Cunhadismo/ 1ª influência: Humanismo X Maquiavel

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Definindo do assunto
"influência do cunhadismo indígena
sobre o debate Humanismo X Maquiavel"

 

sumário

Os tupi-guarani e os debates ético-políticos no período humanista

O modo de vida dos tupis-guaranis influenciou o debate entre Maquiavel e os pensadores humanistas? | O modo de vida dos tupis-guaranis influenciou os humanistas mas não influenciou Maquiavel? | Como podemos resumir o envolvimento da cultura política indígena brasileira nesse debate entre Maquiavel e os humanistas? | Existem livros em português sobre o debate entre Maquiavel e os humanistas envolvendo a influência dos tupis-guaranis nesse debate?


 

Os tupi-guarani e os debates ético-políticos no período humanista

 

O modo de vida dos tupis-guaranis influenciou
o debate entre Maquiavel e os pensadores humanistas?

Os portugueses (e também os franceses) já estavam entrando em contato com os tupis-guaranis do Brasil na época de Maquiavel (1469-1527), e junto aos navegadores portugueses havia também muitos comerciantes italianos, especialmente da cidade de Gênova (Maquiavel vivia em outra cidade repleta de comenrciantes, a cidade de Florença).

As principais obras de Maquiavel, O príncipe (escrita em 1513 e pubicada em 1532) e Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (escrita em 1517 e publicada em 1531) são de uma época em que já havia conhecimento sobre as terras brasileiras e seus indígenas. Inclusive porque Américo Vespúcio, considerado oficialmente o "descobridor da América", era bem conhecido dos Médici, família de banqueiros que dominou Florença (cidade de Maquiavel) quando a república florentina caiu.

O continente americano ganhou o nome de "América" justamente devido a uma carta de Vespúcio sobre o assunto, que se tornou rapidamente famosa em toda a europa, traduzida para muitas línguas. A carta foi escrita para Piero Lourenço de Médici, que era o principal líder de Florença na época e um dos maiores banqueiros da Europa. Foi publicada pela primeira vez em 1503 com o título de Novus Mundus.

Maquiavel não teria como desconhecer essa publicação famosa. Conheceu os Médici, e aliás, como republicano radical e suspeito aos olhos dessa família, que era antirepublicana, chegou a ser preso e torturado na época. Mas as informações sobre as descobertas de Vespúcio não parecem ter impressionado Maquiavel, que não faz qualquer menção conhecida ao Brasil ou a seus índios em suas obras. Mas é possível colocá-lo neste debate porque ele procurou desenvolver sua teoria política contra a dos pensadores políticos humanistas de Florença e de outras cidades da Itália. E o movimento humanista, por sua vez, foi sim bastante inluenciado pelo conhecimento da carta de Américo Vespúcio.

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Pode-se perceber isso por exemplo examinando as obras dos mais importantes pensadores humanistas da Europa na época. Thomas Morus faz referência à carta de Vespúcio em sua famosa obra A utopia, e Erasmo de Rotherdan também se mostra influenciado por ela em seu igualmente famoso Elogio da loucura. As influências se estendem também ao grande pensador humanista François Rabelais, que era além disso médico, alquimista e famosíssimo comediante. Muito influenciado por Morus e um tanto também por Erasmo, Rabelais sustentou críticas radicais à política oficial da época, apoiando-se na cultura popular e na rebeldia estudantil francesa. Teve amizade pessoal com André Thevet e também conheceu Jean Alphonse de Saintonge, dois exploradores famosos que se aventuraram nas terras do Brasil. Os efeitos das conversas com eles e das informações sobre o Brasil e os indígenas brasileiros marcam diversas passagens das obras cômicas de Rabelais, que chega inclusive a citar brincalhonamente o nome de Pedro Álvares Cabral.

Os humanistas costumavam fazer críticas aos reis e líderes políticos em geral comparando as atitudes e decisões deles com aquelas que deveriam ser tomadas por um líder bondoso e realmente preocupado com os destinos de seu povo. Para isso, tendiam a se apoiar em Platão — que já em sua época havia criado a utopia de uma cidade perfeita, voltada para o que chamava de "O Supremo Bem" — e no Cristianismo (que por sua vez também utilizava muito da filosofia de Platão, substituindo, como se sabe, a ideia de "Supremo Bem" pela de um Deus único, bom, perfeito etc.).

Portanto, pensavam na política a partir das noções morais de "bem" e "mal", da ideia imaginária do que seria um paraíso na terra, e da ideia de um direito hatural dos seres humanos a esse paraíso — direito que, para alguns humanistas, poderia chegar a ser perdido por certos reis e líderes políticos devido à sua atitude interesseira e desumana, até mesmo cruel. As críticas à crueldade e ao desisteresse dos líderes nas coisas públicas, apesar de apoiada em noções cristãs, vinha sempre acompanhada de pesadas críticas à Igreja, que costumava apoiar esses líderes.

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A ideia de se unir as forças humanas a partir de um sentido de bondade cristã para construir (com luta se necessário) um paraíso  aqui na terra, ou pelo menos algo próximo a um tal paraíso — ao invés de esperar a morte para chegar lá ou ficar apenas esperando alguma ajuda da bondade divina — foi muito marcante no movimento humanista, e fortemente reforçada pelas informações sobre a vida dos tupis guaranis. Imaginava-se que eles já viviam (ou ainda viviam) uma vida de certo modo paradisíaca, apesar de não contarem com as facilidades e confortos da vida moderna (e talvez até mesmo por isso).

Sabia-se, não só pela carta de Vespúcio, mas mou muitas outras informações trazidas por navegadores franceses e portugueses, que esses indígenas iviam nús sem vergonha, como Adão e Eva antes da fruta do pecado, e com grande liberdade sexual. E sobretudo, sem serem controlados por nenhuma liderança autoritária e cruel, vivendo em regime de igualdade, como irmãos (ou cunhados) e trabalhando juntos para o bem de toda a comunidade, com todos igualmente beneciciados, sem que ninguém tirasse vantagem sobre os outros. Isto era o bastante para entusiasmar fortemente os humanistas, e fazê-los começarem a desenvolver utopias e ideais de perfeição para a vida política, assim como Platão havia feito.

Maquiavel, com extremo realismo e pessimismo, se levantou justamente contra essa atitude geral otimista dos humanistas. Propôs que a política não deveria ser pensada de maneira nenhuma a partir de utopias ou ideais de perfeição. Que era necessário, pelo contrário, examinar a realidade cruamente do modo como ela é. Também defendia a ideia de que, em política, não se entende as coisas corretamente a partir das ideias de "bem" e de "mal" ou de qualquer avaliação moral da atitude líderes.

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Segundo ele era preciso pensar em termos de eficácia, e considerar como "bom" líder aquele que fosse eficaz em suas ações, independentemente de estar agindo segundo a moral cristã ou não. De modo que, para Maquiavel, até mesmo a crueldade, se utilizada de maneira eficaz, no momento adequado e na dosagem adequada para se obter os resultados esperados, deveria ser considerada como parte das atitudes a serem naturalmente esperadas de um "bom" líder. Um "mal" líder não saberia se utilizar eficazmente nem do bem nem do mal, e tenderia a trazer sempre maus resultados, em qualquer dos dois casos.

Enfim: pelo posicionamento de Maquiavel não fazia nenhum sentido ir buscar em uma situação completamente diferente da européia, como a dos indígenas de uma terra distante, algum pretexto para defender a busca de uma sociedade "perfeita", "ideal", onde as lideranças fossem bondosas e todos fossem iguais e bondosos uns com os outros, e não houvesse gente interesseira. Ele inclusive provavelmente duvidaria que a vida dos indígenas fosse realmente assim. E mesmo que acreditasse, não veria sentido em fazer comparações deste modo. Comparar povos diferentes, para ele, era um recurso para ajudar a entender melhor a situação real de cada povo, e não para dar fundamento a algum sonho de perfeição.

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O modo de vida dos tupis-guaranis influenciou os humanistas mas não influenciou Maquiavel?

Podemos dizer que em relação às informações sobre o Brasil e seus indígenas, Maquiavel remava propositalmente contra a maré.

A descoberta do "novo mundo" americano e dos estranhos povos que lá viviam — principalmente dois grandes grupos de tupis-guaranis, os Tupiniquins e os Tupinambás — estava na época entusiasmando toda a Europa. De 1514 a 1515, por exemplo, foi publicado Alemanha, numa sequência de muitas edições, um periódico um tanto subversivo chamado A nova gazeta do Brasil, que chamava atenção para os aspectos revolucionários da vida política dos tupis-guaranis se comparada à dos europeus.

Essa onda de entusiasmo não foi passageira. Perdurou com muita força por quase todo o século XVI, diminuindo bastante no século XVII mas sem desaparecer, até explodir novamente com muita força nas obras de Jean-Jacques Rousseau, pouco tempo antes da Revolução Francesa (que se inspirou bastante nessas obras). Por todo esse período as Américas geraram grandes expectativas nas lideranças políticas e forças econômicas européias quanto aos potenciais dessa nova colônia de Portugal (aliada da Inglaterra). Avaliavam-se e reavaliavam-se constantemente os proveitos que se poderia tirar dessas terras e de seus povos indígenas. A colônia chegaria inclusive a ser disputada com Portugal por outros países que queriam tomá-la: primeiro (logo no início) a França, depois a Holanda.

Os indígenas brasileiros, em especial, tiveram uma enorme participação nessa onda de entusiasmo do século XVI, porque foram os que mantiveram os contatos mais intensos e amigáveis com os europeus — sobretudo com os franceses, demorando um pouco mais a se acostumarem com os portugueses (na época inimigos da França). A descoberta das Américas e dos indígenas, com muito maior destaque para aqueles do Brasil, entusiasmava especialmente os filósofos e estudiosos em geral de Portugal, Inglaterra, França e cidades da Itália, como a própria Florença, onde Maquiavel vivia. É o que se vê no caso dos humanistas, tão combatidos por ele. Portanto o próprio silêncio de Maquiavel a respeito já é uma tomada de posição nos debates e discussões acerca do assunto.

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Como podemos resumir o envolvimento da cultura política indígena brasileira nesse debate entre Maquiavel e os humanistas?

Em resumo: no campo político-filosófico, esta primeira fase do debate em torno da cultura política indígena brasileira girou, em torno de uma imagem apenas aproximada da vida dos indígenas e bastante idealizada, lançada pelos humanistas em comparações críticas com a vida dos europeus de um ponto de vista moral, o que era dirigido pricipalmente contra as lideranças políticas; e de outro lado, em torno da luta de Maquiavel por uma outra maneira de se examinar as questões políticas, baseada em observações cruas e realistas dos fatos e na avaliação da eficácia ou ineficácia dos líderes.

O que se sabia e se apreciava dos tupis-guaranis, nesta primeira fase do debate, era apenas o essencial: que os indígenas desconheciam todas as diferenças de poder entre eles, tratando-se como irmãos (através do cunhadismo), e não reconheciam acima de tudo nenhuma superioridade de seus "líderes" sobre os demais — de modo que não eram exatamente "líderes", e tudo na verdade era decidido  em assembléias com a livre participação de todos. Também se sabia que viviam em guerra, que suas punições para os delitos na tribo (mesmo os pequenos delitos) eram violentas, e que eram canibais. Isto tudo era correto, mas vago demais e impreciso.

O que se imaginava e interpretava a partir disto, com absurdas distorções devido a um entusiasmo e uma fantasia excessivos, para não dizer descontrolados, era o seguinte: os indígenas andavam nus e faziam sexo livremente porque viviam uma vida sem o sentido de pecado, como a de Adão e Eva antes de perderem o paraíso. Portanto, eram visos como inocentes, como se fossem de certo modo mais infantis que os europeus. Se faziam guerras sangrentas, se às vezes puniam os membros da tribo que erravam com terríveis torturas, e se eram canibais, tudo isso vinha também de sua inocência, já que claramente não viam nada de errado nessas atitudes. Assim como Adão e Eva na sua inocência antes de comerem a fruta da sabedoria e do pecado, os indígenas não tinham noção do bem e do mal, e faziam com total inocência tudo o que faziam de errado. E finalmente, pareciam desconhecer a falsidade e a hipocrisia, e com ela também as desigualdades entre os homens.

Tratava-se, para os humanistas e a maioria dos que se entusiasmavam com o assunto, de condenar moralmente a crueldade dos líderes políticos e as desigualdades entre os europeus criticando a perda dessa suposta inocência dos indígenas. Para Maquiavel, pelo contrário, tratava-se de deixar tudo isso de lado e examinar a política europeia "como ela é", e não como gostaríamos que fosse.


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Existem livros em português sobre o debate entre Maquiavel e os humanistas envolvendo a influência dos tupis-guaranis nesse debate?

Um bom livro para se compreender a oposição de Maquiavel aos humanistas é Maquiavel republicano, de Newton Bignotto. Mas o livro não menciona a influência tupi-guarani sobre os humanistas. Sobre essa influência podem-se ler a primosora edição brasileira do livro de Ferdinand Denis já mencionado — Uma festa brasileira celebrada em Ruen em 1550 — e também o excelente livro de Afonso Arinos de Melo Franco O índio brasileiro e a Revolução Francesa: as origens brasileiras da teoria da bondade natural. O livro não fala especificamente sobre o cunhadismo, mas nos indica uma grande quantidade de documentos dos séculos XVI e XVII publicados na Europa sobre a vida e a organização social e política dos indígenas brasileiros (que sabemos incluir o cunhadismo como eixo central).

Afonso Arinos foi jornalista, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, e teve participação na política brasileira como deputado e senador, mostrando posicionamento bastante conservador — mas sempre com um forte freio antiautoriário, que o fez passar do apoio à oposição a Getúlio Vargas e, mais tarde, apoiando a derrubada de João Goulart (tendo antes participado do governo parlamentarista), no entanto se opôs à ditadura militar, o que o fez ser compulsoriamente afastado da política oficial, e recolher-se nos estudos e na literatura.

Nesse campo literário e teórico, como estudioso, assumiu curiosamente posturas bem mais progressistas, interessando-se por pensadores radicais como Montaigne e Rousseau, e participando de estudos em conjunto com o weberiano de esquerda Sérgio Buarque de Holanda. Seu livro interessantíssimo sobre as influências brasileiras no pensamento político europeu — na contramão do que se costuma fazer na História do Brasil, mostrando apenas as influências em sentido contrário, da Europa sobre o Brasil — tornou-se famoso, e é uma pena que não tenha provocado estudos mais aprofundados em sua época, acabando esquecido apesar da fama inicial.

Nada impede que essa desatenção seja corrigida, pois se trata mesmo de uma obra excelente e merecedora de continuidade (e nada obriga que essa desatenção seja corrigida por alguém com o mesmo espírito conservador que Melo Franco demonstrou na prática).

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