Imaginário e Imaginação

Imagem representativa para Imaginário e Imaginação

Definindo Imaginário e Imaginação

Referências filosóficas para uma definição:
Castoriadis, Platão, Kant, Flusser e outros.

Segundo Cornélius Castoriadis (em Instituição imaginária da sociedade) a imaginação é uma capacidade criadora, que produz algo do nada, e o imaginário é a imaginação coletiva, social, em ação, produzindo basicamente instituições. Castoriadis utiliza a noção de imaginação para fazer a crítica de uma perspectiva que considera o novo apenas como produto do possível, e portanto como algo limitado a condições pré-existentes. Isso mostra um potencial libertador dessas noções, de imaginário e imaginação, que Castoriadis pretende aproveitar em sua teoria. Existe então no que chamamos de "imaginação" uma certa ruptura de limites, um certo elemento transgressor que se ajusta bem aos espíritos rebeldes.

As referências mais clássicas examinam a imaginação do ponto de vista do conhecimento, e nesse campo Platão, em sentido bem diverso daquele de Castoriadis, desqualifica a imaginação considerando-a fundamentalmente como uma fonte de ilusões e de erros. Essa imagem negativa da imaginação marcou profundamente a história da filosofia influenciando direta ou indiretamente os mais variados pensadores. Mas alguns escaparam à regra. Neste mesmo quadro de registros mais clássicos do assunto na história da filosofia, por exemplo, Kant, mais ponderado, considera a imaginação como uma faculdade mental que, como qualquer outra, pode nos conduzir a erro se for mal utilizada, mas possui também o seu uso adequado e correto, pelo qual se pode tirar bom proveito dela.

Para Kant a imaginação tem na verdade pelo menos dois usos proveitosos. Um deles se dá quando ela se aplica a conceitos e categorias abstratos do entendimento, produzindo esquemas que transcendem o limite das sensações físicas, e que se podem entender como diagramas, disposições abstratamente espacializadas como que bidimencionalmente, úteis para a captação de uma multiplicidade de conceitos e suas inter-relações em um todo, sincronicamente de uma vez só (tal como podemos captar os componentes de uma imagem).

A imagem mental de um triângulo corresponderia talvez a um esquema desses. O triângulo não é a imagem em si: ele é um conceito matemático formado pela composição de outros conceitos (como o de "ângulo" por exemplo, e o de "segmento de reta"), a imagem do triângulo é apenas um esquema visual que representa o conceito de triângulo mentalmente, ou desenhado em alguma superfície.

Outro desses usos se dá quando a imaginação se aplica às sensações físicas distorcendo-as e/ou recombinando-as de maneiras diferentes na mente humana, e assim produzindo imagens que não correspondem a nada de real, mas que podem ser úteis na poesia e na arte em geral. Por exemplo a imagem de um cavalo galopando, recortada do seu contexto pela imaginação, sobreposta por ela à imagem de um céu com nuvens, e acrescentada das asas de um pássaro, asas aumentadas para se tornarem proporcionais ao cavalo... e deste modo a imaginação produz a figura mítica de Pégasus, o cavalo alado.

Essas considerações de Kant chamam a atenção para dois elementos característicos da imaginação: ela produz imagens ou pelo menos produz algo dotado de certas características típicas de uma imagem, como a presença de uma composicão de elementos que se apresentam sincronicamente, todos ao mesmo tempo.

Vilém Flusser, avançando mais nessa relação entre imaginação e imagem, considera a imaginação basicamente como uma capacidade de codificar e decodificar imagens. Ele situa a produção de imagens nessa ação de codificá-las. Produz-se uma imagem codificando-a. Compreende-se uma imagem decodificando-a. Flusser, deste modo, insere a imagem no contexto geral das diferentes formas de linguagem — pois define a linguagem como signos codificados, ou mais precisamente em processo constante de codificação e decodificação. Em suma Flusser ressalta o fato evidente, mas tão poucas vezes observado realmente a fundo pelos filósofos, de que há uma íntima conexão entre imaginação e imagem, e portanto entre imaginação e comunicação — visto que a imagem é firmemente e até incontornavelmente caracterizável como uma forma (voluntária ou não) de comunicação, uma das maneiras pelas quais as coisas se comunicam com o ser humano (ou o ser humano entra em comunicação com elas).

A codificação linguística articula elementos sígnicos por meio de normas ou padrões de conexão entre eles. O filósofo Pierre-Joseph Proudhon, uma referência indireta mas forte aqui, levava isto para além do campo linguístico: considerava todas as coisas como composições de elementos articulados internamente, e também externamente sob a forma de um contexto ao qual cada coisa está integrada em cada momento. Cada coisa sofrendo alterações quando se altera esse contexto ou quando se altera essa composição interna.

Outra referência indireta presente aqui é um psicólogo chamado Jordan B. Peterson, autor do livro Mapas do significado: A arquitetura da crença. Trata-se de um autor que apresenta um posicionamento decididamente simpático em relação à imaginação, ao imaginário e ao mítico, e particularmente interessante. Segundo Peterson o pensamento mítico — um pensamento realizado por meio de imagens — não isola o seu carater representativo (de re-apresentação de uma referência) do seu caráter prático, de mapeamento (inclusive emocional) para orientar as decisões e ações. Isto relembra de certo modo as colocações de Kant acerca da imaginação produtora de esquemas conceituais — pois um esquema é, de certo modo, um mapa de orientação quanto às relações entre os conceitos ali presentes, para podermos lidar melhor com eles (embora o exemplo do triângulo escolhido por mim quando apresentei a coisa seja bem menos esclarecedor nesse sentido do que seria, por exemplo, um diagrama utilizado em uma apresentação feita por um palestrante ou professor em um auditório).

 

Experimentando definir imaginação e imaginário

Colocadas estas referências iniciais é possível construir uma nossa definição aqui para imaginação — uma definição de responsabilidade do autor desta enciclopédia.

1. Diremos então, flusserianamente, que a imaginação é a capacidade de codificar e decodificar imagens, que podem ser mentais ou extramentais — e neste último caso, inscritas em algum suporte material e/ou energético (como tinturas numa folha de papel ou luzes numa tela).

2. Codificar uma imagem é construí-la (produzi-la) e constextualizá-la de modo a torná-la significativa. Envolve articular elementos de composição dessa imagem e elementos de composição de seu contexto segundo critérios ou regras que tornam tais composições significativas.

3. A imagem é significativa quando tem (como diria G. Frege) referência e sentido, isto é, quando representa algo (re-apresenta de outro modo, por meio de um signo) e (fugindo agora de Frege) quando além disso mapeia um campo de ação a partir do representado — sendo justamente a ação aquilo que é dotado de sentido, aquilo que traz sentido à representação.

(A referência mais imediata aqui é Peterson, mas por detrás dele e mais profundamente há uma outra referência, tomada mais a fundo apesar de aparecer aqui mais indiretamente: é a psicologia topológica de Kurt Lewin, por meio da qual é possível fazer coincidir a noção popular e a noção linguística de sentido com a noção físico-matemática, da qual se fala quando se examinam vetores).

A imagem, ao mapear, orienta (dá sentido a) possíveis ações. E a presença dessas possíveis ações recheia o mapa de sentidos. Uma coisa dá sentido a outra e vice-versa. O mapa dá sentido a cada uma das possíveis ações que orienta e essas ações reciprocamente dão sentidos a ele.

4. A referência representada pela imagem é apresentada por ela como uma situação a ser mantida ou superada, ou que é indiferente manter ou superar... mas de todo modo, como uma situação em relação à qual se decide como agir. Ou a imagem pode representar a situação já alterada, mostrando como ela deveria ser segundo uma decisão já tomada. Ou ainda a imagem pode representar os meios para a alteração de uma situação. Ou pode representar uma combinação dessas coisas.

De qualquer maneira, por detrás de uma representação imaginária — aproximando-nos aqui de Jordam Peterson — há sempre o esquema "situação -> meios de alteração -> situação alterada", e a representação imaginária representa uma dessas três partes do esquema ou uma combinação delas. (Peterson diz isso especificamente das representações míticas. Aqui, sem nos afastarmos muito dele, estamos ampliando o esquema para qualquer representação imaginária.)

5. Afirmaremos aqui que a imaginação é criadora precisamente por sua participação nesse esquema, que é na verdade o próprio esquema do procedimento de qualquer ação criadora. Onde Castoriadis, fazendo a crítica da criação limitada que se faz a partir de um quadro de possibilidades pré-existente, acaba recorrendo a uma criação ex-nihilo (a partir do nada), pensamos aqui na criação como processo — que exige não necessariamente possibilidades pré-existentes mas sim meios para sua realização, seja qual for o ritmo desse processo de realização, rápido e revolucionário ou lento.

Não há aqui qualquer implicação no sentido de que esses meios sejam por sua vez pré-existentes: eles podem ser produzidos em conjunto com aquilo que produzem — diferentes coisas podem ir produzindo umas às outras simultaneamente: no caso, falamos de meios e fins conjugados e simultâneos produzindo mutuamente uns aos outros.

 Com base nessa definição de imaginação, podemos definir mais rápida e facilmente o imaginário.

O imaginário é um repertório vivo de imagens significativas — vivo no sentido de que está sob ação constante da imaginação, que vai codificando ou decodificando (desconstruindo para tornar compreensíveis) essas imagens.

Note-se que o processo de compreensão — seguimos aqui a trilha de Flusser — é então um processo de desconstrução, pelo qual se vai captando a composição da imagem e de seu contexto em todos os elementos componentes e suas interações, uma a uma.

Segundo Flusser, o processo de decodificação da imagem exige não só imaginação, utilizada em sentido invertido, mas também sua combinação com pensamento conceitual, textual, hitórico-processual... ou resumindo tudo isso numa só expressão, pensamento diacrônico, que vai percorrendo a imagem e traçando nela um caminho, pelo qual vai alinhando as partes dessa imagem em uma linguagem de outro tipo (linguagem textual).

 

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