Tempo, trabalho e dominação social

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Postone, Moishe / 2014

livro

Fragmentos de leitura de
Tempo, trabalho e dominação social

POSTONE — Contrariando o marxismo tradicional, Postone diz:

 

"não analiso o capitalismo primariamente em termos de propriedade privada dos meios de produção ou de mercado. Pelo contrário, como se tornará claro, conceituo o capitalismo em termos de uma forma historicamente específica de interdepend6encia social com caráter impessoal e aparentemente objetivo. Essa forma de interdependência se realiza por intermédio de relações sociais constituídas por formas determinadas de prática social que, não obstante, se tornam quase independentes das pessoas engajadas nessas práticas. O resultado é uma forma nova e crescentemente abstrata de dominação, que sujeita as pessoas a imperativos e coerções estruturais impessoais" (POSTONE, p. 18)

Essa forma de dominação "também gera uma dinâmica histórica contínua".

E Postone, além de dizer tudo isto, propondo uma nova base de interpretação para Marx, se propõe a desenvolver "a base de uma teoria da prática (p. 18).

Postone recusa a noção de que todas as sociedades passariam necessariamente por um estágio de desenvolvimento capitalista: vê esta como uma construção histórica e social particular, ainda que possa convergir com outras similares. A forma da "modernidade" é capitalista, e é uma forma particular de sistematização da sociedade que pode ocorrer historicamente.

As análises que Marx faz dda mercadoria e do capital servem como ponto de partida. Ajudam a entender como a pobreza cresce em meio à abundância e como aspectos importantes da vida vão sendo modelados por estruturas impessoais.

Segundo Postone, a categoria do trabalho de que Marx fala

"é diferente do que geralmente tem sido aceito: ela é historicamente específica, mas não trans-histórica"(...) "Ademais, e isso é crucial, a análise de Marx não se refere ao trabalho como geral e trans-historicamente concebido — uma atividade finalística que medeia entre os seres humanos e a natureza, criando produtos específicos para satisfazer necessidades humanas específicas — mas a um papel peculiar desempenhado pelo trabalho socialmente na sociedade capitalista" (POSTONE, p. 19. Grifo meu).

Papel de mediador na forma de interdependência social característica do capitalismo (Interdependência impessoal e desigual).

EU — Tenho já algumas coisas a observar.

A primeira é que essa interpretação do pensamento de Marx pode ter influenciado a de Jadir Antunes (no livro Marx e o fetiche da mercadoria: Contribuição à crítica da Metafísica), ou então ele e Postone podem ter se deixado influenciar pelos mesmos as pectos da obra marxiana. Ambos focalizam a crítica de Marx à abstração e à impessoalidade nas interações capitalistas. Por outro lado, a interpretação de Jadir Antunes focaliza muito a mercadoria e o mercado e não parece apontar o trabalho como categoria capitalista, tratando-o, pelo contrário, à maneira marxista tradicional criticada por Postone.

De minha parte digo que Postone, precisamente por se apegar demais a Marx e ao marxismo, não conseguiu dar um passo importante: o de ultrapassar a simples crítica ao sistema capitalista indo mais fundo até uma crítica mais abrangente: a crítica da própria sistematicidade, a crítica ao Sistema — capitalista ou não. Postone chega a apontar vagamente nessa direção a partir de Marx: iria muito mais longe se, captando dele apenas esse tema da abstração (um pouco ao modo de Antunes, mesmo que este tenha ido ainda menos longe) desenvolvesse isso a partir de Proudhon e Stirner, que são pensadores assistêmicos e em certa medida antissistêmicos, mas não deixam de procurar tirar proveito de alguma sistematização, subvertendo-a contra qualquer dominação do sistemático. Marx, pelo contrário, buscava a construção de um pensamento sistêmico — "totalitário" do ponto de vista teórico, segundo a crítica pós-moderna (lucidíssima) de Jean-François Lyotard.

A sistematização capitalista das interações sociais, em outras palavras, é apenas um caso particular de sistematização perniciosa, e sua crítica perde muito se reduzida a crítica apenas do caso particular.

Outra questão é a seguinte: será mesmo que Marx não tratou o trabalho como algo atemporal, criticando apenas o aviltamento de suas condições no capitalismo? Me parece que Jadir Antunes (esta outra referência com a qual estou fazendo acareação) discordaria — e creio que devo discordar também. Acho que o que Postone está chamando de "interpretação", quanto a este item, é muito mais uma estrapolação inteligente do pensamento de Marx — uma extrapolação de muito mérito aliás.

A questão está diretamente ligada ao que Postone, mais adiante no livro, chama de "crítica imanente" por parte de Marx: ele julga que a crítica de Marx se dá inteiramente dentro do quadro de referências fornecido pelo próprio capitalismo, sem recorrer a nada que esteja para além do mesmo. Fico me perguntando como isto se conjugaria com a teoria histórica dialética de Marx — e tendo a pensar que não se conjuga, ou não se conjuga bem. Mas será preciso avançar até muito mais longe na leitura do livro de Postone para confirmar ou corrigir essa minha avaliação.

Até aqui, acho que há bem pouco sentido, do ponto de vista estritamente teórico, em insistir na classificação disto como "interpretação de Marx", fugindo de assumir a enorme originalidade da coisa. Acho que o sentido disto está bem mais na política das palavras e na estratégia de seleção do público leitor e de engajamento junto a ele, do que propriamente na extração disto ali em Marx como interpretação perfeitamente válida.

Acho que Marx não se reconheceria nisto. E por outro lado, acho que Marx possivelmente procuraria roubar a ideia para si, se apropriando dela sem reconhecer a verdadeira fonte em todo o seu valor e transformando-a num sentido igualmente bem-elaborada — como fez com tanta coisa de Proudhon. é o que imagino que aconteceria se Marx entrasse em contato com isso. Mas não imagino que ele simplesmente achasse essa, assim como está, uma leitura possível e legítima de seu pensamento.

O curioso é que me parece que há um pequeno passo, ou salto, do que Marx efetivamente diz acerca do trabalho para aquilo que Postone diz... mas esse pequeno é um grande salto, porque apesar de pequeno (de alterar pouca coisa de Marx, e de fato alterar), o efeito é enorme. e vai em uma direção que provavelmente atrairia Marx, como algo que não é o que ele disse, mas que possivelmente gostaria de vir a dizer.

Por que digo isto? Marx se desenvolveu, em relação a Proudhon, tentando historicizar tanto quanto podia as coisas (por influência hegeliana). esse é um dos (raros, no meu entender) pontos ao mesmo tempo originais e positivos de Marx em relação a Proudhon, que n!ao deixou de fazê-lo (de historicizar as coisas) mas não o fez com tanta ênfase. pois bem: o modo como Postone "interpreta" a questão do trabalho em Marx historiciza essa categoria mais do que o próprio Marx havia feito. Por isso creio que Marx gostaria da ideia. Mas Postone acha que essa historicização da categoria "trabalho" já estava em Marx, e acho que não exatamente. Não acho que Marx tenha escapado de uma certa contradição em relação a isto, não chegando a realizar de fato uma historicização que ele próprio defendia.

Quanto ao sistema capitalista não estar preso à propriedade privada dos meios de produção e ao sistema de mercado como elementos fundamentais para sua conceituação, concordo com Postone.

Parece que Postone coloca o trabalho  em sua forma especificamente capitalista — na posição em que Marx colocava a mercadoria, ao situar esse trabalho como "mediação" das interações capitalistas (ou sociais no capitalismo). Mas é preciso seguir adiante na leitura para checar se é mesmo isso... Segundo Jadir Antunes, que é a outra referência que estou utilizando para comparação, a mercadoria está no centro do raciocínio de Marx acerca da emergência da abstração e da impessoalidade nas interações sociais. é preciso verificar o quanto ela ainda está nessa posição para Postone.

POSTONE — A "mediação das interações sociais capitalistas examinada por Postone é então, o trabalho (em uma forma especificamente capitalista até este ponto da leitura ainda não descrita, ainda não caracterizada).

"Essa forma de mediação é estruturada por uma forma historicamente determinada de prática social (o trabalho, o capitalismo) e, por sua vez, estrutura ações, visões de mundo e disposições das pessoas"(POSTONE, p. 19).

EU — Algo aqui parece um pouco estranho. "Essa fprma de mediação" (o trabalho) é estruturada por uma forma historicamente determinada de prática social "(o trabalho, o capitalismo)"... ou seja, o trabalho é estruturado pelo "trabalho", neste segundo uso com a palavra associada ao "capitalismo" como se fossem quase sinônimos?!

A coisa não está clara. Pode ter havido alguma imprecisão de tradução, talvez? Aguardemos esclarecimentos melhores que certamente virão mais adiante.

POSTONE —

"Como teoria de mediação social, ela é um esforço para superar a dicotomia entre sujeito e objeto, enquanto explica historicamente essa dicotomia" (POSTONE, p. 19).

EU — Obs.: essa proposta de superação conta com minha simpatia, a princípio.

Por outro lado, Postone (graças à sua noção de uma 'crítica imanente" de Marx) reduz toda a aplicabilidade da teoria de Marx ao caso específico do capitalismo — o que é curioso e interessante, não sei se boa ideia ou não. Concordo com a circunscrição histórica de toda e qualquer teoria, mas não que isso deva significar necessariamente a circunscrição de seu objeto. Diria antes que uma teoria está circunscrita em seus métodos e em sua perspectiva. Essa circunscrição proposta (do próprio objeto) me parece reduzir o alcance filosófico do marxismo, ao mesmo tempo que possivelmente lhe aumenta o poder explicativo no sentido de lhe reduzir as margens de possíveis erros. é uma redução de certo modo cientificizante, especializante.

POSTONE —

"estou sugerindo que a teoria marxiana deve ser entendida não coo universalmente aplicável, mas como teoria crítica específica da sociedade capitalista" (POSTONE, p. 20).

EU — Neste sentido, a teoria pode se situar a si mesma coo algo que emerge caracteristicamente na sociedade capitalista, o que é um lado interessante da coisa.

POSTONE — O que Postone considera como interpretações "tradicionais" de Marx (às quais se opõe)?

"Começarei distinguindo entre dois modos fundamentalmente diferentes de análise crítica: de um lado, uma crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho e, de outro, uma crítica do trabalho no capitalismo. O primeiro, que se baseia na compreensão trans-histórica do trabalho, pressupõe a existência de uma tensão estrutural entre aspectos da vida social constituída pelo trabalho. O trabalho, portanto, forma a base da crítica do capitalismo, o ponto de vista de onde essa crítica é elaborada. De acordo com o segundo modo de análise, o trabalho no capitalismo é historicamente específico e constitui estruturas essenciais dessa sociedade. Assim, o trabalho é o objeto da crítica da sociedade capitalista" (POSTONE, p. 20)

 

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