Até 2012 não há publicações conhecidas do Discurso da servidão voluntária em português que façam alguma relação entre esse livro e a cultura política tupi-guarani. Mas há uma excelente edição brasileira que indiretamente pode ajudar as pesquisas nesse sentido. É uma edição muito cuidadosa do Discurso da servidão voluntária (pela Editora Brasiliense) — acompanhado de três ótimos estudos sobre o livro, e talvez seja possível também encontrar esses estudos separadamente. São os seguintes:
É importante saber quem são esses autores.
Lefort é um filósofo interessado na ideia de uma democracia direta e radical, segundo o modelo daquela dos gregos antigos. Iniciou sua carreira de filósofo no marxismo, fazendo parte de um grupo trotskista radical. A certa altura esse grupo, tornando-se ainda mais radical e passando a defender junto a certas ideias de Trotski a ideia anarquista de autogestão, acabou conhecido pelo nome de uma revista, lançada por eles para publicarem artigos de análise crítica (de nível filosófico) dirigidos contra ditadura comunista de Stalin — a revista Socialismo ou barbárie.
Os principais membros do grupo Socialismo ou barbárie eram, além do próprio Lefort, Cornélius Castoriadis, Jean-François Lyotard e Edgard Morin. Todos os quatro se tornaram filósofos famosos, seguindo rumos diferentes, mas tanto Lefort quanto Castoriadis muito ligados, cada um à sua maneira, à ideia de democracia direta — talvez mais explícita e radicalmente defendida por Castoriadis (do qual falaremos mais adiante, porque teve participação em debates mais atuais acerca da vida política dos tupis-guaranis).
Marilena Chauí, importante filósofa brasileira e ativista política ligada ao Partido dos Trabalhadores, tem bastante proximidade com o pensamento de Lefort, e também chegou a escrever sobre os tupis guaranis.
Essas relações que vemos aparecer aqui — entre esses autores que escreveram sobre o livro de La Boétie e a questão da vida dos tupis-guaranis — não são fortuitas nem são mera coincidência. Ao lado de Lefort e Marilena Chauí, o terceiro autor que apresenta um ensaio seu sobre La Boétie nessa edição brasileira do Discurso da servidão voluntária é Pierre Clastres, um antropólogo — isto é, um estudioso de diferentes culturas, no caso um estudioso de culturas indígenas. Trata-se de um antropólogo muito famoso: nada menos que o maior especialista mundial nos estudos da cultura política tupi-guarani!
As relações entre a filosofia política de La Boétie e a cultura tupi-guarani não chegam a ser realmente examinadas em nenhum desses três textos, mas estão firmemente subentendidas no de Clastres, e já vimos que os outros dois autores não são completamente alheios ao assunto.
O que o texto de Clastres ressalta no Discurso da servidão voluntária de La Boétie são duas ideias que aparecem ali, e que coincidem profundamente com ideias características e marcantes da cultura social e política tupi-guarani. O que se subentende é que não é a toa que o maior especialista mundial em cultura tupi-guarani se decide a escrever sobre La Boétie e justamente sobre essas duas ideias. Decide fazer isso claramente porque parece ter detectado aí algo mais do que uma coincidência. O livro O índio brasileiro e a Revolução Francesa de Afonso Arinos de Melo Franco nos ajuda a entender por quais caminhos Clastres pode ter detectado isto.