Posicionamentos jusfilosóficos

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Definindo o assunto
"posicionamentos jusfilosóficos"

Cada teoria filosófica nos oferece um mesmo ponto de vista coerente e bem articulado, fundamentado em cuidadosa rede de argumentações, que serve para abordarmos problemas e objetos de estudo das mais variadas ciências ou áreas de atividades humanas — incluindo o campo do direito. E história da filosofia como um todo nos oferece uma imensa rede de debates entre esses pontos de vista ou abordagens. Debates que tendem a girar em torno de problemas ou objetos de estudo específicos, explorando a seguinte questão: dessas abordagens filosóficas que estão em jogo oferecendo suas explicações sobre o problema ou objeto estudado, cada uma segundo o seu próprio modo de encarar e entender problemas ou objetos como esse, qual é a melhor? Qual oferece a melhor linha de raciocínio ou o melhor ponto de vista? E por que?

O debate entre duas teorias filosóficas pode se estender de um problema ou objeto de estudo para outro, numa disputa em que cada teoria procura se mostrar melhor que a outra como um todo, isto é, no tratamento de um número maior e/ou mais variado de problemas e objetos de estudo. O estudioso de filosofia capta mais facilmente esse debate entre as teorias filosóficas cada uma considerada como um todo. Mas o estudioso de uma ciência particular ou de um campo de pesquisas específico, quando busca um aprofundamento de seu seu estudo sobre um assunto até o nível filosófico, tende a captar em primeiro lugar apenas o quanto cada teoria filosófica tem a oferecer de melhor no tratamento daquele assunto especificamente. E muitas vezes se satisfaz apenas com isso.

Por outro lado, esse especialista que buscou o auxílio dessa forma de conhecimento muito mais ampla e aberta que é a filosofia não deixará de perceber, ao mesmo tempo, que cada teoria filosófica colocada em jogo por ele no exame de seu assunto tende a ir além desse assunto, na verdade tende a ir bem mais longe, inclusive para fora dessa especialidade, em várias outras direções, mostrando mil relações entre esse assunto e diversos outros que antes pareciam distantes e sem conexão com ele.

No campo do direito existe um problema em particular que provoca o envolvimento de muitas diferentes abordagens filosóficas, gerando um debate que se estende do âmbito específico desse problema para várias outras direções para dentro e para fora do direito. Sobretudo, entre outras, em direção a questões políticas, éticas, questões referentes à eficácia e à aplicabilidade das leis, ao papel do direito na sociedade, ao papel das leis positivadas (escritas e promulgadas oficialmente) no conjunto do direito, ao papel dos juízes nesse conjunto, questões de História e Sociologia, de Psicologia, questões referentes ao ensino do direito e à formação das pessoas que devem atuar nessa área, e a questão dos limites e possibilidades do conhecimento humano em geral. Tudo isso e mais tende a aparecer envolvido nesse debate, em torno do problema mencionado. — Mas que problema é esse, afinal?

É o problema que se exprime na seguinte questão: Qual é o coração do direito? Ou qual deveria ser esse coração? Qual é o elemento que está (ou então qual o que deveria estar) no centro das atividades jurídicas, e em torno do qual elas se desenvolvem e se organizam (ou deveriam se desenvolver e se organizar)? Qual é a referência maior com base na qual o direito se desenvolve ou deveria se desenvolver?

Há diversos posicionamentos no mundo que se formam em torno desse problema para debatê-lo. Vamos destacar aqui quatro deles, por serem talvez os mais influentes. A princípio, parece possível derivar todos os outros ou pelo menos a maioria deles desses quatro — seja de um deles, por radicalização ou moderação daquilo que o posicionamento originalmente defende; seja por combinar dois ou mais desses quatro posicionamentos ou por colocar-se entre alguns deles, como uma espécie de meio-termo.

Vou chamar esses posicionamentos por nomes pelos quais eles muitas vezes costumam ser chamados, em diversas partes do mundo, ou nomes pelos quais, de qualquer modo, eles podem ser facilmente reconhecidos por qualquer estudioso de filosofia jurídica:

  • juspositivismo (ou positivismo jurídico)
  • jusnaturalismo (ou busca do direito natural)
  • direito histórico-sociológico
  • crítica do direito

Resumidamente, o que estou chamando de juspositivismo é o posicionamento segundo o qual o coração do direito, aquilo que necessariamente é o seu centro de referência (e deve ser mantido como tal), são as leis positivas, isto é, as leis tais como estão postas oficialmente para a sociedade, tal como estão promulgadas e sancionadas por aqueles órgãos oficiais do Estado que são responsáveis por elas. A principal referência para esse posicionamento nos séculos XX  e XXI costuma ser o teórico do direito Kelsen. Mas é possível encontrar traços bastante marcantes desse tipo de posicionamento já cinco séculos antes de Cristo, em teorias defendidas pelos pensadores do Movimento Sofista, na Democracia de Atenas (a primeira da história mundial) — principalmente nas do sofista Protágoras, um dos maiores defensores daquela democracia.

O que estou chamando de jusnaturalismo, é o posicionamento segundo o qual o coração do direito é a busca da verdadeira natureza da Justiça, ou então são certas capacidades naturais ao ser humano que lhe permitem buscar o que seria o mais justo nas relações entre os homens (a capacidade racional, por exemplo). As referências maiores para esse posicionamento são de um lado Platão, de cinco séculos antes de Cristo, e de outro Kant, que viveu durante o século XVIII e até os primeiros anos do século XIX. 

O Jusnaturalismo que aparece em Platão é, fundamentalmente, o que defende que o coração do direito está na busca da verdadeira e profunda essência ou natureza da justiça, uma essência perfeita, eterna e imutável — posicionamento que apresenta variantes fundamentadas em princípios religiosos, geralmente cristãos (porque durante os 1000 anos da dominação cristã da Idade Média, esses religiosos adotaram e adaptaram a filosofia platônica para servir como apoio racional para sua fé. O jusnaturalismo que aparece em Kant é o que considera como coração do direito a capacidade natural humana de se guiar pela razão, capacidade que dá fundamento para a busca da justiça.

O direito histórico-sociológico é aquele que considera como coração e principal referência do direito não as leis positivadas, nem a essência da justiça ou alguma capacidade natural humana capaz de buscá-la, mas os simples costumes de uma sociedade, e a noção de justiça que tende a aparecer nessa específica sociedade, derivando desses costumes. Uma das maiores referências para esse posicionamento é Savigny (que viveu na passagem do séc. XVII para o XIX). Mas a referência que avança mais radical e profundamente nessa direção, embora menos conhecida, é o pensador anarquista Pierre-Joseph Proudhon, da primeira metade do século XIX.

A crítica do direito considera que o coração, a principal referência para o direito, está fora do próprio direito — por exemplo na economia. E com base nisto, examina criticamente os limites do direito em seu poder de ação sobre a sociedade. Existem duas fontes básicas na filosofia que costumam servir como referência para esse posicionamento de crítica ao direito. De um lado, como base mais comum em que os críticos do direito se apoiam, está a filosofia histórico-econômica de Karl Marx. De outro, estão a psicanálise de Freud (às vezes combinada com o marxismo nessa crítica ao direito) e a filosofia de Nietzsche, que a partir do questionamento dos valores morais tradicionais (mais conservadores), mostrando-lhes o lado pernicioso, detecta e denuncia esses valores ocultos por detrás do direito e das práticas jurídicas pretensamente "neutros", desqualificando-os ou, em atitude mais moderada, problematizando-os. Na linha nietzscheana, a maior referência para esse posicionamento é talvez a filosofia de Michel Foucault.

Assim como os especialistas de outras áreas, quando se utilizam da filosofia, os técnicos, profissionais e especialistas em Direito frequentementre costumam saltar de um desses posicionamentos para outro dependendo do tipo de problema jurídico com o qual estão lidando, ou então costumam seguir uma desses posicionamentos ou outro dependendo da área específica do direito em que estão atuando (direito tributário, constitucional, penal etc. etc. etc.). Isto sugere que é o problema jurídico examinado o que nos leva a adotar um desses posicionamentos ou outros. — Mas há um elemento complicador em se utilizar de tais posicionamentos desse modo.

O elemento complicador é que esses posicionamentos não são construídos originalmente só para o exame deste ou daquele problema jurídico em particular: são posicionamentos em relação ao direito como um todo, ao conjunto das atividades jurídicas e de todos os problemas com os quais elas lidam. Cada um desses posicionamentos oferece uma visão completa e coerente daquilo que o direito é e daquilo que o direito deve ser. E essa visão completa e coerente de um dos posicionamentos nem sempre (aliás, nunca) é total e completamente compatível em todos os seus pontos com aquelas outras visões (igualmente completas e coerentes) que são oferecidas pelos demais posicionamentos.

O profissional do direito, o técnico, o especialista em um setor especifico das atividades jurídicas, pode encontrar compatibilidades entre os posicionamentos ao tratar de um determinado problema prático. Mas quando procura passar coerentemente para outros problemas ou justificar com argumentos coerentes todo o conjunto de suas atividades, relacionando-o também coerentemente com as atividades de seus colegas de outros setores do direito, a compatibilidade logo desaparece.

Surge então um dilema entre duas alternativas. Primeira alternativa: esse "praticante" das atividades jurídicas deixa de lado a reflexão e adota cegamente uma visão compartimentalizada do direito, como se o conjunto da realidade jurídica fosse dividido em "caixas" ou "setores" quase completamente distintos, com conexões apenas superficiais entre eles (ou em linguagem mais simples, parte para o mero cumprimento de tarefas específicas de sua área e deixa de refletir a respeito do fato de em outras áreas do direito seus colegas  partirem de posicionamentos estranhamente diferentes dos seus). Segunda alternativa: ele procura inserir de maneira refletida e efetivamente coerente sua atividade no conjunto das diferentes atividades jurídicas que existem — e neste caso, se vê forçosamente mergulhado em um debate, e tem que defender seus posicionamentos com argumentos.

Acontece que a opção por não refletir e por ignorar a existência ou a relevância desse debate, fere algo muito íntimo à própria essência das práticas jurídicas. Algo em relação ao qual, inclusive, o profissional do direito é constantemente cobrado em sua prática diária: o uso de sua razão.

Mesmo os posicionamentos intermediários que existem em filosofia jurídica, ou aqueles que combinam dois ou mais desses 4 posicionamentos básicos mencionados, não são um mero ajuste irrefletido visando acomodar o pensamento dos profissionais do direito à exigências imediatistas de suas tarefas práticas do cotidiano, em seu trabalho. São bem mais do que isso.

Quando um filósofo jurídico busca uma posição intermediária entre outras duas, ou uma que as combine de algum modo, ele faz isso racionalmente, tomando algo daqui e algo dali, sim, mas reconstruindo com esse material um conjunto coerente, uma terceira posição cuidadosamente refletida e elaborada, entre aquelas outras duas ou combinando elementos de ambas.

Infelizmente, em um país com curta história democrática como o Brasil, que em cinco séculos de sua curta existência, depois de se libertar da condição de colônia, passou por monarquias, ditaduras e 4 séculos de escravidão, não existe ainda uma cultura do debate. As confrontações intelectuais não fazem parte de nossa cultura como um elemento normal e difundido nos hábitos da sociedade, ainfa não são uma fonte habitual de prazer (até mesmo lúdico, por que não) para os brasileiros e, pelo contrário, tendem muitas vezes a ser encaradas como o prenúncio de uma "briga" nada desejável.

Debate não é briga. Mas isto não é algo sempre tão simples de se assimilar, para o coração de um povo tão passional como o nosso. Sobreposta ao debate como uma nuvem negra anunciando tempestade, a passionalidade exacerbada do brasileiro desempenha, nas expectativas mais habituais, um papel bastante ruim para o desenvolvimento do espírito democrático e de um bom ambiente para cultivo da filosofia. com receio do que essas expectativas anunciam, tendemos a simplesmente evitar discussões. Mas se for colocada, pelo contrário, a serviço do debate, como fonte propulsora de argumentação e da focalização de problemas e objetos interessante para discussão racional, essa mesma passionalidade se torna um poderoso impulso para a democracia e para o desenvolvimento de uma cultura filosófica.

Educação generalizada de qualidade e ampla difusão de práticas artísticas variadas entre a população, que conduzem ao refinamento dos sentimentos, seriam fundamentais na formação de uma cultura assim... mas parecemos tão longe de algo assim!

Seria imprudente apostar desde já no livre jogo do debate?

Fevereiro de 2013

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