Este pequeno volume nos apresenta, em menos de 150 páginas, as ideias básicas da pensadora feminista Donna Haraway, por meio de um breve prefácio de Tomaz Tadeu (organizador da publicação), e três ensaios, dois de Hari Kunzru e um –– bem mais longo –– da própria Haraway.
O prefácio de Tadeu de 7 páginas, se intitula Nós, ciborgues: o corpo elétrico e a dissolução do humano. Em seguida somos apresentados a essa vertente do pensamento feminista pelo primeiro ensaio de Kunzru, de 14 páginas: Você é um ciborgue: Um encontro com Donna Haraway.
Depois temos o texto mais longo (64 páginas mais notas e extensa bibliografia), escrito por Haraway sob o título Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. E por último uma brevíssima Genealogia do ciborgue escrita por Kunzru (6 páginas).
O pensamento de Haraway é polêmico e arrojado no campo do feminismo. Coloca-se em oposição ao que se poderia chamar de feminismo "da deusa" –– que é a versão dominante do feminismo no mundo. Essa versão dominante parte da ideia de uma conexão mais profunda das mulheres com a natureza, e da noção de que houve tempos em que predominava, em certos povos, uma cultura de perfil mais matriarcal, igualitária e pacífica do que patriarcal e militarizada e agressiva.
Haraway procura escapar das utopias regressistas e naturalistas, de busca de um retorno ou uma retomada do matriarcalismo arcaico. Nesse tipo de feminismo, que Haraway critica considerando regressista e naturalista, a mulher luta por seus direitos partindo da noção de que o feminino simboliza a natureza como um todo, em todas as transformações dos seres vivos, no ciclo da morte e da vida. Desse ponto de vista, o feminismo teria de procurar recuperar algo perdido num passado remoto, quando se venerava uma grande deusa (de certo modo a própria mãe natureza divinizada).
A proposta de Haraway é a de, pelo contrário, olhar para a frente. Pensar no feminino como uma condição na qual as mulheres, por força das circunstâncias e pressões históricas e sociais, acabou por antecipar em si mesma –– a começar pelo modo como lida com seu próprio corpo –– uma Era de artificialismo.
Essa Era de artificialismo está entre as tendências futuras possíveis que já começasm a se manifestar agora, e as mulheres estariam em uma posição avançada nisto. Caberia aos movimentos feministas assumirem essa tendência e mergulharem mais resolutamenter nesse novo artificialismo, lutando pela aceleração e pelo aprofundamento dessa tendência, para torná-la dominante.
Segundo Haraway vivemos em tempos em que nos artificializamos cada vez mais, e já chegamos a tal ponto nisto que podemos nos considerar a nós mesmos –– e segundo Haraway desde já –– como "ciborgues".
Com base nessa ideia, Haraway trata de reconstruir a noção de "ciborgue" de maneira mais ampla do que aquela que presenciamos com tanta frequência nas ficções científicas, incluindo nessa noção todos os recursos artificiais que agregamos de um modo geral à imagem de quem somos. Somos seres que se autoconstroem dessa maneira –– e as mulheres, pelo que lhes tem sido imosto nas sociedades patriarcais, acabaram por se encontrar estrategicamente na melhor posição para vivenciarem em si mesmas o processo de artificialização dos seres humanos, e para compreender melhor esse processo.
Pode-se dizer que, por esse caminho inovador e ousado, Haraway entra indiretamente em um debate interessantíssimo no interior do próprio feminismo com figuras de ponta da vertente mais tradicional, de reintegração com anatureza e recuperação da cultura da "deusa", como por exemplo Riane Eisler, autora do famoso O cálice e a espada: Nosso passado, nosso futuro.