sumário
Os poetas, na antiguidade grega, não eram apenas pessoas que escrevem versos bonitos. Exerciam uma enorme influência religiosa, educacional e política sobre toda a sociedade. O poeta (que era chamado de aedo), o adivinho ou mago (profeta) e o reidejustiça (o sábio) eram pessoas consideradas videntes e inspiradas pelos deuses, capazes de ver o invisível: o passado, o futuro e o reino dos mortos.
Para entendermos corretamente os poemas míticos da antiguidade grega, precisamos entender essa relação diferente da nossa que aquela gente mantinha com a linguagem, quando era utilizada para isto. Aquilo que essas pessoas sagradas falavam era interpretado de muitas maneiras, mas fosse qual fosse a interpretação, os gregos acreditavam que ao falarem, essas pessoas estavam fazendo acontecer magicamente no passado, no futuro ou no reino dos mortos o que elas estavam falando, porque era uma fala inspirada pelos deuses. Os deuses é que faziam acontecer essas coisas através da fala das pessoas sagradas, usando a fala delas como instrumento. Portanto, o que essas pessoas diziam sobre os deuses não eram apenas uma mera maneira de expressar coisas a respeito deles.
Sigamos um pouco do que diz a respeito a professora Marilena Chauí, em Introdução à , Hístória da Filosofîa, dos pré-socráticos a Aristóteles:
O que vê o poeta? o que adivinha o mago? o que faz o rei-de-justiça? A verdade.
Verdade, em grego, é uma palavra que se diz negativamente: a-létheia (em grego, o prefixo a- indica uma negação). Léthe: esquecimento, esquecido. Alétheia: nÄo-esquecimento, não-esquecido, lembrado. A verdade é não esquecer e por isso inseparável da memória, da deusa Mnemosýne, mãe das Musas. O poeta, o adivinho e o rei-de-justiça são os que não esquecem e não deixam os homens esquecer. Capazes de ver o invisível ou o oculto — o poeta vê o passado, o adivinho vê o futuro e o rei-de-justiça vê a ordem do mundo sob as mudanças e sob as lutas dos contrários e dos opostos —, essas três personagens lembram por meio da palavra inspirada pelos deuses. O poeta canta os feitos dos antepassados. O adivinho diz os feitos e os efeitos da ação dos deuses e dos homens. O rei-de-justiça diz ajustiça (díke), isto é, afirma que a ordem do mundo é governada por uma lei boa e justa. A palavra dos três é mágica ou eticaz porque, quando o poeta canta, o assado se faz presente; quando o adivinho anuncia. O futuro se faz presente; quando o rei-de-justiça enuncia a justiça, cria a lei (são como o Deus judaico-cristão que cria as coisas simplesmente dizendo "Faça-se"). Não há distância entre falar e fazer, palavra e ação.
Os deuses e entidades míticas sempre representaram as coisas e as forças que compunham o mundo, a cultura e o espírito humano. As histórias que contavam os relacionamentos entre os deuses representavam o relacionamento entre essas coisas, e assim os gregos procuravam entender como elas nasciam e desapareciam, como elas mudavam ou permaneciam no mesmo estado, e as influências de cada coisa ou de cada força da natureza ou da cultura humana sobre outras coisas e forças.
No poema Teogonia, de Hesiodo, encontramos os primeiros esforços de uma decidida organização racional do modo como os mitos representavam essas influências entre as forças da natureza, ultrapassando muito o que eram meras histórias de deuses e relações entre deuses. Na Teogonia já não temos apenas a imaginação dos gregos a respeito das relações entre as coisas representadas pelos deuses; Hesiodo ruma para uma explicação geral dessas relações que poderia servir para as pessoas fazerem raciocínios a respeito do mundo e dos homens, a partir dessas histórias. A imaginação aparece organizada por linhas de raciocínio muito claras e precisas.
O pensamento mítico consiste em uma forma pela qual um povo explica aspectos essenciais da realidade em que vive: a origem do mundo, o funcionamento da natureza e dos processos naturais e as origens deste povo. bem como seus valores básicos. o mito caracteriza-se sobretudo pelo modo como essas explicações são dadas, ou seja, pelo tipo de discurso que constitui. o próprio termo grego mythos significa um tipo bastante especial de discurso, o discurso fictício ou imaginário, sendo por vezes até mesmo sinônimo de "mentira".
As lendas e narrativas míticas não são produto de um autor ou autores, mas parte da tradição cultural e folclórica de um povo. Sua origem cronológica é indeterminada, e sua forma de transmissão é basicamente oral. O mito é, portanto. essencialmente fruto de uma tradição cultural e não a elaboração de um determinado indivíduo. Mesmo poetas como Homero, com a Ilíada e a Odisséia (séc. IX a.C.) e Hesíodo (séc. Vlll a.C.), com a Teogonía, que são as principais fontes de nosso conhecimento dos mitos gregos, na verdade não são autores desses mitos, mas indivíduos — menos no caso de Homero cuja existência é talvez lendária — que registraram poeticamente lendas recolhidas das tradições dos diversos povos que sucessivamente ocuparam a Grécia desde o período arcaico (cerca de 1500 a.C.).
MARCONDES, Danilo.
Iniciação à história da filosofia: Dos pré-socráticos a Wittgenstein.Rio de Janeiro: Zahar, 2007 - Parte I, Cap. 1, Tópico A.
Não se tem certeza de que tenha efetivamente existido um poeta chamado Homero. Há historiadores que defendem que a própria figura de Homero seja parte da mitologia, e que os mitos teriam sido narrados por muitos diferentes poetas como se tivessem ouvido isso sempre de um mesmo poeta, que chamavam de Homero. Por outro lado, também é possível que tenha existido um Homero, porque o estilo dos textos apresenta coesão como se fossem escritos por uma pessoa só, e a tal ponto que causa estranhamento supor que foram vários autores.
Mas neste caso, provavelmente essa pessoa real, se existiu, a certa altura se tornou lendária e outros passaram a repetir essas histórias usando seu nome. Porque os registros sugerem a presença de algum "Homero" recitando esses mesmos mitos ao longo de aproximadamente uns trezentos anos, e frequentemente em quatro ou cinco pontos diferentes da Grécia ao mesmo tempo.
Já no caso de Hesíodo, o segundo mais famoso aedo grego depois de Homero, tem-se registros concretos e bastante claros de sua existência, e é natural que tenha havido alguma interferência pessoal sua no modo como narra o nascimento dos deuses, que carrega uma coesão de estilo ainda mais sólida e personalizada.
O raciocínio com o qual Hesíodo explica o aparecimento dos deuses envolve ora a combinação, ora a oposição de duas diferentes maneiras pelas quais um deus poderia nascer: a partir da união de características de seus pais divinos, ou "brotando" de um único deus, a partir de características desse deus que se separariam dele para formar o novo deus recém-nascido. O modo de nascimento de um deus afetaria sua personalidade e determinaria em grande parte seu papel e seu posicionamento nas relações tensas e instáveis entre os deuses. Há nisso toda uma linha de raciocínio que em alguns aspectos lembra o que mais tarde passamos a chamar de "dialética".
Entretanto os historiadores tendem a considerar, ainda assim, que a racionalidade com a qual Hesíodo organiza os mitos em seus poemas não é uma pura "criação" dele, e sim a expressão mais avançada de uma nova tendência da época, no modo como eram narrados os mitos pelos poetas em geral. Os costumes folclóricos dessa época tendiam a utilizar uma estrutura mais racional e explicativa, servindo melhor para a compreensão das coisas.
Note-se que Hesíodo, apesar de sua enorme fama nesse sentido, não é único aedo da época a escrever uma teogonia, isto é, um livro narrando o processo de nascimento dos deuses, nem o único a fazer isto de maneira mais racional, procurando dar um sentido de algum modo lógico a esse processo de nascimento dos deuses — que afinal, é também o processo de nascimento das coisas naturais ligadas a esses deuses, e portanto, uma explicação sobre elas a partir de um esforço de compreensão do modo como se originaram.
É de se notar nesse sentido, por exemplo, o trabalho de aedos bem menos conhecidos e estudados mas também extremamente interessantes. Por exemplo Ferécides — que constrói uma metáfora representando o surgimento de tudo no mundo a partir dos detalhes de um casamento entre Zeus e uma deusa, com o mundo material sendo tecido por ele como um vestido com o qual presenteia a esposa.
Durante o desenrolar da história, Zeus e outros deuses considerados primordiais vão assumindo diferentes funções e papéis conforme se prepara o evento, e ao assumirem essas diferentes funções e papéis, vão se transformando provisoriamente em outros deuses, de modo que as divindades vão se explicando como funções diversas que podem ser assumidas pelos deuses iniciais, funções que operam uma transformação neles quando as desempenham. Os deuses, então, seriam transformações uns dos outros, surgindo todos a partir de alguns poucos deuses primordiais.
Outro caso que poderia ser apontado como exemplo é o do fascinante Alcmán de Esparta.
Para ele os deuses e toda a realidade vão surgindo a partir de um oceano original especialmente denso e brilhante (como uma pasta de metal derretido) que vai sendo fendido pelo deslizar de uma deusa líquida através dele. Essa deusa é movida pelos traços que a caracterizam, de modo que não poderia deixar de fazer isso e do exato modo como faz: ela é o próprio movimento de ir deslizando e abrindo essas essas fendas com o seu corpo de água na pasta primordial.
A deusa de corpo líquido vai recortando e modelando nessa pasta mais densa e brilhante figuras das coisas e dos deuses. As figuras dos deuses vão tomando ação nessa modelagem da pasta em conjunto com ela conforme as características intrínsecas que descrevem a "forma" de cada um desses deuses, após ter "nascido", ou melhor, após ter "tomado forma". Nessa espécie de trabalho combinado de moldagem e alto relevo em uma pasta densa brilhante (que nos faz lembrar metal derretido), as ações dos deuse vão sendo todas logicamente desencadeadas por aquela primeira deusa líquida, e parece haver um certo sentido de "solidificação" na tomada de forma dos deuses e das coisas que vão sendo criadas, quando suas formas se completam.
Sabe-se que na guerra os gregos apreciavam em geral o uso de escudos com símbolos figuras em relevo, e que os espartanos, conterrâneos de Alcmán, eram um povo guerreiro por tradição. Estaria Alcmán comparando a origem do mundo e dos deuses à modelagem de um escudo de guerra espartano? Sua interpretação da origem dos deuses e das coisas naturais parece sugerir algo como a referência a um possível método antigo de modelagem de figuras na superfície de metais por meio da fundição e de água fria escorrendo sobre o metal fundido. Seria preciso investigar algo do gênero realmente existia na época.
Mas isto é apenas especulação de minha parte. Não há como afirmar qualquer coisa com certeza nessa direção. Em Alcmán, na verdade, não há nem mesmo uma referência realmente clara e decisiva a essa pasta primordial como sendo de fato um metal derretido... é apenas uma imagem que tende a ser evocada indiretamente em nós pela sua descrição dessa "pasta".
Nem por isto a teogonia racional de Alcmán, tão pouco estudada e conhecida, deixa de ser fascinante.
Conforme se desenvolviam os estudos especializados em mitologia grega e os estudos comparados de mitologia e filosofia, desenvolviam-se também, paralelamente, os estudos de antropologia sobre a cultura religiosa de diferentes povos indígenas no mundo, no passado e no presente, e estudos sobre a história das religiões e a religião comparada, que também muitas vezes se concentravam especificamente nas histórias e lendas do imaginário que acompanha as mais diversas religiões.
Os estudos nesses dois campos (antropologia cultural e história das religiões) foram interagindo uns com os outros e estabelecendo um diálogo muito proveitoso, e a partir daí não tardou a surgir a observação evidente de que o destaque dado à mitologia grega, em função de seu contraste com a filosofia ocidental nascida no mesmo povo, não tornava o imaginário religioso desse povo, nas suas lendas e narrativas míticas, tão diferente do que se encontra em outros povos ao longo da história.
Pelo contrário, a investigação do assunto levou especialistas em mitologia grega a um diálogo cada vez mais intensificado e proveitoso com os estudiosos dessas outras áreas. A psicologia junguiana, que correu paralelamente nessa direção, também tem participado cada vez mais desse mesmo diálogo transdisciplinar, do qual tem emergido uma espécie de estudo comparado das lendas e mitos nos mais diversos povos.
Os estudos de cada uma dessas disciplinas, trazendo informações diversificadas sobre o imaginário coletivo de diferentes povos do passado e do presente, tem contribuído cada vez mais para uma melhor compreensão da antiga mitologia grega, ao mesmo tempo que, por outro lado, a noção de "mito" — essa palavra de origem grega — foi se tornando uma espécie de conceito padrão de uso mais generalizado.
Passou-se a usar a noção grega de "mito" para a compreensão desse imaginário coletivo que, em toda a sua diversidade, no entanto mostra sempre aspectos similares em todos os povos estudados das mais variadas écocas e lugares. Destarte se passou a falar em "mitologia" ou "pensamento mítico" (ou ainda "mágico-mitológico") em referência não especificamente aos gregos antigos, mas a esse modo de manifestação artístico (frequentemente poético) e folclórico do pensamento e do imaginário coletivo dos mais variados povos.
Compreende-se hoje que o mito, às vezes mais coerente às vezes menos, exprime de qualquer modo uma certa concepção de mundo que serve de pano de fundo à vida de um povo. Compreende-se também que o mito costuma surgir conectado a crenças e valores religiosos, mas nem sempre, e que portanto não está necessariamente conectado a isso.
Sabe-se que muitas vezes, por exemplo, o mito nasce como expressão imaginosa, artística ou pelo menos poética ou metafórica, de crenças e valores religiosos; mas com o tempo vai se desconectando da religiosidade e se torna mais próximo da literatura ou do folclore.
Sabe-se também que costuma haver uma forte conexão entre o pensamento mítico e o cultivo de rituais que, sagrados ou não, se mostram conectados ao mito, e há autores que consideram que essa conexão entre o mito e o ritual é uma conexão de oposição, de modo que o cultivo de rituais tende a retirar a força e a influência dos mitos. Outros autores pensam quase o contrário: que os rituais e os mitos alimentam uns aos outros.
Essa discussão envolve também a da legitimidade ou não de se considerar essas crenças e valores espirituais ligados ao mito como "crenças" efetivamente, ou como algo efetivamente "religioso", porque o pensamento mítico, na verdade, coloca a crença em uma espécie de estado de suspensão para os envolvidos, de modo que eles oscilam livremente entre o sentimento de crença e um sentimento lúdico do que poderia ser descrito, talvez, como uma "fé poética", um "faz de conta que acredito".
Também há uma discussão em torno da questão do elemento "magia", pois a magia implica uma intenção de agir sobre o mundo ou a vida, que nem sempre está presente nos mitos, de modo que há muitas divergências a respeito. Alguns consideram o pensamento mágico mais ligado à ritualística, outros o consideram mais ligado ao imaginário mítico, outros ainda o consideram ligado a ambos, e há uma minoria que considera o pensamento mágico algo inteiramente distinto tanto do pensamento mítico quanto das práticas ritualísticas, e às vezes até desconectado deles.
Quando não se chega ao extremo mais incomum de pensar numa desconexão total entre magia e essas outras coisas, pode-se discutir ainda, neste caso, em que grau o pensamento mágico seria efetivamente distinto e diferenciável de tudo isso.
De qualquer modo, perceba-se que o estudo da poesia mítica pré-filosófica grega se encontra hoje conectado ao estudo de outros fenômenos similares em outras culturas e épocas, inclusive na cultura de povos indígenas atualmente existentes.
Em suma, como se vê, que há em tudo isso um vasto e interessante campo de debates.
Mas o que se costuma chamar especificamente de poesia mítica "pré-filosófica" continua sendo aquela poesia mítica grega da qual emergiu a filosofia. Alguns preferem chamar de "pré-filosóficas" especificamente as teogonias racionais como as de Hesíodo, Ferécides ou Alcmán, justamente por já apontarem na direção do pensamento racional sobre as coisas. Outros preferem usar o expressão "pré-filosóficas" para todas as mitologias gregas de antes da filosofia, e e chamar de "proto-filosóficas" as tais teogonias racionais. O que mudou nos últimos tempos foi o campo de informações disponíveis para a reflexão a respeito: tornou-se demasiado estreito ficar apenas no estudo delas, sem buscar referências complementares no estudo mais amplo do pensamento mitológico promovido pelo diálogo que inclui história das religiões, antropologia etc.