Homo ludens

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Huizinga, Johan / 1980

livro

 

As principais ideias do livro estão contidas no primeiro capítulo: Natureza e significado do Jogo como fenêmeno cultural.

Segue abaixo, por enquanto (provisoriamente), apenas uma seleção cuidadosa de citações com as passagens mais importantes deste capítulo. Mais adiante essas citações serão completadas com resumos do resto do livro e análises críticas e comentários, e então o material será transferido para o menu Resenha crítica, que será acrescentado no cabeçalho desta página. Quando isto ocorrer, o que você encontrará aqui (neste menu Breve Apresentação) será apenas um resumo de todo o livro.

 


 

Citações

 

O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica. É-nos possível afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentou característica essencial alguma à ideia geral de jogo. Os animais brincam tal como os homens. Bastará que observemos os cachorrinhos para constatar que, em suas alegres evoluções, encontram-se presentes todos os elementos essenciais do jogo humano. Convidam-se uns aos outros para brincar mediante um certo ritual de atitudes e gestos. Respeitam as regras que os proíbem morderem, ou pelo menos com violência, a orelha do próximo. Fingem estar zangados e, o que é mais importante, eles, em tudo isto, experimentam evidentemente imenso prazer e divertimento. Essas brincadeiras dos cachorrinhos constituem apenas uma das formas mais simples de jogo entre os animais. Existem outras formas muito mais complexas, verdadeiras competições, belas representações destinadas a um público.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 3.

 

 

(...) mesmo em suas formas mais simples, ao nível animal, o jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. Ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa "em jogo" que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. Não se explica nada chamando "instinto" ao princípio ativo que constitui a essência do jogo; chamar-lhe "espírito" ou "vontade" seria dizer demasiado. Seja qual for a maneira como o considerem, o simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presença de um elemento não material em sua própria essência.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 4.

 

(...) reconhecer o jogo é, forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência, não é material. Ultrapassa, mesmo no mundo animal, os limites da realidade física. Do ponto de vista da concepção determinista de um mundo regido pela ação de forças cegas, o jogo seria inteiramente supérfluo. Só se torna possível, pensável e compreensível quando a presença do espírito destrói o determinismo absoluto do cosmos. A própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica da situação humana. Se os animais são capazes de brincar, é porque são alguma coisa mais do que simples seres mecânicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque somos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é irracional.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 4.

 

 

Encontramos o jogo na cultura, como um elemento dado existente antes da própria cultura, acompanhando-a e marcando-a desde as mais distantes origens até a fase de civilização em que agora nos encontramos.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 4.

 

Se verificamos que o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa certa "imaginação" da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens), nossa preocupação fundamental será, então, captar o valor e o significado dessas imagens e dessa "imaginação". Observaremos a ação destas no próprio jogo, procurando assim compreendê-lo como fator cultural da vida.

As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde o início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. (...) Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza.

Um outro exemplo é o mito, que também é uma transformação ao uma "imaginação" do mundo exterior, mas implica em um processo mais elaborado do que ocorre no caso das palavras isoladas. O homem primitivo procura, através do mito, dar conta do mundo dos fenômenos atribuindo a este um fundamento divino. Em todas as caprichosas invenções da mitologia, há um espírito fantasista que joga no extremo limite entre a brincadeira e a seriedade. Se, finalmente, observarmos o fenômeno do culto, verificaremos que as sociedades primitivas celebram seus ritos sagrados, seus sacrifícios, consagrações e mistérios, destinados a assegurarem a tranquilidade do mundo, dentro de um espírito de puro jogo, tomando-se aqui o verdadeiro sentido da palavra.

Ora, é no mito e no culto que têm origem as grandes forças instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência. Todas têm suas raízes no solo primevo do jogo.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 7.

 

Antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária. Sujeito a ordens, deixa de ser jogo, podendo no máximo ser uma imitação forçada. Basta esta característica de liberdade para afastá-lo definitivamente do curso da evolução natural. (...) As crianças e os animais brincam porque gostam de brincar, e é precisamente em tal fato que reside sua liberdade.

Seja como for, para o indivíduo adulto e responsável o jogo é uma função que facilmente poderia ser dispensada, é algo supérfluo. Só se torna uma necessidade urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade. É possível, em qualquer momento, adiar ou suspender o jogo. Jamais é imposto pela necessidade física ou pelo dever moral, e nunca constitui uma tarefa, sendo sempre praticado nas "horas de ócio". Liga-se a noções de obrigação e dever apenas quando constitui uma função cultural reconhecida, como no culto e no ritual.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 11.

 

 

Chegamos, assim, à primeira das características fundamentais do jogo: o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade. Uma segunda característica intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida "corrente" nem vida "real". Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida "real" para uma esfera temporária de atividade de atividade com orientação própria. Toda criança sabe perfeitamente quando está "só fazendo de conta" ou quando está "só brincando". (...) Esta característica de "faz de conta" do jogo exprime um sentimento de inferioridade do jogo em relação à "seriedade", o qual parece ser tão fundamental quanto o próprio jogo. Todavia, conforme já salientamos, esta consciência do fato de "só fazer de conta" no jogo não impede de modo algum que ele se processe com a maior seriedade, com um enlevo e um entusiasmo que chegam ao arrebatamento e, pelo menos temporariamente, tiram todo o significado da palavra "só" da frase acima. Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente o jogador. Nunca há contraste bem nítido entre ele e a seriedade, sendo a inferioridade do jogo sempre reduzida pela superioridade de sua seriedade. Ele se torna seriedade e a seriedade, jogo. É possível ao jogo alcançar extremos de beleza e de perfeição que ultrapassam em muito a seriedade.

(...) Visto que não pertence à vida "comum", ele se situa fora do mecanismo de satisfação imediata das necessidades e dos desejos e, pelo contrário, interrompe este mecanismo. Ele se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização (...) como um intervalo em nossa vida cotidiana.

(...)

O jogo distingue-se da vida comum tanto pelo lugar quanto pela duração que ocupa. É esta a terceira de suas características principais: o isolamento e a limitação. É "jogado até o fim" dentro de certos limites de tempo e de espaço. Possui um caminho e um sentido próprios.

O jogo inicia-se e, em determinado momento, "acabou". Joga-se até que se chegue até um certo fim. Enquanto está decorrendo tudo é movimento, mudança, alternância, sucessão, associação, separação. E há, diretamente ligada à sua limitação no tempo, uma outra característica interessante do do jogo, a de se fixar imediatamente como fenômeno cultural. Mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim, ele permanece como uma criação nova no espírito, um tesouro a ser conservado pela memória. É transmitido, torna-se tradição. Pode ser repetido a qualquer momento (...). A limitação no espaço é ainda mais flagrante do que a limitação no tempo. Todo jogo se processa e existe no interior de um campo previamente delimitado, de maneira material ou imaginária, deliberada ou espontânea (...) são mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 11-13.

 

 

Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e absoluta. E aqui chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: ele cria ordem e é ordem. Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige um aordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta "estraga o jogo", privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 13.

 

 

O elemento de tensão (...) desempenha no jogo um papel extremamente importante. Tensão significa incerteza, acaso. Há um esforço para levar o jogo até ao desenlace (...), conseguir alguma coisa difícil, ganhar, acabar com uma tensão.(...0 Embora o jogo enquanto tal esteja para além do domínio do bem e do mal, o elemento de tensão lhe confere um certo valor ético, na medida em que são postas à prova as qualidades do jogador (...). Porque, apesar de seu ardente desejo de ganhar, deve sempre obedecer às regras do jogo.

(...) As regras de todos os jogos são absolutas e não permitem discussão.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 13-14.

 

 

As comunidades de jogadores geralmente tendem a tornar-se permanentes, mesmo depois de acabado o jogo. É claro que nem todos os jogos de bola de gude, ou de bridge, levam à fundação de um clube. Mas a sensação de estar "separadamente juntos", numa situação excepcional, de partilhar algo importante, afastando-se do resto do mundo e recusando as normas habituais, conserva sua magia para além da duração de cada jogo (...).

O caráter especial e excepcional do jogo é ilustrado de maneira flagrante pelo ar de mistério em que frequentemente se envolve por se fazer dele um segredo. Isto é, para nós, e não para os outros. O que os outros fazem "lá fora" é coisa que no momento não nos importa. Dentro do círculo do jogo, as leis e costumes da vida cotidiana perdem validade. Somos diferentes e fazemos coisas diferentes.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 15.

 

 

Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como "não-séria" e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces e outros meios semelhantes.

A função do jogo, nas formas mais elevadas que aqui nos interessam, pode de maneira geral ser definida pelos dois aspectos fundamentais que nele encontramos: uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa. Estas duas funções podem também por vezes confundir-se, de tal modo que o jogo passe a "representar" uma luta, ou, então, se torne uma luta para melhor representação de alguma coisa.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 16-17.

 

 

Mais do que uma realidade falsa, a representação é a realização de uma aparência: é "imaginação". No sentido original do termo.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 17.

 

A representação sagrada é mais do que a simples realização de uma aparência, é até mais do que uma realização simbólica: é uma realização mística. Algo de invisível e inefável adquire nela uma forma bela, real e sagrada. Os participantes do ritual estão certos de que o ato concretiza e efetua uma certa beatificação, faz surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela em que habitualmente vivem. Mas tudo isto não impede que essa "realização pela representação" conserve, sob todos os aspectos, as características formais do jogo.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 17.

 

 

O ritual é um dromenon, isto é, uma coisa que é feita, uma ação. A matéria desta ação é um drama, isto é, uma vez mais, um ato, uma ação representada num palco. Esta ação pode revestir a forma de um espetáculo ou de uma competição. O rito, ou "ato ritual", representa um acontecimento cósmico, um evento dentro do processo natural. Contudo, a palavra "representa" não exprime o sentido exato da ação, pelo menos na conotação mais vaga que atualmente predomina; porque aqui "representação" é realmente identificação, a identificação mística ou a reapresentação do acontecimento.

(...)

O culto é, portanto, um espetáculo, uma representação dramática,uma figuração imaginária de uma realidade desejada (...).

Como devemos encarar um processo espiritual que se inicia com uma experiência inexpressa dos fenômenos cósmicos e conduz a sua representação imaginária no jogo?

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 18-19.

 

 

 

Diríamos então que, na sociedade primitiva, verifica-se a presença do jogo, tal como nas crianças e nos animais, e que, desde a origem, nele se verificam todas as características lúdicas: ordem, tensão, movimento, mudança, solenidade, ritmo, entusiasmo. Só em fase mais tardia da sociedade o jogo se encontra associado à expressão de alguma coisa, nomeadamente aquilo a que podemos chamar "vida" ou "natureza". O que era jogo desprovido de expressão verbal agora adquire uma forma poética. Na forma e na função do jogo, que em si mesmo é uma entidade independente desprovida de sentido e de racionalidade, a consciência que o homem tem de estar integrado numa ordem cósmica encontra sua expressão primeira, mais alta e mais sagrada. Pouco a pouco, o jogo vai adquirindo a significação de ato sagrado. O culto vem-se juntar ao jogo; foi este, contudo, o fato inicial.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 21.

 

 

O culto é a forma mais alta e mais sagrada da seriedade. Como pode ele, apesar disso, ser jogo? (...) Estamos habituados a considerar o jogo e a seriedade como uma antítese absoluta. Contudo parece que isto não permite chegar ao nó do problema.

(...) A criança joga e brinca dentro da mais prefeita seriedade, que a justo título podemos considerar sagrada. Mas sabe perfeitamente que o que está fazendo é um jogo. Também o esportista(...). O mesmo se verifica no ator que, quando está no palco, deixa-se absorver inteiramente pelo "jogo" da representação teatral, ao mesmo tempo que tem consciência da natureza desta. O mesmo é válido para o violinista, que se eleva a um mundo superior ao de todos os dias, sem perder a consciência do caráter lúdico da sua atividade. Portanto, a qualidade lúdica pode ser própria das atividades mais elevadas. Mas permitirá isto que prolonguemos a série de maneira a incluir o culto, afirmando ser também meramente lúdica a atividade do sacerdote que executa os rituais do sacrifício? À primeira vista isto parece absurdo, porque aceitá-lo para uma religião nos obrigaria a aceitá-lo para todas. Assim, nossas ideias de culto, magia, liturgia, sacramento e mistério seriam todas abrangidas pelo conceito de jogo.

(...) Essa identidade do ritual e do jogo era reconhecida sem reservas por Platão, que não hesitava em incluir o sagrado na categoria do jogo (Cf. PLATÃO, Leis, VII. 796 B). A identificação platônica entre o jogo e o sagrado não desqualifica este último, reduzindo-o ao jogo, mas, pelo contrário, equivale a exaltar o primeiro, elevando-o às mais altas regiões do espírito.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 22,23.

 

 

 

Verificamos que uma das características mais importantes do jogo é sua separação espacial em relação à vida cotidiana. É-lhe reservado, quer material ou idealmente, um espaço fechado, isolado do ambiente cotidiano, e é dentro desse espaço que o jogo se processa e que suas regras têm validade. Ora, a delimitação de um lugar sagrado é também a característica primordial de todo ato de culto. Esta exigência de isolamento para o ritual, incluindo a magia e a vida jurídica, tem um alcance superior ao meramente espacial e temporal. Quase todos os rituais de consagração e iniciação implicam um certo isolamento artificial tanto dos ministros quanto dos neófitos. Sempre que se trata de proferir um voto, de ser recebido numa ordem ou numa confraria, de fazer um juramento, ou de entrar para uma sociedade secreta, de uma maneira ou de outra há sempre essa delimitação de um lugar do jogo. O mágico, o áugure, o sacrificador, sempre começam por circunscrever seu espaço sagrado. O sacramento e o mistério implicam sempre um lugar santificado.

De um ponto de vista formal, não existe diferença alguma entre a delimitação de um espaço para fins sagrados e a mesma operação para fins de simples jogo. (...)

Mesmo estabelecida a identidade formal do ritual e do jogo, continua sendo necessário saber se esta semelhança vai mais longe que o aspecto puramente formal (...) - as práticas rituais, desenrolando-se dentro do quadro formal do jogo, são marcadas também pela atitude e pela atmosfera do jogo.

(...)

A alegria que está indissoluvelmente ligada ao jogo pode transformar-se, não só em tensão, mas também em arrebatamento. A frivolidade e o êxtase são os dois polos que limitam o âmbito do jogo.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 23-24.

 

 

 

O jogo tem por natureza, um ambiente instável. A qualquer momento é possível à "vida cotidiana" reafirmar seus direitos, seja devido a um impacto exterior, que venha interromper o jogo, ou devido a uma quebra das regras, ou então do interior, devido ao afrouxamento do espírito do jogo, a uma desilusão, um desencanto.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 24.

 

 

Quais são, então, a atitude e o ambiente predominantes nas celebrações sagradas? A palavra celebrar diz tudo: o ato sagrado é celebrado, isto é, serve de pretexto para uma festa. (...) As consagrações, os sacrifícios, as danças e competições sagradas, as representações, os mistérios, tudo isto vai constituir parte integrante de uma festa. Pode acontecer que os ritos sejam sangrentos, que as provas a que é submetido o iniciado sejam cruéis, que as máscaras sejam atemorizantes, mas tudo isso não impede que o ambiente seja de festividade, implicando a interrupção da vida cotidiana.

(...)

Existem entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relações. Ambos implicam uma eliminação da vida cotidiana. Em ambos predominam a alegria, embora não necessariamente, pois também a festa pode ser séria. Ambos são limitados no tempo e no espaço. Em ambos encontramos uma combinação de regras estritas com a mais autêntica liberdade. Em resumo, a festa e o jogo têm em comum suas características principais.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 25.

 

 

Não se pense, todavia, que que o estabelecimento de uma estreita relação entre o espírito do jogo e o ritual possa servir para explicar tudo. O jogo autêntico possui, além de suas características formais e de seu ambiente de alegria, pelo menos um outro traço dos mais fundamentais, a saber a consciência, mesmo que seja latente, de estar "apenas fazendo de conta". Permanece de pé a questão de saber até que ponto essa consciência é compatível com os atos rituais efetuados dentro de um espírito de devoção.

Se nos limitarmos aos ritos sagrados das culturas primitivas, não será impossível determinar o grau de seriedade com que são efetuados. Tanto quanto me consta, os etnólogos e antropólogos concordam todos com a ideia de que o estado de espírito que preside às festas religiosas dos povos selvagens não é de ilusão total. Existe uma consciência subjacente de que as coisas "não são reais". [A atuação dos] encarregados da direção do conjunto das cerimônias (...) assemelha-se em tudo à dos pais que brincam de Papai Noel com seus filhos: conhecem a máscara, mas escondem-na deles. (...) A atitude dos neófitos oscila entre o êxtase, a loucura fingida, o frêmito de horror e a afetação dos garotos. (...)

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 26.

 

 

É impossível determinar de maneira rigorosa o limite a partir do qual a gravidade religiosa passa a ser simples divertimento (fun). Entre nós, um pai que seja um tanto ou quanto pueril poderá ficar seriamente zangado se seus filhos o surpreenderem no exato momento em que estiver preparando os presentes de Natal.

No capítulo intitulado Primitive credulity, de seu livro The Threshold of Religion, R. R. Marette expõe a ideia de que em todas as religiões primitivas se encontra um certo elemento de "faz de conta" (make-believe). Tanto o feiticeiro como o enfeitiçado são ao mesmo tempo conscientes e iludidos. Mas um deles escolhe o papel do iludido. "O selvagem é um bom ator, capaz de deixar-se absorver inteiramente por seu papel, tal como a criança quando brinca; e, também tal como a criança, é um bom espectador, capaz de ficar mortalmente assustado com o rugido de uma coisa que sabe perfeitamente não ser um verdadeiro leão". (...) O comportamento dos indivíduos aos quais se atribui poderes sobrenaturais pode frequentemente ser definido como um playing up to the role (manter-se fiel ao papel).

(...)

Apesar desta consciência parcial do caráter fictício das coisas na magia e nos fenômenos sobrenaturais em geral, os mesmos observadores insistem que daí não deve concluir-se que todo o sistema de crenças e práticas seja apenas uma fraude inventada por um grupo de "incrédulos", tendo em vista dominar os "crédulos". É certo que esta interpretação não só é defendida por muitos viajantes, mas aparece até nas tradições dos próprios indígenas, mas mesmo assim, não é possível que ela esteja correta (...): é impossível perder de vista, por um momento só que seja, o conceito de jogo, em tudo quanto diz respeito à vida religiosa dos povos primitivos. (...) Mais ainda: a unidade e a indivisibilidade da crença e da incredulidade, a indissolúvel ligação entre a gravidade do sagrado e o "faz de conta" e o divertimento, são melhor compreendidas no interior do próprio conceito de jogo.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 27-28.

 

 

 

Quando uma certa forma de religião aceita uma identidade sagrada entre duas coisas de natureza diferente, como por exemplo um ser humano e um animal, não podemos definir corretamente essa relação como uma "ligação simbólica", no sentido em que a entendemos. A identidade e unidade essencial de ambos é muito mais profunda do que a relação entre uma substância e sua imagem simbólica. É uma identidade mística. Um se tornou o outro. Em sua dança mágica o selvagem é um canguru. Quer queiramos ou não, sempre transpomos as concepções religiosas do selvagem para o plano de exatidão rigorosamente lógica de nosso tipo de pensamento. Exprimimos a relação entre ele e o animal com o qual se identifica como sendo uma "realidade" para ele, e um "jogo" para nós. O selvagem diz que se apoderou da "essência" do canguru. Mas o selvagem nada sabe das distinções conceituais entre "ser" e "jogo", nada sabe sobre "identidade", "imagem" ou "símbolo". Portanto, continua em aberto a questão de saber se a melhor maneira de apreender o estado de espírito do selvagem no momento em que celebra seus rituais não será o recurso à noção primária e universalmente compreensível de "jogo". Em nossa concepção do jogo, desaparece a distinção entre a crença e o "faz de conta".

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 29-30.

 

 

 

A noção de jogo associa-se naturalmente à de sagrado. Qualquer prelúdio de Bach, um verso de qualquer tragédia prova isso. Decidindo considerar toda a esfera da chamada cultura primitiva como um domínio lúdico, abrimos caminho para uma compreensão mais direta e mais geral de sua natureza, de maneira mais eficaz do que se recorrêssemos a uma meticulosa análise psicológica ou sociológica.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 30.

 

 

 

O jogo sagrado, pelo fato de ser indispensável ao bem-estar da comunidade e um germe de intuição cósmica e de desenvolvimento social, não deixa de ser um jogo que, como dizia Platão, se processa fora e acima das austeras necessidades da vida cotidiana.

(...)

Segundo a concepção de Platão, a religião é essencialmente constituída pelos jogos dedicados à divindade, os quais são para os homens a mais elevada atividade possível. Seguir esta concepção não implica de maneira nenhuma que se abandone o mistério sagrado, ou que se deixe de considerar este a mais alta expressão possível daquilo que escapa às regras da lógica. Os atos de culto, pelo menos sob uma parte importante de seus aspectos, serão sempre abrangidos pela categoria do jogo, mas esta aparente subordinação em nada implica o não reconhecimento de seu caráter sagrado.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 30.

 

 

 

 

 

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