Dialética

Dialética

Temas e posicionamentos

sumário
Uma advertência inicial necessária

Dialética tem algo a ver com diálogo?


Assuntos centrais tratados pela dialética,
e posicionamentos dessa tendência em relação a esses assuntos

Quais os principais temas da tendência dialética?
| Qual o posicionamento básico dos dialéticos?

Esclarecimentos mais detalhados

A dialética busca sempre uma visão global do conjunto da realidade? | Como é a visão da totalidade da realidade que os dialéticos buscam? | As oposições das quais Heráclito falava na antiguidade eram as da "tese" e das "antítese"? | A dialética está ligada ao movimento e à passagem do tempo? | Marx não utilizava os termos "tese", "antítese" e "síntese"? Que termos ele utilizava? | Quais as implicações da adoção do termo "síntese" pelos seguidores de Marx, ao invés de "negação da negação? | O pensamento dialético está ligada à observação empírica? | Na oposição dialética os polos opostos se interpenetram? | Os processos em oposição na dialética podem ser compostos por subprocessos? | Os movimentos dialéticos seguem alguma circularidade? | Se tudo faz parte de um mesmo ciclo de processos de transformação, o que justifica que os dialéticos falem de "oposições" entre um processo e outro? | A dialética envolve a relação entre processos concretos que exercem pressão uns sobre os outros? | Na dialética é mais importante entender as antíteses do que as teses? | Podemos dizer que, ao contrário da lógica, a dialética leva em consideração o tempo? | Quais, resumidamente, são os primeiros passos do pensamento dialético para entender uma situação concreta? | Na dialética, quais são as oposições mais importantes, as mentais (entre ideias) ou as reais? | Como é a concepção dialética de história de Karl Marx? | O que é exatamente a síntese dialética? | O que Marx procura nos mostrar com sua dialética?


 

 

Uma advertência inicial necessária


Dialética tem algo a ver com "diálogo"?

A primeira coisa necessária ao bom entendimento da dialética é entender que dialética não é "diálogo".

O significado da palavra "dialética" está de fato ligado — indiretamente — à ideia de diálogo, mas os filósofos que usaram esse termo para definirem o seu posicionamento não estão falando a respeito de "diálogos". Trata-se apenas de uma metáfora.

É claro que por detrás dessa metáfora existe alguma coisa de essencial e muito profunda que está presente sim no que chamamos de "dialética", é claro que uma vaga noção de "diálogo" não deixa estar presente indiretamente, nas profundezas do sentido disso que chamamos de "dialética"... mas dizer pura e simplesmente que dialética "é diálogo", referindo-se a essas situações cotidianas em que as pessoas conversam, em que uma pessoa diz uma coisa e outra responde... é um erro. Dialética não é isso.

Do mesmo modo como em um diálogo temos alguma coisa que é dita e outra coisa que responde ao que foi dito, pode-se dizer grosso modo, isto é, de uma maneria simplificada e ainda não muito bem esclarecida, que os dialéticos examinam de que modo as coisas "respondem" umas às outras. Que eles examinam de que maneira o modo como uma coisa se desenvolve "responde", reage, oferece uma contrapartida, ao modo como uma outra coisa vinha se desenvolvendo antes dela.

Mas se trata apenas de uma metáfora — e é preciso insistir muito firmemente nisto.

Os diálogos humanos, no sentido direto e sem nenhuma metáfora, isto é, as conversas que podem ocorrer entre duas ou mais pessoas através da fala (ou da escrita), até podem sim, estar incluídos entre os diversos assuntos tratados pela dialética... mas a dialética de maneira absolutamente nenhuma se reduz a isso. Na verdade, tais diálogos ou conversas entre pessoas nem mesmo estão entre os assuntos normalmente considerados os mais centrais ou importantes tratados pela dialética. Para a imensa maioria dos dialéticos, são um assunto secundário e que muitas vezes não chega sequer a despertas suficiente interesse para ser mencionado.

Dialéticos como Vilém Flusser ou Mikhail Bakhtin, por exemplo, que dão especial atenção aos diálogos ou conversações realizados oralmente ou por escrito, colocando isso no centro de suas reflexões, realemente existem, mas são poucos e raros.

Um processo dialético, na verdade, pode perfeitamente se desenvolver em completo silêncio, sem que nenhum dos envolvidos diga uma só palavra. E existem inclusive pensadores dessa tendência que chegam a examinar processos dialéticos que se dão na própria natureza, sem que haja nem mesmo o envolvimento direto de seres humanos. Portanto, para se compreender bem a dialética, em primeiríssimo lugar, esqueça-se essa ideia de "diálogo". Pois absolutamente não se trata disso.

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Assuntos centrais tratados pela Dialética,
e posicionamentos dessa tendência em relação a esses assuntos


Quais os principais temas da tendência dialética?

 

Os assuntos centrais da dialética são o desenvolvimento da história humana e o das relações humanas e sociais. Mas a dialética também trabalha outros temas fortemente ligados a esses. A dialética costuma examinar também, com especial atenção, as relações entre os seres humanos e o mundo material à sua volta, e a relação dos seres humanos com as ideias, pensamentos e teorias que vão surgindo na sociedade. Mas neste caso, o exame sempre os conduz a relacionar esses assuntos com a história da sociedade e com as relações sociais envolvidas. Entre os temas mais trabalhados pelos dialéticos temos, por exemplo:

  • as relações entre a subjetividade humana e os objetos materiais
  • dentro das relações entre sujeitos e objetos, o trabalho
  • o envolvimento do diálogo no processo do conhecimento
  • o processo de raciocínio humano, o funcionamento lógico do pensamento conforme vai se desenvolvendo no correr do tempo
  • o envolvimento das ações práticas no processo do conhecimento
  • o processo de formação e desaparecimento das ferramentas, ideias e instituições humanas em geral
  • o processo de formação e desaparecimento das ferramentas, ideias e instituições políticas e econômicas, mais especificamente
  • o desenvolvimento da tecnologia humana em geral

Além disso, a dialética fundamenta o estudo de todos esses assuntos em uma certa concepção a respeito do tempo, de como o tempo vai se desenrolando e passando. O fato de se apoiar em uma concepção geral a respeito do desenrolar do tempo leva muitas vezes os dialéticos a examinarem de uma maneira mais geral os processos de transformação no mundo, especialmente os que dependem da participação humana.

Às vezes chegam a se estender também ao exame de processos de transformação que ocorrem na natureza, alheios à participação humana ou onde a participação humana está minimizada. Mas a tendência maior entre os dialéticos é claramente a de preferir os temas que lidam mais diretamente com assuntos humanos.

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Qual o posicionamento básico dos dialéticos?

O posicionamento básico e geral dos dialéticos em relação ao conjunto de todos esses temas pode ser descrito assim:

  • tudo está constantemente em processo de transformação, em diferentes ritmos; e para entender algo, é preciso captar o seu processo de transformação e também os demais processos de transformação relevantes direta ou indiretamente envolvidos
  • é preciso saber diferenciar os processos reais que ocorrem no mundo e aqueles que ocorrem apenas no nosso pensamento quando pensamos a respeito das coisas que ocorrem no mundo
  • a realidade como um todo é formada pela conjunção de inúmeros processos que estão inter-relacionados afetando uns aos outros, de modo que nada deve ser examinado "isoladamente", a não ser como uma fase provisória e preparatória para um exame mais completo que considere o conjunto (examinar algo isoladamente é abstrair esse algo de seu contexto, é o que os dialéticos chamam de abstração; em oposição a isso, dizem que toda abstração deve ser apenas um mero instrumento provisório para se chegar a um exame da realidade concreta, que é o conjunto dos processos interligados que estão envolvidos com esse algo).
  • os processos de transformação (pelo menos os que dependem dos seres humanos) ocorrem por meio de oposições (às vezes chamadas pelos dialéticos, talvez um tanto impropriamente de contradições)
  • as oposições ocorrem conforme um processo vai se desenvolvendo, porque vai se desenvolvendo também dentro dele uma "contradição interna" gerada por ele, que logo se torna tão grande que já não pode mais ser considerada "interna", de modo que passamos a ter dois processos opostos em tensão um contra o outro; isso ocorre porque todo processo tem os seus subprocessos componentes, e se desenvolve desigualmente, de modo que começa a impedir o desenvolvimento de certos subprocessos, e estes, permanecendo em seu movimento particular de desenvolvimento, tendem a se tornar as tais "contradições internas"
  • um processo está sempre em tensão com outro que se desenvolveu gerado por ele porque o desenvolvimento do novo processo, por outro lado, também tende a barrar o desenvolvimento do anterior e forçá-lo a decair, enquanto o processo anterior, na medida em que ainda tenha uma energia de desenvolvimento impulsionando-o, tende a resistir e se conservar, atuando no sentido de retomar seu desenvolvimento
  • essa "tensão dialética" entre processos nos quais o desenvolvimento completo de cada um vai se incompatibilizando cada vez mais com o desenvolvimento completo do outro, se resolve de algum modo em uma "síntese", uma composição final que envolve numa totalidade os processos em oposição e os explica conjuntamente, fornecendo ao examinador o sentido geral de todo o conjunto das oposições envolvidas, consideradas portanto concretamente

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Este último ponto, entretando, provoca sempre muito debate entre os dialéticos, que dificilmente chegam a acordo quando ao melhor modo de se compreender a noção de "síntese". A síntese seria apenas a própria totalidade concreta dos processos envolvidos considerada no conjunto? Seria apenas uma visão global dessa totalidade, uma ideia mental que formamos a respeito dela? Seria o processo mais amplo de transformação considerado como um todo, com todos os seus subprocessos compreendidos concretamente nele? Seria algum "ponto intermediário" entre os processos opostos, no qual suas oposições estão suavisadas? Seria um "ponto de equilíbrio" no qual suas oposições se estabilizam uma em relação à outra sem se anularem nem se suavizarem? Seria um terceiro processo mais amplo composto pelos que estavam opostos e no qual as opossições passam a ser apenas contradições internas?

As discussões entre os dialéticos tentando responder a questões como estas são incessantes, e na prática, costumam oscilar entre uma possibilidade e outra conforme as condições reais apresentadas efetivamente pelos processos que estão sendo examinados. Mas a maior parte deles tende a rejeitar qualquer noção de "síntese" que não considere as coisas amplamente, numa visão mais macroscópica e abrangente.

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Esclarecimentos mais detalhados

 

A dialética busca sempre uma visão global do conjunto da realidade?

Os dialéticos costumam buscar uma visão da totalidade do real, procuram captar a realidade como um todo. Uma visão de conjunto é uma só, é um modo de se perceber o conjunto, e portanto tem uma certa unidade. O filósofo mais antigo da linhagem dialética costuma ser considerado Heráclito, de sete séculos antes de Cristo.

Heráclito já buscava essa visão global, de conjunto, com a qual esperava captar a realidade como um todo. Mas só aceitava a unidade considerada deste modo, como uma composição de tudo o que faz parte da realidade, uma unidade feita da multiplicidade de tudo isso. Heráclito não aceitava de maneira nenhuma a ideia de que houvesse algum pedacinho da realidade que fosse ele próprio uma pequena unidade indívisível dentro dessa unidade maior. Pelo contrário. Cada coisa estaria dividida por uma contradição interna: a contradição entre o que a coisa era antes e o que a coisa será depois — porque na verdade, para Heráclito, não haveria exatamente "coisas" no mundo, mas apenas processos. Ou seja, segundo ele, toda a realidade em seu conjunto e cada mínima parte dela estaria sempre em processo de transformação, deixando de ser de uma maneira e passando a ser de outra.

Na mesma época de Heráclito, um outro filósofo, Parmênides, começou a criticar essa ideia heraclitiana dos processos de transformação, e a tratar nas coisas que formam a realidade como se fossem unidades simples e indivisíveis. Levantou a noção de que cada coisa é "igual a si mesma", não pode estar deixando de ser alguma coisa e passando a ser uma outra, porque em cada momento dessa transformação ainda é uma mesma coisa, igual a si mesma... e se no momento seguinte tiver deixado de ser essa coisa, vai ter passado a ser outra também idêntica a si mesma. Para Parmênides, esse modo de raciocinar era melhor porque ajudava a precisão do raciocínio. E permitia definirmos de maneira clara o que seria falso em uma linha de raciocínio: tudo o que fosse contradiório, tudo o que não fosse idêntico a si mesmo, seria falso. A única verdade possível teria que ser uma unidade perfeita e imutável, absolutamente idêntica a si mesma, sem contradição entre o seu passado e o seu futuro, ou qualquer outro tipo de contradição. É de Parmênides que vieram as ideias que levaram ao aparecimento da lógica mais tarde, quando foram organizadas pelo filósofo Aristóteles.

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A proposta de Heráclito, de trabalhar sempre com a ideia de unidades compostas de toda uma rede de processos inter-relacionados, cada um deles com o seu futuro contradizendo o seu passado (e por isso mesmo se transformando) — e não com unidades simples, estáveis e indivisíveis — ia em sentido contrário àquele da proposta de Parmênides. E foi essa proposta heraclitiana que passou adiante, de Heráclito para todos os dialéticos que que vieram no futuro — que por isso herdaram também um certo atrito com a lógica tradicional. Note-se que a dialética trata de contradições que são internas às próprias coisas, e que existem porque as coisas são na verdade processos em transformação.

Como a lógica não trabalha com processos, mas com unidades distintas umas das outras (que os lógicos costumam chamar de "elementos"), quando se fala em "contradição" no sentido lógico trata-se de uma contradição entre as coisas que estamos afirmando a respeito dessas unidades, ou "elementos". Por exemplo, quando afirmamos que um elemento faz parte de um certo conjunto de elementos, e ao mesmo tempo afirmamos que ele não faz parte desse conjunto, estamos sendo contraditórios. Esta a noção de "contradição" da lógica  acabou se tornando bem mais conhecida do que aquela utilizada pelos dialéticos, que é a de uma contradição interna em um processo, entre o seu passado e o seu futuro. De modo que para evitar confusões talvez valha à pena pararmos de falar em "contradições" na dialética e passarmos a chamá-las de "oposições".

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Como é a visão da totalidade da realidade que os dialéticos buscam?

Para os heraclitianos (e para os dialéticos em geral) é preciso tomar o cuidado de não supervalorizar a noção de unidade, de não tratá-la à maneira daquela unidade perfeita e indivisível buscada pelos parmenidianos. Mais precisamente, é preciso tomar o cuidado de não acabar desvalorizando a multiplicidade das coisas que existem e que compõem essa unidade do conjunto — que inclusive os dialéticos preferem chamar de "totalidade" do que de "unidade", para evitar o erro.

O erro se mostra mais grave quando consideramos essa "visão de conjunto" como algo que ocorre talvez só nos nossos pensamentos. Se tratamos essa nossa "visão global" como se fosse "mais verdadeira" do que aquilo que ela pretende "ver" — isto é do que própria multiplicidade em sua totalidade, do modo como se apresenta no real à nossa volta — estamos não só ignorando a multiplicidade das coisas, mas também o fato de que somos apenas uma parte dessa multiplicidade, de que o nosso próprio pensamento, no qual estamos formando essa "visão de conjunto", é apenas uma pequena parte dessa realidade total, na verdade composta de muitas coisas.

Em outras palavras, é preciso tomar cuidado para não deixar a "idéia" que formamos do conjunto da realidade em sua multiplicidade, transformar-se em uma unidade no sentido de Parmênides, como se fosse "absolutamente verdadeira" só por ser uma unidade e justamente por isso. Conceber a totalidade do real desse modo, como uma unidade à maneira parmenidiana, nos arrasta para uma unidade que não é a dessa totalidade, mas apenas a da nossa ideia (mental) acerca dessa totalidade.

A visão de conjunto dos heraclitianos não é apenas a captação de uma grande unidade formada por tudo o que existe: é bem mais do que isso, porque não se trata apenas de multiplicidade, mas de uma multiplicidade de coisas que estão de algum modo em oposição umas com as outras. Portanto, é como a visão de um grande campo de batalhas em que tudo está em luta, ou de um grande jogo com milhões e milhões de competidores.

Para falar dessa visão global que precisamos ter do grande campo de confrontos que é o mundo, Heráclito falava de fato em uma "unidade", mas dizia que era preciso buscar a unidade na multiplicidade e a multiplicidade na unidade, sem nunca esquecermos que essa unidade é feita de múltiplas coisas. O noção de que essas múltiplas coisas estão em oposição umas às outras torna isso bem mais claro e fácil de compreender, e torna o erro de cair na unidade parmenidiana bem mais fácil de se evitar.

Foram os dialéticos contemporâneos, a partir do século XIX, que passaram a chamar essa visão do conjunto preconizada por Heráclito de "totalidade": a totalidade de todas as coisas em constante transformação e contraditórias umas com as outras que formam o mundo. Essa "totalidade" é o resultado total de tudo isso.

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As oposições das quais Heráclito falava na antiguidade
eram as da "tese" e da "antítese"?

As oposições das quais Heráclito falava não eram exatamente as oposições entre "tese" e "antítese". Na verdade essas expressões só sugiram bem mais tarde. Foram introduzidas por seguidores de Marx. Nem mesmo o próprio Marx as utilizava.

Não obstante, de qualquer modo a dialética que surgiu a partir do século XIX estava muito preocupada com entender a passagem do tempo, do antes para o depois. E isto produziu a tendência a se valorizar muito as oposições entendidas "aos pares", sempre entre dois pólos opostos, um anterior (que acabou sendo chamado de "tese" pelos seguidores de Marx) e um posterior (chamado de "antítese").

Contudo pode-se dizer que a unidade da multiplicidade de que os heraclitianos falam é, mais precisamente, algo como o ponto de vista do general diante do mapa onde planeja sua estratégia, e não o do soldado que está no campo e não vê o conjunto.

Por isso é que dizemos que há uma "unidade" nessa multiplicidade: estamos falando da totalidade dos conflitos envolvidos. É importante notar que nessa luta ou nesse jogo não existem apenas dois exércitos ou dois "times": tudo está em luta contra tudo, como num jogo de futebol onde não existem times e cada um joga por si mesmo, ou então existem muitos times jogando ao mesmo tempo, e os times mudam, os jogadores podem começar a "jogar contra" e mudar de time no meio do jogo.

Isto não deixa de estar presente na dialética posterior, que se desenvolveu no século XIX. A ênfase dos dialéticos novecentistas na oposição binária entre um pólo que "já estava lá" e um outro "novo" que foi se desenvolvendo em contradição com ele, é apenas uma ênfase — maior em alguns desses dialéticos novecentistas, menor em outros. E seja qual for a ênfase que dêmm a isso, em todos está sempre presente a noção de que a realidade concreta é uma composição de múltiplos polos em oposição mútua. Não é à toa que costuma ser difícil entender a dialética: para os dialéticos, a própria realidade é complicada, se entendermos bem o sentido dessa palavra... as coisas estão todas co-implicadas, cada uma implica as outras ao redor e vice-versa, num enorme jogo de teses e antíteses entrelaçadas.

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A dialética está ligada ao movimento e à passagem do tempo?

Para entendermos melhor o pensamento dialético, vamos começar pela noção de que tudo flui, tudo muda constantemente — é o que quisemos dizer quando dissemos que a dialética, já desde Heráclito, encara a realidade como uma rede de processos. Heráclito dizia que não é possível a gente se banhar duas vezes no mesmo rio, porque da segunda vez, as águas passaram e o rio já não é mais o mesmo. As águas do rio eram uma metáfora muito comum na época para se falar da vida, do rio da vida que vai passando, com a idéia de que o que passou, já passou e não volta mais, as coisas já se transformaram, a situação já mudou. É difícil acompanhar esse fluxo das coisas, porque nos apegamos a elas do modo como estão agora, e não vemos o tempo passar.

Mas o tempo sempre passa, implacavelmente, e não temos como impedir que as coisas mudem, a não ser que a gente se iluda imaginando em nossa fantasia que as coisas ainda são do mesmo modo que eram. Caimos nessa ilusão o tempo todo, tentando "imobilizar" as coisas do jeito como elas são.

Quando damos um nome para uma coisa e continuamos tratando-a por esse nome porque reconhecemos que ela continua sendo "a mesma" coisa, na verdade estamos presos a uma ilusão, porque se a examinarmos direito perceberemos que a coisa está mudando, mesmo que seja bem lentamente. Embora a gente não se dê conta, quando fazemos isso, quando tratamos as coisas como se elas fossem sempre as mesmas (e fazemos isso o tempo todo), estamos pensando abstratamente.

Em outras palavras, fazer isso é abstrair (extrair, subtrair, tirar) o nosso pensamento do mundo (imaginariamente, porque na verdade é claro que ele continua sendo parte do mundo). É ficar parado no tempo, apegado à mesma velha imagem que estávamos acostumados a fazer das coisas, enquanto o mundo na verdade está mudando debaixo do nosso nariz (e mesmo que não percebamos, nós mesmos estamos mudando junto, porque também somos parte do mundo).

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Marx não utilizava os termos "tese", "antítese" e "síntese"?
Que termos ele utilizava?

É importante saber que o próprio Marx não costumava utilizar esses termos. foram os seguidores dele, mais tarde, que começaram a utilizá-los cada vez mais. Mas é importante por quê? Não são apenas palavras diferentes para dizer as mesmas coisas? É importante porque usar certas palavras ou outras diferentes para descrever uma coisa não é algo inocente, especialmente em filosofia política.

O uso de certos termos ou de outros, neste caso, pode sugerir interpretações difertentes daquilo que chamamos de "dialética". "tese", "antítese" e "síntese". São termos que aparecem na filosofia nada materialista de Kant, antes dos três principais pensadores a fazerem renascer a dialética de Heráclito no século XIX, Fichte, Schelling e Hegel (este último considerado o fundador oficial da nova dialética). Desses três, Fichte apenas era mais próximo de Kant. O próprio nome "dialética", escolhido por Hegel para sua renovação da teoria heraclitiana também não é inocente. É um termo que foi utilizado na antiguidade por Platão, que é de todos os filósofos um dos menos materialistas que se pode imaginar. Talvez possa ser considerado inclusive anti-materialista. A tal "dialética" de Platão, que na verdade não tem nada ou quase nada a ver com a famosa "dialética" novecentista, tinha também muito mais a ver com a ideia de "diálogo", e com um movimento que ocorre no campo dos pensamentos e das palavras usadas para defini-los. A dialética de Marx e de outros jovens filósofos de sua época que, como ele, pretendiam seguir Hegel mas levando sua teoria mais longe no campo da política, ía para muito além dos movimentos das ideias, pensamentos e palavras.

O termo "dialética", com a ideia de "diálogo" que sugere — e aparentado à filosofia de Platão — na verdade condiz muito melhor com o idealismo de Fichte, Schelling e Hegel do que com o materialismo de Marx. Na verdade é surpreendente que Marx, pretendendo-se materialista, tenha mantido o termo "dialética" para aquilo que estava propondo — o que só ressalta o quanto ele pretendia manter-se próximo da linguagem do grupo dos filósofos jovens hegelianos, dos quais fazia parte. Os jovens hegelianos pretendiam construir uma filosofia política de oposição aos poderes estabelecidos usando para isso a dialética de Hegel.

Ao invés de "tese", "antítese" e "síntese", Marx preferia usar outros termos. Termos que, igualmente, também sugerem coisas ligadas ao campo discursivo, ao uso das palavras (não parece ter se dado conta de que termos desse tipo não eram os mais adequados). Falava em "afirmação", "negação" e "negação da negação". Mas essa última expressão — "negação da negação" — é especialmente interessante: para Marx não havia exatamente uma "composição" final de tese e antítese — como no sentido original da palavra "síntese".

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O que ocorria, segundo Marx, era o seguinte.

Uma situação na inicial estava colocada em uma sociedade, situação que ia se afirmando e se desenvolvendo cada vez mais. Era o lado "positivo" da oposição dialética, o primeiro a aparecer, antes mesmo da a oposição começar. Conforme ia se afirmando e desenvolvendo, essa situação inicial (lado positivo) ia provocando o aparecimento de uma contradição interna (lado negativo), isto é, de forças sociais que negavam essa situação inicial.

Essa contradição interna, que "negava" a situação por dentro (isto é, procurando apenas corrigi-la, sem negá-la por completo), ia negando-a cada vez mais intensamente, até negá-la completamente, passando a buscar alguma situação nova (mesmo indefinida) que fosse completamente diferente. Nesse ponto, a negação já não poderia mais ser considerada apenas uma negação "interna" à própria situação negada, porque teria se tornado uma negação completa, uma outra força, externa àquelas forças que mantinham a situação inicial.

Mas o único modo de essa negação da situação inicial se realizar seria negando ao mesmo tempo a si mesma, porque essa negação era produto da própria afirmação, isto é, a própria situação inicial havia produzido essa sua negação. Então, ao negar (destruir) a afirmação, essa negação acabaria se negando (se destruindo) a si mesma, de modo a se transformar em uma outra coisa, uma coisa diferente que não seria possível prever completamente como seria. Por isso, ao invés de "síntese", Marx preferia falar em "negação da negação" — uma nova situação totalmente diferente da inicial, na qual estariam abolidas não somente as forças sociais que mantinham aquela situação inicial, mas também as própria forças que a haviam negado, de modo que essa nova situação seria a negação da própria negação que a havia gerado.

Coloquemos isso em termos mais claros, com um exemplo. O capitalismo se auto-afirmando seria uma situação inicial, "positiva", "afirmativa", beneficiando um grupo (o dos capitalistas) que se tornaria então a principal força social atuante no sentido de sustentar e manter essa situação. Mas o capitalismo, benéfico para esse grupo, faria surgir e se desenvolver uma contradição interna: um grupo prejudicado que iria se organizando cada vez mais contra o capitalismo — o dos trabalhadores assalariados (isto é, "proletários"), explorados pelos capitalistas.

Conforme esse grupo fosse negando mais intensamente a situação capitalista, iria deixando de exigir apenas reformas e correções dentro do próprio capitalismo, e passando a lutar contra essa situação capitalista como um todo, tornando-se uma força cada vez mais "externa" ao capitalismo. Mas essa negação só se realizaria por completo, com o desaparecimento dos capitalistas e do próprio capitalismo, na medida em que esses trabalhadores negassem também a sua própria condição de "proletários", de "assalariados": ao negarem os capitalistas e o capitalismo, deixariam de receber salário. Passariam a satisfazer suas necessidades materiais de uma outra maneira, diferente daquela imposta pelo capitalismo.

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Quais as implicações da adoção do termo "síntese" pelos seguidores de Marx,
ao invés de "negação da negação"?

Esse modo de ver a dialética de Marx, que utilizando a expressão "negação da negação" acaba por reforçar o lado negativo da dialética, se desenvolveu muito a partir da influência de um texto famoso da juventude do anarquista Bakunin — coisa bem pouco reconhecida pela maioria dos marxistas, pois Bakunin e Marx, na maturidade, se tornaram rivais bastante agressivos na disputa pela orientação das lutas internacionais dos trabalhadores por seus direitos. O tal texto famoso de Bakunin — que na verdade influenciou toda uma geração dos seus colegas jovens hegelianos na época — chamava-se A reação na Alemanha.

Bakunin, depois disso, manteve-se a vida toda fiel à ideia de que ao negar o capitalismo, os trabalhadores negavam a sua própria condição de assalariados, e não era possível prever o resultado de tudo isso, que estaria nas mãos desses trabalhadores, eles é que deveriam pensar, conjuntamente, os novos rumos a seguir, e o importante era que fossem garantidas as condições para que esse resultado coletivo se desenvolvesse realmente como algo coletivo, e não sob a direção de alguma liderança ou grupo de elite qualquer.

Marx, pelo contrário, passou a construir previsões a respeito dos futuros caminhos dos trabalhadores. Apontou como única saída eficaz para a superação do capitalismo, a tomada do poder do Estado pelos operários, e o comunismo dirigido por esse Estado operário (sem espaço para concorrência com partidos não-operários), de modo que o Estado operário pudesse realizar a estatização dos meios de produção (fábricas, terra etc.), eliminando a propriedade capitalista desses meios de produção.

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Feita essa previsão, ela passou a figurar para Marx cada vez mais como uma missão histórica dos trabalhadores, que não seria decidida por eles, mas inscrita necessariamente na sua própria condição de trabalhadores, quer eles quisessem ou não — de modo que aqueles trabalhadores que não a aceitassem ou não a interpretassem desse modo passaram a ser vistos como uma espécie de traidores dessa "misssão histórica" do conjunto de todos os trabalhadores. O próprio Bakunin passou a ser encarado por Marx aproximadamente desse modo, como uma espécie de "traidos" que pretendia desviar os trabalhadores de seu destino histórico.

O termo "síntese", tão utilizado depois por seguidores de Marx, não apenas sugere uma vaga previsão a respeito do resultado da negação do capitalismo — como se nesse resultado devesse haver alguma "composição" da situação inicial com a sua negação, aproximando-se mais da noção de "síntese" de Hegel (que tem de fato uma certa relação com essa ideia de "composição") — mas além disso suaviza o modo como Marx via essa negação da situação original, pois não esclarece muito bem que a negação da negação teria radicalidade suficiente para negar a si mesma (conforme transparece na expressão "negação da negação", utilizada por Marx).

 

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O pensamento dialético está ligado à observação empírica?

A dialética não está interessada em usar um esquema de raciocínio que possa funcionar para qualquer coisa independentemente da observação, como o raciocínio dos lógicos. Pelo contrário, para os dialéticos não é qualquer coisa que pode ser colocada em oposição dialética com qualquer outra coisa. Porque não é o raciocínio do próprio dialético quem coloca as coisas em oposição: cada coisa no mundo está por si mesma em oposição com alguma outra. Mas para saber com qual, os dialéticos precisam observar como as coisas ocorrem no mundo e perceber o que está se transformando em quê. Praticam o que se costuma chamar de "observação empirica", e raciocinam com base no observado, não a partir do raciocínio puro e independente da observação como na lógica.

Os lógicos da linha chamada "positivista" ("positivistas lógicos"), de certo modo parceiros dos cientistas atuais em áreas como Física e Química, aceitam que o raciocínio pelo menos comece pela observação de certos fatos isolados, que entram em suas fórmulas lógicas como "termos" ou "elementos" da realidade que serão considerados no raciocínio. Mas o pensamento dialético vai bem mais longe que isso na sua consideração das observações empíricas, porque não observa "fatos" isolados, mas situações concretas como tomadas um todo que está em processo de transformação, situações quem que há muitos fatos interligados e até mesmo fundidos indissociavelmente uns com os outros.

Os dialéticos não dizem por exemplo, de maneira nenhuma, que as frutas podem estar se transformando em pedras, ou qualquer absurdo do gênero. O que estão dizendo é que as frutas estão se transformando, sim, naquilo que os próprios lógicos aceitariam chamar de "não-frutas"! E é realmente isso que os dialéticos dizem: se observarmos as frutas como realmente existem, no mundo, veremos que com o tempo (não importa se lenta ou rapidamente) elas apodrecem ou são comidas, portanto se desfazem e deixam de ser frutas, e é neste sentido que podemos dizer que viram não-frutas — ou se quisermos usar uma linguagem mais próxima daquela dos lógicos, deixam de ser da categoria das "frutas", são elementos que saem do conjunto "frutas".

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Quanto a isto, única diferença em relação à maneira de pensar dos lógicos é que os dialéticos procuram sempre se lembrar de que no mundo não conseguimos observar realmente nada que seja pura e simplesmente um "não-branco" ou uma "não-fruta", uma "não-coisa": existe sempre alguma coisa, e é essa "alguma coisa" que está fazendo o papel de "não-outra-coisa", por exemplo de "não-branco" ou de "não-fruta"... ou de não-seja-lá-o-que-for. E se temos uma coisa "P" qualquer, não podemos adivinhar só pelo uso do raciocínio o que é que está fazendo o papel de "não-P". Então, para os dialéticos, é preciso observar sim, no mundo, empiricamente, o que é que está fazendo esse papel, o que é que está negando "P". Ou em termos mais dialéticos, o que é que está emergindo como antítese da tese "P".

No caso do amarelo, por exemplo, um dialético diria que não existe o amarelo em estado puro fora do mundo (esse amarelo em estado puro seria só uma abstração lógica), o que observamos realmente é alguma coisa que é amarela, por exemplo uma fruta. E o amarelo dessa coisa, do modo como podemos observá-lo na realidade, quando deixa de ser amarelo e passa a ser outra coisa — ou seja, quando é negado por alguma outra coisa na qual ele se transforma — que coisa é essa?

Se estamos falando de uma fruta, podemos imaginar que será o marrom ou talvez o preto, conforme a fruta for apodrecendo. Neste caso específico, o não-amarelo no qual o amarelo se transforma e que portanto nega o amarelo — e que os dialéticos dizem que é contraditório com ele — é o marrom ou o preto da fruta apodrecida. Então os dialéticos dizem que este amarelo (da fruta que estamos observando) está em "oposição dialética" com este marrom ou preto (da fruta quando ela apodrece).

E isto acontece gradualmente, se estamos falando da contradição entre o que é "A" e o que é "B", isso não pode ser representado por uma linha que simplesmente separa "A" e "B" à maneira dos lógicos.

 

diagrama da negação mútua entre A e B

 

Do ponto de vista dialético, "A" e "B" são dois processos. Processos que se interpenetram, formando duas "ondas" no mesmo fluxo geral de transformações das coisas do mundo umas nas outras. Isso quer dizer que há uma multiplicidade de processos diferentes uns dos outros (na verdade opostos uns aos outros) formando esse grande fluxo que forma o conjunto de todos eles.

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Na oposição dialética os pólos opostos se interpenetram?

Na dialética os polos opostos não são exatamente polos, mas processos que vão emergindo um de dentro do outro, um gerado pelo outro, e um em oposição ao outro (veja-se por exemplo o modo como Marx descreve o aparecimento da negação ao capitalismo, que é descrito em um tópico anterior nesta página). Confrome um lado da oposição vai se desenvolvendo, o outro vai deixando de existir, e poderíamos representar melhor a coisa da seguinte maneira:

 

diagrama da oposição dialética entre tese A e antítese B

 

Dentro dos limites da coerência, o que poderia ser mais oposto à lógica clássica e tradicional e à sua noção de "negação" do que isso?

Podemos raciocinar então que, quando o processo "A" (por exemplo o desenvolvimento da cor amarela em uma fruta), representado no diagrama pelas linhas pontilhadas, se inicia, já traz implicado nele necessariamente a sua negação, que é o processo "B" (no caso, o surgimento da cor marrom ou preta).

Não porque já existam pigmentos de cor marrom ou preta ali (na verdade não importa se esses pigmentos da outra cor já estão presentes ou não), e sim porque o amarelo da fruta madura só é o que é, e só conseguimos entender realmente o que ele é, na medida em que existe também na própria idéia do que esse amarelo significa, a idéia do marrom ou preto em que ele vai se transformar quando a fruta já estiver apodrecida.

O processo "A" só existe necessariamente interpenetrado por "B". Então, se o processo "A" vai se desenvolver por inteiro até o fim, o processo "B" que o nega vai necessariamente se desenvolver junto com ele, porque um não existe sem o outro, cada etapa do desenvolvimento de um envolve necessariamente alguma etapa de desenvolvimento do outro, e quando o processo "A" estiver entrando em declínio, o processo "B" vai estar avançando para o seu ápice.

No caso do exemplo de que estávamos falando, esse amarelo do processo "A" significa para nós que a fruta não está apodrecida, ou seja, que o processo de apodrecimento ("B") não está presente, que a fruta está madura e pode ser comida. Mas na verdade, como podemos ver pelo segundo diagrama, ela não está imóvel no estado de "madura", como nosso pensamento lógico e abstrato tende a imaginar: ela está sempre e ao tempo todo em um processo de transformação (que pode ser mais rápido ou mais lento) que vai passando do maduro ao apodrecido.

Isso quer dizer que o apodrecimento já está a caminho, assim como o envelhecimento já está a caminho desde o momento em que somos recém-nascidos, e embora essa possa ser uma imagem desagradável para algumas pessoas, esse é o fluxo natural das coisas, é assim que o mundo se manifesta para nós, quando o observamos com a devida atenção. Poderíamos pensar da mesma maneira, aliás, no processo de passagem da fruta verde para a fruta madura, ou seja, pensá-lo como dois processos opostos que se interpenetram.

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Os processos em oposição na dialética
podem ser compostos por subprocessos?

Nada impede que cada um desses processos envolvidos em uma oposição dialética seja composto por outros processos menores. Por explo: a passagem do amarelo para o marrom ou preto é só uma oposição dialética menor dentro de uma outra maior, que é a oposição dialética entre o processo de amadurecimento da fruta como um todo e o seu processo de apodrecimento.

A mudança de cor é só uma parte de uma transformação maior. O apodrecimento de uma fruta não é só uma questão de mudança de cor, há muitos outros aspectos envolvidos além da cor, que também precisariam ser examinados para entendermos o conjunto dessas transformações da fruta madura em fruta podre. E para os dialéticos, o que importa é justamente tentarmos compreender as coisas de uma maneira mais abrangente, considerando tudo o que está envolvido no assunto, e não só abstrairmos um aspecto dessas transformações separando-o do contexto para o pensarmos isoladamente, como fazem os lógicos.

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Os movimentos dialéticos seguem alguma circularidade?

Do ponto de vista dialético, não basta considerarmos só alguma coisa em particular, como por exemplo aquela fruta amarela que estávamos analisando: ela está em um contexto maior e faz parte de todo um ciclo da natureza e das relações entre os homens e a natureza (e na medida em que é vendida como mercadoria e consumida como alimento, também está envolvida nas relações entre os próprios homens uns com os outros). Se examinarmos como um todo pelo menos o ciclo natural dessa fruta, perceberemos, a respeito do assunto, ainda mais uma coisa que é considerada muito interessante pelos dialéticos: o próprio fato de ser um ciclo, portanto um movimento com uma certa circularidade.

A fruta desaparece, mas suas sementes vão dar lugar a novas frutas, então podemos dizer que, depois da passagem do processo do que é fruta para o processo de toda uma porção de coisas que são não-fruta, em algum momento temos de novo fruta (e depois de novo coisas que são não-fruta, e assim por diante).

Existe um vai-e-vem entre a situação em que existe fruta e a situação em que não existe fruta. Heráclito dizia que as trasformações do mundo podiam ser simbolizadas pelo fogo, que se acende e se apaga — e parecia estar se referindo especialmente àquele fogo do céu que chamamos de "Sol", e que parece acender-se com o raiar do dia e apagar-se com o anoitecer, num movimento que sempre se repete.

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Se tudo faz parte de um mesmo ciclo de processos de transformação,
o que justifica que os dialéticos falem de "oposições" entre um processo e outro?

Os movimentos dialéticos não se resumem a uma circularidade. Existe na dialética a idéia de uma oscilação entre uma situação e a situação contrária — o que vai ajudar os dialéticos a explicarem mais claramente como é que, nesse grande fluxo de transformações das coisas do mundo, as coisas não acabam se misturando umas com as outras. Ou seja, como é que podemos ainda dizer que existe uma multiplicidade ou pluralidade de coisas no mundo.

Já havíamos dito que esta é uma questão que incomoda os lógicos, na maneira de pensar dos dialéticos: se tudo se transforma, como é que vamos conseguir dizer, no meio desse fluxo de transformação, que existe uma coisa de um lado e outra coisa de outro?

Se os dois processos opostos se interpenetram, como é que podemos distinguir um do outro? Como é que podemos dizer o que faz parte de um dos processos e o que faz parte do processo "contrário"? Será que no fundo tudo é uma coisa só, uma mesma grande massa de transformações, um mesmo grande processo que não tem começo nem fim? E nesse caso, por que os dialéticos insistem tanto em falar de "oposições" dialéticas entre as coisas?

No final das contas, as coisas não caminham todas na mesma direção, de "A" para "B" naquele diagrama, mesmo que uma se desfazendo e a outra se desenvolvendo? Não é possível dizer que são apenas as duas etapas de um processo só? E nesse caso como é que os dialéticos podem justificar a idéia heraliteana de que existe uma multiplicidade de coisas? Essa multiplicidade ou pluralidade não é afinal só uma questão de "nome"? — Aí é que está: a resposta dos dialéticos é não.

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Mas por que, afinal de contas, temos que dizer que são dois processos e não duas etapas do mesmo processo? A resposta está naquela oscilação entre uma coisa e o que não é essa coisa, e que emerge na medida em que essa coisa vai se "apagando", ou seja, a resposta está naquela oscilação que Heráclito simboliza com o fogo do Sol, com a eterna oscilação entre o dia e a noite.

Neste ponto o raciocínio dialético se torna bastante complicado e exige muita atenção.

Até agora vínhamos pensando naquele diagrama com os dois processos em oposição dialética como se os dois fossem na mesma direção, e isto realmente é suficiente para nos ajudar a entender algumas transformações, como a da fruta madura para a fruta podre: os dialéticos chamam o primeiro processo (no diagrama o processo "A") de tese e o segundo (no diagrama o processo "B") de antítese.

A palavra tese, em grego antigo, queria dizer posição, algo que se põe, que se coloca ou que aparece em um certo momento. A palavra antítese (de anti-tese) queria dizer contraposição, algo que se põe, que se coloca ou aparece em oposição à tese, e que só ocorre justamente por causa da tese, como oposição a ela — algo que não existiria sem ela.

A antítese nasce de dentro da tese, como podemos ver no diagrama. Para começarmos a entender o próximo passo, precisamos primeiro imaginar que, naquele diagrama, os processos não vão na mesma direção: são opostos justamente porque cada processo tende a empurrar o outro no sentido oposto.

O processo "A" tende a se desenvolver até atingir o seu ápice, o seu ponto máximo de desenvolvimento, mas o processo "B", que vai emergindo junto com ele, oferece resistência contra o desenvolvimento dele, porque atua como se fosse a sua negação. Se estivéssemos raciocinando de maneira abstrata, a negação de "A", ou seja, o "não-A", não poderia oferecer resistência ao processo "A", porque fora do mundo, onde só existem idéias abstratas, a noção de resistência não faz sentido, não faz sentido dizer que uma idéia abstrata oferece uma força de resistência contra a outra.

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A dialética envolve as relações entre processos concretos,
que exercem pressões uns sobre os outros?

Já dissemos que, quando o dialético pensa em "não-A", está pensando em algum processo ("B") diferente de "A" que na prática desempenha o papel de "não-A", que é o de opor-se a esse processo "A".

A tese, ou seja, o processo "A", é algo concreto, algo que ocorre em algum ponto ou lugar no espaço e também em algum momento ou período no tempo. Se é por exemplo uma idéia, não é uma idéia abstraída da realidade e da vida, mas uma idéia que alguém tem ou teve, e esse alguém existe ou existiu em algum lugar e em algum tempo, e tem ou teve essa idéia em meio a todo um contexto no qual essa pessoa está. E nesse contexto há também uma porção de outras coisas que estão relacionadas direta ou indiretamente com a vida dessa pessoa, e com as idéias que ela tem ou deixa de ter.

Nessa relação, tudo o que essa pessoa faz ou deixa de fazer interfere de algum modo no contexto, mesmo que em muitos casos seja uma interferência bem pequena e irrelevante. E tudo o que ocorre no contexto tende a interferir também, e às vezes muito fortemente, na vida dessa pessoa e em tudo o que ela faz ou deixa de fazer, inclusive nas idéias que ela tem ou deixa de ter.

Então, os processos que ocorrem em um mesmo contexto muitas vezes interferem uns sobre os outros, e essa interferência de um processo (por exemplo o processo "B") pode ajudar no desenvolvimento de outro processo (por exemplo o processo "A") ou pode atrapalhar esse desenvolvimento. Nesse último caso, podemos dizer que o processo "B" oferece uma resistência contra o desenvolvimento do processo "A".

Para os dialéticos, mais importante do que entender aquilo que ajuda um processo a se desenvolver, é entender entender essa força de resistência (a antítese), que sempre aparece contra um processo qualquer (ou seja, contra a tese), conforme ele vai se desenvolvendo e tomando forma, ocupando uma posição no contexto durante um período de tempo. E como vimos, os dialéticos consideram que cada coisa que existe no mundo (ou seja, cada processo) tem sua antítese. Porque a antítese nasce de dentro da própria tese e se desenvolve junto com ela. É uma pequena resistência interna da própria tese que, conforme a tese se desenvolve, vai crescendo também e se desenvolvendo (contra a tese) até ganhar vida própria e se separar dela.

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Na dialética é mais importante entender as antíteses do que as teses?

Sem a antítese, a tese não existe realmente, mas o inverso também é verdadeiro. Uma sem a outra não passam de abstração. A tese na verdade produz a própria antítese, como uma contradição interna a si mesma. Mas depois nada se modificaria, nada se transformaria, a situação não mudaria, se essa contradição interna não desenvolvesse força suficiente para ser uma antítese capaz de negar completamente a tese. Se a dialética é um modo de se compreender a realidade que trabalha com o exame das transformações que ocorrem nela, então o exame das antíteses, das forças que negam aquela situação original em que elas nasceram, é de uma importância fundamental na dialética. Mas isso não quer dizer que o exame das teses não tenha importância. Na realidade concreta, tese e antítese estão interligadas.

Se raciocinássemos logicamente (e não dialeticamente), como poderíamos explicar que uma maçã é uma maçã e não outra coisa qualquer? Os lógicos em geral não costumam pensar nesse tipo de problema, dizem simplesmente que "maçã" é aquilo que está na intersecção entre vários conjuntos que a caracterizam ao mesmo tempo. Ou seja, é aquilo que faz parte do conjunto das frutas, ao mesmo tempo do conjunto das coisas que são arredondadas, no das coisas que têm casca vermelha, no das coisas que são brancas por dentro e assim por diante.

Mas se pensassem no problema da maneira como o colocamos ("por que uma maçã é maçã e não outra coisa qualquer"), seria coerente com a lógica considerar que a maçã só é maçã na presença da não-maçã, ou seja, se existe um "não" traçando uma linha divisória entre "A" e "B", como no diagrama (já apresentado nesta página)...

 

diagrama da negação lógica mútua entre A e B

 

...e supondo que "A" seja a maçã, então tudo o que está do lado "B" é não-maçã.

Mas se não houvesse essa linha para separar a maçã do resto, ou seja, se não houvesse o "não" para dizermos o que não é maçã, não teríamos a maçã, ou seja, não conseguiríamos dizer o que é a maçã.

Na verdade, apesar desse raciocínio parecer lógico no sentido tradicional, ele não é.

Essa nossa questão inicial sobre por que uma maçã não é outra coisa seria muito difícil de engolir para um lógico tradicional. Seria difícil porque estamos desde o inínio considerando uma contradição (a presença ao mesmo tempo de "A" e "não-A"), mas talvez chegue a ser completamente admissível se observarmos que ao invés de "não-A" estamos falando apenas em "B".

Um lógico não aceitaria que considerássemos "B" como "não-A", pois "não-A", do ponto de vista da lógica, seria justamente o conjunto de tudo aquilo que não é "A", e "B" seria apenas alguma outra coisa diferente de A.

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Fora isso, um lógico talvez aceitasse esse percurso de raciocínio, embora torcendo o nariz incomodado e reclamando que o melhor seria condiderar "A" e "B" como dois conjuntos diferentes, ou seja, o conjunto das coisas que são maçãs e o conjunto das que não são, para não acabarmos confundindo "elementos" com "conjuntos", pois começamos falando em "maçã" e "não-maçã", e para os lógicos, não se pode negar um elemento como "uma maçã": só se pode negar a relação entre um elemento e um conjunto, dizendo por exemplo que tal elemento não pertence a um determinado conjunto, digamos o "conjunto das maçãs", e que portanto, tal elemento não é uma maçã.

O problema é que isto não responde a nossa questão: "por que a maçã é maçã e não outra coisa?".

Um lógico diria provavelmente que a pergunta está mal formulada.

Entretanto podemos dizer que o raciocínio dialético começa justamente por esse tipo de questão. E por esse tipo de raciocínio, incômodo para os lógicos, sobre a necessidade da presença de "não-A" para podermos definir o que é "A".

Mas ao invés de os dialéticos pensarem na linha divisória do "não", trabalham com uma passagem gradual de "A" para "B", considerando que ambos são processos que ocorrem exercendo pressão em sentido contrário, um negando o outro. Porém ocorrem necessariamente juntos, porque um só ocorre conforme vai sendo negado pelo outro e vice-versa, caso contrário estariam misturados.

Assim, em termos dialéticos poderíamos imaginar essa linha divisória do "não" de outra maneira (que aliás também já foi apresentada nesta página):

diagrama da oposição dialética entre tese A e antítese B

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Podemos dizer que, ao contrário da lógica,
a dialética leva em consideração o tempo?

Como estamos falando de processos, que ocorrem em um período de tempo, imaginemos este diagrama do tópico acima e, sobreposto a ele, um outro diagrama (transparente) assim:

linha da negação dialética

 

As linhas pontilhadas representam diferentes momentos nesse período de tempo em que ocorre a oposição dialética entre "A" e "B" mostrada no diagrama do tópico anterior: por exemplo os momentos t1, t2, t3 e t4.

No momento t1, o processo "A" está bastante desenvolvido, mas só podemos dizer que está realmente ocorrendo porque "B" também está ocorrendo para negá-lo, ou melhor, para opor-se dialeticamente a ele, ainda que com uma força pequena; já no momento t4, observamos que o processo "A" decaiu, na mesma medida em que o processo "B" (sua antítese) se desenvolveu.

Como, além disso, na dialética trabalhamos com a noção de que o processo "B" (antítese) nasce de dentro de "A" (tese), podemos imaginar um momento inicial "t0" em que não existe a linha divisória, porque "B" ainda está completamente dentro de "A" e não tem autonomia suficiente para ser considerado outro processo, portanto ainda é apenas uma contradição interna no próprio processo "A".

Isso um lógico já não poderia admitir de maneira nenhuma, porque se já estamos de certo modo negando o princípio de não-contradiçãp, admitir uma contradição interna em "A" seria negar além disso e com firmeza o princípio de identidade.

Mas ora, é exatamente isso o que os dialéticos dizem: a ocorrência do processo "A" depende da ocorrência de sua antítese "B", e a antítese ocorre inicialmente dentro de "A" como contradição interna, para só depois e gradualmente desenvolver-se até ganhar autonomia, e ("pior", diriam os lógicos:) além disso nem sempre é possível assinalar claramente o momento exato da ruptura entre tese e antítese!

 

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O resultado desse raciocínio se exprime melhor no diagrama da tese e da antítese que já apresentamos antes. Mas podemos, conforme já foi pedido que imaginássemos, colocar os dois sobrepostos um ao outro.

 

oposição dialética e negação temporalizada

 

 

Se a lógica trabalha com elementos que são unidades estáveis e independentes umas das outras, agrupando-as em conjuntos, essas relações entre processos mutuamente contraditórios (tese e antítese) é que são os "elementos" com os quais a dialética trabalha. Mais precisamente, não são "elementos": são processos. Processos que se desenvolvem ao longo do tempo.

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Quais, resumidamente,  são os primeiros passos do pensamento dialético

para entender uma situação concreta?

O primeiro passo do pensamento dialético a respeito de algo é procurar descrever qual o contexto em que esse algo ocorre. E o segundo passo é buscar nesse contexto as oposições dialéticas mais relevantes, ou seja, procurar compreender o que é que , de mais importante, está em transformação. E nessa transformação, o que é que está deixando de ser para se transformar em outra coisa (em outras palavras, qual é a "tese'), e o que é isso em que está se transformando e que, portanto, está tomando o seu lugar (ou seja, qual é a "antítese").

Uma única última complicação precisa ser esclarecida quanto a estes passos da dialética.

É que nosso próprio pensamento também é parte desse mundo em mutação, e portanto nossas idéias a respeito do mundo, que ocorrem em nosso pensamento, também devem ser consideradas dialeticamente.

Então há pelo menos dois tipos de oposições dialéticas: aquelas que ocorrem no mundo (e que percebemos quando pensamos dialeticamente sobre o resto do mundo que existe fora do nosso pensamento), e aquelas que ocorrem entre as nossas idéias (ou seja, na forma como pensamos sobre o mundo). Entre os primeiros passos do pensamento dialético está justamente este: distinguir com clareza quais as oposições dialéticas "reais", que estão sendo captadas de fato no mundo, e quais as que estão ocorrendo somente no nosso pensamento, entre as nossas ideias sobre o mundo. Isto nem sempre é fácil (aliás, pelo contrário, às vezes é bastante difícil).

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Então, se digo que o marrom da fruta podre está em oposição dialética ao amarelo da fruta madura, é uma oposição do primeiro tipo, uma oposição captada no mundo — porque não depende só da ação do meu pensamento, depende principalmente de algo que estou percebendo no mundo. É uma oposição dialética real, em sentido forte, pois o marrom nasce realmente onde havia o amarelo e em oposição a ele.

Mas se digo que, em um casal, existe uma oposição dialética entre a mulher e o marido em que um é a antítese do outro, estou falando de uma oposição dialética em sentido "mais fraco", mais abstrato. Ou seja, estou falando de uma oposição dialética do segundo tipo: é no meu pensamento que considero a imagem da mulher e a do marido como "tese" e "antítese" respectivamente, pois é quando minha atenção passa da imagem mental que faço dela para a imagem mental que faço dele, que a segunda imagem parece nascer da primeira em oposição a ela. Mas sei que não é realmente ele que está nascendo ou brotando dela (estou falando de um casal de adultos, e não descrevendo a situação do parto de um bebê!). Se é apenas a imagem que tenho dele que está brotando da imagem que tenho dela, conforme penso primeiro nela e depois vou passando a pensar nele, então essa transformação dela nele está ocorrendo, evidentemente, apenas no meu pensamento, ela não é real, é apenas mental.

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Na dialética, quais são as oposições mais importantes?
As mentais (entre ideias) ou as reais?

Este primeiro tipo de oposição dialética — oposição mental, entre meras ideias ou pensamentos — nem sempre é bem aceito pelos dialéticos, e alguns preferem não trabalhar com ela por que consideram muito alto o risco de cairmos em abstrações. Contudo há muitos dialéticos (a maioria deles aliás) que trabalham ora com um dos tipos de oposição ora com outro, infelizmente nem sempre deixando claras as diferenças.

De qualquer modo, as oposições reais continuam a ser sempre, em todos os casos, as preferidas dos dialéticos.

Existe entretanto uma oposição especial que de certo modo liga os dois tipos, e para a qual os dialéticos dão muita atenção. Ela envolve não apenas os fatos do mundo, mas também, diretamente, os nossos pensamentos sobre o mundo. E tem um interesse realmente especial para todos os dialéticos: trata-se da oposição dialética entre pensamento e ação.

Karl Marx (o famoso filósofo dialético comunista) e seus seguidores costumam chamar essa oposição pensamento-ação pelo nome de "praxis".

O filósofo anarquista Pierre-Joseph Proudhon, antes dele, descreveu essa oposição como o processo pelo qual o pensamento nasce da ação em oposição a ela (pois é abstrato, enquanto a ação é necessariamente uma inter-ação com o contexto), e depois o pensamento retorna para a ação transformando-se em ação. No primeiro movimento, segundo Proudhon, a ação é o que os marxistas mais tarde chamaram de "tese", e o pensamento, o que chamaram de "antítese". No segundo, as posições se invertem. O pensamento equivale à "tese" e a ação à "antítese", e assim por diante.

Naturalmente, não estamos falando aqui da simples ação de pensar, mas do agir de fato no mundo, interagindo com o que está fora de nós. Proudhon, por exemplo, dava especial atenção a essa ação que chamamos de "trabalho", e que está (ou deveria estar, se o trabalho não fosse tantas vezes alienado, mecânico, feito de gestos repetitivos e automáticos) intensamente envolvida em uma dialética com os pensamentos do trabalhador. Quanto a este ponto, o próprio Marx parece ter pensado, mais tarde, de modo similar.

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Como é a concepção dialética de história de Karl Marx?

A resposta de Marx quanto a isso está no próprio fundador dessa noção novecentista de "dialética", antes de Proudhon: o filósofo Hegel.

E Marx conhecia muito bem o pensamento de Hegel, melhor do que Proudhon. Na verdade Proudhon não aceitava a dialética de Hegel e procurou corrigi-la construindo a sua própria, e o que recusava em Hegel era justamente a idéia de que havia um mecanismo de funcionamento da História que tornasse o futuro mais previsível. Proudhon desconfiava que por detrás desse esforço de construir um mecanismo de previsão feito por Hegel havia um desejo de dominar e controlar a realidade, incluindo as outras pessoas que fazem parte dessa realidade, justificando o poder do Estado sobre elas.

Marx não concordava com a crítica de Proudhon, e procurou recuperar esse mecanismo, ligado à idéia de que havia um terceiro fator dialético além da tese e da antítese, o elemento chamado "síntese". Na verdade, Marx preferia usar o termo "negação da negação" ao invés do termo "síntese", e essa expressão — negação da negação — a princípio tendia a aproximar um pouco mais o pensamento de Marx daquele de anarquistas como Proudhon ou (principalmente) como Bakunin. Contudo, conforme foi amadurecendo sua teoria, Marx foi dando a essa noção de "negação da negação" o sentido de um resultado consideravelmente previsível, que ele passou não apenas a afirmar, mas a afirmar como um destino histórico do qual os praticantes dessa negação não poderiam se desviar sem "trair" uma espécie de missão que teriam de cumprir necessariamente.

Destarte, abandonar a expressão "negação da negação" não afastou tão gravemente os marxistas posteriores do Marx original... apenas se afastaram dele ao trocar a noção de "negação da negação" por interpretações mais suaves do conflito que Marx pretendia descrever com isso. De qualquer modo, bem ou mal, os termos que acabaram se consagrando quando se fala em dialética são "tese", "antítese" e "síntese" — e não "afirmação" ou "o positivo", "negação" ou "o negativo" e "negação da negação", conforme os textos originais de Marx.

Para a imensa maioria dos dialéticos hoje — quase todos herdeiros de Marx ou Hegel — além da "tese" e da "antítese" existe então uma terceira coisa no esquema de pensamento da Dialética: a "síntese" (de sin-tese, as teses em conjunto formando uma coisa só), que em grego antigo queria dizer composição.

Ou seja, uma composição que se forma a partir da tese e da antítese ocorrendo juntas. Primeiro a antítese nasce dentro da tese e se desenvolve junto com ela até se tornar independente e se separar dela; depois as duas são religadas uma com a outra através da síntese. E com isto o esquema de pensamento dos dialéticos está completo:

 

 

esquema básico da dialética

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É dessa maneira que ocorrem, então, as transformações históricas: da oposição entre a tese e a antítese acaba nascendo uma terceira coisa, diferente delas e que de certa maneira "reconecta" as duas em uma só unidade, que é a síntese. Depois disso, a própria síntese acaba funcionando como uma nova tese, ou seja, de dentro dessa síntese que ligou a tese e a antítese, vai nascendo uma outra antítese, que oferece uma resistência crescente contra essa síntese (que agora podemos dizer que é a tese de um novo "ciclo" dialético, porque a partir daí todo o esquema se repete como antes, chegando no final a uma nova síntese, e assim por diante), formando o seguinte esquema:

 

 

 

esquema de ciclos dialéticos

 

Mas segundo certos marxistas, se quisermos nos manter mais próximos de Marx, precisamos talvez entender a "síntese", nesse processo, como o próprio desenvolvimento histórico daquela situação-tese transformando-se em situação-antítese, esse desenvolvimento histórico tomado como um todo.

Por que? Porque caso contrário, tenderemos a pensar na "síntese" como uma combinação da tese com a antítese. Marx não pretendia que o resultado do conflito entre capitalistas e proletários, por exemplo, fosse uma "combinação" ou "composição" dos dois lados: pretendia a completa eliminação da classe capitalista por meio da desapropriação dos meios de produção detidos por ela (essas pessoas deixariam de ser capitalistas). Raciocinava também que no mesmo movimento, por razões óbvias, os assalariados seriam igualmente "eliminados", no sentido de que deixariam de ser assalariados a serviço de capitalistas (já que os capitalistas não existiriam mais).

Mas se tentarmos de fato entender a "síntese" em Marx como sendo o próprio movimento histórico (tomado como um todo) de derrubada dos capitalistas, da situação capitalista sustentada por eles, e da própria situação de assalaridos por parte desses assalariados revolucionários — se entendermos a síntese deste modo, como o conjunto de toda essa transformação, o que seria então a transformação dessa "síntese" em uma nova "tese", como costuma ser colocado pelos dialéticos?

Este é um problema complexo de interpretação da noção de "síntese" em Marx.

O autor destas linhas, neste site, não é marxista, e certamente pode ter deixado escapar muita coisa que seria melhor captada por um especialista em Marx. Não vamos debater a questão aqui. Apontamos apenas um ponto de difícil compreensão para os não-especialistas no pensamento de Marx. Cabe aos especialistas em Marx esclarecerem melhor a questão. Não deixa de ser um excelente exercício para o leigo, no entanto, tentar encontrar uma solução coerente, pesquisando mais cuidadosamente os textos de Marx e o que os marxistas e hegelianos costumam dizer acerca da dialética: fica aqui uma provocação.

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O que é exatamente a síntese dialética?

Como podemos descrever mais claramente e de maneira detalhada essa "religação" ou composição entre tese e antítese, como na maioria dos casos costuma ser entendida a "síntese"?

A discussão em torno do conceito de síntese é muito grande, e os próprios dialéticos não costumam concordar completamente uns com os outros: cada um interpreta a síntese de uma maneira, e isso vai formando grupos diferentes de dialéticos, cada grupo defendendo suas próprias posições. O que será explicado aqui a esse respeito, portanto, é apenas uma idéia geral que se aproxima bastante daquilo com que os dialéticos costumam concordar. Se entrássemos muito nos detalhes da coisa, acabaríamos encontrando muitos pontos de discordância e um grande debate entre eles.

As dificuldades com esse conceito começaram com Hegel, o grande filósofo alemão que, no século XIX, organizou o modo como compreendemos a dialética hoje, redescobrindo e reinterpretando de uma maneira mais atualizada o pensamento de Heráclito. Hegel, e depois dele Marx, são considerados os principais pensadores dialéticos que apareceram desde século XIX, e hoje podemos dizer que a dialética tem duas versões "clássicas" que são as desses dois filósofos, e chamar de dialéticos "ordodoxos" aqueles que procuram seguir à risca alguma dessas duas versões. Mas mesmo nisso, os próprios "ortodoxos" nem sempre chegam a um acordo a respeito de qual é a maneira de seguir Hegel ou Marx mais fielmente.

De qualquer maneira, podemos dizer que todas as outras versões da dialética ou são derivadas dessas duas ou são dialéticas "alternativas" e "heterodoxas", que fogem um pouco ao padrão geral do que se costuma chamar de "dialética".

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Grande parte do problema está no fato de que o próprio Hegel, para explicar a noção de síntese, usou um termo alemão muito ambíguo e que pode ter diferentes interpretações, e usou esse termo misturando ao mesmo tempo todos os sentidos que ele podia ter. Marx, por sua vez, era seguidor de Hegel, e a imensa maioria dos dialéticos segue direta ou indiretamente algum dos dois (Hegel ou Marx), interpretando a síntese da maneira que acham a mais correta. Hegel dizia que a síntese "aufheben" a tese e a antítese.

Para compreendermos resumidamente o problema, a palavra alemã "aufheben" pode querer dizer: a) que a síntese supera a tese e a antítese, e portanto elimina a contradição; b) que ela assimila e conserva as duas opostas uma à outra; ou c) que ela eleva a tese e a antítese para um nível superior.

Para Hegel, a síntese faz tudo isso ao mesmo tempo, o que é bastante difícil de entender, mesmo para a maioria dos dialéticos. E os lógicos, quando topam com essa passagem de Hegel, costumam considerá-la simplesmente absurda, um raciocínio "mal feito", porque é cheio de contradições: como a síntese poderia eliminar a contradição e ao mesmo tempo conservá-la, por exemplo? Além disso "aufheben" é uma palavra difícil de traduzir, e cada um dos diferentes sentidos que ela tem pode ser interpretado de maneiras diferentes de uma tradução para outra.

Karl Popper, por exemplo — importante filósofo da ciência de renome internacional, que se apoia muito no positivismo lógico — costuma escrever contra a dialética fazendo críticas justamente nessa direção. Por outro lado, há considerável incompreensão do raciocínio dialético por parte de Popper, em questões que não apresentam essa ambiguidade, e que são perfeitamente compreensíveis sem grande dificuldade — por exemplo a ideia de que um todo seja algo mais do que a mera soma das suas partes — o que demonstra uma certa má-vontade, injustificável, aliás, por parte desse crítico. É inclusive verificável empiricamente, por exemplo, que o resultado da força de trabalho de "n" trabalhadores atuando juntos pode superar, e muito, a mera soma das forças dispendidas por esses trabalhadores considerados um a um, como muito bem observou o anarquista Proudhon no livro O que é a propriedade? — ainda antes de Marx, e aliás já apoiado nessa observação em um economista anterior, Adam Smith.

Infelizmente, o melhor meio que o autor destas linhas conhece para esclarecer a noção de síntese de maneira bem nítida é apresentar um exemplo de oposição dialética do tipo "fraco", puramente mental — aquela oposição que formamos mentalmente entre duas coisas diferentes que não nascem necessariamente uma como antítese interna à outra, mas que só são antitéticas no nosso pensamento, porque a idéia que fazemos de uma se forma por oposição à idéia que fazemos da outra.

O exemplo é o da relação entre pessoas cuja união forma algo diferente da soma das partes, como no caso de um casal.

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Cada um tem sua própria personalidade, e na relação, suas personalidades estabelecem uma oposição dialética, um é diferente do outro, e manifesta suas características na medida em que o diferenciamos do outro. Mas os dois juntos formam uma unidade — o casal — que também tem suas características próprias, que não são nem as de um dos dois nem as do outro, mas formam o modo como se relacionam por exemplo com outras pessoas enquanto casal.

O casal como um todo forma portanto uma terceira coisa diferente de cada um dos dois, que é a síntese dos dois. O filho deles, desde o momento em que nasce e conforme vai crescendo e se desenvolvendo, vai formando e manifestando uma personalidade própria que está em crescente oposição dialética à personalidade da mãe, à do pai e à do casal como um todo, e com isso forma-se uma rede de oposições dialéticas:

 

Exemplo de dialética com síntese 1: casal

 

 

Este diagramas e o seguinte ficariam mais claros, talvez, se desenhássemos essas linhas de ligação entre Pai e Mãe, Pai e Filho, Mãe e Filho, Filho e Casal, com um "x" no meio de cada uma delas, reprensentando o fato de serem relações de "oposição". Aqui, optamos por desenhar isto de maneira mais simples, e pedir ao leitor que guarde isso em mente: que são relações de oposição no sentido de um "contraste" entre o que está de um lado e o que está do outro.

Do conjunto de toda essa rede de oposições, então, nasce uma síntese que é a "família":

 

 

Exemplo de dialética com síntese 1: família

 

Para os marxistas em geral, oposições como esta entre "marido" e "mulher", conforme já mencionado, costumam ser consideradas oposições dialéticas do tipo "fraco". Por quê? Porque neste exemplo as únicas oposições dialéticas reais, em que a antítese efetivamente parece nascer em alguma medida da própria tese, e não apenas do modo como relacionamos mentalmente tese e antítese usando nossa imaginação, talvez sejam as que surgem com o desenvolvimento do filho. Isso se considerarmos que sua personalidade nasce em grande medida das personalidades dos pais e em oposição a (em contraste com) elas, ou da personalidade do casal pai-mãe como um todo com características próprias.

Desde Marx, as oposições que os marxistas consideram as mais importantes não estão no campo da psicologia, mas no da economia política, são as oposições reais (de tipo "forte") entre a classe trabalhadora e a classe dos que exploram esse trabalho e enriquecem com ele — visto que essa situação de explorados se iniciou com a sua exploração da maioria trabalhadora por parte de uma minoria, que por essa exploração tornou-se a classe exploradora (a dos "capitalistas").

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O que Marx procura nos mostar com sua dialética?

Marx nos mostra de que maneira a revolta com que a classe trabalhadora se opõe à classe exploradora do trabalho nasceu historicamente como antítese do próprio comportamento dessa classe burguesa. A burguesia e o proletariado, juntos, como uma só força, fizeram no século XVIII em todo o mundo uma série de revoluções que acabaram com a monarquia e com o poder da nobreza.

Mas nessa força revolucionária que a princípio era uma só, com interesses e valores claramente burgueses, já havia desde o início uma contradição interna (ou melhor, uma oposição dialética embrionária), que foi "rachando" essa força em duas grandes forças, a da minoria burguesa, que se considerava satisfeita com os resultados do processo revolucionário, e a de sua antítese, a maioria, que foi se caracterizando cada vez mais como a classe trabalhadora.

A força trabalhadora foi se diferenciando cada vez mais da firça burguesa nesse processo, na mesma medida em que a burguesia se mostrava "mais burguesa" e exploradora, ou seja, o desenvolvimento (e enriquecimento) da própria burguesia fez nascer e se desenvolver cada vez mais, de dentro dela, a partir desse "racha", a força oposta dos trabalhadores, ao torná-los cada vez mais pobres e necessitados (e revoltados).

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A síntese dessa oposição dialética real, em sentido "forte", segundo Karl Marx, é (ou parece ser, visto que há divergências na interpretação de Marx por parte de seus segjidores) a própria História como um processo de desenvolvimento que tem um sentido determinado e aponta um fim previsível, sejam quais forem os desvios em relação a esse fim durante o processo. E o fim para o qual o processo histórico aponta e caminha tortuosamente, com dolorosos desvios e lentamente, mas infalivelmente — de forma previsível — seria uma grande revolução econômica. Uma revolução em que, como resultado, não haveria mais a exploração da maioria por uma minoria, e toda a Humanidade se desenvolveria em regime de igualdade.

Portanto, para Marx, o erro de Proudhon estaria em não enxergar a síntese proposta por Hegel — o que no caso significa não enxergar o sentido único e revolucionário para o qual a História caminha, sejam quais forem os desvios provisórios de percurso. Proudhon, por sua vez, recusa assumidamente esse "sentido único" dado de saída como se houvesse alguma "predestinação" histórica apontando para ele. E não só o recusa, como o considera aliás bem menos revolucionário do que algo construído por uma rede de forças que não apontam necessariamente na mesma direção, mas das quais vai surgindo, com um rumo imprevisto, uma direção única resultante. Marx evidentemente não concorda.

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