Durand, Girard, Campbell –– mas há outros.
Entre as divergências que vamos encontrar, há os que consideram a presença de um rito, de um ritual (com suas ações periodicamente repetidas), como algo necessariamente presente para que haja um mito, como algo que alimenta e mantém vivo o mito. E há quem considere o oposto, o ritual como uma espécie de "morte" do mito, algo que faz o mito congelar e perder sua força. Por outro lado há quem considere os rituais e os mitos como coisas independentes, que podem ou não interferir de diferentes maneira uma com a outra.
Há quem considere o mito como necessariamente ligado ao sagrado. Mas também quem o considere como uma específica forma de linguagem –– independente de qualquer conexão com o sagrado. São muitas as questões que podemos encontrar no debate entre esses autores de tantas áreas diferentes de que debruçam sobre o assunto.
E quando falamos aqui em pensamento mítico, não é possível que estejamos nos referindo a algo mais do que um tipo de linguagem? A uma forma de pensamento que talvez possa se exprimir em diferentes linguagens por exemplo? Ou seria uma forma de pensamento que, de algum modo, afeta a própria linguagem na qual se exprime, dando características especiais –– míticas –– a essa linguagem?
Há quem considere os mitos como expressões poéticas ou romanceadas de acontecimentos ou fatos reais, históricos. Há quem considere os mitos como ilusões que nos enganam, o pensamento mítico como uma forma ativa de alienação. E há quem os considere como resultado de uma espécie de função insitintiva do animal humano. E há quem considere as produções míticas como produção folclórica, expressão artística coletiva de forte expressão cultural.
Este é o debate que vamos procurar mapear aqui, e no qual vamos procurar nos embrenhar fazendo menção a diferentes mitos diferentes povos e épocas.