Cunhadismo/ 3ª influência: Contratualismo

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Definindo o assunto
"influência do cunhadismo indígena sobre o contratualismo"

Os tupi-guarani e o "estado de natureza" no contratualismo

 

A cultura política tupi-guarani influenciou a ideia
de igualdade no direito natural europeu?

Segundo Afonso Arinos de Melo Franco, em O índio brasileiro e a Revolução Francesa, a cultura política tupi-guarani contribuiu fortemente para a formação da ideia de um "estado natural" de igualdade entre os homens, quando ainda viviam em uma sociedade selvagem, primitiva. Um "estado natural" que, para o bem ou para o mal (dependendo do autor que trata do assunto), teria sido superado pela formação da sociedade civilizada, organizada pelos poderes oficiais de um Estado.

Assim, Melo Franco nos mostra, por exemplo, que há referências diretas e explícitas aos povos indígenas das Américas tanto na filosofia do direito de Hugo Grotius (1583-1645) quanto na de Puffendorf (1632-1694) quando desenvolvem suas teorias a respeito do que seria o "estado natural" humano em uma sociedade primitiva. O primeiro valoriza o "estado natural" como modelo de um bom modo de vida, o segundo, pelo contrário, considera esse "comunismo primitivo" uma situação de barbárie e violência, em que as condições de vida são precárias e se vive na miséria.

Melo Franco ainda nos fala da presença dessa ideia de um "estado natural" na filosofia política de John Locke (1632-1704), mas não encontra no autor nenhuma referência aos indígenas das Américas. Fala pouco, quase nada, sobre a filosofia de Thomas Hobbes (1588-1679) — o que é curioso, porque em Hobbes há sim referências a esses povos das Américas, apesar de fazer isso mostrando uma visão extremamente pessimista a respeito do modo de vida dos indígenas.

O silêncio de Melo Franco sobre Hobbes é ainda mais curioso se considerarmos que um dos principais focos de atenção de Melo Franco em seu livro é a filosofia de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). É algo que merece crítica, porque Rousseau apoiou-se muito, ele próprio, em Hobbes, apesar de se colocarem em posições opostas em suas avaliações do "estado natural". Esses três autores (Hobbes, Locke e Rousseau) são os principais pensadores da filosofia política contratualista.

Para Hobbes, o modo de vida primitivo está ligado a uma estado de guerra constante, um estado de medo, em que é preciso estar sempre de prontidão para defender-se não só de povos inimigos, mas de qualquer um, porque não há nenhum poder superior que possa policiar as relações e garantir a segurança de todos, de modo que qualquer um pode atacar qualquer um a qualquer momento por qualquer motivo sem que haja nenhum controle sobre isso. Ele chama esta situação de guerra de todos contra todos. Acredita que o modo de vida primitivo é algo muito próximo daquilo que um povo vive quando um governo é derrobado pela violência e começa uma situação de guerra civil em que não se sabe quem irá dirigir a sociedade. Uma situação de miséria, de tensão e de medo constante.

Hobbes fala sobre os indígenas no capítulo XIII de seu livro mais conhecido, Leviatã, em um parágrafo que vale a pena reproduzir:

Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro: mas há muitos lugares onde atualmente se vive assim. Porque os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da conscupiscência natural, não possuem qualquer espécie de governo, e vivem em nossos dias daquela maneira embrutecida que acima referi. Seja como for, é fácil conceber qual seria o gênero de vida quando não havia poder comum a recear, através do gênero de vida em que os homens que anteriormente viveramsob um governo pacífico costumam deixar-se cair, numa guerra civil.

(HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
Col. Pensadores, Hobbes - vol. 1, p.76)


Como a filosofia contratualista trabalha com a ideia de "estado natural"?

Os contratualistas trabalham sempre com a oposição entre duas ideias:

  1. a desse "estado natural" em que os homens viviam nas sociedades primitivas; e
  2. a de um "contrato social", um grande acordo entre os membros da sociedade, reconhecendo sua igualdade de direitos por natureza — acordo no qual os cidadãos teriam organizado sua vida em sociedade segundo leis e sob alguma forma de governo capaz de preservá-la, superando aquele "estado natural".

Percebe-se por detrás disso aquela ideia de La Boétie de um momento de ruptura, um "mau encontro" no qual os membros da sociedade teriam descoberto o Estado como forma de organização, e entrado em uma nova forma de vida da qual não haveria mais retorno. Só que para os contratualistas o contrato social que teria formado esse novo modo de vida é algo bom, algo a ser valorizado. Já quanto ao "estado de natureza", eles se dividem.

Hobbes retoma a luta de Maquiavel contra os sonhadores humanistas em favor de uma visão mais realista das coisas. Mas ao invés de ignorar a ideia humanista de tomar o modo de vida dos indígenas como modelo, passa a considerá-los como um exemplo do pior modo de vida que se pode imaginar para seres humanos que vivem juntos no mesmo território. Portanto, para ele, a cultura indígena tupi-guarani serve como material para imaginar um anti-modelo, um modelo de tudo aquilo que se deve evitar aqualquer custo em uma sociedade.

Depois, John Locke contradiz Hobbes, e constrói uma boa imagem do "estado natural" — mas sem fazer nenhuma referência aos povos indígenas, e se apoiando muito ao invés disso em especulações cristãs a respeito das intenções de Deus em relação aos homens.

E finalmente Rousseau, retomando e radicalizando algumas ideias hobbesianas, acaba curiosamente chegando à conclusão de que Hobbes não foi muito coerente com suas próprias ideias, e que teria sido mais coerente se passasse a valorizar o "estado natural" como um bom modo de vida — mas infelizmente um modo de vida ultrapassado sem nenhum retorno possível. Assim, para Rousseau o "estado natural" oferece um modelo de vida bom e desesável, mas que não pode ser recuperado.

A ideia do "mau encontro" de La Boétie reaparece na filosofia rousseauísta com mais força ainda: as sociedades primitivas, indígenas, teriam entrado por um mau caminho sem retorno quando começaram a se "civilizar". A civilização e o progresso, para Rousseau, são ruins. São uma espécie de corrupção e apodrecimento da liberdade e da igualdade que os homens tinham na vida primitiva. Mas não foi apenas um "mau encontro" que aconteceu em um momento: esse "mau encontro" continua se aprofundando e desenvolvendo cada vez mais as suas piores consequências. Quanto mais avançamos na civilização e no progresso, mais estragamos a nossa vida, e vamos perdendo cada vez mais da nossa igualdade e nossa liberdade. O processo não termina nunca e não pode ser revertido. Poucas vezes na história da humanidade houve algum filósofo tão pessimista quanto Rousseau.

Entretanto, Rousseau deixou algum espaço para a esperança.

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