por João Borba - Maio de 2015
Tomando como modelo e base para sua concepção de liberdade o livre-empreendimento capitalista, o liberalismo não pode ser confundido de maneira nenhuma com o pensamento libertário (ou anarquista), que é fundamentalmente anticapitalista. São posicionamentos inimigos. Na verdade algumas versões do comunismo marxista (outra linhagem mais conhecida de inimigos do liberalismo) se aproximam consideravelmente do anarquismo.
O ponto de maior divergência entre essas duas correntes, aquele que as torna absolutamente incompatíveis e inclusive inimigas, está diretamente ligado à própria definição do posicionamento anarquista: o anarquismo combate de maneira intransigente e radical toda e qualquer exploração e todo e qualquer exercício de poder sobre indivíduos ou grupos humanos. E considera a concentração privatista do capital e da informação — que exclui o acesso de outras pessoas e grupos a essas fontes de benefícios -, assim como a concentração privatista do domínio tecnológico (que une as duas coisas), como as principais fontes da exploração e do exercício de poder a serem combatidos.
Quando combate a concentração privatista do capital, da informação e do conjunto dessas coisas que é a concentração privatista do domínio tecnológico, o anarquismo considera também a própria estatização do capital e dos meios de concentração de informações como privatista, no sentido de que priva a sociedade, os grupos e os indivíduos humanos do acesso direto a isso, instrumentalizando esses recursos precisamente como meios para auxiliá-lo (a ele, o Estado oficial, e a seus aliados, que são quase sempre os capitalistas) na exploração e no exercício do poder estatal sobre a sociedade, os grupos e os indivíduos.
Do ponto de vista anarquista, essas fontes da exploração e do exercício de poder sobre os homens — que são a concentração privatista do capital e das informações — tendem a se organizar direta ou indiretamente em torno das instituições oficiais do Estado e das pessoas que atuam ali, tanto quanto em torno de empresas, e tendem a se organizar também em torno dos dos meios de formação dos valores sociais, como igrejas, escolas e meios de comunicação em geral.
Com o mínimo de conhecimento quanto às posições anarquistas, é difícil crer que alguém ainda teime em confundi-las com os posicionamentos do liberalismo. No entanto, isto ocorre frequentemente, inclusive com a ativa participação de pensadores de renome mundial, num processo de intensa e constante desinformação a respeito do anarquismo.
Focalizemos com um pouco mais de atenção o pensamento liberal. Conforme já mencionado em outro artigo do site ProjetoQuem (cf. Tendências & Grupos/Liberalismo)...
O arco das teorias mais completas e profundas, as mais conhecidas e adotadas na defesa do capitalismo, se inicia, conforme já mencionamos, com a teoria política e econômica de John Locke (séc. XVII). Passa depois pela teoria utilitarista de Jeremy Bentham, pela economia de Adam Smith, e chegando até os economistas de uma teoria do valor chamada teoria da utilidade marginal, que são conhecidos como "marginalistas". No campo do direito, as teorias liberais de defesa de princípios do capitalismo são muitas, mas merecem destaque neste sentido dois extremos opostos desenvolvidos na passagem do século XX para o XXI, e que apesar de opostos são ambos ligados ao que se costuma chamar de neocontratualismo (atualizações das antigas teorias contratualistas de Hobbes, Locke e Rousseau).
Esses neocontratualistas em extremos opostos na defesa do liberalismo são John Rawls e Robert Nozick. A teoria de John Rawls propõe um liberalismo com com um perfil mais socialmente benéfico, e por vezes chega a ser considerada (talvez com algum exagero) quase social-democrata. Mas a mais interessante do ponto de vista do entendimento das consequências de Locke é a teoria de Robert Nozick.
Difamando descaradamente o anarquismo histórico — que originalmente é uma linhagem radical da luta anticapitalista — Nozick trata essa corrente de pensamento como se fosse sinônimo de neoliberalismo, e assim, declarando-se ele próprio (com falsidade ideológica) "anarquista", acaba por construir sob com esse título (de "anarquismo") uma caricatura radical do direito liberal capitalista sem qualquer condição para a sobrevivência de direitos sociais e trabalhistas. E Nozick faz tudo isto com base justamente em Locke, o primeiro grande fundamentador teórico mais completo do liberalismo.
O próprio Nozick, no final da vida, parece ter voltado atrás em algumas de suas colocações, considerando os efeitos danosos que teriam do ponto de vista social, mas o estrago já estava feito, pois sua teoria neoliberal radical já havia se tornado mundialmente famosa, e já havia contribuído fortemente para propagar e aprofundar nos Estados Unidos (pois ele era norteamericano) uma visão distorcida do anarquismo que o confunde com o neoliberalismo capitalista, e que já vinha se desenvolvendo naquele país havia algum tempo.
A teoria de Nozick foi ainda mais longe em suas consequências do que uma simples difamação do anarquismo: no campo do direito, em âmbito mundial, passou-se a compreender o anarquismo basicamente a partir do modelo difamatório oferecido por Nozick. Em outras palavras, no campo do direito, Nozick tornou-se sinônimo de "anarquismo" (principalmente nos Estados Unidos), como se o anarquista francês Pierre-Joseph Proudhon, por exemplo, um dos principais fundamentadores teóricos do anarquismo (que viveu no século XIX), simplesmente não existisse.
Na verdade, um dos principais focos do anarquismo de Proudhon, foi justamente o direito, numa linha de pensamento completamente avessa à de Nozick. Proudhon escreveu dezenas de obras dedicadas a esse assunto (completamente ignoradas por Nozick), e suas obras serviram de base ao anarquismo mundial, influenciando todos os demais grandes teóricos do anarquismo, como Bakunin, Kropotkin, Malatesta e até mesmo extremos do anarco-comunismo como Georges Sorel e do anarco-individualismo como Max Stirner (mais críticos em relação a ele).
O pseudoanarquismo de Nozick pretende talvez ser stirneriano, mas não compreende o sentido da teoria de Stirner, entende-a superficialmente porque não examina o contexto de nascimento da teoria stirneriana — que foi precisamente o de uma polêmica com Proudhon procurando radicalizar-lhe o anticapitalismo, por meio de uma apropriação subversiva, antiliberal, dos próprios princípios do capitalismo. Na verdade, liberalismo capitalista e libertarianismo (anarquista) são posicionamentos absolutamente incompatíveis e mutuamente excludentes para qualquer dos grandes teóricos históricos do anarquismo, incluindo o polêmico Stirner, nem sempre bem compreendido e bem aceito nos próprios meios anarquistas.
Ao invés de apoiar-se realmente em pensadores anarquistas (incluindo Stirner), aos quais faz apenas rápidas e breves menções superficiais aqui e ali distorcendo-lhes os pensamentos, Nozick se apoia justamente (com rigor, profundidade e detalhamento) em uma releitura de John Locke, o primeiro fundamentador teórico do liberalismo capitalista. A teoria de Nozick pode ser considerada, quase por completo, uma profunda e radical atualização da teoria de Locke diminuindo os aspectos mais sociais do pensamento dele, e trazendo à tona com toda a intensidade as implicações mais privatistas, mais capitalistas e mais antisociais.
De certo modo, Nozick representa o que há de mais novo e mais radical no arco das teorias de defesa do liberalismo capitalista na passagem do século XX para o século XXI, assustando até mesmo aos próprios liberais mais moderados, pois defende um capitalismo livre de todas as amarras morais que ainda o prendem a alguma preocupação social. E Nozick realiza isto retomando precisamente o que há de mais básico e inicial em termos de uma teoria estruturada e consistente de defesa desse mesmo liberalismo capitalista, que é a teoria de Locke, do século XVII — quando o capitalismo começava a se tornar pela primeira vez politicamente forte e vitorioso em todo um continente (a Europa).