por João Borba - Maio de 2015
sumário
O pensamento liberal está diretamente e necessariamente conectado ao capitalismo, e seus fundamentos teóricos mais completos foram lançados pela primeira vez por John Locke — que defende a liberdade individual tomando como modelo de liberdade o livre-empreendimento econômico e o direito de enriquecer (acumular capital privadamente, isto é, só para si e para seus familiares) como empresário-fundador, aquele que desenvolveu sua empresa por sua própria iniciativa e esforço. Esse permanece sendo o modelo básico para a concepção da liberdade em todo o arco do pensamento liberal, embora o discurso liberal com frequência faça uma defesa inflamada de outras liberdades individuais.
Essas outras liberdades individuais acabam por ser defendidas também efetivamente pelo liberalismo, não é uma defesa que se limite apenas ao discurso, mas são defendidas na esteira do livre-empreendimento capitalista e seguindo-lhe o modelo, e apenas na medida em que não se contraponham à defesa da livre-iniciativa empresarial.
Entre as liberdades individuais defendidas pelo liberalismo, mais notória e a que mais generaliza seus benefícios é a liberdade de expressão. Mas historicamente, como já mencionado, apesar de um discurso sempre bastante intenso de defesa de todas as liberdades individuais, e de os liberais ultrapassarem o discurso e partirem de fato para a ação, o pensamento liberal por outro lado sempre se mostrou muito mais maleável e menos firme na defesa dessas outras liberdades (como se fossem secundárias) do que na defesa da liberdade de acumulação privada do capital — chegando a promover quase sempre a censura de opiniões que pareçam ameaçar o predomínio liberal-capitalista, e algumas vezes flertando ou formando mesmo alguma firme aliança com governos absolutistas ou totalitários, desde que mantidos o livre-empreendimento e a economia capitalista.
(A ditadura militar no Brasil, por exemplo, teve forte conexão com grande parte dos defensores do liberalismo capitalista, e serviu de apoio a essa linha de posicionamento, bem mais do que de empecilho ao seu desenvolvimento. Foi fundamentalmente uma ditadura capitalista.)
Apesar de todos os seus momentos de "freio" e contenção sempre que sua luta mostrava chances de se radicalizar, essa luta histórica pela liberdade por parte dos defensores do liberalismo não deixou de ter resultados bastante benéficos para essas liberdades que na prática acabavam por se colocadas sempre em segundo plano. Sobretudo na medida em que essa luta foi se desenvolvendo no sentido de uma luta por direitos humanos fundamentais, o que acabou contribuindo sim, em todo o mundo, para a derrubada do predomínio do absolutismo e de sistemas políticos autoritários, especialmente a partir do constitucionalismo, da criação e valorização das Constituições nacionais como instrumentos de defesa desses direitos e de combate a abusos dos detentores do poder.
O maior marco histórico nesse sentido foi sem dúvida a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, cuja primeira versão foi firmada em consequência da Revolução Francesa.
Nas diversas revoluções por maiores liberdades ao redor do mundo, os liberais — que inicialmente costumam ser acompanhados em sua luta por diversos outros setores de posicionamento, como por exemplo socialistas dos mais variados matizes — acabam sempre a certa altura refreando o processo de transformações iniciado, para deterem-se naquilo que lhes parece liberdade suficiente, e passando a combater (com rigor, e às vezes com violência) seus antigos aliados que querem levar a coisa mais longe.
Esses aliados vão a partir daí se opondo cada vez mais ao liberalismo, e assumindo a posição libertária, que é bastante diferente e não pode ser confundida com a posição liberal.
Os defensores do liberalismo que vieram depois de Locke, em gerações que viveram já sob um capitalismo mais firmemente estabelecido, consideram quase sempre a liberdade como uma conquista jurídica das sociedades democráticas capitalistas, um direito conquistado e que precisa ser preservado — e em alguns casos, além disso ampliado pelo desenvolvimento mais completo da democracia e do capitalismo.
O pensamento libertário, pelo contrário, considera a liberdade como uma condição prática de vida que está para além de quaisquer conquistas jurídicas (pois o que está no direito não é necessariamente o que ocorre na prática), e que está para ser conquistada. Mesmo quando reconhece a conquista de alguma liberdade prática, obtida com algum possível apoio do direito, o anarquista tende a considerá-la como exceção a ressaltar a regra, em um regime geral de falsas liberdades e impedimentos muito reais e potentes à prática efetiva de uma vida livre.
O arco das teorias mais completas e profundas, as mais conhecidas e adotadas na defesa do capitalismo, se inicia, conforme já mencionamos, com a teoria política e econômica de John Locke (séc. XVII). Passa depois pela teoria utilitarista de Jeremy Bentham, pela economia de Adam Smith, e chegando até os economistas de uma teoria do valor chamada teoria da utilidade marginal, que são conhecidos como "marginalistas". No campo do direito, as teorias liberais de defesa de princípios do capitalismo são muitas, mas merecem destaque neste sentido dois extremos opostos desenvolvidos na passagem do século XX para o XXI, e que apesar de opostos são ambos ligados ao que se costuma chamar de neocontratualismo (atualizações das antigas teorias contratualistas de Hobbes, Locke e Rousseau).
Esses neocontratualistas em extremos opostos na defesa do liberalismo são John Rawls e Robert Nozick. A teoria de John Rawls propõe um liberalismo com com um perfil mais socialmente benéfico, e por vezes chega a ser considerada (talvez com algum exagero) quase social-democrata. Mas a mais interessante do ponto de vista do entendimento das consequências de Locke é a teoria de Robert Nozick, que se declara "anarquista" (libertário) mas na verdade é um neoliberal radical e (apesar de brilhante) quase caricato, chegando a assustar os próprios liberais em suas vertentes mais moderadas.
Locke fundamenta o liberalismo capitalista defendendo o individualismo, o livre-empreendimento, a propriedade privada dos meios de produção e o direito ao enriquecimento. Os demais pensadores realmente influentes no arco de defesa do liberalismo capitalista de certo modo completam e aprofundam a teoria de Locke, depurada e radicalizada em suas mais límpidas e puras implicações e consequências na teoria jurídica de Nozick.
Bentham defende a mentalidade calculadora e manipuladora típica do liberalismo capitalista: o cálculo e a manipulação dos prazeres, à maneira do consumismo capitalista e do marketing, criando um clima de liberdade para a satisfação dos desejos que, na verdade, tem como limites a vigilância e a repressão. Adam Smith (no século XVIII), apesar de sua interessante teoria da divisão do trabalho, constrói a defensa econômica da livre-concorrência, o que vai se desenvolvendo cada vez mais até os economistas de uma teoria do valor já da passagem do século XIX para o XX, chamada teoria da utilidade marginal.
Os defensores da teoria da utilidade marginal são economistas chamados de "marginalistas", que defendem que o valor dos bens econômicos depende do mercado e está ligado diretamente à utilidade que eles têm para os consumidores, mas não ao trabalho humano que foi dispendido em sua produção (ou seja, defendem que o valor das coisas não depende dos trabalhadores que as produziram). As defesas jurídicas mais claras e fortes do capitalismo, que são as teorias neocontratualistas de Rawls e (principalmente) Nozick — que como vimos retoma e atualiza Locke — vieram depois, já na passagem do século XX para o XXI.