É difícil para nós, nos dias de hoje, conhecer bem o pensamento dos sofistas. Eles não formavam um grupo de filósofos com as mesmas ideias. Cada um tinha sua própria teoria. Mas eram todos mais ou menos de uma mesma época, viveram na Grécia antiga uns cinco séculos e meio antes de Cristo, aproximadamente na mesma época dos filósofos Sócrates e Platão (que eram jovens quando os sofistas mais famosos e importantes já estavam velhos ou começando a envelhecer).
Havia toda uma maneira de pensar no mundo e na vida, toda uma cultura, todo um modo de ser e de se fazer as coisas, que era típico de um grego dessa época, e os sofistas defendiam essa cultura. Por isso procuraram organizar esse modo de pensar típico dos gregos antigos e construíram teorias a respeito. Não foi algo que fizeram inconscientemente porque estavam "condicionados" pelo modo de pensar da sua época: sabiam exatamente o que estavam fazendo, valorizavam muito aquela cultura e achavam importante construir teorias baseadas nesse modo de pensar, que fossem uma espécie de organização racional desse modo de pensar.
Por isso, apesar de serem teorias bastante diferentes umas das outras, era possível perceber entre as filosofias dos sofistas muitos pontos em comum — por exemplo tendiam todas para o relativismo ou eram franca e assumidamente relativistas, posição que colocou esses pensadores em confronto com o jovem Platão, na época ainda pouco conhecido, mas que se tornaria em pouco tempo um dos maiores e mais famosos anti-relativistas da história da filosofia.
O relativismo trabalha com a noção de que todas as verdades são relativas, variam de época e lugar para época e lugar, ou de situação para situação, ou de opinião para opinião — e essa última versão do relativismo, que faz a verdade ser uma mera questão de opinião, combinava especialmente bem com o modo de pensar da mais poderosa cidade da Grécia naquela época, a cidade de Atenas... porque lá, nada era mais valorizado e prestigiado do que uma opinião apoiada em bons argumentos e exposta publicamente. Esse modo de pensar atraía os sofistas, que construiam teorias para defendê-lo. A melhor maneira de entender os sofistas, então, é entender essa época em que eles viveram, e o papel desempenhado pela cidade de Atenas nesse contexto.
O ponto mais importante, nesse sentido, é que o Movimento Sofista se concentrava na cidade de Atenas, e os gregos de Atenas, dessa época tinham inventado (e adotado em sua própria forma de se organizar) um sistema político que na época era uma novidade originalíssima, chamado demokratía (que numa tradução simplificada e habitual, significa poder do povo) — era o nascimento do que hoje chamamos de "democracia".
Além disso, essa primeira democracia da história da humanidade (na verdade bastante diferente das atuais em vários aspectos) era também o que podemos chamar de uma república pedagógica — em que as atividades políticas estavam intensamente fundamentadas em um constante processo de aprendizado e ensino mútuo entre os cidadãos atenienses, uma constante troca e avaliação crítica de informações tendo em vista a formação continuada e incessante dos cidadãos individualmente, das comunidades coletivamente, das instituições democráticas e da cidade como um todo.
O Movimento Sofista era, basicamente um movimento de sábios de toda a Grécia organizados em defesa desse novo modelo político democrático e pedagógico instaurado em Atenas. Os mais famosos e influentes entre eles foram Pródico, Trasímaco, Antífon, Crítias, Hípias, Lícofron, Cálicles, Antístenes e, principalmente, Górgias e Protágoras (este último aicima de todos os outros). Quem hoje chamamos de "sofistas" são esses grandes pensadores relativistas, que Platão se recusava a considerar como filósofos. Cada um deles tinha a sua própria teoria. Mas veremos que a palavra "sofista", na época, tinha um sentido muito mais aberto, e incluia pessoas que não tinham nenhuma atividade teórica, e que não poderiam ser chamadas exatamente de "pensadores" no sentido em que usamos esse termo atualmente.
Apesar de democrática, e de sua democracia ser defendida por esses pensadores, cada um vindo de uma diferente cidade da Grécia, a cidade de Atenas, sendo na época a mais rica, a mais poderosa e a mais influente de todas na Grécia, mantinha uma política externa que nem sempre era tão democrática (além de essa democracia deles ter também suas graves falhas internas).
Atenas tinha muitas colônias sob seu domínio, e por vezes (mas nem sempre) se utilizava desse seu imperialismo nada democrático para tentar forçar a via democrática em algumas dessas cidades — o que levanta algumas discussões interessantes no que diz respeito à possibilidade de estratégias realistas e eficazes que sejam ao mesmo tempo éticas e coerentes na difusão de um modelo democrático: Atenas estava sendo mais democrática quando permitia que cidades sob seu poder ou influência mas sem tendência espontânea para a democracia se organizazem livremente à sua maneira, ou quando impedia que se organizassem de maneira não democrática?
Os sofistas mais importantes (Protágoras, da cidade de Abdera e Górgias, da cidade de Leontini) defendiam firmemente a demokratía, e em vários momentos diferentes de suas vidas foram viver em Atenas, apesar de viajarem bastante — o que era um hábito muito comum entre os sofistas, que gostavam de conhecer outras culturas. Muitos outros grandes sofistas seguiram o mesmo caminho. Embora nem todos os filósofos sofistas fossem completamente democratas, essa era a tendência geral entre eles, e mesmo os menos democráticos construíram suas filosofias principalmente a partir de coisas que valorizavam na democracia ateniense, embora não deixassem de criticar de vez em quando um ou outro defeito daquela democracia (durante os primeiros tempos, por exemplo, reclamaram muito do fato de não haver ainda em Atenas uma constituição sólida, e de as leis irem mudando e variando muito, tornando a democracia instável).
A expressão "Filosofia", nesse período, era coisa recente, os avós ou bisavós das pessoas dessa época poderiam ter conhecido pessoalmente os primeiros sábios que começaram a dizer que não eram "sábios" e sim "filósofos". E essa ideia de diferenciar os "sábios" dos "filósofos" ainda não era uma coisa muito difundida. Então, o que precisamos compreender em primeiro lugar, é que a palavra "sofista" (na verdade sophistés), queria dizer "sábio", mas esses sábios que hoje dizemos que eram os "sofistas", pelo tipo de sabedoria que tinham e que ensinavam, podem sim ser perfeitamente considerados como filósofos — apesar de Platão (que note-se bem, era inimigo deles) ter feito tudo o que podia para deixá-los de fora dessa classificação, como se a sabedoria deles fosse alguma coisa "inferior" à sabedoria dos "verdadeiros" filósofos.
Platão (com sua definição de filosofia que excluía os sofistas) teve muita influência em todo o mundo, sobretudo porque séculos mais tarde, durante os mil anos da Idade Média (do séc. V depois de Cristo ao séc. XV), sua filosofia foi adotada, ajustada e adaptada pelos cristãos para servir de complemento filosófico para sua fé religiosa. E o cristianismo (carregando junto com ele um platonismo distorcido, cristianizado) foi a forma de pensamento dominante em toda a Europa ao longo desses mil anos, se espalhando mais tarde dali para as colônias européias em outras partes do mundo.
Graças a isso, espalhou-se e firmou-se por muito tempo uma imagem negativa, injusta e fortemente distorcida dos sofistas, levada adiante mais por preconceito e desinformação do que por qualquer outro motivo (inclusive porque o próprio Platão, na verdade, nem sempre é tão agressivo em relação aos Sofistas em suas obras, tratando com muito respeito por exemplo Protágoras — um dos fundadores do Movimento Sofista, e seguramente o mais importante e influente membro desse movimento.
Em suma, considerar ou não os Sofistas como legítimos filósofos depende de aceitarmos ou recusarmos a definição que Platão dá para a filosofia, porque é especificamente nessa definição que eles são excluídos. Essa definição platônica, no entanto, está longe (muito longe) de ser a única proposta pelos filósofos — e no entendimento de João Borba, autor destas linhas que você está lendo, está ainda mais longe de ser a melhor (para não ousar dizer que é péssima, precisamente por exclusões como essa, avaliação a que se chega facilmente examinando a densidade de uma teoria magnífica como a do sofista Protágoras, por exemplo).
Conhecemos pouco dos sofistas. Em primeiro lugar, porque, com exceção de um sofista tardio, Isócrates, de quem temos as obras, não possuímos senão fragmentos dos dois principais sofistas: Protágoras de Abdera e Górgias de Leontini. Em segundo, porque os testemunhos recolhidos pela doxografia foram escritos por seus inimigos — Tucídides, Aristófanes, Xenofonte, Platão e Aristóteles -, que nos deixaram relatos altamente desfavoráveis Esses inimigos dos sofistas nos deixaram relatos altamente desfavoráveis nos quais o sofista aparece como impostor, mentiroso e demagogo. Esses qualificativos acompanharam os sofistas durante séculos e a palavra sofista era empregada sempre com sentido pejorativo.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia:
dos pré-socráticos a Aristóteles.
São Paulo: Cia. Das Letras, 2002, p. 159.
Nos dias de hoje, apesar de um grande preconceito que costuma circular em torno da noção de teoria, quando falamos em "sabedoria" pensamos normalmente em sabedoria teórica ou contemplativa (de quem contempla, observa, as coisas, e então as compreende) — e esta é uma noção derivada do platonismo. PLatão viveu no séc. V a.C., e assumia uma posição incomum, ele era uma exceção ao modo de pensar dominante. Para os gregos antigos de sete séculos antes de Cristo, da época em que nasceu a Filosofia, essa separação que fazemos hoje entre teoria e prática (e que se apoia muito em Platão) simplesmente não existia, e mesmo na época em que Platão estava vivo essa separação ainda era incomum.
Para eles, a palavra sophía — que significa sabedoria — no início não significava somente uma sabedoria de tipo teórico ou contemplativo. A sabedoria do sophós ou sophistés (que é aquele que tem sophía), mais do que teórica e contemplativa, era ligada ao como fazer as coisas: não deixava de se apoiar em conhecimentos de tipo teórico e contemplativo, mas era principalmente e muito mais do que isso uma sabedoria prática, a sabedoria de quem tem muita tékhne (técnica) em uma atividade ou ofício. E essa maneira de pensar do séc. VII a.C. não diminuiu nem um pouco até a época de Sócrates e Platão, dois séculos depois (no séc. V a.C.), pelo contrário, foi se aprofundando cada vez mais.
Por isso é importante insistir: o posicionamento de Platão, neste sentido, era uma exceção entre o que os grandes pensadores costumavam defender em seu tempo. Na verdade uma exceção que apesar de sua inegável originalidade, trazia alguns elementos bastante conservadores, e se aproximava do pensamento de algumas tendências religiosas da época — enquanto a maioria dos pensadores acompanhava uma crescente tendência à dessacralização do conhecimento e da sabedoria em geral, a considerá-la bem mais como uma construção humana do que como algo divino. Essa construção era feita através do debate entre teorias divergentes, e esse debate era constante e público, aberto à participação de todos, portanto utilizava intensamente a retórica e a argumentação.
Costumava-se entender a sabedoria em geral, na época (não só a dos membros do Movimento Sofista), como uma tékhne, uma técnica, uma habilidade prática — e qualquer que fosse a tékhne, tendia a estar diretamente ligada além disso a uma outra habilidade muito específica: a de argumentar no debate, para os outros avaliarem com que fundamentos a pessoa dizia ter essa tékhne. Demonstrá-la na prática era, neste sentido, apenas um dos modos de argumentar — valia tanto quanto explicar com bons fundamentos e argumentos o assunto.
É preciso notar que a palavra tékhne, de onde realmente vem o nosso termo "técnica", apesar disso não tinha o mesmo sentido que tem hoje. Porque a imagem que os gregos antigos tinham da "técnica" era a daquele saber-fazer de um artesão, que ao mesmo tempo é, por um lado, um saber-fazer técnico sim, que segue certas regras e práticas que podem ser treinadas; mas por outro lado é ao mesmo tempo um saber-fazer personalizado como o de um artista, que faz suas obras de arte com alta qualidade e com um estilo pessoal que é só dele. Dominar uma tékhne era o que hoje chamaríamos de dominar "a arte" de fazer alguma coisa — o que implicava saber o que se está fazendo, inclusive saber explicar o que se está fazendo.
Essas duas noções, aliás, de arte e técnica, não eram separadas como são hoje. A tékhne era a habilidade de realizar uma atividade de acordo com regras que ordenavam as coisas que se aprendia por experiência, evitando o acaso. As atividades que eram realizadas assim (com tékhne), eram chamadas de poíesis — que é de onde vem a nossa palavra "poesia". A palavra poíeses vinha do verbo póien, que quer dizer ação direcionada para a criação de um objeto exterior a quem está agindo. A finalidade da tékhne está em realizar bem esse produto da poíesis, ou seja, fabricar, produzir, um bom objeto. E a imagem que tinham de um bom objeto era a de algo útil e bonito feito por um excelente artesão e que, de algum modo, trazia a sua marca, a marca do seu estilo.
A poíesis não era criar algo do nada, mas aprender a dominar o comportamento de alguma coisa da natureza — por exemplo o modo como a madeira se comporta desde que ainda é arvore até o momento em que a cortamos, lixamos, polimos etc. — para então criar algo com ela levando tudo isso em consideração, e algo que fosse de altíssimo nível de qualidade.
Não quer dizer que estivessem pensando só em "objetos" ou "coisas" produzidas pelas pessoas, porque também podiam estar falando do que hoje chamamos de serviços — por exemplo, um bom médico não produzia exatamente um objeto, no sentido de "coisa" material que damos hoje ao termo "objeto". Podemos dizer que o "bom objeto" produzido pelo médico era a saúde do paciente. De qualquer modo, tudo era pensado a partir desse modelo que é, de certa maneira, parecido com o do trabalho artesanal de alto nível. (A diferença entre artesanato e arte — que foi se aprofundando historicamente e gerou um resultado especial e extremamente interessante no caso desta segunda — é um outro assunto.)
As palavras sophós e sophistés, de onde vem o termo "sofistas", eram sinônimos na época de Platão, queriam dizer a mesma coisa. Mas embora não houvesse nenhuma regra nesse sentido, os gregos costumavam usar essas palavras de maneira ligeiramente diferente uma da outra. Costumavam usar sophós para indicar que a pessoa podia ensinar ou transmitir uma sophía, porque dominava esses conhecimentos poéticos (de poíesis). E costumavam usar sophistés para indicar que essa pessoa podia praticar ela própria essa sophia, também porque dominava esses conhecimentos poéticos, ou seja, essa tékhne ou habilidade de produzir um bom objeto (ou um bom resultado).
Entretanto, nos dois casos estavam falando sempre da mesma pessoa: quem podia ensinar bem algo era quem saberia praticar bem esse algo, e quem podia praticar bem algo era quem saberia ensinar bem esse algo. Chamar a pessoa de sophós ou de sophistés apenas destacava mais um aspecto ou outro da sua sabedoria. As pessoas que os gregos antigos consideravam como "sábios", portanto, eram chamadas às vezes de sophós, às vezes de sophistés, dependendo da situação.
Sócrates foi o primeiro grande questionador da cultura e do modo de pensar daquela época, por isso ficou conhecido como o maior crítico dos sofistas. Ele foi o primeiro a desconfiar daquele modo de pensar que era tão valorizado, e a duvidar de certas ideias que todos defendiam como se fossem as melhores ou as mais verdadeiras. Não deixava de participar também da valorização geral da cultura grega, mas começou além disso a apontar grandes falhas e pontos fracos naquele modo de pensar, e não só ou principalmente os pontos positivos, como os outros (os sofistas em geral) costumavam fazer. E a filosofia de Platão, que foi aluno de Sócrates, foi a primeira grande ruptura, radical e definitiva, com aquele modo de pensar típico dos gregos da época, e que era valorizado e organizado em teorias pelos "sofistas" da época. Apesar de sua proximidade com algumas noções religiosas e conservadoras da época, Platão propôs realmente, e com originalidade, uma outra forma de pensar.
De qualquer modo, tanto Platão e Sócrates quanto os filósofos que ficaram conhecidos como "Sofistas", estavam todos preocupados com fazer as coisas da melhor maneira, tentaram dar o melhor de si mesmos na defesa de seus posicionamentos, e visando o bem da coletividade, e não apenas o de si próprios (como na imagem preconceituosa que tantas vezes se faz dos sofistas). Discordavam quando se tratava de decidir qual era afinal era a melhor maneira de se fazer as coisas.
Na verdade, essa atitude era bastante comum. Havia na cidade de Atenas uma grande valorização e divulgação dessa ideia de se dar tudo de si em alguma atividade, de se fazer tudo da melhor maneira possível. O sophós ou sophistés, ou seja, aquele que dominava alguma tékhne — por exemplo a tékhne de como pensar e argumentar para defender as suas opiniões, que era considerada uma tékhne especialmente importante — era sempre um sábio muito valorizado, e todos que se dispunham a realizar a mesma atividade procuravam imitar o seu exemplo. Os atenienses davam muita importância aos bons exemplos, e para entender até que ponto levavam isso tudo, é importante conhecermos uma noção que estava sempre presente no pensamento de qualquer grego típico daquela época: a noção de areté, muito defendida aliás pelos sofistas.
Para os gregos antigos de Atenas, da época dos filósofos sofistas, havia um ideal da comunidade e do indivíduo como mutuamente responsáveis um pelo outro, cada indivíduo procurando servir de modelo de comportamento e normas vida para toda a comunidade, e a comunidade procurando apresentar modelos de comportamento e normas de vida para seus indivíduos. Indivíduo e comunidade estavam intimamente ligados, a comunidade interessada e atuante na formação de cada indivíduo e cada indivíduo interessado e atuante na formação da comunidade.
O ser humano era visto como racional e político (o que hoje chamamos de "politizado", ou "cidadão ativo", que exerce sua cidadania, mas com um sentido muito mais forte de participação nos assuntos da pólis, que significa cidade). Além disso, os seres humanos eram considerados capazes de agir da melhor maneira possível, isto é, de agir segundo fins e valores que carregam uma certa ideia do que seria a excelência humana — o máximo a ser atingido por alguém em sua formação enquanto ser humano, em todos os sentidos. Chamavam essa excelência de areté, e é importante frisarmos bem que essa areté era algo que tinha um sentido político muito forte. Fazer o melhor que se podia, implicava também e principalmente participar da melhor maneira possível nos destinos da pólis — que era como chamavam uma cidade que tivesse leis e cujas decisões passassem pelo jogo político das divergências e negociações.
A areté era o modo como a comunidade se mantinha firme e integrada. A comunidade procurava educar e formar integralmente os seus membros para que eles atingissem essa areté. E essa noção de areté estava sempre aberta a discussão e a possíveis ajustes e correções. Todos se reconheciam como parte dela, sentiam-se responsáveis por ela e realizadores dos valores que ela apontava.
Esse processo de formação cultural e educacional de todos pela atuação de cada um e de cada um por todos, para atingirem a areté, era o que o famoso historiador Werner Jaeger chamou de paideia grega — usando um termo dos próprios gregos. Paideia significa educar, instruir, formar, dar cultura, ensinar os valores, os ofícios, as técnicas, transmitir ideias e valores para formar o espírito e o caráter, formar uma pessoa para viver um gênero de vida etc.
Muitas vezes a palavra era associada pelos gregos à educação das crianças. Mas na Atenas antiga, essa formação não era só para as crianças, e sim para todos, e praticada por todos, constantemente. Cada pessoa, cada grupo e o conjunto todo da comunidade, procurava examinar com muito senso crítico e então selecionar os modelos de vida e de comportamento que pareciam os melhores, os mais propícios para se atingir a excelência, e se fazia uma constante propaganda das atitudes e comportamentos mais construtivos e valorosos nesse sentido, ignorando e deixando de lado atitudes destrutivas e prejudiciais, para serem esquecidas.
Agora uma pergunta é crucial: isso tudo que acaba de ser descrito era o modo como os gregos em geral enxergavam a si mesmos, era o modo como viam a sua própria cultura. Mas será mesmo que a areté e todo esse processo de educação natural dos gregos era levado até o fundo sem colocar questões de interesse estritamente pessoal acima da verdadeira areté?
Quando cada pessoa ou grupo social propunha um modelo de vida ou de comportamento para as outras pessoas e dizia que esse era o "modelo ideal", será que realmente quem fazia isso, o fazia sempre com senso crítico, e será que não propunha muitas vezes como se fosse "o melhor" apenas um modelo de vida e de comportamento que era favorável a si próprio e aos seus interesses pessoais... e os outros "que se lixassem"?
Certamente as pessoas não eram sempre assim tão dedicadas à areté, apesar de quase todo mundo — ou pelo menos todo mundo que concordava com aquela democracia — concordar, na época, que a areté compreendida deste modo era um bom ideal a ser valorizado. Se não fosse assim, se não houvesse gente que não se importava (ou que não concordava) com esses valores, talvez não tivessem surgido os filósofos "sofistas", porque uma de suas principais preocupações, uma de suas principais lutas, era justamente para que as pessoas procurassem a areté nesse sentido de participação política, de todos e cada um na vida de cada um e de todos. Lutar para que as pessoas buscassem e praticassem a areté era um dos principais objetivos dos sofistas, e uma atividade em que se empenhavam constantemente e sem descanso. Isto mostra por um lado a injustiça em tratá-los, como tantas vezes se faz, como oportunistas que só pensavam em seus próprios interesses. Por outro lado, mostra que havia muito egoismo e oportunismo entre os atenienses, já que alguém (os pensadores do Movimento Sofista) se dispunha a lutar contra isso.
Havia todo um movimento político e cultural — ligado ao movimento democrático — de valorização dessa luta pela areté. E os filósofos sofistas participavam desse movimento geral, no qual costumavam desempenhar um papel muito importante, instigando as pessoas a não ficarem nunca indiferentes umas em relação aos problemas das outras e aos problemas da comunidade em geral. E apesar de haver sempre egoismo e oportunismo a combater, pode-se dizer que essa luta e esse empenho pela areté funcionavam bastante — pelo menos incomparavelmente muito mais do que conseguimos imaginar, observando como vivem as pessoas nos dias de hoje, porque o empenho do cidadão ateniense médio nesse sentido surpreenderia muito qualquer cidadão médio de uma democracia atual.
Em geral, os gregos de Atenas e a maioria dos sofistas consideravam essa forma de organização política (a demokratía, ou poder do povo) como uma das mais importantes invenções da História. De certo modo, a consideravam como algo capaz de transformar o mundo, algo como a descoberta do fogo ou a invenção da roda. Viam a demokratía como algo ligado à capacidade humana de superar a natureza e construir o seu próprio ambiente através do trabalho, e de cultivar esse ambiente construído para o seu bem-estar, organizando as suas atividades profissionais de uma maneira que fosse justa para todos ou pelo menos para a maioria, para que os conflitos, que são naturais entre as pessoas (porque elas são diferentes), não prejudicassem tudo isso, e todos pudessem continuar vivendo tão bem quanto possível.
A preocupação com a areté ia muito além da mera acomodação das pessoas umas às outras de maneira a evitar os conflitos e garantir uma vida razoavelmente boa para todos ou para a maioria. Organizar os conflitos e garantir a boa vida, para os gregos daquela época, era considerado muito pouco, era considerado, por assim dizer, o mínimo a ser atingido.
Para atingir esse mínimo, e ainda mais para coseguir chegar à areté, era fundamental que a população tivesse acesso de algum modo a uma boa educação, porque era preciso que as pessoas fossem capazes de defender os seus pontos de vista argumentando umas contra as outras racionalmente, e não se agredindo ou partindo para a violência — pois a violência era um perigo para a democracia. Por essa razão, o ensino era considerado a base de sustentação de tudo isso. E quem ensinava algo era quem tinha sophia naquele assunto, ou seja, o sophós ou sophistés.
Nem todas as cidades gregas concordavam com esse modo de pensar, que era principalmente o de Atenas, e havia até guerras entre elas. A maior inimiga de Atenas era a cidade de Esparta, que era uma espécie de ditadura militar (mas com um nível de igualdade e participação nessa "ditadura" curiosamente alto entre os cidadãos). Para os gregos que eram cidadãos de Atenas ou das cidades mais influenciadas por Atenas (que não eram poucas), a demokratía chegava a ser uma das coisas que faziam com que os seres humanos fossem realmente diferentes dos outros animais, por isso precisava ser defendida a todo custo.
Assim como precisamos de esforço e exercício constante, de nos acostumarmos a manter uma boa postura para continuarmos realmente bípedes e eretos, e não nos curvarmos cada vez mais até o chão como os gorilas, os gregos de Atenas acreditavam que do mesmo modo era preciso um exercício constante para mantermos essa organização política humana, construída com o nome de demokratía.
Existe nisso tudo um detalhe que para nós, nos dias de hoje, é bastante interessante: o que eles chamavam de democracia era algo muito mais profundo e radical do que isso que chamamos de "democracia" hoje: era uma democracia direta, e não representativa. Isso quer dizer que tudo funcionava na base do plebiscito. As pessoas votavam diretamente no que devia ou não devia ser feito, e os "governantes" apenas administravam a realização do que ia sendo decidido pelos plebiscitos populares.
Existem estudiosos que chamam a atenção para o fato de que, na demokratía dos gregos antigos, mulheres e escravos não tinham direito de voto. Isso quer dizer que podemos questionar o quanto aquilo era realmente uma "democracia" como as de hoje — e eles têm razão, mas só quanto às mulheres, porque os escravos eram escravos de guerra, portanto estrangeiros de países inimigos, e a verdade é que seria absurdo colocá-los para decidirem o destino de Atenas.
Por outro lado, essas coisas ruins costumam ser lembradas quase sempre por aqueles que não gostam da ideia de uma democracia como aquela, e que procuram mostrar que uma democracia daquele tipo (que chamamos de "direta ", e não "indireta" como a de hoje) só era possível naquela época justamente por causa desses escravos, que seriam uma maioria trabalhadora explorada pelos mais ricos e vivendo sem direitos políticos: como os cidadãos livres (e ricos) eram poucos, e eram pessoas que não precisavam trabalhar (já que os escravos trabalhavam por elas), tinham tempo e facilidade de se organizar e se dedicar a ficar discutindo as questões políticas, coisa que hoje não seria possível.
O problema é que isso é completamente falso. Em primeiro lugar porque, ao contrário do que se imagina, os escravos não eram tantos, e a população livre não era rica: era gente que trabalhava sim, muito, e o trabalho bem-feito, para eles, costumava ser motivo de orgulho. Além disso, mesmo sem as mulheres e os escravos, a quantidade de gente que participava efetivamente dessas assembleias, onde as decisões eram votadas toda semana, variava entre aproximadamente 12.000 e 40.000 pessoas, o que não é assim tão pouca gente — e não é tão difícil imaginar como dividir as cidades de hoje em "distritos" com uma quantidade de população próxima a essa, que distritos que poderiam tomar muitas decisões por plebiscito.
Além disso, na Grécia antiga não existiam, como hoje, recursos como a Internet, a TV e os jornais para ajudarem na comunicação e a organização de toda essa gente, e os tais "distritos", com esses recursos de hoje, talvez já não precisassem ser assim tão pequenos para conseguirem se organizar.
A participação nas assembleias da demokratía direta dos gregos não era obrigatória, e geralmente oscilava em torno daquele número menor de participantes (por volta de 12.000), mas havia a cada ano uma média de 40 assembleias em que as decisões eram mais importantes, e nessas ocasiões, a participação costumava ser maciça (perto daqueles 40.000).
Existe ainda um outro ponto pouco observado pela maioria dos historiadores: as decisões democráticas não aconteciam só ali, no momento do voto — como aliás na verdade nunca aconteceram, em nenhuma forma de democracia, desde aquela época até os dias de hoje. Não é só no governo que as decisões políticas acontecem em uma democracia. Muitas dessas decisões costumam ir e vir entre o governo e diferentes grupos organizados da sociedade, que fazem pressão em um sentido ou em outro. A coisa vai acontecendo como uma espécie de negociação entre os governantes e as diferentes forças da sociedade que se organizam para fazer essas pressões, até que finalmente a decisão acontece.
Hoje, é fácil acompanhar pelos jornais como esse tipo de coisa vai ocorrendo. Mas a decisão final, a última palavra, costuma ser sempre do governante — e na cidade de Atenas, na Grécia antiga, não era assim.
As questões a serem votadas eram divulgadas com antecedência, e, como em toda democracia, nem sempre partiam dos governantes: muitas vezes surgiam de grupos que se formavam livremente no meio da própria população, e que começavam a fazer campanha para que um certo problema fosse resolvido ou uma certa ideia fosse posta em prática. Os cidadãos se organizavam e levam isso não só para para os administradores públicos (isto é, os "governantes", embora esse termo no caso seja exagerado), mas também e principalmente para o resto da população, porque era a voz da maioria o que iria pesar na decisão final.
Isso quer dizer que, se houvesse muita gente interessada na questão, seja a favor, seja contra aquilo que o tal grupo queria, os órgãos públicos começavam a organizar o processo de decisão. As diferentes soluções possíveis eram esclarecidas por técnicos com posicionamentos contrários que trabalhavam na administração pública, e essas possíveis soluções já iam passando de boca em boca pela população antes do dia da votação, e costumavam ir sendo discutidas em grupos que se formavam em uma grande praça central da cidade de Atenas, que se chamava Ágora.
Nessas discussões públicas, que rolavam livremente em plena Ágora, participavam na prática, ao longo da semana, muito mais dos que os 40.000 cidadãos livres e com direito de voto, e é possível que as opiniões que os homens levavam para serem discutidas muitas vezes já viessem influenciadas inclusive pela opinião de suas mulheres e crianças — embora não devamos imaginar que isso acontecesse sempre, e menos ainda que isso acontecesse muito às claras, porque era uma sociedade que hoje consideraríamos extremamente "machista", onde as mulheres costumavam ser consideradas como seres "inferiores".
Depois, no dia da votação, os técnicos expunham claramente e em detalhes para os votantes as diferentes alternativas, e era feito um debate, onde os grupos que defendiam cada uma dessas alternativas "empurravam" para falar em nome deles alguém que eles achassem que argumentava e falava muito bem, ou seja, um orador. Esses oradores debatiam a questão cada um tentando puxar mais votos para o lado do seu grupo, e depois todos votavam.
É importante observar que, apesar dessa preconceituosa exclusão das mulheres na parte mais "oficial" das decisões, não havia nada de necessário para a demokratía grega nesse "machismo", e ela poderia ter funcionado plena e perfeitamente também com a participação das mulheres. Aliás, o principal e o mais famoso dos administradores públicos da democratía, Péricles, que foi mantido na liderança por toda a sua vida, foi um raro e importante exemplo contra essa exclusão das mulheres, como veremos a seguir.
Se quisermos buscar um exemplo famoso de uma pessoa muito sábia (isto é, alguém que costumava ser chamado de sophistés no sentido simplesmente de pessoa sábia, que tem muita habilidade prática em alguma coisa) mas que não era exatamente nem filósofo nem estudioso, e inclusive não desenvolveu teoria nenhuma, o melhor caso a examinar é o de Péricles o grande "sophistés" da política democrática
(que não era filósofo nem pensador, mas seguia a filosofia de Protágoras) ...e paralelamente, podemos examinar também a história de uma grande mulher por detrás desse grande homem, de modo que teremos dois exemplos em um só, porque o povo ateniense, tão preconceituoso em relação às mulheres, passava dificuldades tentando ignorar a sabedoria dessa mulher, porque ela costumava chamar muita atenção (e não só pela sabedoria, aliás).
Péricles, além de ser um dos maiores estrategistas militares da história, foi sempre considerado um dos maiores sophistés de toda a Grécia, porque era considerado um sábio nas questões de política: ninguém dominava melhor do que ele a "arte" de administrar os conflitos e as decisões na democracia — por isso foi mantido pela população na administração pública (isto é, no "governo" lembrando sempre o exagero de se usar esse termo aqui) por toda a sua vida, embora tenha passado por altos e baixos e, nos últimos anos, tenha sido quase derrubado do poder.
Se havia alguém que era um verdadeiro exemplo de areté no sentido político defendido pelos filósofos sofistas, era esse homem. Ele era também um sophistés no sentido que os gregos costumavam dar a esse termo, mas sua sophía não era a de um filósofo, e nunca desenvolveu nenhuma teoria a respeito de nada. Péricles era acima de tudo um administrador e um político e de maneira nenhuma um filósofo. No entanto, era amigo e seguidor de um outro sophistés, ou "sofista" que, esse sim, podia ser considerado um "filósofo": Protágoras. Na verdade, Péricles chegou a ser oficialmente aluno de Protágoras.
Protágoras sim, pode (e deve) ser considerado "filósofo" porque além de estar voltado para questões práticas, como todo sophistés grego, foi mais a fundo nas suas reflexões a respeito dessas práticas, e chegou a construir também (e debater com outros filósofos) teorias extremamente bem elaboradas e interessantes a respeito da política, da argumentação e da persuasão, da psicologia da população, de como ocorre o conhecimento, e da noção de "verdade".
Protágoras, aliás, foi um dos maiores e mais importantes de todos os filósofos "sofistas" (destaco esta expressão propositalmente como provocação contra os preconceitos de muitos fãs de Platão) — talvez até o maior de todos eles — e chegou a ser convocado por Péricles para fundar e organizar as primeiras leis de uma outra cidade democrática.
Ao falarmos Péricles, homem de grande influência que procurou pôr em prática na política as ideias de Protágoras, ajudando a construir a demokratía grega de que falamos no ponto anterior, é difícil deixarmos de notar uma mulher que o acompanhou por grande parte de sua vida, porque ele parece ter encontrado uma companheira à sua altura.
Já mencionamos que Péricles, além de ter sido durante toda a vida o maior dos administradores públicos da democracia, ocupando nela o cargo mais importante, e de ter feito isso sempre seguindo o modo de pensar do filósofo Protágoras, foi também um grande exemplo da luta contra a exclusão das mulheres na democracia.
É importante entendermos de que maneira ele deu esse exemplo, porque isso infelizmente não chegou a aliviar as coisas para as mulheres em geral, pois foi um exemplo que pouca gente ousou imitar, mas acabou gerando uma grande transformação em Atenas. O maior problema foi que Péricles escolheu valorizar uma mulher que tinha, por assim dizer, um dom especial para escandalizar as pessoas.
No entanto, qualquer um que conhecesse essa mulher sentia-se forçado a dizer que Péricles tinha razão, era uma mulher indiscutivelmente muito especial. Não só pela sua beleza, mas acima de tudo pela sua personalidade, inteligência e capacidade política. A beleza física dela, no entanto, tornou-se quase uma lenda. Para citarmos um caso que ficou famoso, um importante escultor, contratado para fazer uma estátua da deusa Palas Atena, que era por assim dizer a "padroeira" da cidade, quis fazer a deusa com a imagem mais linda que pudesse... e sem se dar conta, acabou fazendo-a parecidíssima com essa mulher especial (e aliás um tanto "escandalosamente" especial) de quem estamos falando, e que foi valorizada publicamente por Péricles. Péricles era casado quando conheceu essa mulher, e esse foi o primeiro dos escândalos.
A esposa de Péricles, que se chamava Agarista, vinha de uma família muito rica e, junto com os filhos, vivia cobrando que ele "metesse as mãos" nos cofres públicos para que tivessem uma vida à altura da vida dos amigos mais ricos. Ela e os filhos reclamavam que todos no governo faziam isso (havia muita corrupção), menos Péricles, que deveria fazer o mesmo. Por isso sua família estava sempre em crise: Péricles se recusava a se aproveitar da sua posição no governo para enriquecer, e embora não chegasse a ser nem um pouco pobre, porque vinha de uma família razoavelmente endinheirada, fazia questão de manter uma vida mais simples. Péricles era um homem obcecado pela democracia e pelo seu trabalho como administrador público, daqueles que não fazem e não pensam em outra coisa na vida, senão no trabalho. Achava que tinha uma missão, que era a de firmar a democracia para que ela durasse para sempre.
Apesar de oficialmente ser mais um administrador do que realmente o chefe do governo, uma vez que quem decidia tudo era o povo nas assembleias, Péricles era também uma pessoa muito carismática, um líder natural, e extremamente influente: todos que o ouviam geralmente acabavam concordando que ele estava certo, ou não conseguiam achar um bom argumento para contradizê-lo, e na maioria das vezes o povo em geral, que além disso confiava nele e o via como uma espécie de herói, acabava votando no que ele achava o melhor — embora nem sempre isso acontecesse. Algumas vezes os inimigos de Péricles conseguiam manipular a população e derrubar uma alternativa defendida por ele, e outras vezes também acontecia de a própria população simplesmente e realmente não aceitar uma ideia dele, mas os registros históricos mostram que isso na prática era bastante raro.
Naquela época, na cidade de Atenas, havia alguns grupos religiosos bastante radicais e muito fortes, que não gostavam muito de Péricles porque achavam que ele era "liberal" demais. Esses religiosos tinham também uma imagem muito ruim de uma certa cidadezinha chamada Mileto, porque era uma cidadezinha cheia de bares, casas de jogo, casas de prostituição e, curiosamente, muitos poetas, artistas e filósofos — em suma, Mileto era uma cidadezinha cheia de gente mais interessada em fazer e dizer coisas belas, inteligentes ou prazerosas do que em ir até os templos religiosos e prestar seriamente homenagem aos deuses.
Pois bem: um dia, uma moça extremamente bela (e que ficou muito famosa por sua beleza), veio viajando sozinha de Mileto até Atenas, e chegou em plena praça — na Ágora, onde um sábio famoso discutia política com um grupo de pessoas — vestida com roupas de um tecido quase transparente. A cena é descrita no livro Sócrates: sua vida pública e particular, de René Kraus (Rio de Janeiro, editora Vecchi, coleção Vidas Extraordinárias) — o livro narra a vida de Sócrates em linguagem romanceada, mas pretende ser biograficamente verídico, citando relatos da época, inclusive quanto a minúcias... há sempre o risco de algum desvio fantasioso, mas de qualquer modo, a narrativa parece exprimir muito bem impacto da chegada dessa entre os atenienses na época. Note-se que naquela época, moças sozinhas normalmente não chegavam nem a pôr os pés na rua, e se fossem solteiras, não saíam de casa nem mesmo acompanhadas, então, mesmo que haja algum exagero de Kraus e el vestisse apenas roupas mais decotadas ou abertas, pode-se imaginar a pequena multidão de pessoas curiosas ou escandalizadas que foi se aglomerando em torno dela. A moça chamava-se Aspásia, e era filha de um velho filósofo desconhecido da cidade de Mileto.
Como se não bastasse uma jovem e bela estrangeira chegar assim sozinha e tão à vontade como se estivesse em casa (e ainda por cima vestida daquele modo), Aspásia foi até o grupo com o qual aquele sábio discutia política e, para o espanto de todos, começou, sem a menor cerimônia, a contradizer o que o grande sábio estava dizendo. O sábio começou a responder a ela, porque o que ela dizia realmente fazia sentido, e então aquilo começou a virar um debate: Aspásia, mulher, jovem, estrangeira, e vestida escandalosamente com roupas transparentes, começou a a discutir política com o velho sábio de igual para igual, e de maneira extremamente inteligente — na verdade, seus argumentos pareciam sempre tão bons, que o tal sábio ficou completamente perdido tentando debater com ela, e aos poucos ia tendo que lhe dar razão em cada coisa que ela dizia. A multidão começou a ficar admirada.
Péricles, como bom estrategista político que era, assim que percebeu uma pequena multidão se formando ali na praça, tratou de ir ver o que estava acontecendo, porque alguma questão política importante poderia estar sendo discutida ali, e algum grupo politicamente forte poderia estar se formando. É claro que levou um susto quando viu o que estava acontecendo, e entrou na discussão com a moça. Contam os relatos que, naquele encontro, os dois pareciam ter esquecido de todos os outros ao redor, que começaram a concordar e de repente estavam imaginando juntos uma porção de projetos políticos possíveis — enfim, ao que tudo indica, amor à primeira vista.
Péricles então, cercado por fofocas e falatórios e pelo preconceito de todos, contra tudo e contra todos, e especialmente contra aqueles seus inimigos religiosos, que estavam absolutamente escandalizados, abandonou sua mulher Agarista e seus filhos, e foi viver com Aspásia. Passou a discutir todas as questões políticas sempre com ela, e fazia isso abertamente, sem esconder de ninguém, a tal ponto que se pode dizer que, a partir de então, passaram a governar juntos.
Agarista e seus filhos tornaram-se inimigos políticos perigosos, e mais tarde, quando Péricles já estava velho e tinha perdido quase toda a sua influência política, tentaram jogar um processo contra ele, queriam condená-lo à morte, mas não conseguiram. No julgamento, Péricles se defendeu brilhantemente e saiu vitorioso, como sempre acontecia.
Aspásia teve uma importância muito grande no destino dos atenienses: sob influência dela, e para o horror dos inimigos religiosos de Péricles, que não gostavam da cidadezinha de Mileto, o grande administrador da democracia grega incentivou a vinda de muitos filósofos e artistas para Atenas, não só de Mileto mas também de outras cidades.
Graças a isso, Atenas, que já era rica e militarmente poderosa, acabou se tornando rapidamente o centro intelectual e cultural de toda a Grécia, a tal ponto que quem quisesse se tornar um grande artista ou um grande filósofo só tinha uma saída: ir para Atenas para aprender com os melhores do mundo, que desde o "governo de Aspásia" junto com Péricles, estavam todos lá.
Também podemos imaginar que, desde a chegada de Aspásia, os sacerdotes, que já tinham queixas contra a "liberalidade" de Péricles, passaram a irritar-se ainda mais contra ele. Aspásia era uma estrangeira com costumes muito estranhos e que eles achavam realmente muito duros de engolir. Por exemplo: promovia na casa de Péricles festas que se transformavam em grandes orgias com trocas de casais, e sempre que descobria que Péricles achava uma moça atraente, arranjava um jeito de trazer essa moça para uma noite com ele, como uma espécie de "presente". Pelo que se sabe, curiosamente, jamais houve qualquer briga ou cena de ciúmes entre os dois, e cada um deles parecia colocar o outro sempre acima de tudo e de todos, com uma única exceção: os dois consideravam a democracia e o povo mais importantes do que eles próprios.
O romance estranho e escandaloso dos dois irritou a todos de todos os lados, e tiveram que contornar muitos problemas por causa disso, mas durou até o fim de suas vidas. (Temos aí, aliás, na história de Péricles e Aspásia, um caso ao mesmo tempo atraente, constrangedor e bastante interessante para discussões de ética...).
Apensar de não ter sido um filósofo ou pensador e de não ter desenvolvido nenhuma teoria sua, Péricles — ex-aluno e amigo pessoal de Protágoras, o mais famoso de todos os sofistas — estava inteiramente mergulhado nas propostas e no modo de pensar do Movimento Sofista. Sua atitude apaixonada e ao mesmo tempo racional, orgulhosa e ao mesmo tempo atenta aos interesses públicos, valorizando a argumentação e o debate, e nada conservadora, aberta às novidades e ao imprevisto, enfrentando os preconceitos convencionais, e defendendo a igualdade de direitos para todos, independentemente de sexo, religião ou classe socio-econômica — na verdade é um bom exemplo do tipo de postura e atitude assumida e valorizada pelo Movimento Sofista, naquela que era a primeira sociedade democrática da História.