Esta seção se dedica à construção (ou ao esforço de compreensão, porque ambas as coisas vêm juntas e pode-se dizer que são duas faces de uma coisa só) de um modo de raciocinar que me é próprio, e que já há muito tempo vem tomando forma em meus pensamentos, na contraface da lógica clássica — o que quer dizer em contraposição a ela e ao mesmo tempo tomando-a, por isso mesmo, como uma base e referência importante... embora não a única.
O que está considerado aqui como "lógica clássica"? É aquela lógica criada por Aristóteles alguns séculos antes de Cristo, da qual sempre lembramos o famoso silogismo "Se todo homem é mortal, e Sócrates é homem, então Sócrates é mortal"?... — Não exatamente. O que estou considerando como "lógica clássica" é, por assim dizer, a versão moderna e matemática disto, que se desenvolveu a partir do século XIX; aquela que costuma ser chamada de Lógica Matemática, e que se apoia na teoria dos conjuntos.
Chamo de "lógica clássica", aqui, o conjunto formado pelo que se chama lógica elementar matemática de primeira ordem e por outras lógicas complementares a esta ou aproximadas, e que derivam dos mesmos princípios básicos.
Uma excelente introdução didática à lógica elementar matemática de primeira ordem escrita por Benson Mates — introdução que pretendo tomar como um de meus guias nesta empreitada — se inicia definindo essa lógica assim:
Lógica elementar, tecnicamente falando, é a parte da lógica simbólica, ou matemática, em que as noções de "todo" e "alguns" aplicam-se apenas a indivíduos e não a classes ou atributos de indivíduos. É a parte melhor apresentada e a mais simples, permitindo ampla variedade de aplicações não triviais.
MATES, Benson. Lógica elementar.
São Paulo: Cia.Editora Nacional, 1968, p. XI, Prefácio.
Entre meus primeiros questionamentos o leitor encontrará a crítica a uma certa atitude típica de parte considerável da comunidade dos lógicos matemáticos — e mais adiante haverá ocasião para demonstrar que essa atitude infeliz é também, infelizmente, coerente, e em certa medida logicamente decorrente, de certos princípios internos ao funcionamento mesmo da lógica, como algo tendencialmente inscrito nela, em seu programa intrínseco de desenvolvimento (para utilizarmos uma noção flusseriana).
Também encontrará uma crítica à própria noção de elementos (o que Mates chama também de "indivíduos") tal como utilizada por essa lógica, e uma proposta alternativa radicalmente diversa, posto que considero tal noção logicamente insustentável.
Encontrará também uma crítica (e uma proposta alternativa radicalmente diversa) à noção de conjunto tal como utilizada pela lógica matemática — que serve de fundamento a isto que Mates nos descreve como "classes ou atributos de indivíduos".
Encontrará algumas críticas ao modo como a lógica se utiliza da matemática, e inclusive ao próprio empenho de aferrar-se à matemática... no entanto, o leitor me verá valorizar muito o que chamo de princípio de formalização, expressão bem familiar aos lógicos, e esse princípio, tal como os lógicos o entendem, constitui justamente grande parte do que leva a lógica a aferrar-se à matemática. Essa noção de formalização assumirá aqui, entretanto, uma função inteiramente diferente — embora permaneça em larga medida (mas não completamente, como se verá) bem próxima do que os lógicos chamam de formalização.
O leitor encontrará, finalmente, alguma discussão de minha parte em torno do conceito de trivialidade, que tem considerável importância para os lógicos (o trivial segundo eles deve ser evitado, mas para entendermos por que é preciso entender o que eles entendem por "trivial", pois não dão a essa expressão o sentido trivial). Aqui, curiosamente, não chego a discordar muito dos lógicos...
O leitor não deve esperar de modo algum uma espécie de tratado ou compêndio crítico. O que encontrará aqui são apenas notas, críticas soltas e reflexões sobre tópicos de lógica, sem uma sequência necessariamente coerente, pois estamos na verdade em uma subseção da seção Notas pessoais, e é disso que se trata — apenas anotações pessoais sobre o assunto, que venho desenvolvendo irregularmente e assistematicamente há décadas em meus cadernos de rascunhos. Na verdade encontrará inclusive alguma dose de brincadeira e bom humor em meio a essas discussões lógicas.
Entretanto, pretendo desenvolver estas notas em diálogo próximo (e "sério") com textos sobre lógica, caminhando bastante rente a eles em muitos momentos, e usando sempre que possível uma linguagem bastante didática, de modo que seguindo essas notas o leitor poderá sim aprender também algo sobre a lógica clássica aqui combatida, conforme vá tomando ciência paralelamente (e com muito maior detalhamento) de minhas próprias ideias a esse respeito — que são o assunto central nesta seção. Mas pode ser que em alguns momentos o leitor se depare com um texto um pouco difícil demais, que exige certos conhecimentos prévios de lógica ou de filosofia. Vou tentar evitar isso, mas nem sempre será possível.
Em suma, a rigor não é uma seção escrita para lógicos, e sim para leigos com algum pequeno conhecimento prévio e interessados no assunto — mas também com alguma atenção para com os leigos completos, aqueles que não conhecem nada de lógica ou filosofia. E trará inclusive muitas divagações que ultrapassam o campo da lógica nas mais variadas direções, mesmo para o aquele que acaso tenha uma visão muito aberta da lógica. Não obstante, espero que possa também interessar lógicos de mente aberta (isto muito me honraria), como uma espécie de filosofia do raciocínio (não direi filosofia da lógica) de algum modo aparentada à filosofia da lógica.
Questões pura e estritamente lógicas, como se vê, não serão nem de longe a tônica dominante. O que será desenvolvido aqui, prefiro então não chamar de "lógica", mas o fato é que não consegui ainda, nas últimas décadas pensando no assunto, fixar um nome adequado. Já pensei em paralógica ou até antilógica... enfim, um dia terei alguma boa ideia para um nome, quem sabe...
São ideias muito intimamente relacionadas a um posicionamento filosófico que tenho chamado (firmemente) já há muito tempo de ludoplastia, e não é de todo impossível que acabe simplesmente fundindo uma coisa com a outra, e adotando esse nome, pois se trata de uma linguagem artificial formal que venho elaborando para esse meu modo de pensar (a ludoplastia). Em meus rascunhos, tenho chamado isto provisoriamente de linguagem ludoplástica ou paralógica ludoplástica — mas ora, danem-se os nomes! Basta saber que é o modelo de raciocínio formal (ou semiformal) que acompanha minha filosofia ludoplástica, como a tenho chamado.
Espero que o leitor possa tirar bom proveito.
por João Borba, em Abril de 2013
O modo de raciocinar que irá sendo levantado aqui pretende partir de um questionamento consideravelmente radical de grande parte dos princípios básicos da lógica clássica matemática — e corre o risco de ser considerado "tolice" pelos lógicos tradicionais, de inclusive sequer ser considerado digno de debate (coisa que, por sinceridade, devo reconhecer que não me desperta absolutamente o menor interesse, porque há outros campos de debate seguramente mais férteis para isso).
Há nessa área, nos tempos atuais (séculos XX e XXI) uma propensão ao afastamento da filosofia, com toda a sua perpectiva abrangente, no sentido da fundação de uma ciência. Isto é, rumo à solidificação cada vez maior da condição da lógica como uma especialidade que se limita a um campo estrito de questões, recusando cada vez mais quaisquer interferências externas a esse campo. Combinada a um certo espírito corporativista — consideravelmente alastrado, embora (talvez por otimismo meu) me pareça não atingir maioria dos lógicos — essa propensão tende a conduzir à recusa sumária de qualquer livre reflexão nesse campo, o que significa a recusa do debate (também característico da filosofia).
Por isto, fazendo o que faço, para assumir a posição correta no contexto atual da comunidade dos lógicos, devo declarar-me fora do campo da lógica, como um não-membro dessa comunidade, como um assumido diletante leigo — que inclusive não pretende (aliás, nem mesmo aceitaria) ser considerado um membro de tal comunidade — declaração com a qual não pretendo ser ofensivo, mas apenas demarcar claramente meus particulares campos de interesse em filosofia, porque apesar de minha paixão pelo debate, não pretendo me aprofundar em debates nessa comunidade.
A vida é curta, e nela pretendo me dedicar àquilo de que realmente gosto. A lógica não é nem longinquamente uma de minhas paixões, (na verdade é um campo de discussão que inclusive me desagrada... questão de gosto pessoal). Aliás, na hipótese arrogante e seguramente implausível de que lógicos venham algum dia a se interessar por aprofundar algum debate em torno das ideias que vou esboçar aqui, ficaria honrado e orgulhoso em orientar algum possível colaborador que gostasse do assunto a avançar nessa direção em meu lugar, desenvolvendo suas próprias ideias a partir das minhas... porque fazer isso pessoalmente... hummpf! Não me agrada, porque realmente é uma área em que não sinto gosto de trabalhar.
A situação é mais ou menos similar à da mitologia, assunto que me apaixona a ponto de considerar-me um "mitólogo", mas que lastimavelmente envolve (felizmente a meu ver de maneira não de todo incontornável ou insuprimível) um outro tema para mim extremamente desagradável, do qual procuro por todos os meios me afastar — porque tende a "grudar" em quem estuda o pensamento mitológico de modo bastante incômodo: o tema do sagrado e da religião, cuja importância fundamental no que diz respeito a esse assunto é preciso reconhecer, para meu profundo desgosto.
Meu caminho para o pensamento mitológico foi uma combinação de reflexões sobre o lúdico (a partir de Huizinga e Flusser), sobre a fantasia humana e sobre a política (notadamente a partir de Castoriadis)... e esse eixo fundamental não vai se deslocar para o campo do sagrado e do religioso, por mais que precise esbarrar sim constantemente nesses assuntos e reconhecer-lhes a importância nos estudos de mitologia. Magia vá lá, o assunto me desperta a curiosidade e até me agrada um tanto, na precisa medida em que não se misture à questão do sagrado... o que infelizmente é difícil. Para mim é curiosidade divertida (por isso mesmo valorosa), e só.
Alguém poderia ironizar, neste momento, que ao recusar o sagrado acabo de me desqualificar como mitólogo. Tolice. Acho que já tenho maturidade suficiente para compreender a necessidade de certos pequenos sacrifícios para a obtenção de um prazer maior. Confundir meu desgosto pelo estudo do sagrado com alguma inaptidão para o estudo aprofundado do pensamento mítico seria algo equivalente a julgar um sujeito nazista um pelo simples fato de ele se dedicar a estudar o nazismo, ou julgá-lo incompetente nesses estudos por não ser nazista ou se sentir desgostoso com o que descobre estudando o nazismo.
Também não se queira ver nessa minha busca de prazer, e nesse meu "cálculo" dos peguenos desgostos aceitáveis em vista de um prazer maior, alguma postuta utilitarista benthamiana. Tolice do mesmo modo. Não estou propondo este modo de vida para ninguém, é o meu modo de vida, exclusivamente, e aliás, parte dele, pois minha vida não se reduz a isso. Estou descrevendo apenas aquilo que se entende por um tratamento maduro das nossas próprias emoções, e não o utilitarismo de Bentham.
Um desvio de meus estudos para o eixo do sagrado, hipoteticamente, significaria corromper um projeto de vida e de desenvolvimento intelectual cuidadosa e carinhosamente construído e cultivado desde a minha adolescência, que dá sentido à minha vida e que visa sobretudo o prazer (que absolutamente não encontro — nem procuro ou pretendo procurar — no estudo sobre assuntos sacros ou religiosos). Significaria acima de tudo transformar o feliz João Borba num sujeito profundamente infeliz. E não tenho a menor intenção de deixar os debates que me arrastam nesta vida para cá ou para lá me levarem a isso.
Os lógicos teriam talvez um pouco mais de razão concluindo que neste texto sobre lógica eu de saída me desqualifiquei como lógico. É inclusive uma das razões pelas quais não pretendo me qualificar como lógico. E um lógico não me desqualificaria por "não gostar" da lógica matemática, e sim por fugir quase completamente do campo demarcado pelos lógicos para essa disciplina, o que é uma crítica mais do que razoável. O que pretendo entre outras coisas é questionar os excessos de rigidez nessa demarcação.
Mas quanto ao sagrado e à religião, a coisa é na verdade um pouco pior do que ocorre quando falo do desprazer que sinto quando me meto demais com a lógica, porque se a comunidade dos lógicos tende a rejeitar o debate do tipo de coisas que tenho a dizer nesta direção, isto absolutamente não é importante para mim, exceto pelo fato de que considero em geral importante o debate, e perigosa a sua ausência... Mas no caso da mitologia, a comunidade dos estudiosos do sagrado e da religião tem exatamente a tendência contrária: a de arrastar para o seu campo todo e qualquer estudioso que esbarre em temas afins.
Esse arraste para os debates sobre o sacro e o religioso seria bom se fosse um campo de debates capaz de reconhecer suas limitações e colocar-se ao lado, não acima de outros debates, o que nem sempre ocorre (aliás quase nunca), e se fosse um campo capaz de levar seus debates até mais fundo efetivamente como debates. Mas infelizmente, é um campo cujo fundo do fundo é a própria negação do debate, um campo em que todo debate tende, em outras palavras, à sua própria morte em um sumidouro sem fundo chamado "fé" (no meu entendimento, uma espécie de doença congênita da humanidade, da qual também não estou livre, visto que acredito por exemplo no chão sob os meus pés), que parece pretender absorver tudo ao seu redor como um buraco negro.
Certamente serei criticado por "fugir de debates quando o assunto é religião": não fujo, combato através da fuga, e é um combate que travo para mim mesmo, em nome de minha felicidade pessoal, e não para a humanidade ou o mundo ou por alguma espécie qualquer de dever. Esse tipo de arraste para o debate em campos de extermínio da própria essência do que é um debate ou oara campos completamente alheios ao interesse do debatedor é, justamente, um dos meios pelos quais as instituições e coletividades subjugam e assassinam a vitalidade dos intelectuais. A armadilha já foi clara suficientemente denunciada e não sou eu que vou cair nessa. (Leiam-se Stirner e Nietzsche, por exemplo.)
Já neste caso, portanto, não sinto interesse nenhum em me associar a pessoas que queiram desenvolver meu pensamento especificamente nessa direção, a não ser que compreendam e aceitem minha formulação da fé como doença, e que sejam capazes de fazê-lo sem fanatismo... pois para ser sincero, não vejo muita distância entre a fé e essa intensificação da mesma doença, exceto pelo fato de que no fanatismo se torna isuportável a conviência com o que, na simples fé, era apenas desagradável ou incômodo, ou podia passar despercebido (como a fé em um chão debaixo dos pés costuma passar despercebida, por exemplo).
Pode parecer bizarro para um lógico que eu faça aqui, ao iniciar uma seção que toma a lógica matemática por referência, um desvio tão intenso por um campo sem nenhuma conexão com este, como o da fé e do sagrado... pois é: acontece que parte do meu desgosto em relação à logica matemática vem precisamente de uma atitude detectável em muitos lógicos que, a meu ver, não é assim tão distante disto que descrevi como uma "doença"... se o fanatismo intensifica a doença passionalmente, há quem a intensifique de maneira tão discreta que sequer se dá conta disso... porque a intensifica pela indiferença passional.
Como referência a essa postura a meu ver deplorável (e que felizmente não pode ser generalizada) que tantas vezes encontro entre os lógicos, sugiro por exemplo a leitura do excelente A lógica condenada, de Júlio Cabrera (São Paulo: Hucitec, 1987). O filósofo se propõe a reconstituir o que seria a lógica desenvolvida por Leibnitz (séc. XVII-XVIII) — aliás tão próxima da lógica matemática clássica sob tantos aspectos que eu não hesitaria em considerá-la parte desse conjunto do que chamo de "lógica clássica". Mais do que isso, como uma mera e mínima variação (inclusive decepcionante em termos de "novidade").
E o que ocorre é que a maior dificuldade encontrada por Júlio Cabrera não está de modo algum na estrutura ou na consistência da lógica leibnitziana, ou mesmo no seu interesse e utilidade enquanto prática racional. A maior dificuldade é precisamente esta: o espírito "fechado" da comunidade dos lógicos matemáticos a qualquer novidade, de modo que a lógica de Leibnitz provavelmente não seria reconhecida sequer como uma possibilidade capaz de abrir um caminho viável!
por João Borba, no último dia de Maio de 2013
1.
O que pretendo fazer aqui é a crítica a algumas passagens especialmente interessantes da Introdução de Benson Mates ao seu livro Lógica elementar... mas procurando projetar a crítica sobre a própria lógica, porque é ela a fonte do que pretendo criticar em Mates, e não algum desajeito seu ao introduzi-la.
(Pelo contrário, o que pretendo estar fazendo no conjunto destas notas pessoais é justamente a denúncia de certos traços criticáveis que caracterizam a lógica em si mesma, e que ficam competentemente ocultos ou disfarçados na fluência linguística e na bela didática do excelente Mates... que acaba por atuar como um discreto, mas eficiente, propagandista da lógica. Sim, porque sua introdução percorre um bom caminho para o aliciamento do leigo em favor da lógica — e não só em favor do bom entendimento da lógica, como poderia parecer. No caso desta nota em particular, fico ainda na denúncia do mero comportamento da comunidade dos lógicos matemáticos, do qual o de Mates, em sua introdução a essa lógica, é um derivado. Fico nisto por enquanto sem avançar muito as críticas na direção da própria lógica... mas paciência: ainda chegaremos lá.)
Mates começa assim:
Objetiva este capítulo proporcionar visão não-formal e intuitiva dos assuntos a que a lígica diz, primacialmente, respeito (...) importa salientar o fato de que os lógicos não se puseram de acordo a respeito de como responder às questões aparentemente fundamentais aqui propostas. Quanto aos desenvolvimentos formais, há grande acordo, mas qualquer pergunta do tipo "de que se trata?" tende a provocar manifestações das mais variadas.
MATES, Benson. Lógica elementar.
São Paulo: Cia. editora Nacional, 1968, p. 1.(O grifo na citação é meu)
Se as questões são apenas aparentemente fundamentais, o que Mates quer dizer com isto é que na verdade não são fundamentais. E há, aqui, uma desqualificação das aparências — que acompanha uma tendência, na verdade uma posição quase unânime, da lógica, no sentido de considerar a si mesma como algo de uma outra categoria, como que puramente mental ou então puramente transcendental, e não algo estruturalmente inscrito no próprio campo dos fenômenos e da empiria.
Dessa desqualificação discordo já de saída. A demarcação do campo da lógica a partir da abstração de suas próprias estruturas em relação ao campo fenomênico (mesmo que não se coloque aqui algum pressuposto de que esses campos estejam realmente em planos separados) interfere na própria formulação da lógica, porque interfere diretamente no processo de formalização pelo qual ela se desenha. A lógica elementar parte de um esquema de formalização dado como que axiomaticamente, quando deveria considerar esse processo de formalização em si mesmo já como uma de suas operações.
2.
Quando nos ensinam a lógica elementar, nos ensinam como traduzir para a linguagem formal dessa lógica um pensamento que está em linguagem natural — e em breve, nestes primeiros capítulos, veremos Mates fazendo isso também. A questão é que o procedimento de formalizar um pensamento não precisa se dar necessariamente deste modo, e esta é, aliás, uma porta para a formulação de outras lógicas, lógicas alternativas (como por exemplo a de Leibnitz que o filósofo Júlio Cabrera tenta apresentar em seu livro A lógica condenada).
Se há — e há — lógicas igualmente formais que no entanto não se utilizam dos mesmos critérios de formalização, então os critérios utilizados pela lógica elementar são questionáveis (pois é precisamente isso o que lhes ocorre quando postos diante do fato inegável de que coexistem, no campo mais amplo da lógica em sentido geral, com critérios diferentes que não deixam de ser "lógicos"). Se isto não os questiona — talvez sob o "argumento" de que são formulações axiomáticas a serem justificadas a posteriori pelo bom funcionamento da prática nelas fundada — então está fixada a ideia de que há uma pluralidade virtualmente infinita de lógicas compossíveis, na medida em que se variem os critérios axiomaticamente adotados. Isto aliás já não é mais uma "ideia" há muito tempo, mas um fato facilmente constatável.
Na opção pela ignorância proposital e estratégica em relação a outras lógicas, como se simplesmente fossem universos paralelos sem interconexão, a lógica evidentemente não tem condições de ser ainda considerada algo do campo da filosofia. O melhor seria, aliás, adotarmos o termo tecnicamente correto para esse tipo de ignorância: idiotice (do termo grego idios, que se refere àquele que se mantém circunscrito apenas ao que diz respeito a si mesmo sem consideração de qualquer alteridade, e portanto na ignorância em relação ao seu próprio contexto).
A lógica passa então a se definir como produção irracional ("axiomática", se assim se preferir) de cirquitos irracionalmente fechados de racionalidade. A questão é saber até que ponto isto não afeta a própria razão de ser da lógica... mas quer bobagem estou dizendo! É claro que se o lógico elementar matemático assume sua atividade como um exercício de redução da racionalidade não está interessado nesses assuntos, não é? Como diz o próprio Mates, são assuntos aparentemente fundamentais... para ele. O problema é o que se entende aqui por "fundamental". Entendo por "fundamental" o que dá fundamento a algo.
Entendo também que atividades propositalmente idiotizantes — busquem declarar seus "fundamentos" em si mesmas, na própria funcionalidade de suas operações. É o que as especialidades científicas fazem (quando não fazem pior, e tentam abranger tudo o que há no mundo e na vida com sua visão propositalmente limitada e limitante)... e por isso promovem o que se costuma chamar de "cientificismo", postura eminentemente antifilosófica.
O que não entendo é que uma dessas atividades de redução proposital da racionalidade em sentido idiotizante pretenda definir-se como fundamentalmente racional e inclusive, em muitos casos, como paradigmática em termos de razão.
3.
Podemos é claro ponderar que não deixa de ter algum valor o argumento de que a redução idiótica da racionalidade ignorando o contexto, as alteridades, o externo etc., permite uma maior (e até talvez uma perfeita) racionalidade coerencial interna para um sistema lógico específico. (Popper puxou argumentos nessa direção em defesa da especialização científica. Furados a meu ver, contudo inteligentes.)
Mas tal argumento, no caso da lógica, teria que lidar com a seguinte questão: será mesmo que não é possível obter a mesma racionalidade coerencial-funcional sem ignorar as demais lógicas, sem tornar o campo da lógica em geral um campo de múltiplas lógicas paralelas surdas e mudas umas às outras — e convivendo irracionalmente sem debate ou confrontação racional?...
Parte do problema está em que a concepção do "racional" por parte da comunidade dos lógicos matemáticos (pelo menos os da lógica elementar) exclui a ideia de confrontação com qualquer coisa que ultrapasse os limites de seus próprios critérios e de suas próprias operações — o que em última instância significa pura e simplesmente excluir a ideia de confrontação, ao menos na medida em que consideremos que não há propriamente confrontação onde não há alteridade. Outra parte está no fato de julgarem (tolamente, a meu ver) que para preservar esse seu campo delimitado precisam evitar formular no interior de seu próprio conjunto de operações aquelas que serviriam a essa abertura para o outro e a essa confrontação.
O caminho natural para uma tal abertura, me parece, seria o de incorporar às próprias operações lógicas, digo aquelas que atuam na racionalidade coerencial interna e funcional de cada raciocínio da lógica elementar matemática (conjunção, disjunção, negação, implicação etc.), operações referentes à estruturação dessa mesma linguagem artificial, por exemplo operações referentes ao processo de formalização pelo qual se traduzem nela os dizeres da linguagem natural. E fazer isso sem estabelecer "planos" ou "categorias" diferentes para essas operações, como um "plano" ou "categoria" de "meta-operações" ou qualquer besteira do gênero — pois isto só serviria para emperrar fechada a porta que se pretendia instalar para que pudesse ser aberta. (Haverá ocasião de voltarmos a esse assunto.)
4.
Mas nada disso que estou dizendo parece ter muita importância ou fazer muito sentido para quem entende realmente de lógica... afinal, como diz Mates, em perfeita consonância com a imensa maioria dos lógicos matemáticos, são questões aparentemente fundamentais. Assim como também o seriam uma porção de outras, típicas de preocupações mais filosóficas do que lógicas:
Por exemplo: estuda a lógica a maneira como as pessoas pensam, a maneira como deveriam pensar ou nenhuma dessas coisas? Preocupa-se, principalmente, com a linguagem ou com o mundo extralinguístico? As linguagens artificiais da lógica devem ser tidas por modelos das linguagens naturais, modelos simplificados, mas essencialmente dignos de crédito, ou devem ser vistos como substitutos das linguagens naturais? Ou sua utilidade deve ser explicada de algum outro modo?
MATES, Benson. Lógica elementar.
São Paulo: Cia. editora Nacional, 1968, p. 1-2.
Mates ainda continua com a seguinte observação:
Questões desse gênero devem, inevitavelmente, ser examinadas, a despeito da fluidez de seus contornos. O principiante deve compreender, porém, que, na prática, a importância dessas questões não é tão grande quanto se supõe. Quando o neófito pergunta "Que é a matemática?" ou "Que é a física?", talvez a melhor resposta seja a seguinte: "Você poderá decidir depois de familiarizar-se com aquilo que os matemáticos e físicos fazem". Assim, embora esperemos que nossa explanação não-formal facilite a compreensão de partes técnicas adiante expostas, estamos conscientes de que, após dominá-las, o estudante poderá, à luz de sua formação filosófica, considerar falsas ou mesmo ininteligíveis algumas porções desta introdução.
MATES, Benson. Lógica elementar.
São Paulo: Cia. editora Nacional, 1968, p. 2.
Sempre que releio esta passagem me lembro daquela velha piada do negociante português que ficou fascinado com uma novidade maravilhosa apresentada a ele por um amigo: chamava-se palito de fósforo. Bastava riscar a ponta em uma caixinha com uma lateral forrada de fósforo e supresa! — na ponta do palito se acendia uma chama que poderia ser usada, por exemplo para se acender um fogão, enquanto não queimássemos o dedo. Entusiasmadíssimo, o negociante comprou um estoque de toneladas e mais toneladas de caixas de fósforos, mas a revenda foi um fracasso total. Os compradores reclamavam que aquilo não funcionava. E ele só choramingava: mas não é possível... testei pessoalmente um por um antes de começar as vendas!
Parece que no entender de Mates, as críticas fogosas dos "neófitos" se esgotariam como o fogo dos palitos do português, depois de bastante experimentados nas práticas lógicas. Ele parece estar muito seguro de que após compreender e dominar "as partes técnicas adiante expostas", o estudante "poderá, à luz de sua formação filosófica, considerar falsas ou mesmo ininteligíveis algumas porções desta introdução". Algo como um condicionamento skinneriano, talvez?
Que sorte a minha! Pois, depois de compreender e dominar as mesmas ditas técnicas tratei logo de (horrorizado, aliás), apagá-las ativamente da minha cabeça — e tratei de fazê-lo tão rapidamente quanto possível (com muito orgulho e alívio de ter conseguido!). Dizer que ocorre algo como um condicionamento skinneriano não é ainda o mesmo que mostrar nas minúcias como o modo de ser da lógica elementar matemática conduz logicamente aos conportamentos aqui criticados da comunidade dos lógicos matemáticos... mas já vale ao menos como uma primeira declaração de minhas (más) intenções. O que importa por ora é confessar para o leitor que, pelo menos até certo ponto, livrei-me desse treinamento (ou condicionamento)... ufa! — e não obstante posso realizar direitinho um raciocínio lógico formal quando necessário... sem pressa e consultando umas anotações aqui e ali para me lembrar de umas coisas.
Minha professora de lógica na graduação em filosofia, simpaticíssima aliás, me queria como monitor dessa matéria, ensinando os colegas menos adiantados — eu e mais um fomos os únicos a conseguir nota 10 na prova, no meu caso acompanhando cada uma das respostas de uma série de críticas à própria lógica de que estava me utilizando, recusando as operações propostas, o método de formalização proposto etc. etc. etc., e sugerindo visões alternativas... Fiz uma prova bem recheada de rabiscos. Ainda mais porque a certa altura me cansei das fórmulas lógicas e passei a respondê-las inteiramente em linguagem natural (ocupei três páginas), pobre professorinha! Incluindo observações sobre o significado preciso a dar a cada termo, e sem absolutamente nenhum erro do ponto de vista do funcionamento das operações lógicas necessárias para a solução dos problemas propostos.
Tive a sabedoria de recusar — enfaticamente — o convite para ser monitor de lógica.
Na época inclusive fazia "campanha" para que essa disciplina fosse retiradas das "obrigatórias" e tornada optativa, para os que gostam de cálculos matemáticos. Em lugar dela, defendia que fosse colocada uma disciplina de filosofia da lógica, na qual tivéssemos o exame crítico e comparativo dos fundamentos de diferentes lógicas, e não aquele medonho treinamento nos procedimentos de uma só delas.
5.
Mas — Mates não me deixa mentir — a noção do aprendizado da lógica elementar matemática pela prática, e que só se completa quando ela nos domina (ops, ato falho!), quero dizer, quando "nós a dominamos", parece inscrito no modus operandi dessa comunidade de lógicos em sua "refutação" dos críticos: trata-se de "desqualificar" de saída sua condição de críticos ao invés de realmente refutá-los... algo como considerar os problemas colocados por eles como "falsos problemas", ou fazer com que raciocinem segundo essa mesma lógica, provavelmente para depois poderem dizer a eles: "o funcionamento de seu próprio raciocínio desdiz suas críticas!"... — supondo, é claro, que depois do condicionamento ainda possam mesmo sair dessa lógica para formular tais críticas.
Entretanto o pior está de outro lado: é que desse condicionamento, na verdade, não escapamos assim tão fácil quanto posso ter deixado (em orgulho vão) parecer: é infelizmente um condicionamento histórico, que recobre pelo menos a civilização ocidental por inteiro, e que se iniciou, ou tomou sua primeira forma clara, talvez com Parmênides, séculos antes de Cristo...
A ideia de refutar filosofias considerando suas formulações como "falsos problemas", derivados de um mal uso da linguagem, vem de Wittgenstein, do livro Tractatus Logico-Philosophicus. Mais do que mau uso da linguagem, encontrou-se aí más condições de uso para o raciocínio lógico inscritas na própria linguagem natural, de modo que era preciso firmar uma linguagem artificial que oferecesse para isso condições melhores.
A crítica original de Wittgenstein desqualificava inúmeros problemas clássicos da filosofia, ao invés de tentar resolvê-los, e era uma saída original, polêmica e inesperada. Entretanto, grande parte do valor dessa saída estava no próprio carátes original, polêmico e inesperado que apresentava... porque gerava reflexão. No seu uso atual, não gera mais: amortece, entorpece a reflexão. Ou quando muito preserva um modo específico de reflexão — o lógico-matemático — do confronto com outros modos de reflexão. Como resultado histórico, a lógica matemática não "desfez" as filosofias que estavam envolvidas nos tais "falsos problemas": muito pelo contrário, passou a assumir cada vez mais o fato cabal, a simples constatação, de que é incompetente para lidar com a lógica própria da imensa maioria dos discursos filosóficos... que continuam considerados — e com toda razão — perfeitamente válidos.
Não poderíamos pensar uma lógica que fosse efetivamente útil para a filosofia, seja como base para avaliações críticas, seja de outro modo qualquer? Uma cujas críticas não fossem triviais?
Mas lá vou eu de novo com minhas questões de principiante, logicamente irrelevantes.
Decerto Mates, com um sorriso maroto, diria que não é o suficiente minha parca (e traumática) experiência universitária no campo da lógica para me elevar a críticas realmente úteis ou interessantes do ponto de vista lógico — pois (de fato) não domino de maneira nenhuma a lógica como uma "segunda língua", isto é, tão habilmente quanto domino minha língua natural, o português.
A isto só posso responder: ainda bem que me safei dessa!
Mates diria, então, que continuo teimosamente um "neófito": invalidaria minhas críticas a priori... pois parece que só se pode criticar a estrutura da lógica por dentro, usando já a sua estrutura de pensamento... será que é possível? Não seria algo como duvidar de que se está duvidando (onde foi que já li isto mesmo? — deve ser coisa de francês!) ...que sejam as críticas bobas de um "neófito" então, que se há de fazer!
Mas estamos ainda na introdução — que como diz o próprio Mates, é mais didática do que propriamente lógica. A intenção é ir até o fim deste livro, e avançar também para outros...
por João Borba, em 1º de Junho de 2013
(OBS.: este texto pode ser melhor saboreado pelo leitor que
dispõe de alguns conhecimentos prévios de lógica e filosofia)
Segundo a perspectiva colocada por Benson Mates em sua introdução ao livro Lógica elementar caberia perfeitamente perguntar se a definição do objeto de estudo dessa disciplina, tal como apresentada por ele, é a melhor, se não poderíamos ou deveríamos definir de outro modo esse mesmo objeto de estudo. Mas não caberia perguntar se o objeto de estudo da lógica deveria ser exatamente este ou não. Pois tal tipo de pergunta seria característica do "neófito" que ainda não entendeu suficientemente bem o assunto.
A meu ver, pelo contrário, tal tipo de pergunta seria simplesmente filosófica — o que significa mais profundamente questionadora, e apresentá-lo como o tipo da pergunta característico do leigo, do que não entende de lógica, não deixa de ser correto... nem por isso desqualifica tais perguntas, pelo contrário: desqualifica o caráter filosófico da lógica, colocando-a como especialidade fechada em seus próprios critérios a tal ponto que não aceita questionamentos fundamentais (por que estes são sim, os fundamentais). De modo que a lógica deve ser compreendida como uma ciência.
Como toda ciência, a lógica representa apenas, em última instância, uma limitação do conhecimento humano bem delineada — e por isso mesmo útil e até poderosa, assunto de que devo tratar em outros textos, ligado ao que chamo de a idiotice intrínseca do poder. Apesar de útil e poderosa, essa limitação do conhecimento humano bem delineada (a ciência) é algo a ser superado. E deve ser superada precisamente pela sua dissolução na filosofia, ou então pela sua reintegração à filosofia (possibilidade que me parece a mais sensata, se não pretendemos jogar fora o querido bebê junto com a suja água do banho).
Por outro lado, a lógica talvez deva ser compreendida não como ciência, mas como ainda menos que isso: como uma técnica de raciocínio (que tende a apresentar uma infeliz propensão monopolista). Neste caso, ela já não estaria em uma mesma categoria que a da filosofia (a dos saberes teóricos), e então já não digo que valha como uma possibilidade razoável ela ser superada, mas apenas que se deve superar essa sua infeliz tendência monopolista no campo do raciocínio humano, para que possa ser devidamente reintegrada à filosofia.
Entretanto — arriscando o que será certamente tido por utópico, senão delirante — penso que essa reintegração seria especialmente feliz se conduzisse a lógica uma fusão com um campo de atividades inusitado: o daquilo que chamamos de arte. E entre as artes, as candidatas evidentes para essa fusão seriam as artes literárias, sobretudo certos gêneros experimentais da poesia contemporânea geralmente bem pouco conhecidos pela comunidade dos lógicos (que acredito que se surpreenderiam com esses experimentos linguísticos)... eu tenderia a apresentar aliás, como precursor deles, um autor literário que, não por coincidência, era também matemático e lógico: Charles Ludwig Dodgson, mais conhecido pelo pseudônimo de Lewes Carrol.
Mas deixemos de lado esses devaneios e retomemos o eixo do nosso pensamento. Tais questionamentos vão, como já disse, na direção daqueles descritos por Benson Mates como aparentemente fundamentais, mas na verdade típicos de quem ainda não entende do assunto. Questionar o modo como se formula a definição o objeto da lógica é, segundo a perspectiva de Mates, razoável e aceitável. Mas questionar o próprio objeto da lógica é ingenuidade de "neófito" (me pergunto aliás se a diferença entre as duas coisas, o modo de formular a definição do objeto, e o próprio objeto, é realmente tão grande assim...). O que vou questionar aqui, no entanto, é precisamente isto: se o próprio objeto de estudo da lógica deveria ser mesmo exatamente este apresentado por Mates (e pelos lógicos em geral).
Não obstante, a pergunta não me atrai devido ao meu interesse (evidente, não vou negá-lo) pela lógica e por seus fundamentos, mas porque uma redefinição do próprio objeto da lógica no sentido que vou indicar aqui a aproximaria do que posso chamar, talvez, de uma de suas contrafaces — e destarte a aproximaria também, até certo ponto, do modo de raciocinar que estou procurando desenvolver nestas notas (na contraface da lógica, por assim dizer).
Trata-se de um modo de raciocinar que tenho chamado provisoriamente de linguagem ludoplástica. Esse modo de raciocinar que proponho não adota como modelo propriamente a arte poética experimental contemporânea, e sim uma outra, que não tem ainda o status de ser uma das belas artes, e da qual curiosamente os experimentos poéticos de Lewes Carrol, precisamente por sua ligação com a lógica e a matemática, se aproximaram: a arte de criar e remodelar jogos.
Mas retomemos de uma vez nosso foco de atenção na lógica clássica, a lógica elementar matemática. Como é, então, a definição didática e introdutória do objeto da lógica apresentada por Benson Mates no início de seu livro?
A lógica investiga a relação de consequência que vige entre as premissas e a conclusão de um argumento legítimo. Um argumento se diz legítimo (correto, válido) quando a conclusão decorre ou é consequência de suas premissas: caso contrário será ilegítimo.
MATES, Benson. Lógica elementar.
São Paulo: Cia. editora Nacional, 1968, p. 2.
Minha crítica — ou mais propriamente minha ingênua contraproposta de "neófito" —, para dizê-la de modo razoavelmente elegante, é a seguinte: a definição proposta na citação acima é de caráter substantivo. Proponho que o objeto da lógica seja definido de maneira adjetiva.
O que quer dizer isso?
Quer dizer que o objeto da lógica está definido ali como sendo em si mesmo algo substantivo, quando deveria ser considerado apenas como um certo adjetivo atribuído a algo, uma certa qualidade lógica que pode estar presente ou não em alguma coisa. Em outras palavras, as coisas podem ser dotadas ou não de alguma lógica, e a lógica enquanto disciplina deveria estudar então esse caráter lógico que está ou não presente em alguma coisa. Deveria estudar, portanto, as relações de consequência (mais tarde problematizaremos também isto) que vigem no conjunto das características de algo — e que são elas próprias uma característica (possivelmente, mas não necessariamente essencial) desse algo.
Mates, ou algum outro lógico, poderia talvez rebater alertando que dizer isto, significa nada menos que negar à lógica pura o seu objeto, porque neste caso não haveria mais um objeto puramente lógico de estudo, mas apenas um aspecto lógico a ser examinado nos mais variados objetos. De fato, não haveria um objeto puro conformado especificamente para o estudo exclusivo da lógica. No entanto não se trata de negar a lógica pura negando seu objeto. Trata-se de repensar o objeto (e o objetivo) da lógica pura.
A lógica teria de assumir o caráter de abstração de seu objeto de estudo, e deixar de coisificá-lo. Teria de assumir que seu objeto de estudo é o produto de uma abstração realizada a partir de um fenômeno concreto, inserido em um contexto, que seu objeto de estudo é algo abstraído de um conjunto de características mais amplo. Que é sempre a lógica de algo. E não simplesmente "a lógica".
O melhor modo de fazer isto, a meu ver, é incorporar no mesmo plano das demais operações, e em interação com elas, os próprios procedimentos de abstração, isto é, de formalização, em que esta lógica se apoia... toda lógica a meu ver deveria fazer isto, toda lógica deveria incorporar às suas operações aquilo que, infelizmente, costuma apenas pressupor de modo axiomático em um outro plano e sem interação com elas: toda lógica deveria incorporar às suas operações habituais e em interação ativa com elas, operações relativas aos próprios metaprocedimentos de formalização pelos quais estabelece os seus elementos, os seus termos, as suas demais operações etc.
Há inúmeros problemas envolvidos nesta proposta que discutirei mais tarde, a começar pelo problema da adoção de operações que formulam a si próprias.
A exigência de que tais operações sejam colocadas no mesmo plano das demais, e interagindo normalmente com elas — e não como metaoperações em um outro plano — é bastante problemática, reconheço. Acabaria conduzindo talvez à substituição da irracionalidade dos axiomas enganosamente justificados a posteriori pelo bom desempenho do sistema funcional que se formulou apoiado neles próprios (que os lógicos, tolinhos, não costumam considerar uma justificação tão irracional e enganosa assim), pela irracionalidade da adoção de contradições fundamentais — que entrariam em choque com o princípio de não-contradição. (Adianto desde já que não sou exatamente um fã do princípio lógico de não-contradição, e que acataria de bom grado o lema "Escolha e assuma as suas contradições fundamentais!" ).
A questão é: as consequências da postura axiomática, em uma perspectiva mais ampla, não são ainda mais gravemente irracionais, e inclusive em certa medida paralizantes para o pensamento? Enquanto ciência, a lógica não poderia se espelhar em algo do que Popper sugere quando fala em falseabilidade, e a adoção de contradições fundamentais no lugar da axiomática não poderia abrir as portas para um tal falseabilismo? — Mas que sandice estou dizendo! O próprio Popper (coitado) não apoiou seu falseabilismo em uma hipótese metafísica alucinada e na segurança da lógica matemática?!
Chega de alfinetadas por enquanto. A paciente está sangrando, e o bebê... cadê o bebê? Parece que sumiu. Achem o bebê! — Enquanto isso, costuremos de uma vez a barriga.
Voltando então ao que pode ser levado a sério em tudo o que disse até aqui, a proposta de uma adjetivação do objeto de estudo da lógica sugere encarar esta disciplina como dotada do que os fenomenólogos chamam de intencionalidade: isto é, sempre como o estudo da lógica de alguma coisa. Do aspecto lógico presente em alguma coisa.
Mas qual seria então o lugar de uma lógica pura?
Uma lógica pura, neste quadro de referências, teria de ser uma lógica das lógicas. Teria como objeto o próprio formular de uma lógica. Seria algo como uma interpretação formal desse formular das lógicas, e de seu conjunto, de modo a extrair-lhes por abstração uma coerência global. Curiosamente, já existe hoje, no campo da lógica, quem esteja fazendo algo similar — mas se não me engano sem esse problemático e saboroso fundamento adjetivo que estou advogando (fundamento des-substancializador, "concretizante"... "materialista" — se quisermos utilizar uma bela e potente metáfora que tem certos interessantes reflexos na mitologia política contemporânea).
Mas que bobagens são essas que estou dizendo! (Tem ponta solta na sutura...) — coisas de neófito... coisas de neófito, nada mais.
Passa a navalha, por favor.
Guardemos então essas propostas para algo que está fora da lógica: elas ajudam a compreender um pouco dos propósitos de minha linguagem ludoplástica... exceto pelo fato de que ela não tem o menor interesse em se formular como algo "puro". Ao invés de espelhar-se em alguma medida na lógica pura, prefere a lógica puta, mundana... lógica pura não: lógica com limão.
por João Borba, na primeira semana de Junho de 2013
Gostaria de colocar aqui um problema que, se a lógica fosse do modo como eu gostaria de imaginá-la, poderia ser considerado um "problema lógico"... mas como não é, provavelmente seria considerado um problema de alguma outra ordem, por exemplo de filosofia da lógica ou até mesmo de epistemologia (teoria do conhecimento) em sentido mais geral. A lógica matemática, tanto quanto a compreendo, tem se mantido com base em axiomas.
O que é um axioma?
Grosso modo,e um ponto de partida que estabelecemos arbitrariamente, para depois desenvolvermos todo o nosso raciocínio com base nele — e nesse raciocínio, procuramos manter uma perfeita coerência passo a passo entre todo o conjunto do que estamos raciocinando e os axiomas escolhidos no início. A matemática faz muito disso.
Com este procedimento de tipo axiomático, o raciocínio inteiro fica no campo das meras hipóteses, e nem por isso perde o valor ou o sentido: supondo, por hipótese, esses axiomas iniciais, podemos desenvolver coerentemente a partir deles toda essa linha de raciocínios... e feito isso, na medida em que os axiomas sejam aceitos, a linha inteira de raciocínio será obrigatoriamente aceita junto com eles (se não houver nenhuma passagem incoerente no caminho, é claro, nenhuma passagem mal raciocinada).
O problema é que este tipo de procedimento, tão comum, acaba permitindo vastas construções intelectuais sem que o axioma seja jamais questionado. Apoiada nisto, a lógica se lança em grandes vôos especulativos que não carecem de qualquer "comprovação" a não ser o exame interno das interconexão entre os pensamentos que vai alinhavando, e curiosamente, assume com base nessa atitude a imagem de uma espécie de guardiã ou modelo paradigmático da razão — como se pretendesse ser um modo de raciocinar efetivamente mais racional. Entretanto permanece inteira apoiada em bases absolutamente irracionais, porque pouca coisa poode ser mais irracional do que um axioma se o consideramos em si mesmo: trata-se pura e simplesmente de uma decisão arbitrária, sem nenhuma justificação.
A questão inteira está precisamente nisto: "se o consideramos em si mesmo". Pois um axioma não deve ser considerado em si mesmo, e sobretudo sua racionalidade não deve (ou se costuma supor que não deva) ser avalidada considerando o axioma em si mesmo. Ele tem uma função em um conjunto de raciocínio, e se cumpre bem essa função, costuma-se considerar que ele é perfeitamente racional, e está justificado a posteriori, pelos resultados do raciocínio que se conseguem obter com base nele.
Mas podemos mesmo sustentar racionalmente isto?
(TEXTO AINDA INCOMPLETO POR FALTA DE TEMPO PARA DIGITÁ-LO... SERÁ CONTINUADO OPORTUNAMENTE)