Tópicos de Vida e Obra de Aristóteles

Pesquisa & Texto da autoria de João Ribeiro de A. Borba

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Aristóteles: a lenta reconstrução histórica
de um aluno de Platão que era mais realista que o mestre:
uma obra que vem sendo redescoberta aos pedaços

 

Por que é difícil entender o conjunto da obra de Aristóteles?

Aristóteles escreveu sobre muitos assuntos, e é bastante difícil conseguir entender de que modo exatamente todo esse material forma um único conjunto coerente, porque ao longo do tempo, muitos de seus textos se perderam, restando apenas partes incompletas e anotações de seus alunos. Além disso, sua obra foi passando por situações que ajudaram a distorcer o seu entendimento pelos estudiosos.

Ele dividiu sua obra em duas partes, uma que ele passava para o público em geral, fazendo parecer que era apenas um seguidor de Platão que detalhava um pouco melhor a obra do mestre, e outra que passava somente para os seus alunos, onde mostrava bem mais do seu próprio pensamento. Quando morreu, seus textos mais profundos (aqueles que não mostrava para o público em geral) ficaram guardados na adega da casa de um amigo e aluno chamado Corisco, para serem emprestadas e lidas pelos antigos alunos. E quando vários desses alunos morreram e o grupo se desfez, esses textos ficaram esquecidos naquela adega por trezentos anos.

Durante todo esse tempo, os únicos textos de Aristóteles que foram ficando conhecidos eram aqueles em que ele mais parecia próximo de Platão, distorcendo a imagem da filosofia aristotélica. Depois disso, a partir da metade do Séc. I d.C., começou a acontecer o contrário: os textos que estavam na adega de Corisco foram recolhidos e levados para uma biblioteca pública, mais tarde acabaram sendo levados a Roma, para serem estudados em conjunto com aqueles textos mais platônicos. Mas esses novos textos de Aristóteles causaram tanta sensação, que os estudiosos aos poucos foram esquecendo ou ignorando a importância daqueles textos mais platônicos dele que conheciam antes.

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Além de tudo isso, já desde o começo, conforme a obra de Aristóteles foi sendo editada, os editores foram fazendo muitas e profundas alterações, recortando os textos, mudando de posição, acrescentando comentários pessoais que davam outra interpretação etc. Mais adiante, durante a Idade Média, nem tudo o que Aristóteles escreveu era aceitável para a Igreja, e novas distorções foram feitas nas edições de seus livros.

E finalmente, temos o problema de que as pessoas não costumavam ler Aristóteles na língua original, e sim em traduções para o árabe, o hebraico e o latim da Igreja, e em todos os três casos as traduções não eram sempre fiéis.

Como se não bastasse, quando a partir de Thomás de Aquino, por volta dos séculos XI-XII, Aristóteles passou a ser considerado pela Igreja como "Autoridade" importante, seus textos (traduzidos, editados etc.) — ou melhor, as partes consideradas aceitáveis deles — passaram a ser lidos de maneira dogmática, como se dissessem verdades inquestionáveis.

Isso provocou mais distorções, pois como filósofo que era, muito do que Aristóteles dizia era dito como forma de provocar o leitor a pensar e raciocinar junto com ele, e não como informação definitivamente "verdadeira" em sentido completo e absoluto. Ele procura nos fazer acompanhar o seu processo de raciocínio — precisamente para que possamos examinar o que diz com senso crítico. Não pretende apenas apresentar um caminho "pronto" com resultados "prontos" a serem seguidos ou, ainda pior, venerados. Em outras palavras, houve fidelidade demais a textos que originalmente foram escritos para serem pensados, e não para serem simples e diretamente matéria de crença.

 

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O que costuma ser considerado mais importante
no pensamento de Aristóteles?

Ao final de todo esse percurso (que não deixou de incluir também incêndios e outros acidentes pelos quais partes importantes da obra desse filósofo foram se perdendo), Aristóteles acabou se tornando conhecido principalmente por duas construções teóricas dele: a lógica; e os fundamentos metafísicos que criou para estudar principalmente o mundo físico.

Segundo Marilena Chauí, o papel da lógica é o de

(...)nos mostrar o que é o pensamento pensando, quais são as operações e as formas que o pensamento possui, que regras e normas ele segue ao pensar, independentemente do conteúdo pensado(...)

(...)

Quando observamos a classificação aristotélica das ciências, percebemos que a lógica não faz parte de nenhuma ciência. O motivo é simples: a lógica não é o conhecimento teorético nem prático de nenhum ser, de nenhum objeto. O que é a lógica? Como indica o termo grego que foi dado ao conjunto dos escritos lógicos de Aristóteles, órganon1, a lógica é um instrumento do pensamento para pensarmos corretamente. Não se referindo a nenhum ser, a nenhuma coisa, a nenhum objeto, a lógica não se refere a nenhum conteúdo, mas à forma ou às formas do pensamento ou às estruturas do raciocínio em vista de uma prova ou de uma demonstração.

(...)

A lógica é o que devemos estudar e aprender antes de iniciar uma investigação filosófica ou científica, pois somente ela pode indicar qual é o tipo de proposição, de raciocínio, de demonstração, de prova e de definição que uma determinada ciência deve usar. Por esse motivo, a lógica é dita uma disciplina vestibular2. Um conhecimento que deve anteceder aos outros conhecimentos, sendo por isso uma propedêutica (de pro, antes de, em favor de, e paideía: propaideía).

A lógica é uma disciplina que fornece as leis ou regras ou normas ideais do pensamento e o modo de aplicá-las na pesquisa e na demonstração da verdade. Nessa medida, é uma disciplina normativa, pois dá as normas para bem conduzir o pensamento na busca da verdade.

(CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: companhia das Letras, 2002, p. 357)

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E ainda segundo Marilena Chauí, logo mais adiante:


A lógica é também uma disciplina da prova, pois estabelece os fundamentos necessários de todas as demonstrações ou de todos os raciocínios demonstrativos de caráter universal e necessário. Dada uma certa hipótese, a lógica permite verificar suas consequências necessárias; dada uma certa conclusão, a lógica permite verificar se é verdadeira ou falsa.

(CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: companhia das Letras, 2002, Cap. 5, p. 358)

 

A lógica de Aristóteles aparece em cinco textos, três mais importantes e dois introdutórios. Os três mais importantes são: Primeiros analíticos; Segundos analíticos e Tópicos e refutações sofísticas.

Em seus estudos sobre lógica, Aristóteles desenvolveu, entre outras a idéia de que é preciso estudar as coisas separando o que é essencial nelas, aquilo sem o que elas não poderiam existir do modo como são, e o que é “acidental”, isto é, o que só está ligado a elas por causa de certas circunstâncias de momento. Pelo mesmo raciocínio, levanta a idéia de que é preciso não confundir o que as coisas são por sua natureza e que as define, com o modo ou maneira como elas se apresentam, isto é, as qualidades ou adjetivos que podemos atribuir a elas, e que servem para descrevê-las. Para Aristóteles, descrever o modo como algo aparece não é exatamente o mesmo que definir o que uma coisa é em sua essência e por sua natureza.

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Mas o mais importante da lógica de Aristóteles, como se percebe claramente no que Marilena Chauí diz a respeito, está no fato de criar regras para o pensamento se tornar perfeitamente coerente e exato. Para Aristóteles, o raciocínio perfeito era uma questão de gramática. Seguindo uma gramática perfeita, era possível raciocinar perfeitamente.

Nos dias atuais, a lógica já não é mais exatamente aquilo que Aristóteles havia criado. Na verdade, o próprio Aristóteles nunca chegou a usar para aquilo o nome de “lógica”. Conforme Marilena Chauí,

Convém lembrarmos que não só o termo órganon não foi usado por Aristóteles, como também ele não usou o termo “lógica”, palavra empregada pela primeira vez pelos filósofos estóicos e por Alexandre de Afrodisia. A palavra empregada por Aristóteles foi analíticos, analytikós, do verbo anatyo, que significa: desfazer uma trama, desembaraçar fios, desembaraçar-se de laços, dissolver para encontrar os elementos, examinar em detalhe e no pormenor, remontar às causas ou às condições. Os Analíticos buscam os elementos que constituem a estrutura do pensamento e da linguagem, seus modos de Operação e de relacionamento.

(CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: companhia das Letras, 2002, Cap. 5, p. 357)

A partir dessa mesma ideia de se criar as regras necessárias para um raciocínio perfeito, a Lógica (disciplina que acabou adotando oficialmente esse nome) foi mais tarde se desenvolvendo em outra direção, e hoje, as regras usadas em lógica geralmente já não são mais as de Aristóteles (embora ainda usemos algumas regras importantes formuladas originalmente por ele).

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Para se tornar ainda mais coerente e exata do que na formulação original de Aristóteles, a lógica acabou se deslocando da gramática para a matemática: a matemática passou a ser entendida pelos lógicos como uma espécie de língua artificial que tem uma gramática própria, ou em outras palavras, passaram a usar as regras da matemática como uma espécie de gramática mais perfeita que a de todas as línguas que conhecemos, inclusive a língua original que Aristóteles usava para raciocinar e escrever.

Com base nisso, passaram a entender a lógica como uma língua artificial que permite desenvolvermos raciocínios absolutamente exatos e coerentes (tão exatos e coerentes quanto os da matemática). Tudo passou a ser uma questão de traduzir os pensamentos nessa língua para deste modo corrigi-los, e calcular consequências e conclusões desses pensamentos.

Aí temos todo um lado do que se tornou mais conhecido em Aristóteles: embora os lógicos tenham mudado bastante o seu modo de pensar nesse assunto de lá para cá, ele é considerado sempre como o “pai” ou “fundador” da lógica.

De um lado, com a criação da lógica, Aristóteles, como se vê, parece um filósofo completamente voltado para o pensamento racional, preocupado com a exatidão e a coerência do que dizemos e pensamos a respeito das coisas.

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Mas de outro lado, como as noções metafísicas que usa para estudar o mundo físico são muito eficazes e realmente ajudam muito na observação, descrição e comparação dos processos de transformação que acontecem no mundo material, esse mesmo filósofo parece ser a origem do pensamento empírico que mais tarde, no século XV, veio a aparecer com Maquiavel e Francis Bacon (aliás, Maquiavel era conhecido como um profundo estudioso de Aristóteles).

O empirismo de Maquiavel e Bacon parece ser de certo modo uma radicalização de Aristóteles, pela qual acabam dando menos atenção para os fundamentos metafísicos da observação, e mais para a própria observação e comparação direta dos fatos, embora essa observação não deixe de estar marcada por noções que lembram as de Aristóteles.

Além da lógica e do estudo dos processos empíricos de formação e desenvolvimento das coisas, ficaram famosas principalmente a ética de Aristóteles (que pode ser encontrada em seu livro Ética a Nicômaco) e a sua filosofia política (encontrada principalmente no livro A política), que deriva dessa teoria dos processos de desenvolvimento, aplicada ao que seria o desenvolvimento dos seres humanos na vida em sociedade.

Com todas as perdas e distorções que a filosofia aristotélica sofreu ao longo da História, hoje é difícil articular de maneira perfeitamente coerente esses dois lados de Aristóteles, o Aristóteles da lógica e o da observação empírica dos processos de formação e desenvolvimento das coisas.

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Quais são as principais críticas de Aristóteles a Platão?

Segundo Marilena Chauí, de modo geral, Aristóteles critica a teoria das formas (ou ideias puras) de Platão dizendo que essa teoria é incapaz de resolver os problemas que quis enfrentar, porque não consegue explicar satisfatoriamente a unidade essencial que estaria por detrás das coisas, e que deveria servir de base para um conhecimento universal e necessário a respeito delas. O principal problema estaria no fato de Platão considerar as formas (ou ideias puras) como substâncias verdadeiras completamente independentes do mundo material: ao separá-las do mundo material

(...) num mundo inteligível eterno à parte, Platão impossibilitou que elas pudessem explicar o mundo sensível, pois nada há em comum entre eles. O sensível se reduz a uma aparência degradada ou a uma deformação do inteligível e o filósofo é convidado a abandoná-lo em lugar compreendê-lo. Epistemologicamente, a teoria das Idéias é inútil. (CHAUÍ, p.352)

(...) recorrendo à existência das ideias como entidades separadas do sensível, estamos condenados a não conhecer as coisas sensíveis, pois tudo que as faz ser sensíveis não pode ser conhecido (não há ideias com as propriedades sensíveis, senão também seriam sensíveis e não ideias) e tudo o que delas podemos conhecer é que possuem em comum com as ideias, de modo que delas conheceríamos seus aspectos ou finalidades não-sensíveis. (CHAUI, p. 355)

 

Em outras palavras, a única coisa que poderíamos conhecer do mundo sensível a partir de Platão seria aquilo que ele tem de comum com as formas ou ideias puras, ou seja, justamente... aquilo em que o mundo sensível já não é mais mundo sensível! — segundo Aristóteles, isso quer dizer que não estaríamos conhecendo o mundo sensível do modo como ele realmente é.

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O mundo das Ideias é, no fim das contas, um mero duplo verbal do mundo sensível, uma duplicação irreal, desnecessária e perigosa, pois torna o nosso mundo e a nossa vida sem sentido. Aristóteles se esforçará para mostrar que o inteligível está no sensível, que é possível uma ciência verdadeira do sensível, isto é, um conhecimento universal e necessário das coisas sensíveis. (CHAUÍ, p. 355)

Citando o estudioso Jean Bernhardt, Marilena Chauí conclui que a principal diferença entre Aristóteles e Platão está no fato de que Platão tentava explicar por que o mundo sensível é como é encontrando uma resposta fora dele, e Aristóteles, ao contrário, busca o sentido do mundo sensível nele próprio.

Platão dizia que só podemos compreender alguma coisa do mundo sensível porque em nossa mente, no corpo que temos neste mundo físico, ainda existe uma reminiscência (um resto, uma lembrança) do tempo em que ainda estávamos forma do corpo e do mundo sensível, quando éramos pura forma (ou essência, ou ideia pura... aquilo que os cristãos mais tarde vão chamar de “alma”), quando ainda não havíamos “encarnado”.

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Platão trabalha com a ideia de reencarnação, e de que a cada nova reencarnação, se tivermos treinado bem a nossa alma para isso, vamos ter aprendido a lidar melhor com o corpo e o mundo sensível para sabermos como separar nele aquilo que é inteligível, ou seja, as ideias ou formas que, nesse mundo, não aparecem em estado puro.

Para Platão, no fundo, o mundo sensível não é realmente inteligível, ele não pode ser entendido. Só pode ser captado com as sensações. O que achamos que entendemos do mundo sensível (ou material) na verdade são as formas que ele vai assumindo. A teoria da reminiscência de Platão é justamente a teoria de que, na verdade, só podemos entender algo dessas formas que se misturam com a matéria no mundo sensível porque ainda temos em nós alguma lembrança de uma situação, antes desta vida, em que estávamos em contato direto com um mundo só de ideias puras (ou formas puras, separadas de toda a matéria).

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Ainda com base em Jean Bernhardt, Marilena Chauí afirma que:


(...) Aristóteles afasta a reminiscência como causa da busca verdade que nos arrastaria para fora e para longe de nosso mundo, o único real. Para Aristóteles, trata-se de mostrar, em primeiro lugar, que o próprio movimento é racional e pode ser explicado de modo universal e necessário, e, em segundo, que, no mundo sensível, o particular (que muda sem cessar) e o universal e necessário (que permanece sempre idêntico a si mesmo) estão entrelaçados, sendo tarefa da filosofia demonstrar como esse laço é possível, qual sua causa e qual sua significação racional.
(...)
Aristóteles afirma, contra Platão, que existe toda uma região da vida humana que permanece contingente e particular (ética, política, técnica) e nem por isso seria sem sentido e irracional. Platão havia tentado fazer da ética e da política ciências teoréticas1, universais e necessárias. Para ele a ideia do Bem como universal e necessária, a ideia da Justiça como universal e necessária e o comando da razão sobre o indivíduo e sobre a Cidade fariam da ética e da política ciências teoréticas. Pelo contrário, diz Aristóteles, as ações humanas, mesmo quando feitas por uma vontade racional, permanecem contingentes2, dependem de escolhas e de situações concretas e não há como submetê-la, à ideia universal do Bem e da Justiça. Será pelo conhecimento de ações boas Justas3 que definiremos o Bem e a Justiça como valores ou regras gerais de conduta, e não o contrário. (CHAUÍ, p. 356)

 

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Segundo Aristóteles, então, como podemos descobrir a forma pura das coisas? — Observando o modo como essas coisas vão se desenvolvendo ao longo do tempo, e comparando-as umas com as outras.

Se acompanharmos com cuidadosa observação o modo como uma semente vai se transformando em árvore, e depois compararmos esse processo com outros processos pelos quais diferentes sementes foram se transformando em árvores, poderemos perceber que essas sementes todas se desenvolvem em uma mesma direção.

Sabemos que elas nunca se desenvolvem até atingirem a forma pura, completa e perfeita de uma árvore na sua essência, a “ideia pura” de árvore, do modo como Platão exigia. Não se desenvolvem até esse ponto porque não deixam de ser árvores materiais, e portanto imperfeitas. Mas isso não impede de raciocinarmos a partir da nossa observação e comparação de todos esses processos de desenvolvimento semelhantes, e chegarmos a uma conclusão correta a respeito de como seria essa forma pura se essas árvores pudessem se desenvolver até esse ponto.

Isso quer dizer que, usando a observação e o raciocínio, podemos visualizar como seria o resultado final e mais completo de um processo, mesmo que todos os processos semelhantes que observamos nunca tenham atingido esse resultado final, completo e ideal.

Portanto, ao contrário do que Platão imaginava, podemos sim estudar os processos de desenvolvimento das coisas neste mundo a partir da própria observação desses processos, e não necessariamente tentando formar em primeiro lugar uma definição clara do que seriam aquelas formas puras para as quais esses processos avançam sem nunca atingi-las.

Como podemos ver, então, as formas puras das coisas, para Aristóteles, realmente não são realidades independentes que existem em uma espécie de mundo ideal fora deste: elas são apenas aquilo que podemos concluir que seria o desenvolvimento completo, ideal, “perfeito” e irrealizável das coisas. E para tirarmos essa conclusão a respeito do que seria esse desenvolvimento completo, “perfeito” e ideal, é preciso observarmos como é que as coisas vão se desenvolvendo de fato no mundo sensível.


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 Aristóteles ainda é um filósofo jusnaturalista como Platão
ou já podemos considerá-lo um filósofo do direito histórico-sociológico?

Por ter valorizado deste modo os costumes, e pensado as leis e a justiça a partir deles, Aristóteles pode ser considerado, até certo ponto, como o primeiro filósofo a ter seguido, no campo jurídico, o que hoje podemos chamar de Sociologia do Direito, ou talvez de "Direito Histórico-sociológico".

Essa linha de pensamento jurídico, atualmente, valoriza aqueles direitos que nascem não da natureza humana ou de algum sentido natural de justiça, nem das leis oficialmente decretadas ou dos órgãos oficiais responsáveis por elas, mas dos próprios costumes de uma sociedade, como criação coletiva do povo, criação que vai se formando e se alterando conscientemente ou não, geração após geração.

Mas é preciso um pouco de cuidado ao se colocar Aristóteles nessa categoria dos "jus-sociólogos".

É preciso um pouco de cuidado com isso porque apesar de realmente ter começado a raciocinar nessa direção, e demonstrar isso em sua sólida atitude de pesquisa dos costumes sociais ao examinar os sistemas políticos e as leis das diferentes sociedades de sua época, mostrando a força dos costumes sobre a evolução dessas leis e sistemas políticos... apesar de tudo isso enfim, Aristóteles nunca deixou de ser em grande parte, ainda e sempre, um aluno de Platão. Nunca se desviou por inteiro dos ensinamentos do seu mestre, não se pode dizer que tenha sido completamente original em relação a ele.

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Assim como Platão, Aristóteles continuou sempre em busca do ideal, do perfeito, e tendendo a ver essa perfeição em um certo sentido de unidade, ou pelo menos no sentido de um todo coerente em que tudo se encaixa com perfeição. E continuou vendo essa perfeição nas formas puras das coisas, em oposição à noção de que a matéria é necessariamente imperfeita.

Aristóteles se diferenciou de Platão por considerar essas formas "puras" como produto do raciocínio especulativo (seguindo as regras da lógica e desenvolvido a partir da observação dos fatos), e não como realidades que existiriam separadas da matéria, em um mundo à parte. Para Aristóteles, toda matéria real tem forma e toda forma real tem matéria. Mas ele não deixou de atribuir um papel importante àquelas formas "puras" quase platônicas que se pode encontrar raciocinando a partir do que se observou na realidade.

Mais do que isso: no campo jurídico, Platão pode ser considerado o primeiro grande jusnaturalista, o primeiro a buscar um sentido de justiça natural, uma verdadeira e profunda natureza da justiça. E Aristóteles, apesar de sua clara tendência para algo novo — a valorização da criação social e coletiva no campo jurtídico através dos costumes — nunca deixou de demosntrar ao mesmo tempo e combinada com isso uma forte tendência jusnaturalista como a de seu mestre Platão.

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Aristóteles tinha uma visão mais realista das coisas que Platão?

Das várias coisas que se podem contar sobre a vida de Aristóteles, uma é especialmente relevante para compreendermos melhor sua obra e sua importância.

É o seguinte: ao contrário de seu mestre Platão, que (no livro A república) idealizou a utopia política de uma sociedade quase perfeita para ser comparada com as cidades reais, de modo que fosse possível usar essa comparação para corrigir as leis, os governos e os costumes das cidades reais a fim de torná-las melhores, Aristóteles valorizava muito mais a observação dos fatos.

Platão procurava superar os erros e ilusões provocados pelo nosso excesso de confiança nos sentidos. Julgando que a visão, a audição, o tato, o paladar e o olfato nos enganam, acreditava que através de um diálogo racional seria possível uma pessoa atenta ir corrigindo esses erros e ilusões da outra. Essa pessoa estaria assumindo a posição de mestre orientador nesse diálogo, mesmo que provisoriamente, fazendo perguntas que ajudassem a outra a se orientar, as duas pessoas poderiam trocar de posição depois, se fosse o caso.

Achava que desse modo era possível depurar a razão, purificá-la, ir limpando-a a cada passo dos erros e ilusões dos sentidos na busca da verdade, que seria a forma ideal e perfeita das coisas. É por esse caminho, por exemplo, que deve ter chegado até a sua imagem do que seria uma república ideal e perfeita — pelo menos para seres imperfeitos como nós, humanos, que não somos puramente espirituais e vivemos presos às imperfeições do nosso corpo e do mundo material ao redor dele (o que quer dizer na verdade que esta república ideal seria apenas quase perfeita).

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Raciocínio de Platão para comparação com Aristóteles

 

 

Platão nos apresenta essa sua imagem da república ideal, quase perfeita (ou a mais perfeita possível para seres materiais e imperfeitos como nós) no livro mais famoso de sua fase de maturidade: A República (o mesmo livro em que encontramos seu famoso Mito da Caverna, criado para ajudar a explicar esse processo de busca das verdades perfeitas e ideais).

 Platão achava que somente conhecendo a verdade perfeita e ideal das coisas seria possível percebermos com clareza quais os defeitos das coisas que existem no mundo ao nosso redor, para podermos ir corrigindo esses defeitos cada vez mais em direção ao ideal perfeito de cada coisa.

O mesmo raciocínio valia em relação à busca de uma república ideal, que seria também a república mais perfeitamente justa possível. Platão partia dessa utopia de uma república ideal — à qual chegou raciocinando em diálogo junto a seus alunos e colegas filósofos — para ir comparando as sociedades reais de sua época com essa utopia, e ir tentando corrigi-las cada vez mais nessa direção, até aonde fosse possível.

(Na verdade, Platão considerava a versão utópica, perfeita e ideal das coisas, mais real do que a própria "realidade" das coisas do mundo à nossa volta, que para ele pareciam apenas sombras, imitações superficiais, de suas versões ideais e perfeitas, que só existiriam fora deste mundo, em um plano espiritual e superior.)

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Aristóteles não era muito chegado a utopias e ideais de perfeição, a menos que esses ideais partissem de uma realista e cuidadosa observação dos fatos, que nos mostrariam inclusive até onde poderíamos chegar em nosso esforço para melhorarmos as coisas, e a partir de onde nossos esforços seriam um puro desperdício. Porque há momentos em que as condições reais (no mundo material à nossa volta mesmo) são mais favoráveis ao aperfeiçoamento das coisas, e momentos em que tudo parece estar em decadência, piorando.

De modo que o aristotelismo nos conduz à noção (um tanto mais pessimista, mas talvez mais sensata) de que existem situações nas quais se torna mais necessário nos esforçarmos com bom senso para frear a decadência das coisas, dentro dos limites do possível, ou esperarmos essa fase de decadência passar, ao invés de ficarmos tentando avançar sozinhos e isoladamente em busca de utopias, nadando contra toda uma maré de situações que nos estão puxando na direção oposta.

Platão, por exemplo, tentou corrigir os rumos do desenvolvimento da cidade de Siracusa educando o filho do tirano dessa cidade para que no futuro, quando a criança crescesse e assumisse o trono, se tornasse um rei mais justo... mas entrou em choque com a formação que pai, tirano da cidade, queria dar ao próprio filho, e os resultados foram desastrosos (desastrosos aliás para o próprio Platão, principalmente).

Ao invés de examinar as sociedades reais a partir de alguma utopia, como neste caminho de seu mestre Platão, e insistir contra tudo e todos na busca da realização dessa utopia ou de algo aproximado, Aristótelespreferiu dar mais atenção aos fatos, à realidade do modo como está configurado o mundo ao nosso redor.

O que ele fez, então? Ao invés de formular a utopia de uma sociedade mais justa, tratou em primeiro lugar de viajar por toda a Grécia examinando os costumes, as leis e o governo das mais variadas cidades, e pesquisando a história desses costumes, leis e governos em cada uma delas.

Chegou inclusive a escrever muito sobre isso, embora nem todos os seus textos tenham chegado inteiros e legíveis até nós.

E só depois de todo esse estudo, analisando suas anotações sobre o que aprendeu nessas viagens, e comparando cuidadosamente todo esse material, examinando o que cada cidade apresentava de melhor e de pior em sua história e em sua organização social e política, foi que começou a pensar no que seria o melhor para uma cidade humana, o ideal, o perfeito.

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Procedimento de Aristóteles diferente do de Platão

 

Como resultado, a teoria política de Aristóteles é mais maleável que a de seu mestre Platão, e também muito mais realista, se adaptando às diferentes condições sociais e políticas dos mais variados povos, sem deixar de ter um posicionamento crítico e o ideal de uma sociedade melhor e mais justa.

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Com base em todas as suas pesquisas, Aristóteles chegou
a alguma conclusão universalmente válida a respeito da justiça?

Depois de toda essa sua pesquisa em diversas cidades da Grécia, comparando a maneira como cada uma dessas sociedades entende a justiça, e a forma de organização política e jurídica com a qual cada uma delas procura buscar na prática essa justiça, Aristóteles chegou a um conceito de justiça que parece ser aceitável como válido para todas essas diferentes sociedades que examinou — e que por isso, tem grandes chances de acabar valendo universalmente para toda e qualquer sociedade do mundo, já que as sociedades pesquisadas para chegar a isso forma muitas e muito diferentes umas das outras.

Esse conceito de justiça ao qual Aristóteles chegou pode ser resumido aproximadamente assim: Justiça é o que caracteriza aquela situação em que cada um dos envolvidos recebe equilibradamente o tanto que se ajusta melhor a ele (ou dizendo de outro modo "tanto quanto merece"), nem mais nem menos — seja das coisas boas seja das ruins.

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Nesse sentido podemos considerar injusta aquela situação em que acontece um desequilíbrio, com a pessoa recebendo mais do que lhe cabe ou menos do que lhe cabe... um desequilíbrio entre o que a pessoa merece e o que ela recebe. A cada um cabe aquilo que se lhe ajusta melhor, ou em outros termos, aquilo que merece. Se aumentamos o que um recebe, para sermos justos temos que aumentar na mesma proporção o que o outro recebe. Se diminuimos também. a justiça, neste sentido, é uma questão de mantermos uma proporção justa entre os ganhos e perdas dos envolvidos.

(...) o justo é o proporcional e o injusto é o que viola a proporção. Assim, o injusto pode ser demais ou de menos; (...) quando a injustiça é feita, o autor tem demais e quem sofre a ação tem de menos do bem em questão; no caso de um mal, é o inverso.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do direito.São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 9.

 Aristóteles também chegou à conclusão de que existem três diferentes âmbitos de aplicação desse conceito, três diferentes tipos de situações às quais devemos aplicar a justiça, e que é preciso adaptar esse conceito a cada uma dessas aplicações da justiça para que ele funcione realmente bem na prática. 

Os três diferentes âmbitos em que Aristóteles julga que se deve aplicar a justiça são os seguintes. Ela deve ser aplicada:

1 - Devemos aplicar a justiça (de acordo com aquele conceito) ao modo como praticamos as nossas virtudes morais no dia a dia, em nossas relações com outras pessoas.

2 - Devemos aplicar a justiça em sentido geral (ou universal) ao exame do modo como um cidadão qualquer, de um Estado qualquer dotado de leis, se relaciona com essas leis de seu Estado.

3 - Devemos aplicar a justiça, em sentido particular, aos diferentes casos específicos de injustiça que podem ocorrer na vida social. E esses casos específicos de injustiça estão subdivididos por sua vez em duas categorias:

  • a) casos em que houve distribuição injusta de alguma coisa (boa ou ruim) para um grupo de pessoas, que são casos nos quais será preciso aplicar o que Aristóteles chama de "Justiça distributiva" (adaptando o conceito de justiça a esse tipo específico de situação); e
  • b) casos em que alguém agiu sobre outra pessoas (ou houve uma interação entre as pessoas) e o resultado foi injusto para algum dos dois lados, que são casos nos quais será preciso aplicar o que Aristóteles chama de "justiça corretiva" (adaptando o conceito de justiça a esse outro tipo específico de situação).

 

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Os diferentes ãmbitos de aplicação do conceito de justiça 

Existe uma teoria dos processos de transformação em Aristóteles?

É importante notar que, segundo Aristóteles, para observarmos os fatos não basta descrevê-los do modo como estão aparecendo para nós no momento presente.

Quando foi examinar todas as cidades que examinou, por exemplo, não se contentou em descrever os costumes e leis que existiam nessas cidades na época em que estava vivendo nelas ou visitando-as. Para Aristóteles, o mundo ao nosso redor e todas as coisas que existem nele (incluindo nós mesmos) estão sempre em processo de transformação. De modo que observar os fatos significa observar também, e principalmente, de que modo esses fatos estão se alterando e mudando ao longo do tempo.

É interessante notar que essa abordagem de Aristóteles é bem mais pessimista que a de seu mestre Platão. Mas é importante notar também que apesar disto, Aristótes não abre mão de considerar a versão perfeita das coisas como uma referência fundamental para entendermos como é que elas se transformam ao longo do tempo. Porque na visão de Aristóteles, todas as transformações possíveis só podem ocorrer em duas direções ou numa combinação delas.

Só em duas direções ou numa combinação delas? Como assim? Não há outra possibilidade? Não, não há — É que ou as coisas estão tomando forma cada vez mais (e isto quer dizer se aperfeiçoando, assumindo melhor suas formas), ou estão perdendo forma (e isso quer dizer decaindo, se "corrompendo", se desmanchando, se tornando cada vez mais imperfeitas)... ou então, estão perdendo uma forma enquanto vão tomando ao mesmo tempo uma outra forma.

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Como tudo se move segundo Aristóteles

 O mesmo vale para os costumes e as leis de uma sociedade, se pensarmos que estariam na sua forma mais perfeita se fossem costumes e leis perfeitamente justos.

É especialmente interessante notar isto: que Aristóteles, com seu modo de examinar os fatos, constrói uma bem elaborada teoria dos processos, isto é, de como as coisas se desenvolvem ao longo do tempo.

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(...) o mais importante é conceber o movimen­to como um processo causal de atualização de potencialidades em direção a uma finalidade determinada, isto é, a realização da forma.
(CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: companhia das Letras, 2002, Cap. 5, p. 399)

 

Nessa teoria, que pode ser considerada uma teoria dos processos, e que serve para ajudar na observação empírica e na compreensão do modo como se formam e se desenvolvem as coisas no mundo, Aristóteles trabalha com as noções de ato e potência; com quatro causas que fazem com que as coisas existam (causa geradora de efeitos, causa material, causa formal e causa final); e com a noção de primeiro motor. (O modo como ele trabalha com essas noções será examinado neste artigo mais adiante.)

Embora não seja costume estudar a teoria da justiça de Aristóteles pensando nisto, o fato é que essa teoria dos processos presente em Aristóteles realmente afeta, e a fundo, sua filosofia ético-jurídica, que pode ser melhor compreendida se levarmos isso devidamente em consideração.

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Ato e potência e 4 causa

 

 

Tudo isto reforça o que já dissemos: que para Aristóteles não basta observar as coisas do modo como aparecem agora para nós. Significa também que para é preciso avançar rumo a um estudo histórico a respeito dos processos de desenvolvimento das coisas nas épocas em que elas estiveram de fato se aperfeiçoando, e a respeito dos processos de decadência das coisas nas épocas em que elas estavam piorando cada vez mais.

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No caso do estudo das sociedades, e do grau de justiça que existe nelas em cada época, do grau de justiça que estava presente em seus costumes e suas leis em cada época, seria preciso examinar historicamente e sociologicamente os períodos de desenvolvimento e de decadência desses costumes e leis em cada uma dessas diferentes sociedades.

Mais do que isso: segundo Aristóteles, é precisamente a partir dessa observação dos fatos e do modo como vão se desenvolvendo ou decaindo que podemos tentar raciocinar e prever o que seria esse estado de perfeição ideal, se fosse possível eles continuarem apenas se desenvolvendo até o seu estado de perfeição. O que significa que para ele não basta apenas dialogarmos racionalmente com pessoas amistosas e interessadas na busca da verdade para conseguirmos formular o que seria a versão perfeita e ideal de alguma coisa.

O único modo de formular isto, então, seria justamente partir, em primeiro lugar, da observação dos fatos. E depois raciocinar (logicamente, e não necessariamente em diálogo) a partir dos processos de transformação que observamos nos fatos.

Por isso, se queremos formular uma noção do que seria a perfeita justiça, precisamos em primeiro lugar, e cuidadosamente, observar e descrever os processos de desenvolvimento e decadência dos costumes e leis de um povo em relação à justiça. Mas a partir de qual noção de justiça, se vamos fazer essas observações justamente para buscarmos o conceito de uma justiça perfeita?

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A resposta de Aristóteles é interessante: devemos começar levando em consideração o modo particular pelo qual o próprio povo da cidade busca a justiça.

Isto em última análise significa começar pelo respeito à opinião do próprio povo de cada cidade em relação às épocas em que seus costumes e leis eram "mais justos" e às épocas em que os costumes e leis decaíram e se tornaram "menos justos".

Só depois de examinarmos e compararmos a história dos costumes e das leis de diversos povos segundo a maneira como cada um deles se esforça em busca da justiça (respeitando portanto a opinião diferente de cada povo a respeito de qual o caminho para a justiça) é que poderemos tentar formular algum conceito de justiça de valor universal, algo que seria considerado acaitável como "justo" para todos os povos estudados, e que portanto estaria provavelmente mais próximo da verdade, mais próximo de uma justiça ideal e perfeita para todos.

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 Como é a teoria de Aristóteles sobre os processos de transformação que precisamos observar no mundo? 

A teoria dos processos de Aristóteles se utiliza de seis conceitos que indicam que coisas devemos observar nesses processos de transformação quando os examinamos: de um lado, um par de conceitos que são os de ATO e POTÊNCIA; de outro lado, quatro conceitos que se referem às causas de o processo existir e se desenrolar do jeito como ele existe e se desenrola diante de nós — esses últimos quatro são os conceitos que definem as famosas "QUATRO CAUSAS" da teoria de Aristóteles: as causas materiais, formais, eficientes e finais.

Mas além desses seis conceitos que indicam o que é que precisamos observar quando examinamos um processo de transformação, Aristóteles também trabalha com um conceito especial que ajuda a entender essa noção de "perfeição" que serve de referência para todas as transformações no mundo — já que (lembremos mais uma vez) tudo o que se transforma ou está assumindo mais perfeitamente uma forma, ou está perdendo a forma (que vai ficando cada vez mais imperfeita), ou está tomando uma forma conforme vai perdendo outra ao mesmo tempo. Esse sétimo conceito, especial, é o conceito de "PRIMEIRO MOTOR".

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Se os outros seis conceitos (ato e potência e as 4 causas) indicam o que devemos observar quando examinamos um processo que está acontecendo diante de nós, o conceito de "primeiro motor" é diferente. Não vamos conseguir perceber o primeiro motor simplesmente observando o modo como os fatos se desenrolam, porque ele indica a absoluta perfeição (se assemelhando muito ao conceito que Platão tem do Bem, ou "supremo Bem") e jamais poderíamos encontrar essa perfeição no mundo ao nosso redor, onde tudo está em transformação.

As coisas mudam e se transformam no mundo justamente porque são imperfeitas. Estão se aprefeiçoando ou perdendo o grau de aperfeiçoamento que tinham atingido antes, e por isso é que estão mudando. O primeiro motor é perfeito e não muda.

Mas esse conceito de um "primeiro motor" ajuda a entendermos de modo coerente de que maneira as coisas vão se transformando, já que vão se transformando justamente em direção a ele (em direção à perfeição) ou se afastando dele (se afastando da perfeição). A perfeição é o "primeiro motor" porque é a primeira coisa, a que está lá parada e faz todas as outras coisas se moverem em relação a ela.

E como não podemos chegar a esse conceito de absoluta perfeição observando os fatos, já que todos os fatos que podemos observar são imperfeitos e estão em processo de mudança, então só podemos chegar a esse conceito do que é o "primeiro motor" (a perfeição absoluta) através do raciocínio.

O que vamos fazer agora é examinar com mais detalhe esses processos de transformação dos quais Aristóteles fala, e entender de que modo esses conceitos todos ajudam a termos uma noção mais clara e precisa do que é que precisamos observar quando estamos observando o desenrolar desses processos.

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Como são os conceitos de "ato" e "potência" em Aristóteles,
e de que modo ele trabalha com esses conceitos?

Segundo Aristóteles, tudo no mundo está em processo de formação e desenvolvimento (tomando formas aos poucos) ou então está regredindo e perdendo as formas, se desmanchando — a palavra que Aristóteles usa para essa regressão é “corrupção”, ele diz que as coisas vão se formando até um certo ponto, que é o máximo de desenvolvimento que elas podem atingir, depois vão “se corrompendo”, se desfazendo.

 

A forma, diz Aristóteles, é imutável, pois os quatro elementos, os gêneros e as espécies, e a essência de um indivíduo determinado não podem alterar-se sem desaparecer. Ora, sabemos, por experiência, que as coisas mudam e que os seres mudam de forma, isto é, se trans-formam. A semente é uma forma que se transforma em árvore; o ovo é uma forma que se transforma em pássaro; a madeira é uma forma que se transforma em mesa, em cadeira, porta; o feto é uma forma que se transforma em criança; etc. Por que há mudança ou devir? Responde Aristóteles: porque é da natureza da matéria alterar-se, mudando de forma. Assim, o princípio da mudança (do devir ou do movimento, kínesis*) é a maté­ria. Por isso os seres compostos de matéria e forma mudam. Quando uma coisa está se transformando em outra, podemos dizer que a forma que ela possuía antes está se corrompendo, e uma nova forma está se desenvolvendo no lugar. Tudo o que existe sempre tem o potencial de assumir alguma outra forma.
(CHAUÍ, p. 395)

Por exemplo: a semente de cerejeira  tem o potencial de se transformar em um brotinho de árvore (um broto de pé de cereja).

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A semente tem o potencial de se tornar uma árvore

 

Se o que existe aqui e agora, “no ato”, é só a semente, Aristóteles costuma dizer que “em ato” ela é só uma semente, mas “em potencial” ela é uma árvore. O mesmo podemos dizer de um brotinho de árvore, por exemplo um brotinho de pé de cereja. "Em ato" ele é apenas isto que estamos vendo agora: um brotinho de pé de cereja. Mas potencialmente já é uma cerejeira madura, isto é, já tem o potencial de (no futuro) se tornar uma cerejeira madura.

Isso quer dizer que, para Aristóteles, o potencial das coisas já está “embutido” nelas, faz parte delas. A semente já é de saída “potencialmente” uma árvore, porque ela já está em processo de desenvolvimento, e é nesse sentido que ela está se desenvolvendo, no sentido de assumir a forma de uma árvore.

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Faz parte do processo de desenvolvimento da semente que ela se torne uma árvore, por isso podemos dizer que ela já é, “potencialmente”, uma árvore, ou que, sendo uma semente “em ato” (aqui e agora, na realidade, do modo como a percebemos), ao mesmo tempo ela já é uma árvore em potencial — mas só em potencial. Se no meio desse mesmo caminho uma semente de cereja, por exemplo, tem o potencial de tomar a forma de brotinho de cerejeira, depois esse brotinho de cerejeira terá o potencial de tomar no futuro a forma de uma árvore madura do tipo "cerejeira".

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A semente de cereja tem o potencial de se transformar nessas duas coisas: em um brotinho de cerejeira e (depois) em uma árvore madura do tipo "cerejeira". Observando o modo como uma semente ce cerejeira vai se desenvolvendo e tomando forma ao longo do tempo, e todos os potenciais que vão se realizando a partir dela um depois do outro, depois ficará mais fácil prevermos a sequência de potenciais que irão sendo realizados a partir de uma outra semente d mesmo tipo, isto é, uma outra semente de cereja.

Porque se essas sementes que estamos comparando são essencialmente iguais, se são do mesmo tipo, isto é se são ambas sementes de cereja, devem seguir aproximadamente o mesmo caminho de desenvolvimento, passando pelas mesmas fases, isto é, realizando no caminho aproximadamente a mesma sequência de potenciais um após o outro (passando pela fase de "brotinho de cerejeira" antes de atingir a fase de "árvore madura" por exemplo.

Como as coisas no mundo são sempre imperfeitas, sempre feitas de material imperfeito por assim dizer, elas nunca estão com sua forma "completa" e "perfeitamente" realizada. A forma que elas assumem no mundo nunca chega a ser a forma ideal e perfeita que podemos prefer qual seria.

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Aristóteles entende isso como se ainda faltasse algo para o processo atingir seu ponto de equilíbrio na transformação desse material todo em uma forma mais completa e menos imperfeita que a atual, o que significa uma forma mais equilibrada e definida, e por isso, com mais poder de ação, com mais energia em sua ação sobre o que existe ao seu redor.

Só que sempre vai haver alguma energia que ainda não entrou em ação, que ainda é apenas um potencial, ou por assim dizer, que ainda está passando (ainda não passou completamente) à ação, porque ainda não tomou completamente uma forma capaz de agir.

Sempre vai haver alguma coisa ainda incompleta na forma atual (na forma que foi assumida até aqui e que já está em ato). Porque tudo é feito de alguma coisa, tudo é feito de algum material, tudo tem algum conteúdo, alguma composição. E esse material ainda não age sobre o mundo ao seu redor, o que age sore o mundo ao redor é a forma que ele vai tomando, conforme ela vai aparecendo em seus contornos, em suas fronteiras com o mundo ao redor.

Uma forma só poderia ser perfeita se fosse pura, sem nenhum conteúdo, se não fosse feita de mais material nenhum por dentro, se todo o seu material estivesse concentrado apenas nessa forma externa que está diretamente em contato com o mundo  — e não existe nada no mundo que seja assim. Se existisse uma "forma pura" que não fosse feita de nada, que não tivesse nenhum conteúdo do qual ela é feita, ela também não teria nenhuma direção para onde ir se aperfeiçoando e se desenvolvendo, já não haveria mais nada nela para "tomar forma", pois sua forma já estaria completamente desenvolvida.

Então podemos dizer que neste caso já não teria nenhum potencial para se transformar ou mudar de forma, nenhum movimento necessário para atingir o ponto de equilíbrio, porque a forma completa e equilibrada já teria sido atingida. Para todos os efeitos, podemos dizer que o material que está assumindo essa forma só terá energia para agir sobre o mundo na medida em que for assumindo uma forma, mas por outro lado podemos dizer que esse material tem uma outra espécie de energia, uma energia potencial, que é gasta no processo de desenvolvimento da própria forma que ele vai assumindo. O melhor, no entanto, é dizermos que essa energiapotencial não é exatamente "gasta" mas transferida para a superfície na qual a coisa tem contato com as demais coisas do mundo ao redor, transferida para a forma externa, na qual passa a ser uma energia de ação sobre o mundo.

De certo modo podemos dizer então que esse material "é" a própria energia de mudança e desenvolvimento que a coisa tem, mas enquanto está levando a coisa a tomar forma, ainda não é a energia que a coisa tem para agir sobre o mundo, porque primeiro vai se transferir para a forma, se transformar em energia em ato, para só então agir sobre o mundo externo.

Se fosse uma "pura forma" vazia, ideal e perfeita, sem nenhum conteúdo ou material para ser imperfeita, sem ser "feita" de nada por dentro, ela também não teria mais energia potencial interna nenhuma para se transformar em nada, não teria energia potencial interna para se aperfeiçoar mais porque já teria gasto toda a energia de desenvolvimento e tomada de forma possível e já teria se tornado perfeita. 

Mas por outro lado, uma forma assim pura teria a mais completa energia de ação sobre o mundo. E segundo Aristóteles, uma forma pura como esta agiria sobre o mundo como que "empurrando" a matéria de cada coisa para a tomada de forma. Isso significa empurrar as coisas no sentido de que elas avancem para a realidade e para mais perto da perfeição.

 

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A forma, por ser sempre um ato ou enérgeia, é o real (o atual); a matéria, por ser sempre uma potência ou dýnamis, é o virtual (o que está à espera de vir a ser). A cada momento, uma substância tem a realidade da sua forma e a possibilidade contida em sua matéria, de sorte que o que ela vier a ser, a nova forma que ela tiver, já está presente como uma possibilidade desta substância porque é uma potencialidade inscrita pela forma em sua matéria. O real é mais perfeito (acabado, atual) do que o virtual (inacabado, potencial) e por isso a forma é mais perfeita do que a matéria e a “empurra” para a atualização do possível. O devir é o movimento de passagem do virtual ao real e, a cada momento, um real contém virtualidades que deverão (ou poderão) ser atualizadas. (CHAUÍ, p. 398).

Mas mas essa imagem do primeiro motor "empurrando" as coisas pode nos confundir. Porque o primeiro motor não está dentro das coisas, ele está fora das coisas, fora de tudo no mundo. Está fora do mundo material. E no entanto sua força "empurra" a matéria das coisas para fora em direção a uma perfeição como a sua, mesmo que elas não consigam chegar até esse ponto de perfeição.

É verdade que Aristóteles, muito mais amistoso com o materialismo, já não é Platão, para quem cada coisa material tem uma forma pura e perfeita que está fora do mundo, em um plano puramente espiritual. É verdade que para Aristóteles essas formas puras e perfeitas de cada coisa não estão fora deste mundo, que para ele tais formas puras e perfeitas são "reais" apenas na cabeça de quem raciocina a respeito do processo de desenvolvimento das coisas, como uma espécie de conclusão lógica derivada da observação do próprio desenvolvimento material das coisas. Mas isto (infelizmente, do ponto de vista de materialistas como eu próprio aliás) não vale do mesmo modo para o que ele chama de "primeiro motor".

Aristóteles acredita que não temos como deixar de concluir que o primeiro motor existe realmente como algo fora das nossas cabeças e do nosso raciocínio, e fora de todo o mundo material (equivalendo ao que seu mestre Platão chamava de "o Bem").

Então seria melhor pensarmos uma imagem da ação do primeiro motor sobre as coisas que possa esclarecer melhor como é que ele está fora delas e mesmo assim as "empurra" para fora, para a exteriorização de seus potenciais.

Então vamos lá: tentemos esclarecer melhor isto. Ora, dizer que o primeiro motor "empurra" as coisas em direção a uma perfeição como a sua (como faz Marilena Chauí por exemplo ao tentar explicar isto) é o mesmo que dizer que o primeiro motor "puxa" as coisas, atraindo-as magneticamente, porque ele é o modelo do equilíbrio e da perfeição em direção à qual elas vão quando estão sendo puxadas. Acho que essa imagem do primeiro motor "puxando" as coisas é mais esclarecedora do que a imagem do primeiro motor "empurrando-as", porque condiz melhor com a noção aristotélica de que o primeiro motor é em última instância a causa final de tudo.

Podemos dizer então que o primeiro motor (a perfeição) está fora das coisas (que são imperfeitas), e age "puxando" a matéria (o potencial) das coisas em sua direção, o que significa puxá-la para fora, para a tomada de uma forma externa pela qual possam agir sobre o mundo ao redor com energéia atuante (com energia transferida da condição potencial e apenas virtual para o mundo externo e real, e assim colocada em prática). Deste modo, o primeiro motor age sobre cada coisa fazendo-a colocar para fora (colocar em prática) seu potencial, isto é, transferindo esse potencial de cada coisa para a forma externa dela, de modo a des-envolvê-la, desembrulhá-la, colocá-la para fora, colocá-la em ação no mundo.

Voltemos ao nosso exemplo da semente ou do brotinho que vai tomando a forma de uma árvore. Dizer que uma semente é uma árvore em potencial é a mesma coisa que dizer que ela já está encaminhada no sentido de se tornar uma árvore, que ela provavelmente vai se tornar uma árvore, ou pelo menos tem a possibilidade de se tornar uma árvore. Porque ela tem uma dýnamis, uma dinâmica, que está empurrando ela nessa direção, na direção de tomar essa forma de maneira cada vez mais completa.

Uma semente tem o potencial de se transformar em qualquer coisa? Não. Uma semente de árvore já é potencialmente uma árvore, embora ainda não seja isto na realidade (quer dizer, “em ato”). A dinâmica que ela tem nos materiais que a formam já está encaminhada nessa direção, já está pouco a pouco e cada vez mais tomando a forma de uma árvore madura (do tipo "cerejeira", que quisermos continuar no mesmo exemplo da semente de cereja, que toma a forma de um brotinho de cerejeira, para depois tomar a forma de uma árvore madura desse tipo).

O brotinho de cerejeira, então, tem o potencial de se transformar numa cerejeira madura, por exemplo. Mas ele não tem de modo nenhum o potencial de se tornar por exemplo... um avião.

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Uma semente não é potencialmente um avião porque ela não está se desenvolvendo nesse sentido, não está de maneira nenhuma se desenvolvendo no sentido de se tornar um avião. A dinâmica ou movimento dos materiais que a formam não podem se desenvolver nessa direção. A direção que elas vão tomando conforme seus potenciais vão se realizando é outra.

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A experiência mostra, em primeiro lugar, que uma matéria não recebe qualquer forma — não é possível dar a forma da mesa à água ou ao fogo – mas recebe uma forma que lhe é adequada: e, em segundo, que os seres não mudam ao acaso, arbitrariamente, e sim de uma maneira regular, constante – a semente de uma oliveira não se transforma num pássaro ou num peixe, nem mesmo se desenvolve como uma outra espécie de árvore (não se torna uma macieira, por exemplo). (CHAUÍ, p. 395)

Nessa linha de pensamento de Aristóteles é possível até imaginarmos algo como uma espécie de massa de matéria sem forma, que inclusive não seria nenhum tipo de matéria em especial, mas puramente uma matéria básica de que todas as matérias seriam feitas... uma matéria básica e geral sem forma nenhuma, mas constantemente em movimento.

Neste caso, teríamos algo que seria puro potencial, pura "dinâmica" (puro movimento), pura dýnamis como diz Marilena Chauí — algo que só pode ser imaginário aliás, porque para Aristóteles, no mundo sensível, que é o único mundo real que existe, não há matéria sem alguma forma (nem forma “pura”, sem matéria, como Platão imaginava... essa é uma diferença fundamental entre esses dois filósofos).

Do mesmo modo como podemos imaginar uma matéria “pura”, sem forma, e que seria "pura dinâmica, puro movimento", podemos imaginar também uma “forma pura” de cada coisa, sem matéria, completa, estável e perfeita (imóvel porque sem nenhum material de que ela seja feita, sem nenhuma dýnamis ou movimento).

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Essa forma pura não é e não pode ser real no mesmo sentido que as coisas que existem no mundo sensível e material ao nosso redor, mas ela indica realmente o sentido no qual as coisas estão se desenvolvendo, na medida em que vão tomando forma... porque é justamente isso o que fazem quando estão se desenvolvendo: vão tomando forma. E neste sentido, a forma pura das coisas (sem algo que esteja tomando essa forma ou perdendo essa forma) não é mera fantasia: ela pode não ser algo realmente presente no mundo, mas indica o sentido real em que as coisas do mundo estão se desenvolvendo, um sentido que está inscrito nesse processo de s=desenvolvimento que na verdade as coisas são.

Nas palavras de Marilena Chauí, se pensássemos na existência de formas puras sem matéria, estaríamos deixando de pensar como Aristóteles, e voltando a Platão.

Na natureza, a matéria pura, sem nenhuma forma, totalmente indeterminada, não existe enquanto tal; a forma pura, sem nenhuma matéria, também não existe enquanto tal. Se a matéria pura sem forma e se a forma pura sem matéria existissem, voltaríamos a Platão. Para Aristóteles, só existem realmente na natureza a matéria com forma e a forma com matéria, pois só existem realmente as substâncias individuais que são compostas de matéria e forma. A matéria pura e a forma pura são conceitos que o pensamento estabelece para poder compreender a realidade. (CHAUÍ, p. 393)

A mesma coisa pode ter vários potenciais: uma certa quantidade de madeira, por exemplo, tem o potencial de se tornar uma mesa, uma porta, uma estátua ou qualquer outro objeto de madeira que possa ser feito com ela...

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Uma cerejeira tem o potencial de tomar várias formas diferentes.

 

...Mas não tem o potencial de se tornar algo que não seja feito de madeira de cerejeira, como uma canja de galinha ou uma camisa, porque canjas de galinha e camisas não são feitas de madeira.

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Uma cerejeira não pode tomar a forma de uma lambreta 

 

Em suma: para observarmos um fato conforme ele vai passando por seus processos de transformação, tomando forma cada vez mais ou então decaindo e perdendo cada vez mais sua forma, precisamos sim observar qual é a "forma atual" que ele apresenta e pela qual podemos descreê-lo (observar o que existe "em ato" nele, aqui e agora diante de nós, a forma com a qual ele está no mundo e agindo sobre as coisas ao seu redor), mas não apenas isto...

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...Não basta apenas obsevarmos a forma atual que a coisa apresenta (sua forma EM ATO), porque para compreendermos direito e a fundo o que está diante de nós (que na verdade é um processo) também temos que observar quais os seus potenciais, isto é, observar o modo como essa forma atual vai mudando ao longo do tempo.Temos que tentar captar quais os potenciais desse fato para podermos prever em que direções esse fato pode avançar conforme for se desenvolvendo ou decaindo, quais as formas que ele tem o potencial de ir tomando no futuro, conforme for se desenvolvendo ou decaindo.

Só que além dessa questão dos potenciais que vão se realizando na coisa, precisamos saber que para algo realizar (Aristóteles dizia “atualizar”) algum dos seus potenciais, é preciso que essa realização do potencial seja causada pela conjunção de certos elementos.

Quais elementos? É preciso que estejam presentes em conjunto 4 tipos de causas diferentes: a causa material; a causa geradora de efeito (geralmente chamada de “causa eficaz”, ou de “causa eficiente”); a causa formal; e a causa final. Sem elas processo nenhum pode se desenrolar, de modo que estão presentes em todo e cada processo que possamos observar no mundo. E em cada processo que formos examinar, então, precisaremos observar cuidadosamente de que modo exatamente cada uma desses elementos, cada uma dessas quatro "causas" de que Aristóteles fala, aparece ali.

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Ato e potência e Quatro causas

 

Das "4 causas" de Aristóteles, o que são as "causas materiais"
e de que modo ele trabalha com esse conceito?

Explicando isto do modo mais simples possível, podemos dizer que a causa material é uma das mais fáceis de se entender: o que Aristóteles chama de “causa material” das coisas é simplesmente aquilo de que elas são feitas.

Assim, a causa material de uma camisa é o tecido de que ela é feita, a causa material de uma estátua é a pedra de que ela é feita, a causa material de uma música são os sons que ela utiliza, o ritmo etc., a causa material de um texto são as palavras utilizadas nele, e assim por diante.

A matéria é a causa material dos seres ou aquilo de que a coisa é feita (a matéria de uma mesa é a madeira ou o ferro; a de uma estátua, o mármore ou o bronze; a de um discurso, as palavras; a de uma dança, o corpo do dançarino e seus os gestos; etc.). (CHAUÍ, p. 395)

Por outro lado, se quisermos ir mais longe em nossas explicações quanto a isto, podemos  lembrar (conforme uma nossa citação anterior de Marilena Chauí) que esses materiais de que as coisas são feitas — pelo menos na medida em que sejam materiais no sentido realmente físico do termo, ou mais precisamente no sentido de materiais de algum modo sensíveis, que podemos captar pela visão, pela audição, pelo tato, pelo paladar ou pelo olfato — podem ser considerados também como dýnamis, isto é, como massas dinâmicas em movimento que vão assumindo e perdendo formas.

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Na verdade, podemos pensar na matéria sensível deste modo não porque seja um conceito de matéria física ou sensível especificamente da filosofia de Aristóteles, e sim porque essa era a compreesão normal da matéria física ou sensível na cultura grega em geral, na época desse filósofo.

Apesar de hoje estarmos acostumados com a noção da matéria física como algo estático, parado, sem nenhuma dinâmica ou movimento, para aqueles gregos da antiguidade era diferente. Para eles a matéria era vista como algo em movimento e que estava sempre "brotando" do fundo da natureza para aparecer diante dos nossos olhos (e demais sentidos) e depois se desmanchando, como a água que brota de uma fonte.

Na verdade antiga palavra grega phísis — de onde vem a atual palavra "físico" — queria dizer exatamente isso: uma fonte natural de água brotando por exemplo do chão.

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Das "4 causas" de Aristóteles, o que são as "causas eficientes"
e de que modo ele trabalha com esse conceito?

A causa eficiente (causa geradora de efeito) é uma força externa que age sobre algo produzindo nesse algo algum efeito. Por exemplo, são as causas eficientes (forças externas) que fazem com que essa matéria (a causa material) comece a assumir uma forma que irá mudar mais e mais indo na direção àquela forma ideal perfeita que Aristóteles de “causa formal”, mas parando no meio do caminho (porque a perfeição é impossível neste mundo). 

A causa eficiente é mais ou menos aquilo que estamos acostumados desde Descartes a chamar simplesmente de “causa”. Ela é uma força externa que provoca algum efeito, alguma alteração, em alguma coisa.

Só que na filosofia de Aristóteles, todas as outras condições necessárias para que uma coisa exista além de sua forma "em ato" no momento e de seus potenciais para o futuro — condições que precisamos observar nessa coisa para compreendê-la em seus processos de transformação — são tratadas “causas” da existência dessa coisa, e a presença de causas eficientes (externas) é apenas uma dessas condições que Aristóteles chama de "causas".

Foi somente bem mais tarde, depois da Idade Média, que se começou a trabalhar (a partir do filósofo René Descartes) com a ideia de que, para explicar as coisas, não era preciso utilizar todos esses quatro tipos de “causas” de que Aristóteles falava: apenas um delas — a causa geradora de efeitos — era suficiente para explicar sozinha tudo o que quiséssemos.

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Resumindo todas essas condições, podemos dizer o seguinte.  Existe a forma atual da coisa (a forma que está "em ato" na coisa no momento, agindo sobre as demais coisas que existem no mundo ao redor dela) e produzindo efeitos nessas outras coisas. Existem também os potenciais que podemos perceber nessa forma atual da coisa, se observarmos por algum tempo como essa coisa vai se desenvolvendo e como sua forma que está "em ato" vai se alterando.

Existe também tudo aquilo de que essa coisa em processo de mudanças é composta (causas materiais que fazem parte dela). Existe aquela forma ideal perfeita em direção à qual podemos calcular que a coisa vai avançaçando em seu processo, conforme vai se desenvolvendo, mas que nunca poderá atingir (causa formal). E existem as forças externas (as causas eficientes)  que interferem no processo, seja juntando na coisa todos os componentes necessários para formá-la e ajudá-la a ir tomando cada vez mais forma na medida em que vai se desenvolvendo, seja separando dela os componentes que a formam, desmantelando-a, dissolvendo-a e fazendo perder cada vez mais a forma que antes vinha tomando.

Por último temos a causa final ou as causas finais, que costumam ser compreendidas como as "finalidades" da coisa. Elas consistem na verdade no papel (ou nos papéis) que a coisa vai passando a desempenhar no mundo ao seu na medida em que vai tomando alguma forma.

Por exemplo: os materiais que formam uma cadeira, conforme vão sendo unidos para irem tomando essa forma de cadeira (graças à força de causas eficientes sobre eles, como a mão de obra de quem produziu a cadeira), vão conseguindo, com essa forma de cadeira, agir sobre outras formas ao redor e desempenhar um certo papel no mundo — no caso, romando a forma de cadeira, o conjunto todo passa a produzir na vida de certos seres humanos o efeito de lhes permitir se sentarem com maior conforto do que se não existissem cadeiras.

Para lembrar o que são as causas eficientes no meio de tudo isso, basta lembrar que elas são sempre forças vêm de fora, forças externas, que não fazem parte da coisa, mas agem sobre ela produzndo nela algum efeito, que pode ser favorável (talvez até fundamental) ou desfavorável no processo de tomada de forma dessa coisa.

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Das "4 causas" de Aristóteles, o que é a "causa formal"
e de que modo ele trabalha com esse conceito?

O que nos diz o livro de Marilena Chauí, é que para Aristóteles...

A forma é a causa formal dos seres (a mesa é a forma da madeira ou do ferro; a estátua, a forma do mármore ou do bronze; uma tragédia, uma poesia épica ou um tratado de medicina ou de filosofia, são as formas de um discurso ou de um texto; a dança, a forma do corpo do dançarino, isto é, certos gestos feitos num certo ritmo e numa certa sequência; etc.).
(CHAUÍ, p. 395)

A partir desta compreensão da "causa formal" de Aristóteles como se fossem simplesmente as formas das coisas tal como as observamos, acabamos aproximando-o bastante de Maquiavel — que de fato foi um leitor assíduo de Aristóteles.

Contudo é preciso considerar que Maquiavel desplatonizou bastante o Aristóteles original, que apesar de toda a sua valorização da experiência e da observação dos fatos nunca deixou de manter certas conexões com o indealismo platônico. E acontece que, na verdade, uma dessas conexões está precisamente nos detalhes do modo como Aristóteles trata a forma das coisas: porque ele separa a forma com que elas aparecem para nós (a forma atual que elas têm) da forma ideal ou perfeita para a qual se encaminham...

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Pois bem: o que considera como uma das "causas" do desenvolvimento das coisas não é a forma "atual" delas, não é a forma que elas têm em ato para quem as observa.

Se quisermos ser realmente precisos, será melhor dizermos que, na verdade, quando Aristóteles fala em "causa formal" não está falando exatamente daquela forma atual, que está aparecendo ali, "no ato" diante de nós, agindo de algum modo sobre nós e sobre as demais coisas do mundo ao seu redor. Quando fala em "causa formal" ele não está falando exatamente da forma de cadeira que uma cadeira que está diante de nós apresenta, por exemplo, e que age sobre nós nos dando um lugar onde podemos nos sentar.

Na verdade, quando fala em "causa formal", Aristóteles está falando sobre aquela forma pura, perfeita, sem nenhum conteúdo ou material, isto é, feita de nada, na direção da qual essa cadeira foi se desenvolvendo conforme estava sendo fabricada. Como já vimos, para Aristóteles tudo o que se desenvolve em alguma direção tomando uma forma cada vez mais completa está se desenvolvendo na direção de uma forma pura, perfeita que podemos raciocinar e prever mais ou menos qual seria — e esta é que é a causa formal da coisa.

Mas a causa formal, isto é, a forma pura e perfeita que podemos raciocinar qual seria, é uma forma que nunca vai ser atingida de verdade, porque neste mundo não existe forma pura nenhuma, todas as formas são formas de alguma coisa, de algum material ou conteúdo que não é e nunca será perfeito.

Tudo o que realmente podemos ver, ouvir, tocar, cheirar ou de que podemos sentir o gosto neste mundo, tudo o que podemos captar pelas nossas sensações físicas, é sempre imperfeito e tem sempre apenas uma forma atual (em ato), que por isso mesmo também é imperfeita, incompleta, e que é a que podemos captar com os nossos sentidos — como esta de que Marilena Chauí está falando na citação acima.

A "causa formal" de uma coisa é a forma pura, perfeita e ideal que ela poderia ter se fosse possível para ela gastar toda a sua energia, isto é, gastar todo aquele material imperfeito e cheio de potencialidades de que é feita, transformando todo esse materia-potencial imperfeito em uma forma completa, perfeita e realizada.

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A "causa formal" de uma cadeira, por exemplo, não é pura e simplesmente a sua forma atual de "cadeira", mas aquela forma de uma cadeira pura e perfeita na direção da qual ela foi desenvolvida quando foi fabricada, mas que não pôde atingir (porque nunca poderia) de qualquer maneira.

Platão chamava essas "formas puras" aristotélicas de "ideias puras" ou "essências", e dizia que elas estavam "em outro mundo", em um mundo todo feito de coisas puramente espirituais e perfeitas, sem nenhuma materialidade imperfeita.

Aristóteles já não acredita nesse "outro mundo" de que Platão falava. Mas nem por isso deixa de buscar a perfeição nas coisas. Para ele, essas "formas puras" são apenas o resultado de muitas observações e do raciocínio e não estão em "outro mundo" mas no destino, no caminho para o qual as coisas (que são na verdade processos) estão se encaminhando conforme se desenvolvem, e também estão nas conclusões que podemos tirar, no nosso pensamento, de tudo aquilo que observamos no mundo e a respeito do que fomos raciocinando para tirar essas conclusões.

Em suma: observando o processo de desenvolvimento dos fatos e raciocinando a partir disto, podemos entender qual é o destino para o qual esses processos estão caminhando, qual é o sentido que está inscrito neles e para o qual eles estão apontando. E quando esse sentido é o de um aperfeiçoamento cada vez maior, o de tomada de uma forma cada vez mais completa e perfeita, o destino final que podemos concluir que está lá adiante como um alvo inatingível é, justamente, a causa formal desse processo.

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Das "4 causas" de Aristóteles, o que são as "causas finais"
e de que modo ele trabalha com esse conceito?

A causa final é talvez a mais difícil de se explicar, e de todas as quatro causas, é a ela que Aristóteles parece dar mais importância. Acompanhemos a explicação de Marilena Chauí.

Todo ser, diz Aristóteles, move-se ou muda porque aspira ou deseja a perfeição, isto é, realizar plenamente sua essência. Todo ser aspira à identidade total consigo mesmo. Assim, a primeira precondição para que a causa eficiente opere é dada pela causa final, ou seja, é porque a finalidade dos seres é realizar plenamente sua essência, aspirando pela identidade e pela imobilidade, que eles não cessam de mudar, pois, de mudança em mudança, cada ser se aproxima indefinidamente de sua finalidade ou de sua forma perfeita. Ora, se o princípio ou a causa mudança é a causa material – entendida como aquilo "a partir do que” há mudança –, mas também é a causa final entendida como aquilo "em vista de que" há mudança –, é preciso dizer que a matéria sempre possui um fundo que ainda não foi determinado pela forma ou que ela está sempre inacabada por uma falta de identidade que procura suprimir-se como falta ou carência de forma (...). A matéria mutável é uma imperfeição em busca da perfeição, um inacabamento em busca do acabamento. (CHAUÍ, p. 396)

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As coisas se transformam no sentido de irem assumindo cada vez mais completamente a sua identidade, isto é, as coisas vão tomando forma com o tempo, e se tornando aquilo que elas devem ser. Se elas chegassem a se completar, parariam de se transformar, mas esse processo de se completarem cada vez mais não acaba nunca. Sempre continua havendo um fundo de matéria que não assume aquela forma que o resto da matéria já assumiu, por isso tudo está sempre em movimento, em transformação, tomando formas.

A causa final de uma coisa é a sua razão de ser, é a finalidade ou objetivo do seu movimento ou processo de transformação, por isso corremos o risco de confundir a causa final com a causa formal: afinal, as coisas não estão se transformando para assumirem no final das contas uma determinada forma, que é a sua forma mais completa?


Ora, como um ser "sabe" qual é sua finalidade? Como um ser "conhece" sua perfeição imutável? Pela forma. A causa formal determina para um ser a perfeição ou o acabamento de sua essência. Isso significa, portanto, que a causa final exprime a causa formal como finalidade de uma coisa ou de um ser e guia as operações da causa eficiente. A causa final sendo aquilo em vista do que a coisa muda, Aristóteles afirma que essa causa é primeira ou a razão profunda da mudança. (CHAUÍ, p. 396)

Mas é preciso notar que, se a causa final “exprime a causa formal como finalidade de uma coisa”, ela não “é” simplesmente a causa formal dessa coisa. A finalidade, ou causa final, não é exatamente a mesma coisa que a causa formal — caso contrário, Aristóteles falaria apenas três tipos de causas, e não em quatro.

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A causa final é o que orienta, aquilo que guia as operações da causa eficiente, é o objetivo delas, que pode ser sim simplesmente o de fazer com que certa matéria assuma uma certa forma, mas geralmente é mais do que isso.

Se falarmos por exemplo em um vaso moldado em uma porção de barro, a forma do jarro é a causa final e o barro é a causa material, a causa eficiente é o trabalho do artesão sobre esse barro para dar a ele essa forma, mas a causa final, o objetivo desse trabalho, é criar um objeto que sirva para enchermos de terra e plantarmos flores ou plantas nele.

A causa formal é só o formato do vaso, a causa final é aquilo para que esse objeto serve: é um vaso, serve para cultivarmos alguma planta ou flor nele, e essa é a sua causa final.

Na verdade, para Aristóteles, a forma (ou causa formal) é apenas a causa final “imediata” do movimento, porque o objetivo ou finalidade (a razão de ser) do movimento é sempre o de assumir uma forma, o movimento só ocorre como um movimento no sentido de assumir uma forma.

Mas se, ao invés de pensarmos no movimento, pensarmos por exemplo na matéria (ou causa material), seremos obrigados a reconhecer que, segundo Aristóteles, a causa final (o objetivo, a finalidade, a razão de ser) da matéria não é realmente a forma, e sim o movimento, porque para Aristóteles, a razão de ser da matéria, o objetivo da existência da matéria, é manter as coisas em movimento. Uma vez que se não houvesse matéria, se só houvesse formas, não haveria necessidade de movimento para se tentar atingir essas formas modelando a matéria.

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Entretanto, apesar de toda essa dificuldade para definir o que é a causa final aristotélica, não é tão difícil assim reconhecer qual é a causa final de alguma coisa (ou quais são suas causa finais). Basta perguntar o seguinte: qual é o papel (ou quais são os papéis) que essa coisa exerce no mundo quando vai tomando forma e se tornando capaz de agir sobre as demais coisas do mundo ao seu redor?

O que pode nos causar estranhamento é que para Aristóteles esses papéis não são desempenhados porque as coisas estão assumindo essas formas que elas estão assumindo: para ele é justamento o contrário, se as coisas estão assumindo as formas que estão assumindo, só estão fazendo isso porque estão sendo, como diz Marilena Chauí, "puxadas" para isso por essas causas finais.

Em suma: é para poderem desempenhar esses papéis no mundo que as coisas assumem as formas que elas assumem, e não o contrário.

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Como acontece a ação conjunta das "4 causas" de Aristóteles?

Marilena Chauí oferece uma boa explicação do modo como Aristóteles junta tudo isso para explicar como ocorre o processo de desenvolvimento das coisas no mundo. Sigamos essa explicação:

Para compreendermos como Aristóteles explica a ação conjunta das quatro causas, precisamos, agora, examinar dois conceitos fundamentais da metafísica (e da física) aristotélica: o conceito de ato (enérgeia*) e o de potência (dynamis*). A forma de um ser é ato ou atualidade; é a enérgeia, a essência da coisa tal como ela é aqui e agora. A matéria de um ser é potência ou potencialidade, a dýnamis, a aptidão ou a capacidade da coisa para o que ela pode vir a ser no tempo. Quando uma matéria recebe uma forma, não a recebe inteiramente pronta, acabada, atualizada, mas a recebe como uma possibilidade, como uma potencialidade que deve ser atualizada. Por exemplo, quando o macho e a fêmea se unem, surge na matéria a forma do feto, que é o seu futuro em potência; essa potência deverá ser atualizada no tempo pela dýnamis da matéria do feto, até que se torne uma criança, depois um adolescente e depois um adulto, realizando inteiramente a forma que estava potencialmente contida em sua matéria. A criança é um ser humano em ato e que, em potência, é jovem, o jovem é um ser humano em ato e que, em potência, é adulto. Cada ser surge, portanto, com a forma atual (o que esse ser é) e com a forma acabada ou completa potencialmente contida na matéria (o que esse ser poderá ou deverá ser). A unidade da causa formal e da causa material é realizada pela causa eficiente, à qual cabe atualizar a forma potencialmente contida na matéria, de tal modo que um ser não muda de forma, mas passa da forma em estado menos perfeito ou acabado para a forma em estado mais perfeito ou acabado. A matéria, como suporte, é passiva: recebe a forma atual e a potencial e é “puxada” pela causa final para atualizar a potencialidade, graças às operações da causa eficiente. (CHAUÍ, p. 397)

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Seria preciso além do que lemos nesra citação apenas lembrar que:

  1. a causa formal não é exatamente a forma atual mas a forma ideal e perfeita inatingível, da qual esta forma atual é apenas um esboço inacabado, coisa de que já falamos neste artigo; e
  2. a matéria, para esses pensadores da Grécia antiga (o que inclui Aristóteles) não era exatamente passiva — coisa de que também já falamos, e que fica clara pelo fato de Aristóteles tratar a matéria como “dýnamis” (que é a palavra que acabamos traduzindo como “potência”).

A palavra “dýnamis” é a mesma de onde vem a palavra “dinâmico”, que indica hoje a qualidade de quem é ágil, de quem se move, de quem faz as coisas, e não permanece na passividade. As formas é que são passivas, no sentido de que são estáticas, não se movimentam, não mudam. A matéria é dinâmica, ela se move o tempo todo, só que se move sem qualquer direção definida, ela apenas “jorra” ou “brota” desengonçadamente, sem forma definida, como a água que emerge de uma fonte.

Certo? São coisas que já havíamos explicado antes neste mesmo artigo.

Pois bem. A causa final é que faz com que a causa eficiente tente dar uma forma (tente alcançar uma causa formal) à matéria (e aacabe dando a ela uma forma imperfeita a meio de caminho). Isto é, a causa final faz com que a causa eficiente dê uma direção para os movimentos espontâneos da matéria.

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O que é "primeiro motor" na teoria de Aristóteles,
e de que modo ele trabalha com esse conceito?

Apesar de assumir uma postura que parece bem mais “materialista” do que a do seu mestre Platão, Aristóteles não deixa de afirmar a existência de uma entidade metafísica que seria pura forma, puro ato, ou seja, uma entidade perfeita, imaterial, que não precisaria mudar ou se transformar em nenhuma direção.

Ele chama essa entidade de “primeiro motor”, porque segundo ele, é ela quem, no final das contas, faz com que tudo se mova no mundo: no final das contas, tudo acaba se movendo direta ou indiretamente na direção do primeiro motor – o primeiro motor é a primeira de todas as causas finais, a primeira coisa a orientar todos os movimentos, e que direta ou indiretamente está por detrás de todos eles, é a causa final de todas as causas finais, a causa final de tudo.

O raciocínio de Aristóteles, em relação a isto, é bem parecido com o de seu mestre Platão quando este fala do “Supremo Bem”. Lembremos um pouco o que Platão nos diz a esse respeito.

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Para Platão, se a essência (forma ou ideia pura das coisas) é o que elas têm de melhor, é a perfeição que elas poderiam e deveriam tentar atingir, podemos dizer então que, na medida em que uma coisa se aproxima da sua essência, ela não apenas melhora, mas se torna “mais bem” aquilo que ela já é, se torna mais de si mesma, assume melhor e mais completamente a sua própria identidade.

Neste sentido, o movimento de algo no sentido de se desenvolver em direção à sua própria essência é um movimento desse algo no sentido de melhorar sem deixar de ser o que é. Com base nisso, é fácil entender por que, para Platão, a essência de todas as essências deve ser considerada como o “Supremo Bem”, isto é, como o próprio sentido do que significa “melhorar até o máximo”, o sentido de perfeição – que é o máximo do aperfeiçoamento que se pode imaginar para uma coisa.

O “Supremo Bem” de Platão é, para ele, o máximo do melhor em tudo, e exprime isso como o objetivo último e superior a ser buscado em todas as coisas — mesmo que nunca se consiga alcançá-lo.

E Aristóteles, o que diz? Que todas as coisas se movem orientadas por objetivos, finalidades, e que conforme se desenvolvem nesse sentido, se tornam melhores naquilo que já são, isto é, vão se desenvolvendo e tomando forma, assumindo cada vez mais completa e perfeitamente a sua própria identidade.

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Então qual é a finalidade geral de todos esses movimentos que buscam cada um a sua finalidade? A finalidade geral de todos eles só poderia ser mesmo a própria perfeição, o próprio sentido do que é algo “perfeito”.

Ora, algo “perfeito” não tem por que “mudar”, porque já não tem mais nada em que se aperfeiçoar, portanto não tem nenhum potencial a ser desenvolvido, todos os seus potenciais já estão plena e completamente desenvolvidos.

Isso quer dizer que essa perfeição suprema não tem potenciais: para usarmos os termos de Aristóteles, ela é “ato” puro, sem potencial. Também é completamente imaterial, só pode estar fora do mundo físico — é pura forma, sem matéria, pura essência. (Um Cristão que adotasse Aristóteles tenderia a dizer que ela é a única ideia pura de tipo platônico — fora deste mundo — que segundo Aristóteles deve ser considerada “real”, até porque se não fosse “real” seria imperfeita).

Do mesmo modo como para Platão tudo o que se desenvolve no fundo está se desenvolvendo orientado pelo Supremo Bem, isto é, pelo próprio sentido do que é desenvolver-se, aperfeiçoar-se, melhorar tentando atingir o máximo absoluto da perfeição.

Em sentido semelhante, para Aristóteles também, tudo o que se desenvolve e vai tomando forma, se diretamente está se orientando por alguma causa final específica, no fundo e indiretamente está se movendo orientado pela própria noção do que é orientar-se para um desenvolvimento melhor de si mesmo.

Isso quer dizer que, no fundo e indiretamente, tudo está se movendo orientado pelo primeiro motor, que sendo perfeito já não precisa mover-se, e só pode ser imóvel – mas, como se vê, acaba movendo todo o resto do que existe do mundo, atuando como motor que move todas as coisas.

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De que modo "potência" e "ato" e as "quatro causas" interferem
no desenvolvimento do ser humano e na questão da justiça?

Aristóteles vê o ser humano como um ser essencialmente social, que não poderia (ou muito dificilmente poderia) se desenvolver sozinho como se desenvolve quando vive em sociedade, com outros seres humanos.

Os seres humanos têm portanto uma característica que lhes é muito fundamental: eles se comunicam uns com os outros de maneira mais refinada e elaborada que outros seres vivos — eles dominam a linguagem verbal, o uso das palavras, a comunicação discursiva. São capazes de discorrer sobre as coisas falando uns com os outros ou uns para os outros. Isto é fundamental no ser humano.

Destarte não é à toa que Aristóteles dará tanta importância às diferentes formas de discurso de que o homem é capaz, às diferentes maneira como é capaz de se comunicar discursivamente com outros homens.

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(No final do artigo faremos um rápido exame do conjunto das preocupações de Aristóteles com essa questão das diferentes formas de discurso pelas quais o ser humano comunica a outros seres humanos o que está pensando. Faremos isso recorrendo ao auxílio de um estudo de Olavo de Carvalho sobre o assunto.)

Aristóteles também vê, além disso, uma outra diferença essencial entre os seres humanos e outros seres que existem na face da terra: os seres humanos são capazes de alterar as potencialidades das coisas, e inclusive as suas próprias potencialidades, e de atribuir novas finalidades às coisas, inclusive a si próprios no decorrer de suas vidas, de modo que são capazes de determinar o seu próprio rumo de desenvolvimento e o seu próprio destino.

Uma das principais aplicações que Aristóteles faz de sua teoria dos processos de desenvolvimento (que combina os conceitos de Ato e Potência e das 4 causas) é justamente esse exame do processo de desenvolvimento do ser humano. E ele faz isso precisamente para nos mostrar o quanto os seres humanos dependem uns dos outros em seu desenvolvimento e tendem naturalmente a viverem e se desenvolverem em conjunto, socialmente — o que se pode entender no sentido de que vivem direta ou indiretamente orientados pelo caminho do bem comum. Seja porque avançam em direção a esse bem comum, seja porque, tomando um rumo errado, se desviam dessa orientação (que mesmo assim, não deixa de ser a melhor para eles próprios).

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Vejamos.

Em seu processo de desenvolvimento, cada ser humano escolhe para si mesmo as finalidades que ele quer ter, os papéis que ele quer desempenhar no mundo. E para isso, cada ser humano precisa contar com todas as causas eficientes que possam juntar nele aqueles materiais (aquelas causas materiais) que são necessários para que ele consiga tomar a forma com a qual poderá, finalmente, realizar essa finalidade, desempenhar esse papel no mundo que escolheu desempenhar.

Por exemplo: se um ser humano quer desempenhar no mundo o papel de que um advogado desempenha, para conseguir isso ele precisará tomar essa forma de advogado. Para tomar essa forma de advogado, ele precisará que certos materiais se juntem nele, por exemplo conhecimentos pertinentes a essa profissão, habilidades úteis nela, contatos na área, experiência, diploma etc.

Então ele quer conseguir juntar em si mesmo esses materiais (essas causas materiais) que vão levá-lo a tomar a forma de advogado para poder realizar essa finalidade, isto é, para poder desempenhar esse papel que um advogado desempenha no mundo, ou mais precisamente na vida das pessoas. Para conseguir juntar tudo isso em si mesmo esse ser humano vai precisar de várias casas eficientes: por exemplo bons livros sobre o assunto (e alguém que os escreva), aulas (e um professor que as dê), colegas de trabalho etc.

Podemos perceber que as causas eficientes acabam sendo quase sempre, direta ou indiretamente, outras pessoas — o que reforça ainda mais a importância da vida social e intercomunicação entre os homens.

Para se desenvolver e realizar seus potenciais, uma pessoa precisa então de outras pessoas que também estão em seus próprios processos de desenvolvimento, e que no caminho acabam ajudando-a a se desenvolver.

O estudante de direito, por exemplo, para se desenvolver e tomar a forma de advogado, precisará entre outras coisas de alguém que esteja se desenvolvendo e se realizando ao tomar a forma de professor, e de alguém que esteja se desenvolvendo e se realizando ao tomar a forma de autor de livros sobre direito... e assim por diante.

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Como o conceito de "causa final" se relaciona à justiça e à felicidade?
Existe uma causa final universalmente válida para toda a humanidade?

Essa ideia de que cada um decide que finalidade pretende dar à sua própria existência, que papel pretende desempenhar no mundo, significa que não existe nada de comum entre as finalidades que os seres humanos escolhem dar às suas vidas?

Em outras palavras, será que não existe nada que seja uma finalidade geral, comum e universal, de todos os seres humanos? Será que segundo a teoria de Aristóteles não é possível falar em alguma causa final de todos os seres humanos, em alguma finalidade do ser humano em geral, enquanto ser humano? — Sim, é possível. Para Aristóteles, a finalidade do ser humano (de certo modo uma finalidade evidente, já que todos os humanos a querem) é ser feliz.

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Mas isto não parece ser uma resposta muito satisfatória à questão que acabamos de colocar, porque o conceito de "felicidade" pode ser muito subjetivo, "felicidade" pode ser algo que cada um interpreta livremente à sua própria maneira, não é? — Não. Aristóteles procura nos passar uma noção muito clara e precisa do que é que torna um ser humano (qualquer ser humano na face da terra) feliz.

O que torna um ser humano feliz, aquilo que todos os humanos buscam em suas vidas, é a realização de suas potencialidades.

Como assim?

Segundo Aristóteles, quanto mais realizamos, quanto mais colocamos em ação (ou "em ato") das nossas potencialidades, mais nos tornamos felizes. Por que? Porque realizar uma potencialidade nossa, é desenvolver uma das nossas capacidades enquanto seres humanos. Note-se que enquanto seres humanos, temos todos as mesmas potencialidades: aquelas que um ser humano, qualquer ser humano, tem — pelo próprio fato de ser da espécie humana.

(Por outro lado, se nos considerarmos por exemplo apenas enquanto estudantes de Direito, nossas potencialidades serão apenas aquelas que o estudo do Direito nos permite realizarmos, evidentemente... mas enquanto seres humanos de um modo geral, poderíamos a princípio desenvolver toda e qualquer capacidade que seja possível um ser humano desenvolver.)

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Sim, mas de que modo isso nos tornaria mais felizes? — O que Aristóteles parece estar querendo nos dizer é o seguinte: um ser humano que fosse capaz de desenvolver todas as suas potencialidades seria capaz de realizar, sempre que desejasse, toda e qualquer coisa que fosse humanamente possível. Nada de humanamente possível estaria fora do seu alcance, ele poderia fazer sempre que quisesse tudo aquilo que algum ser humano algum dia já foi capaz de fazer ou algum dia ainda será capaz de fazer. Isto, segundo Aristóteles, seria a suprema felizidade.

Entretanto, Aristóteles (como já podemos imaginar a partir dessa noção do que é a felicidade humana) não é tão otimista, pelo contrário: é de um pessimismo bastante realista em relação a este assunto. Porque vejamos... será que alguém na face da terra algum dia já foi capaz, ou algum dia ainda será capaz de desenvolver em si mesmo todas as potencialidades humanamente possíveis? Não. Isto não é possível na prática.

Não é possível na prática porque nossas condições reais de desenvolvimento e realização dos nossos potenciais é limitada por diversos fatores: desenvolver nossas potencialidades dá trabalho, exige esforço e toma tempo. Nós por exemplo não somos eternos ou imortais, e o tempo de uma vida inteira não é suficiente para isso. além do mais, grande parte desse tempo precisamos nos dedicar a atividades que dizem respeito à nossa sobrevivência ou à nossa convivência com os outros.

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Também não podemos estar em mais de um lugar ao mesmo tempo, e isto pode nos dificultar o acesso a diversas condições que poderiam ajudar nesse nosso desenvolvimento. Se por exemplo precisarmos fazer um curso que só existe em alguma terra distante daquela em que vivemos, será que teremos condições de parar todas as nossas atividades para fazermos essa viagem e nos dedicarmos a esse curso?

O desgaste que temos com nossos esforços para nos desenvolvermos também é um fator limitante que precisamos considerar. Ninguém pode viver por exemplo passando noites e noites em claro e deixando de parar para comer a fim de ganhar tempo nos estudos... nossas condições físicas têm limites, e forçá-las além desses limites pode nos prejudicar — sem contar a questão de calcularmos o quanto vale mesmo à pena tanto sofrimento para depois coquistar um tanto de felicidade.

E finalmente, como se não bastasse, nem sempre o processo de desenvolvimento dos outros conforme realizam seus potenciais irá de fato nos ajudar a realizarmos os nossos. Às vezes pode sim, infelizmente, acontecer o contrário: com o modo como alguém vai se realizando, por exemplo com os  potenciais que esse alguém escolhe realizar, esse alguém pode acabar infelizmente dificultando ou até bloqueando o desenvolvimento de certos potenciais nossos. Isso pode acontecer quando por exemplo alguém realiza seus potenciais inventando alguma nova tecnologia que torna a nossa atividade (aquela em que tanto queremos nos desenvolver) uma atividade obsoleta.

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Por isso, precisamente, é que se tornam extremamente importantes para aristóteles as questões da convivência humana, da sociabilidade, da comunicação, da ética e do direito. A questão da justiça, em especial, está diretamente ligada às nossas condições para conseguirmos colocar em prática, de modo realista e dentro dos limites do possível, o máximo de nossas potencialidades — e fazermos isso todos juntos em sociedade, de modo que nos ajudemos uns aos outros mais do que nos atrapalhamos, e que todos possam ter pelo menos uma porção justa de sua felicidade diante de tais condições reais que são, enfim, as mesmas para todos.

Precisamos lembrar também que as limitações ao desenvolvimento pleno, completo e absoluto da felicidade não estão todas na vida em sociedade. Pelo contrário, se a sociedade for organizada de modo devidamente justo, a vida social nos ajudará a nos desenvolvermos. Isolado, dificilmente um ser humano chegaria muito longe em seu desenvolvimento.

Segundo Aristóteles, o máximo de desenvolvimento real de suas potencialidades que o ser humano pode atingir em direção à perfeição não é, de maneira nenhuma, aquele ponto a que ele chega quando atinge individualmente a idade madura, antes de envelhecer.

Embora nesse ponto já estejamos com o máximo de desenvolvimento individual do nosso organismo e da nossa mente que podemos atingir sozinhos, Aristóteles assegura que ainda temos mais a desenvolver: o ser humano, para ele, é um ser social, como já dissemos, um ser que só se desenvolve plenamente na convivência com outros seres humanos — e mais do que isso, participando ativamente dessa convivência social, como membro ativo de uma comunidade política.

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Qual a importância da participação política para os seres humanos,
segundo a teoria de Aristóteles? O que é o bem comum?

O homem, para usarmos a linguagem do próprio Aristóteles, é um animal político. Para realmente se desenvolver, precisa participar ativamente da pólis (cidade, organização social e política) em que vive. Sem isso, muitas de suas maiores potencialidades ficam atrofiadas, permanecem em estado de potência e não se realizam, não se tornam ato.

No modo de entender de Aristóteles, participar ativamente da vida política em sua cidade significa, basicamente, contribuir para o desenvolvimento do bem comum. E o que vem a ser esse bem comum? Trata-se de um conjunto de coisas consideradas boas para todos os cidadãos e para a comunidade como um todo, bens úteis e importantes para todos e dos quais todos possam se servir na medida que seja considerada, pelos costumes da própria sociedade, como a mais justa.

Assim, é natural de qualquer ser humano buscar o seu próprio desenvolvimento e, com ele, buscar ao mesmo tempo o desenvolvimento dos que vivem na mesma comunidade, buscar o bem comum que deve beneficiar a todos, incluindo ele próprio. Isso não quer dizer que todos acabem realmente cumprindo essa sua natureza, e realmente se desenvolvendo tanto quanto poderiam se desenvolver. Há os que “empacam” no meio do caminho, e os que se desviam e acabam se “corrompendo” antes do tempo — isto é, perdendo um pouco de suas potencialidades humanas já realizadas, tornando-se, digamos assim, “menos humano”, ou “menos completo” como ser humano.

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Isso pode dar a entender que Aristóteles defende a igualdade de todos no direito de participarem da política, e também que ele se apoia em certas noções de direito natural para propor um conjunto de valores universais (os tais bens comuns ao interesse de todos) que seriam os mesmos para qualquer sociedade. Mas as duas noções são ilusórias: Aristóteles não defende nem uma dessas coisas nem a outra. Em primeiro lugar, é preciso compreender que Aristóteles, assim como seu mestre Platão, era um aristocrata. Conheceu a democracia direta de Atenas, e não gostou.

É preciso não imaginarmos Aristóteles “melhor” do que ele é segundo o nosso modo atual (democrático e igualitarista) de avaliar as coisas. Ele é contrário àquela forma de organização política democrática de Atenas porque diz que ela impõe os interesses da maioria mais pobre a uma minoria (a nobreza, os aristocratas), que acaba sendo forçada a seguir as vontades do populacho contra os seus próprios interesses aristocráticos.

Assim, na democracia de Atenas, as classes mais altas não são realmente atingidas pela busca do bem comum. Seus interesses ficam excluídos desse suposto “bem comum”, de modo que não se pode dizer que é de fato o bem comum o que está sendo realmente buscado. Os democratas de Atenas, segundo esse ponto de vista, estão buscando e realizando apenas o bem da maioria mais pobre.

Mais do que isso: conforme o modo de pensar de Aristóteles, cada família tem o seu chefe, e é o chefe de família quem deve se responsabilizar por essa participação política, e não sua mulher ou seus filhos por exemplo, menos ainda seus escravos.

Somente chefe de família é que vai se desenvolver mais plenamente como ser humano, participando mais ativamente da vida política e social. Os outros, que estão sob seu comando em sua casa, na vida doméstica, vão apenas receber indiretamente (através dele) os efeitos desse seu desenvolvimento, pois sentirão em suas vidas diárias os bons resultados disso, por estarem sob o comando de um homem mais plenamente desenvolvido como ser humano.

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Segundo Aristóteles, a justiça e o bem comum
podem variar de uma sociedade para outra?

Se não devemos imaginar Aristóteles "melhor" do que ele é, por outro lado, também devemos evitar imaginá-lo “pior” do que ele realmente é, quando o avaliarmos do nosso ponto de vista atual (democrático e igualitário). Porque para ele, embora seja pessoalmente um defensor da aristocracia (e não da democracia), não é uma pessoa sozinha (nem ele próprio) quem deve decidir o que é, afinal de contas, o tal bem comum.

O bem comum, para Aristóteles, não é de maneira nenhuma formado sempre pelos mesmos bens (que poderíamos imaginar serem bens pensados por ele, Aristóteles). Ele nunca fez algo como uma “lista universalmente válida” dos bens que devem ser considerados parte do bem comum para qualquer sociedade. Pelo contrário: Aristóteles respeita profundamente as diferenças entre as diversas sociedades. Para ele, cada sociedade tem os seus próprios costumes, o que significa dizer também que cada sociedade tem inclusive a sua própria ética, os seus próprios valores morais.

Com base nesses costumes e valores, que variam de uma sociedade para outra, é que se pode determinar o que cada sociedade à sua própria maneira vai considerar como seu bem comum.

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Investigando esse assunto, Aristóteles viaja para muitos diferentes lugares, em sua época, e trata de observar os processos de desenvolvimento dos costumes e valores morais de cada sociedade que encontra. Ele faz uma enorme lista de observações cuidadosas sobre uma imensa variedade de sociedades de sua época, e procura examinar, em cada uma delas, quais são os pontos em que elas foram capazes de construir suas leis de acordo com o bem comum (ou seja, de acordo com seus próprios costumes e valores morais), e quais são os pontos em que não conseguiram transmitir seus costumes e valores morais para as leis, se afastando do bem comum.

Segundo Aristóteles, bons legisladores são aqueles que conseguem exprimir através das leis o bem comum (conforme os costumes e valores morais) da sua sociedade em particular.

Quando isso acontece (quando conseguem exprimir o bem comum), as leis são justas, e pode-se considerar “justo” aquele que as segue. Mas quando as leis não visam o bem comum, e ao invés disso acabam defendendo o interesse de uns em detrimento do interesse de outros, ferindo os costumes e valores morais da própria sociedade regida por elas, neste caso são leis injustas, e pode-se considerar “justo” aquele que as critica e procura corrigi-las em favor do bem comum.

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Do ponto de vista jurídico, como se vê, apesar de adotar alguns fortes elementos de jusnaturalismo, Aristóteles pode ser considerado o precursor do direito histórico-sociológico, um “pré-sociólogo” do direito, por assim dizer.

O direito histórico-sociológico considera que a justiça não está simplesmente apoiada em princípios naturais eternos e imutáveis, como faz a maioria dos jusnaturalistas – Aristóteles tem um pouco disto, um pouco de jusnaturalista, mas seu jusnaturalismo não chega a ser dominante, e pelo contrário, se ajusta perfeitamente, sem contradições, à sua postura sociológica, e sem deformá-la.

O direito histórico-sociológico também não aceita que a justiça seja uma simples questão de se seguir o que quer que esteja positivado (posto) em leis oficializadas, escritas etc. — como faz a maioria dos positivistas jurídicos.

O direito histórico-sociológico procura examinar o valor das leis tomando como critério os costumes e valores morais de cada sociedade. Por isso precisa fazer o exame histórico e sociológico de uma sociedade para poder discutir o valor de suas leis. E é precisamente esse o caminho adotado por Aristóteles. Para ele, de fato, a noção de justiça depende dos costumes da sociedade que a adota.

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Um jurista dessa linha nos dias de hoje provavelmente acrescentaria que se trata da noção de “justiça” adotada por essa sociedade em um determinado período histórico — mas até neste ponto Aristóteles não ficaria tão para trás assim, pois poderia dizer que se trata dos costumes daquela sociedade em determinado ponto de seu processo de desenvolvimento, isto é, do processo de realização das potencialidades daquela sociedade.

Neste caso, então, para compreender o que é “justiça”, é preciso mesmo examinar o que cada sociedade, independentemente, considera como “justiça”, segundo seus costumes e valores. E Aristóteles de fato faz isso: realiza uma pesquisa muito minuciosa nesse sentido, em inúmeras sociedades de sua época.

Procurando ser coerente com a sua noção de que cada sociedade dá seus próprios conteúdos ao que deve ser considerado como bem comum, ou seja, de que o que deve ser considerado como bem comum varia de sociedade para sociedade, Aristóteles trata de levantar, a partir de sua extensa e cuidadosa observação de diferentes sociedades da época, quais seriam as possíveis formas de governo mais justas e adequadas ao bem comum para diferentes concepções do bem comum. Isto é, para diferentes tipos de costumes e valores morais.

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Trata de levantar também quais seriam as formas de governo corrompidas, nas quais se governa apenas em benefício de um ou de um grupo, ferindo os interesses dos demais e os costumes e valores da sociedade como um todo, e portanto se desviando da busca do bem comum.

Podemos perceber que o tema do bem comum, em Aristóteles, se exprime na conjunção de outros dois temas tratados por ele: o da felicidade e o da justiça — sendo que esta última fornece na sociedade as condições para que os indivíduos alcancem juntos, e uns graças ao auxílio dos outros (inimizando os momentos em que uns acabam prejudicando os outros). Em outras palasvras a justiça, ne medida em que se vai conseguindo exprimiri-las nas leis e decisões governamentais, vai fornecendo as condições de  compartilhadas de uma certa otimização da felicidade dos cidadãos no meio social, um máximo de felicidade dentro dos limites do possível.

Destarte, as formas corrompidas de governo, podemos dizer que são, segundo Aristóteles, formas nas quais os governantes não estão tentando construir efetivamente essas condições de justiça na sociedade, mas apenas governando e legislando em causa própria ou em favor de seus pares ou sua camada social — sem a imparcialidade necessária à busca da justiça e do bem comum.

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Aristóteles chega a esta classificação das formas de governo:

 

 

Formas de governo de Aristóteles

 

 É por respeitar diferentes caminhos pelos quais cada sociedade procura atingir à sua maneira o que considera como justiça, que Aristóteles admite que tanto o governo de um, quanto o de alguns e o de muitos, qualquer um deles, pode pode ser igulamente válido como meio para buscarmos uma sociedade mais justa.

Mas por outro lado, é por ainda estar ligado àquela mesma busca do perfeito e do ideal que seu mestre Platão empreendia que Aristóteles apresenta também cada uma dessas formas de governo, nesta classificação, como tendo uma versão boa (porque efetivamente busca a justiça de algum modo) e uma versão ruim, corrompida, estragada, em que o governo já não se realiza de modo imparcial e em busca da justiça.

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De que modo o conceito de justiça de Aristóteles se aplica
à prática de nossas virtudes morais?

 

Relembremos o que Aristóteles considera como uma situação em que há justiça: a situação justa é aquela em que cada um dos envolvidos recebe equilibradamente tanto quanto se ajusta a ele seja das coisas boas seja das coisas ruins, nem mais nem menos.

Repito também aqui, para facilitar a leitura, um diagrama que já foi apresentado antes neste artigo, e que mostra os diferentes âmbitos de aplicação desse conceito de justiça de Aristóteles. (Sei que não se costuma fazer isso, repetir uma imagem já apresentada, mas não vi sentido em fazer o leitor praticar zigue-zagues indo em voltando em links para outro ponto deste longo artigo e de volta para cá).

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Os diferentes âmbitos de aplicação do conceito de justiça

 

 O primeiro desses âmbitos de aplicação do conceito de justiça, conforme o nosso diagrama, é o das práticas de nossas virtudes morais.

Segundo Aristótóteles, o senso de justiça do indivíduo é o que faz com que suas virtudes morais realmente virtudes, e sem esse senso de justiça, essas virtudes tenderiam a se trasformarem, para usarmos uma linguagem antiga e bem tradicional, em "vícios" morais, isto é, de qualidades se tenderiam a se transformar em defeitos.

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Estamos mal acostumados a pensarmos naquelas boas qualidades morais que um indivíduo pode apresentar como se elas pudessem existir em abstrato, separadas e isoladas do mundo prático real ao nosso redor e das situações concretas e particulares em que estamos inseridos quando pretendemos agir "moralmente".

Pensando-as assim isolada e abstratamente como costumamos fazer, as qualidades morais humanas (como a honestidade, a coragem, e perseverância ou tenacidade, o respeito pelos posicionamentos alheios, a compaixão, a humildade etc.) ficam parecendo incondicionais, isto é, ficamos com a impressão de que estão lá, nos indivíduos que têm essas qualidades, e que não dependemde nenhuma condição específica para estarem presentes em uma situação: basta o indivíduo estar lá, com suas qualidades morais, e colocá-las em prática.

Mas segundo Aristóteles isto é uma ilusão: as coisas não acontecem deste modo. As qualidades morais na verdade dependem daquela situação específica em que elas aparecem, e cada situação, depedendo das pessoas envolvdas, exige que uma certa medida ou dosagem dessas qualidades seja posta em prática.

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Por que? Por que é que cada situação exige uma certa dosagem de nosas virtudes morais dependendo de quem são os envolvidos?

Porque se ultrapassarmos essa dosagem, se colocamos por exemplo muito pouca sinceridade (menos do que devíamos) naquilo que dizemos para uma outra pessoa, ou então se, pelo contrário, colocamos sinceridade demais nas coisas que dizemos a essa a pessoa, mais sinceridade do que seria justo para essa pessoa apresentarmos a ela, o que vai acontecer é que essa sinceridade vai se transformar em algum defeito como, por exemplo, a grosseria.

É o que vemos acontecer por exemplo num situação como a seguinte. Digamos que estamos diante de uma pessoa que se mostra vaidosa e orgulhosa de sua nova camisa, e que é uma pessoa com a qual temos pouca ou nenhuma intimidade mas com quem nos encontramos de vez em quando... e então, diante daquela camisa, a nossa sinceridade nos leva a dizer a essa pessoa — desnecessariamente e sem rodeios — que achamos a cor da camisa horrível e o corte muito deselegante.

Mas há casos mais graves, em que a falta de senso de justiça, ou senso do que se ajusta melhor a cada pessoa envolvida em cada situação, conduz a ações moralmente ainda piores, ou a avaliações distorcidas do que é uma ação realmente vpalida do ponto de vista moral. Podemos encontrar bons exemplos nos estudos de Mascaro:

Diz-se que a caridade se tipifica num ato de dar. Mas aquele que dá ao poderoso, por medo de ser violentado, e não dá ao necessitado, por lhe ser superior em poder, não é caridoso, porque ao mero ato de dar deve-se acrescentar a justiça do ato. O paciente com o chefe e impaciente com o subordinado também não tem essa virtude da paciẽncia, na medida em que esta presume o seu agir com justiça. A caridade não é uma virtude em si própria sem que se lhe acresça a virtude da justiça. O mesmo com a paciência.
(...) A justiça está em todas as demais virtudes, e por isso é a única virtude universal.
(MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito.
São Paulo: Atlas, 2012, p. 66)

A justiça é a única virtude universal. As demais são relativas, isto é, dependem do contexto em que ocorrem e das pessoas envolvidas, e da dosagem com que ocorrem nesse contexto e em relação a essas pessoas. Mas a justiça é universal precisamente porque é ela que relativiza as demais colocando-as em relação com as condições reais em que ocorrem.

É interessante notar que Aristóteles não é de maneira nenhuma um reativista, mas é um pensador que procura pensar com realismo e muito senso das relações sociais, chamando-nos sempre a atenção para o fato de que as virtudes morais não devem ser pensadas como abstrações sem nenhum contexto, mas pelo contrário, como qualidades de ações inseridas na realidade social. E esse realismo social frequentemente o leva a relativizar certos conceitos modo a ajustá-los aos fatos.

 

 

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De que modo o conceito de justiça de Aristóteles se aplica
em sentido geral (ou universal) às relações
entre cada cidadão e as leis de sua cidade?

 

Podemos seguir adiante em nosso esforço para entendermos de que modo o conceito aristotélico de justiça se aplica aos seus demais âmbitos de aplicação examinando as palavras do próprio Aristóteles.

Averiguemos, então, em quantos sentidos se diz que um homem é "injusto". Ora, o termo "injusto" se aplica tanto ao homem que transgride a lei como ao homem que toma mais do que lhe é devido, o parcial. Disso fica claro que o homem obediente à lei e o homem imparcial serão justos. Por conseguinte, "justo" significa o que é lícito e o que é equânime ou imparcial, e "injusto" significa o que é ilícito e o que é não equânime ou parcial.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 6

Por esta citação podemos perceber que a prática da justiça está ligada à compreensão e à prática do que é necessário ao bem comum, evitando ficar em um posicionamento parcial, que atende ao que é bom apenas para alguma parte dos envolvidos — e evidentemente se entende aqui que, em geral, aquele que não é imparcial procura favorecer a si mesmo e aos seus próximos em detrimento do que seria benéfico em comum para todos os envolvidos. Ou seja, a parte favorecida quando alguém é injusto ou imparical é precisamente aquela de que o injusto faz parte. Isso precisa ser corrigido pelos que procuram praticar a justiça, que precisam ser imparciais.

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Mas além disso — notemos com atenção — podemos perceber na citação acima algo a respeito do modo como o conceito de Aristóteles se aplica em sentido geral (ou "universal") a todo e qualquer cidadão de alguma cidade dotada de leis. Trata-se de algo que já foi mencionado neste artigo: que em um sentido geral, considerando as relações de um cidadão qualquer, de qualquer cidade dotada de leis, ser justo é seguir as leis de sua cidade.

No entanto, vimos também que para Aristóteles o que define que uma norma seja realmente "lei" não é o o simples fato de ser positivada oficialmente, como para os juspositivitas, mas o fato de a própria lei ser imparcial e feita de modo a exprimir tanto quanto possível a justiça — o que significa que legisladores imparciais são uma condição básica para que seja sequer possível formular "leis".

Quando há parcialidade e injustiça dos legisladores, o que eles produzem não é lei, são apenas normas que pretendem impor arbitrariamente à população e que não visam o bem comum — pouco importa que eles sejam os legisladores oficiais.

 

Para Aristóteles, diferentemente dos modernos, a lei, produzida na pólis a partir de um princípio ético, é diretamente relacionada ao justo, mas não por conta de sua forma (ou seja, não é justa porque é formalmente válida) e sim em razão de seu conteúdo. Para Aristóteles, uma má lei não é lei. Sendo lei somente a lei justa, a justiça tomada no seu sentido universal não deixa de ser, também, o cumprimento da lei.

(MASCARO, Alysson Leandro, Filosofia do direito.
São Paulo: Atlas, 2012, p. 65.
— a parte em destaque foi destacada pelo autor do presente artigo.)

 

Copreendamos: é preciso sim seguir a lei, e isto mesmo que ela seja injusta (isto é, mesmo que os legisladores não tenham conseguido criar as leis mais justas) — as leis podem sim ser injustas em alguma medida e mesmo assim a atitude mais justa é segui-las, e mais do que isto, podemos dizer que as leis necessariamente serão injustas em alguma medida, porque nenhuma perfeição é possível neste mundo.

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O mundo é imperfeito, os seres humanos são imperfeitos, e os legisladores (igualmente humanos) também são. Suas leis nunca serão perfeitamente justas, e isso quer dizer também que não podemos cobrar nem esperar deles a perfeição absoluta. O que podemos (e devemos) esperar e cobrar deles é que façamo o esforço no sentido de formularem as leis mais justas que conseguirem, dentro de suas humanas limitações... mas sabendo que nunca serão realmente perfeitas.

Por que podemos afirmar isto a partir de Aristóteles?

Porque para ele só existe uma única coisa que é absolutamente perfeita: o primeiro motor (equivalente ao "Bem", ou "supremo Bem" de Platão). O primeiro motor é a própria perfeição e a mais alta das causas finais de todas as coisas porque tudo no mundo busca continuamente a perfeição, tudo caminha em direção ao primeiro motor... Mas apenas até o momento em que atinge o ponto mais alto que consegue atingir nessa direção, porque depois de atingir esse ponto, tudo decai e vai perdento suas formas.

Se a única coisa perfeita é o primeiro motor, tudo mais o que existe é imperfeito.

Os legisladores oficiais são o que a sociedade estabeleceu para formular suas leis, as mais justas que conseguirem formular dentro dos limites do possível — pois como tudo o mais, não são perfeitos, e só até um certo ponto conseguirão avançar com suas leis em direção a uma justiça perfeita. Por isso é que, no entender de Aristóteles, devemos respeitar o seu esforço e dar-lhes um voto de confiança.

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Entretanto, se ficar notório e evidente para a sociedade que os legisladores não estão realmente tentando fazer a justiça por meio das leis, então não são serão dignos de serem considerados legisladores, e aquelas normas que estão positivando como "oficiais" também não deverão ser considerada como "leis", e sim apenas como uma imposição arbitrária de normas à sociedade sem intenção de justiça.

Neste caso, o que fazer?

Aristóteles não é nem de longe um pensador rebelde. Não está porpondo rebelião ou qualquer coisa assim — embora não seja impossível chegar a essa interpretação a partir dele, desde que apenas para o caso mais extremo possível, em que além da ausência notória e evidente de busca da justiça por parte dos legisladores, todos os recursos legais e oficiais para corrigir o comportamento desses legisladores ou trocá-los por outros melhores já tenham sido esgotados sem nenhum resultado ou esperança de resultado por vir.

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De que modo o conceito de justiça de Aristóteles se aplica
em sentido particular aos casos injustiça distributiva?

 

 Avançando para além dessa aplicação do conceito de justiça em sentido geral ou universal (na relação entre um cidadão qualquer e as leis de sua cidade), temos também passagens de Aristóteles em que podemos nos apoiar para compreendermos de que modo o seu conceito de justiça se aplica em um outro âmbito: no âmbito das situações particulares de injustiça que podem ocorrer na vida diária de uma sociedade.

Aristóteles faz uma divisão dos casos particulares de injustiça que podem surgir (e exigir a aplicação da justiça) em dois grandes tipos gerais: aqueles que são casos para a justiça particular distributiva e aqueles que são casos para a justiça pariticular corretiva, que é a que aplicamos quando procuramos trazer à justiça às interações entre dois sujeitos quando o resultado dessa interação não é justo para eles ou para um deles.

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Os dois tipos de casos para justiça particular

 

Vejamos:

 

Por outro lado, a justiça em particular, e aquilo que é justo no sentido correspondente a ela, divide-se em dois tipos. Um tipo é exercido pela distribuição de honra, riqueza e outros ativos divisíveis da comunidade, que podem ser repartidos entre seus membros em partes iguais ou desiguais. O outro tipo é aquele que fornece um princípio corretivo nas transações privadas.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco.In MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 8

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É preciso observar um detalhe aqui: o fato de Aristóteles mencionar que a justiça corretiva diz respeito a transações privadas não significa que a justiça distributiva corresponda sempre e necessariamente apenas ao âmbito das ações públicas, do governo perante os cidadãos. A distinção entre público e privado que fazemos hoje não era necessariamente igual na Grécia antiga de Aristóteles (para verificar melhor isto seria preciso examinar o sentido que tinham as palavras correspondentes em grego antigo). 

Imprimir sobre a teoria de Aristóteles uma divisão que é habitual no direito hoje pode nos levar a engano. Por exemplo: resolver um problema de injustiça na distribuição de salários para um conjunto de empregados por parte de um patrão (empresário privado) não parece ser de modo algum algo tratado por Aristóteles segundo a justiça corretiva,caso a caso, a partir da relação de cada empregado individualmente com o patrão... mas sim  segundo a justiça distributiva, comparando os trabalhadores entre si para verificarmos em quê são iguais e em quê são diferentes no que di respeito ao que está sendo distrbuído (salários como pagamento por trabalho). Ou então segundo uma combinação de ambas as formas de justiça simultaneamente.

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O que Aristóteles chama de "justiça distributiva" parece ter apenas como exemplo importante a questão das coisas que o governo distribui entre os cidadãos (por exemplo impostos, ou por exemplo direitos políticos). Mas parece estender-se também a qualquer caso em que alguém numa posição superior distribui algo para os que estão em uma posição inferior (como no exemplo já mencionado do empresário ou patrão distribuindo salários aos funcionários da empresa).

Alysson Leandro Mascaro, por exemplo, em seu livro Filosofia do direito, em nenhum momento afirma que a justiça distributiva se limite às ações do Estado quando distribui algo entre os cidadãos. Pelo contrário, apresenta alguns exemplos de justiça distributiva que não têm nada a ver com isto (pode-se conferir na edição de 2012, págs 67 e 68), como a distribuição de notas entre alunos por parte de um professor ou a distribuição de salários entre trabalhadores (que não são necessariamente funcionários públicos).

Mascaro (a meu ver com acerto) pensa a questão da justiça nos salários, no caso da teoria de Aristóteles, como uma questão de justiça distributiva, na qual se devem comparar os trabalhos dos diferentes trabalhadores envolvidos para determinar o que se ajusta melhor a cada um.

 Esclarecido este ponto, sigamos em frente.

Nos casos de injustiça que exigem a aplicação da justiça particular distributiva, a regra de Aristóteles para essa aplicação da justiça pode ser resumida assim: deve-se distribuir igualmente entre os que forem iguais e deseigualmente entre os que forem desiguais, na medida de suas desigualdades.

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A regra da justiça distributiva

De que modo o conceito de justiça de Aristóteles se aplica
em sentido particular aos casos de injustiça corretiva?

 

Na mesma citação de Aristóteles na qual o vimos dividindo os casos que exigem a aplicação da justiça em casos para a justiça distributiva e casos para a justiça corretiva, ele continua assim:

Essa Justiça Corretiva, por outro lado, tem duas subdivisões, correspondendo às duas classes de transações privadas, aquelas que são voluntárias e aquelas que são involuntárias. Exemplos de transações voluntárias são vender, comprar, emprestar a juros, penhorar, emprestar sem juros, depositar, alugar; sendo essas transações designadas voluntárias porque são iniciadas voluntariamente. Das transações involuntárias, algumas são furtivas, como roubo, adultério, envenenamento, lenocínio, sedução de escravos, homicídio, falso testemunho; outras são violentas, como assalto, prisão, assassinato, roubo com violência, mutilação, linguagem abusiva, tratamento insultante.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco.In MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 8

 

A primeira coisa a observarmos é que os casos que exigem justiça corretiva dizem respeito a relações entre pessoas no âmbito privado, e estão subdivididos em dois grupos: os casos em que a relação é voluntária por parte de ambos os lados envolvidos, e o caso em que a relação é involuntária para algum dos lados.

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Justiça corretiva voluntária e involuntária

 

A regra de Aristóteles para a solução justa de casos que exigem justiça corretiva não pode ser facilmente resumida sem recorrermos, por estranho que isso possa parecer, a um pouco de matemática, como se verá.

Sigo agora a partir de uma série de diagramas que já contêm as explicaçõe básicas necessárias, porque são um material feito para projeção em aulas mas também para consulta de cópias pelos alunos.

 

 

 

Para examinar se houve injustiça numa relação em que os dois lados entraram voluntariamente, em primeiro lugar o juiz (ou quem estiver informalmente em posição de julgar o caso, se ele não tiver chegado até um tribunal) deve verificar quais as perdas e ganhos que cada um dos dois lados teve com essa relação — isto é, verificar, para cada lado, qual a somatória de tudo o que ele ganhou com tudo o que ele perdeu nessa relação com o outro lado.

Se terminada a relação os dois lados tiveram o mesmo ganho ou a mesma perda, a relação foi justa. Mas se algum dos dois lados teve mais perda que o outro ou se algum dos dois lados teve ganho maior que o outro, o resultado da relação foi injusto, e será preciso corrigir esse desequilíbrio entre a somatória de perdas e ganhos de um dos lados e a somatória de perdas e ganhos do outro.

Pode-se fazer essa verificação imaginando duas linhas numeradas paralelas para facilitar a comparação entre elas: uma representando as perdas e ganhos de um dos lados, outra para representando as perdas e ganhos do outro.

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 Se houve desequilíbrio (injustiça no resultado da relação) — isto é, se eles ficaram em pontos diferentes nas linhas paralelas que representam cada uma as perdas e ganhos de um dos lados — isso assinala que um teve maior ganho que o outro, ou então que um teve maior perda que o outro, e que portanto houve injustiça. Então para restabelecer o equilíbrio e a justiça o juiz terá que atuar aplicando novas perdas ao que teriminou a relação em posição vantajosa, e ao mesmo tempo aplicando novos ganhos ao que ficou em posição desvantajosa, até que os dois atinjam a mesma somatória de ganhos e perdas (o mesmo ponto nas linhas paralelas que assinalam seus ganhos e perdas).

Perceba-se que nesse tipo de caso (de relação em que os dois lados entraram voluntariamente) se o resultado trouxe maior vantagem ou maior desvantagem para um dos lados do que para o outro, desequilibrando-os um em relação ao outro, esse resultado será sempre considerado injusto, e juiz terá sempre um lado sobre o qual deverá aplicar perdas (por exemplo taxas de multa) e outro sobre o qual deverá aplicar compensações, até reequilibrá-los.

O juiz deverá aplicar tais perdas (taxas, multas, por exemplo) ao lado que ficou em vantagem sobre o outro, ao mesmo tempo que aplica compensações para o lado que ficou em desvantagem.

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Nos casos em que um dos lados entrou involuntariamente (como vítima) na relação com o outro, o raciocínio é o mesmo, exceto por um detalhe: o fato de um dos lados ter sido forçado a entrar na relação, ou ter de algum modo entrado involuntariamente nela, também deve ser considerado já de saída pelo juiz, em seus cálculos para realizar a justiça, como uma perda extra sofrida pelo lado "vitimado", isto é, pelo lado que entrou nessa relação involuntariamente (isto é, apenas por iniciativa do outro lado e sem seu consentimento).

Isto significa que, se ele tem que aplicar perdas ao outro lado, e conpensações a este que foi colocado involuntariamente na relação pelo outro, então no cálculo das perdas e compensações a serem aplicadas pelo juiz em busca do equilíbrio, esse juiz deve tentar avaliar e considerar na soma das perdas da "vítima" o próprio constrangimento de ter sido colocada involuntariamente nessa relação.

Trata-se de algo que nos termos da linguagem jurídica atual poderíamos entender como uma espécie de consideração de danos morais que um dos lados teve como efeito colateral da relação. Como se o fato de ser tratado como um ser involuntário (como um objeto, talvez), de não ser consultado quanto ao seu consentimento para entrar na relação, fosse em si mesmo um dano moral para um dos lados envolvidos.

Esse dano moral da involuntariedade deve ser somado às demais perdas que esse lado sofreu na relação, antes de o juiz começar a calcular quanto terá que aplicar de ganhos a esse lado para compensá-lo, e quanto deverá aplicar de perdas do outro lado.

 

 

 

 

 

Tanto nos casos em que a relação foi voluntária por parte de ambos os lados, quanto nos casos em que um dos lados foi colocado involuntariamente na relação pelo outro, temos um certo tipo de problema muito específico que pode ocorrer, e que pode dificultar a atuação do juiz: pode acontecer de, por alguma razão, se tornar impossível para o juiz atuar ao mesmo tempo dos dois lados envolvidos, conforme a orientação de Aristóteles... Porque talvez não seja mais possível para o juiz atuar sobre um dos lados. Isto pode ocorrer se, por exemplo, um dos lados veio a falecer antes que o juiz pudesse por em prática sua ação equilibradora e de restauração da justiça.

É importante examinarmos esse tipo de situção, porque é exatamente a situação que ocorre, por exemplo, em casos de assassinato.

A regra de Aristóteles para estes casos é a seguinte: se o juiz não puder atuar ao mesmo tempo dos dois lados, deverá transferir para o outro lado e com sinal invertido aquilo que iria fazer com o lado que está fora de seu alcance. Se um lado assassinou o outro por exemplo, o juiz não terá como compensar a vítima pela perda da vida, de modo que tudo o que faria nesse sentido para compensá-la se estivesse viva, terá que direcionar ao invés disso para o assassino, acrescentando isso ao valor das perdas que irá lhe aplicar, isto é, ao valor da punição pelo assassinato.

Há duas coisas importantes a notarmos aqui.

A primeira é que não estamos falando apenas e exclusivamente de casos de assassinato: o raciocínio proposto por Aristóteles para o juiz é exatamente o mesmo para os casos em que, por exemplo, ele não pode atuar sobre aquele que terminou a relação com vantagem sobre o outro (por exemplo se alguém roubou um objeto de outra pessoa, mas antes de o juiz entrar em ação o ladrão por alguma razão veio a falecer (ou por qualquer outra razão ficou fora do alcance do juiz). Se o juiz não tem como aplicar perdas corretivas a esse ladrão, terá que transferir essa ação para a vítima que foi roubada, e com o sinal invertido, isto é, na forma de uma compensação maior pela perda do objeto roubado.

Note-se que o Estado, sempre que necessário, fica como intermediário atuando na reparação financeira de perdas das vítimas e no recebimento de multas e taxas aplicados como punição aos culpados. Ou pelo menos esta parece ser uma consequência natural do raciocínio de Aristóteles.

A segunda coisa a observar é que a punição, ou aplicação de perdas a um dos lados por parte do juiz vizando o equilíbrio da justiça (no qual cada um recebe o que merece, nem mais nem menos), não precisa ser feita necessariamente na forma de um valor em dinheiro, uma taxa ou multa, embora Aristóteles passe um pouco dessa sensação aos seus leitores (que podem ficar se perguntando qual a compensação financeira capaz de compensar por exemplo a perda da vida, no caso de um assassinato — qual o valor de uma vida humana?).

O que Aristóteles na verdade procura ressaltar é apenas o seguinte: a justiça precisa ser realizada de maneira tão objetiva quanto possível, e uma maneira muito boa de se fazer isso é atribuir imaginariamente valores financeiros a todas as perdas e ganhos, e procurar fixar sempre os mesmos valores imaginários para os mesmos tipos de perdas e de ganhos. Se for um caso em que o juiz pode operar diretamente atribuindo punições na forma de taxas a um dos lados e compensações financeiras ao outro, ótimo.

Mas quando isso não for possível ou viável, e a punição por exemplo tiver que ser realizada na forma de um tempo de prisão ou alguma outra coisa que não dinheiro, o ideal é o juiz tentar raciocinar imaginando qual o valor em dinheiro que seria equivalente ao tempo de prisão que ele está determinando como pena, porque imaginar isso ajuda a medir mais objetivamente as coisas.

É extremamente interessante o fato de Aristóteles ressaltar o dinheiro como uma medida objetiva capaz de auxiliar o juiz na avaliação mais correta de punições e compensações a serem aplicadas na realização da justiça, mesmo que isso seja apenas imaginário, e que as punições e compensações reais seja feitas sob uma outra forma.

 

  

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Uma última observação pode ser feita a respeito dessa justiça aristotélica em sentido particular corretivo: há casos de relação involuntária em que uma pessoa poderá ficar com uma estranha sensação de injustiça na decisão de um juiz aristotélico... porque alguém pode ter sido vitimado por exemplo pela ação de uma outra pessoa que danificou um bem ou propriedade sua, e na ação do juiz, essa vítima não verá a sua perda ser completa e plenamente compensada.

Por que não?

Porque a justiça, segundo Aristóteles, não se faz para compensar essa pessoa, nem tampouco se faz para punir a outra pessoa. A justiça se faz para manter ajustados (e de maneira a mais justa possível) os laços sociais, e se aplica então raciocinando a respeito da relação que ocorreu entre essas duas pessoas, e não apenas individualmente a respeito do que uma perdeu ou do que a outra ganhou indevidamente. De modo que a punição ou perda corretiva aplicada pelo juiz a um dos lados está intrinsecamente ligada à compensação ou ganho corretivo que ele aplica ao outro lado, e vice-versa. A aplicação da justiça se dá pensando nesse conjunto, e não em cada lado individualmente.

Neste sentido vítima deve ser levada a compreender que, naquilo em que ela não foi compensada por sua perda, por outro lado quem lhe impingiu essa perda está sendo punido (e está sendo punido na mesma medida em que a vítima está sendo compensada, nem mais, nem menos). Seguindo este raciocínio, para compensar a vítima plenamente o juiz teria que deixar o culpado sem punição, o que não pode ocorrer porque implicaria em casos de impunidade, com efeitos danosos para a sociedade como um todo.

O juiz também não poderia apenas e simplesmente punir o culpado com maior rigor do que o estabelecido pelo cálculo de perdas e ganhos (como normalmente as vítimas desejariam), a menos que deixasse as vítimas sem nenhuma compensação para agir apenas na punição do culpado, o que seria o único modo de fazer isso sem romper com os cálculos objetivos de uma jusitça equilibrada. O juiz aristotélico não pode optar por fazer isso a seu bel prazer, porque não estaria atribuindo a cada um dos envolvidos o que se ajusta melhor a ele no caso. Não estaria sendo tão justo quanto possível, visto que ainda seria possível compensar a vítima.

Entretanto, este caminho (de atuar apenas de um dos lados, apenas aumentando a compensação para a vítima ou apenas aumentando a punição para o culpado) está aberto ao juiz quando ele não tem nenhuma possibilidade de agir sobre o lado oposto.

Essa via está aberda para o juiz aristotélico desde ele que faça isto de maneira objetiva, sem fugir aos cálculos de equilibração que conduzem à justiça — isto é, desde que faça isso apenas transferindo aquela ação que não tem como aplicar sobre um dos lados para o outro lado, mas transferindo-a com sinal invertido. Se era uma perda corretiva impossível de ser aplicada, transferindo-a para o outro lado na forma de ganho extra, e se era um ganho corretivo impossível de ser aplicado, transferindo-o para o outro lado na forma de perda.

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Como a justiça aparece na reciprocidade
entre os profissionais no campo econômico?

Uma inovação importante trazida por Aristóteles para o campo jurídico é a conexão que ele estabelece entre a economia e a justiça, por meio da moeda (ou dinheiro).

Já vimos que na filosofia aristotélica a moeda (ou dinheiro) serve como uma espécie de medida para que o juiz possa avaliar, pesar e comparar as coisas mais objetivamente em suas tomadas de decisão, de modo a se aproximar com mais precisão da decisão mais justa possível em relação a cada um dos envolvidos.

Basicamente, nas situações de injustiça há perdas ou ganhos injustos para os envolvidos, e é possível avaliar essas perdas e ganhos comparando-os com maior precisão se imaginarmos o valor que poderiam ter se pudessem ser trocados por dinheiro.

Também no momento da tomada de decisão, o juiz resolverá esses desequilíbrios injustos aplicando ganhos e perdas que compensem e devolvam ao equilíbrio aqueles que haviam sido injustos, até que cada um termine com ganhos e perdas tão próximos daquilo que efetivamente merecem quanto for possível.

Podemos perceber com clareza como esse raciocínio, conectando o direito à economia, está presente em cada uma das aplicações do conceito de justiça nos diferentes âmbitos do direito.

Até mesmo para tratar o tema da dosagem de felicidade que se pode atingir por meio da justiça e vivendo socialmente o pensamento de Aristóteles tende a nos conduzir para a consideração das diferentes atividades profissionais que um ser humano pode desempenhar, remetendo-nos mais uma vez para o campo da economia: pois o que significa para um ser humano realizar seus potenciais a fim de conseguir sua felicidade?

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De que modo um ser humano realiza seus potenciais? Colocando-os em prática, em ação. E os potenciais de um ser humano são aquilo de que ele é capaz, ou melhot, aquilas formas que ele é capaz de assumir para com elas desempenhar um papel no mundo ao seu redor e junto aos demais seres humanos com os quais convive na sociedade — Essas formulações sugerem tão fortemente o exemplo de tomar a forma de um profissional em alguma atividade que chega a parecer estranho não mencionarmos essa questão da formação de profissionais ao falarmos do assunto.

Mas Aristóteles vai além disso. Porque ainda observa que há uma certa justiça que acaba se exprimindo na própria reciprocidade (ou nas retribuições mútuas) entre os profissionais em uma sociedade pelo resultado de seus trabalhos. 

Esta espécie de justiça recíproca ou mutuamente retributiva (pois diz respeito às retribuições que um profissional pode receber de outro em troca por seu trabalho e vice-versa) é uma justiça que vai se exprimindo espontaneamente da sociedade por meio de um mecanismo que na modernidade foi passando a ser chamado cada vez mais de "as leis do mercado". 

Segundo Aristóteles, as próprias práticas econômicas de troca de mercadorias diretamente ou por meio do dinheirovão aos poucos firmando qual o valor do produto do trabalho de um profissional quando o comparamos com o produto do trabalho de outro. Por exemplo: quantas camas um fabricante de camas precisaria produzir para poder trocá-las com o fabricante de casas por uma casa? Ou em outros termos, com quantas camas produzidas por seu trabalho (ou por qual valor equivalente em dinheiro) ele poderá retribuir ao construtor de casas pelo trabalho deste último de produzir-lhe uma casa?

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Esses valores relativos, comparando os produtos do trabalho de diferentes profissionais de modo que possam ser trocados uns pelos outros da maneira mais justa possível, vai estabelecendo aos poucos e espontaneamente uma certa justiça na avaliação das diferentes atividades profissionais umas em relação às outras.

Aristóteles parece a princípio confiar no mercado... mas não foge nem um pouco à lógica geral de seus raciocínios, no conjunto de sua teoria jurídica, a ideia de que em certas circunstâncias esse mecanismo do livre mercado possa talvez gerar distorções injustas nessas comparações, e de que o Estado deva talvez intervir neste caso, visando restabelecer uma condição geral mais justa para todos e fazendo prevalecer o bem comum.

Não é à toa que muitos marxistas, já tendendo a se mostrar atraídos pelo aspecto histórico-sociológico da filosofia jurídica de Aristóteles, se interessem ainda mais por pelo exame do aristotelismo jurídico na medida em que vai sendo cada veis mais claramente revelada e cada vez mais explorada pelos estudiosos essa conexão que o filósofo estabelece entre direito e economia. Pois para o marxismo é fundamentalmente na economia que devemos buscar as efetivas fontes, diretas ou indiretas, de todos os conflitos sociais com os quais o direito tem a tarefa de lidar.

 

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Se os seres humanos são sociais
e exprimem seus pensamentos discorrendo sobre eles com palavras, Quais os diferentes tipos de discurso examinados por Aristóteles?

Conforme já foi dito logo no início deste artigo, é difícil atualmente estabelecer com clareza e exatidão as conexões entre o lado lógico de Aristóteles e esse lado de pesquisador de processos empíricos pelos quais as coisas vão tomando forma.

O assunto é complexo, e o texto de Marilena Chauí que viemos seguindo até aqui traz boas indicações nesse sentido. Ela procura explorar o fato de que a lógica é desenvolvida por Aristóteles não apenas como um discurso para comunicar pensamentos, mas acima de tudo e assumidamente como um instrumento para a pesquisa da verdade.

Isto sugere buscarmos de que modo, exatamente, o discurso de tipo lógico — conforme as regras propostas por Aristóteles — se encaixa no tipo de pesquisa que ele realiza quando examina empiricamente os processos de transformação que ocorrem no mundo.

O problema é que, nesses estudos, não vemos claramente Aristóteles se utilizando, na prática, de sua lógica quando raciocina sobre outros assuntos. Seria preciso um estudo muito minucioso do modo como ele vai desenvolvendo seus raciocínios para examinar o quanto ele realmente põe sua lógica em prática, por exemplo, em seu uso das noções de ato e potência e de quatro causas que fazem ocorrerem os processos de transformação no mundo.

(Por outro lado se poderia alegar que ele não pretendeu exatamente criar uma lógica, mas entender como funciona a lógica, como se desenvolvem nossos pensamentos quando raciocinamos de modo eficaz...)

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O livro de Marilena Chauí, que pretende ser mais didático — apresentando o que se sabe de Aristóteles — do que investigativo, não chega a avançar nessas minúcias. Nem tampouco no sentido de alguma uma visão geral mais sintética e coerente do conjunto das relações entre esse lado lógico e esse lado empírico da filosofia aristotélica — até porque, como já foi dito, não é fácil formar uma visão sintética e coerente do conjunto dessas das facetas de Aristóteles a partir do que nos restou da obra original dele.

Além disso, as indicações que o texto de Marilena Chauí sugere acabam por ser um tanto complicadas de se examinar mais a fundo em uma apostila como esta, que se pretende bastante introdutória.

Um estudioso brasileiro chamado Olavo de Carvalho, por outro lado, escreveu um pequeno livro de boa qualidade, que pode nos dar alguma orientação mais geral nesse sentido. Pessoalmente, não costumo concordar muito com esse autor, discordo de quase tudo o que escreve. Mas não deixa de ser um bom pesquisador, e este livro, neste sentido, é especialmente interessante.

O livro se chama Aristóteles em nova perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos. E o assunto é precisamente de que modo se integrariam em um conjunto coerente quatro diferentes tipos de discurso analisados por Aristóteles. Eles os analisa em obras diferentes umas das outras, e que não costumam ser examinadas pelos estudiosos como um conjunto coerente.

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O que Olavo de Carvalho faz, neste livro, é uma especulação dele a respeito de como provavelmente se organizariam num conjunto coerente certos textos de Aristóteles que costumam ser estudados separadamente. Faz isto examinando em conjunto textos em que Aristóteles fala de diferentes tipos de discurso, isto é, de diferentes maneiras de se pensar e dizer as coisas.

Segundo Olavo de Carvalho, há quatro tipos diferentes de discursos examinados por Aristóteles em suas obras, e esses quatro tipos de discurso se organizam em uma certa sequência de acordo com a ordem de importância (porque Aristóteles parece dar valor e importância diferentes a eles).

Pela ordem de importância, os quatro tipos de discurso seriam o discurso de tipo poético (ou artístico), o de tipo retórico, o de tipo dialógico (à maneira do que Platão chamava de “dialética”), e finalmente o de tipo lógico (que é o discurso racionalmente perfeito e o mais valorizado por Aristóteles).

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Essa organização por ordem de importância que Olavo de Carvalho diz ter encontrado nos estudos de Aristóteles sobre esses quatro tipos de discurso acaba nos sugerindo, indiretamente, um certo caminho para ligarmos de maneira coerente esses estudos aos estudos empíricos de Aristóteles sobre os processos desenvolvimento das coisas.

Resumindo grosso modo o raciocínio de Olavo de Carvalho, Aristóteles apresenta o discurso de tipo poético (ou artístico em geral) como um discurso voltado para os sentimentos do seu público, um discurso que lida inclusive com elementos materiais (por exemplo a sonoridade das palavras no caso da poesia) a fim de provocar sentimentos. Portanto, é um discurso que não está voltado para busca da verdade, nem tampouco pretende ser de alguma maneira um discurso “racional”.

Já o discurso de tipo retórico, para Aristóteles, seria um discurso que se utiliza tanto de elementos que visam provocar sentimentos quanto de argumentos racionais, e além disso, seria um discurso no qual ao menos existe a pretensão de verossimilhança, isto é, de dizer algo que seja semelhante a uma verdade, algo que pareça ser verdadeiro, já que a intenção declarada do discurso retórico é convencer o seu público a respeito de alguma coisa. O discurso de tipo retórico seria superior ao de tipo poético por ser mais racional, e também por aproximar-se mais de uma preocupação com a verdade, ainda que só nas aparências.

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O discurso de tipo dialógico (ou “dialético”), conforme defendido e praticado por Platão, seria um discurso ainda mais racional, e mais preocupado com a busca da verdade.

No diálogo de tipo platônico, feito de perguntas e respostas que devem tentar ser sempre tão racionais e coerentes quanto possível, cada participante procura ajudar o outro a raciocinar e, se for o caso, a corrigir-se, através de perguntas. Pode haver inclusive troca de papéis, de modo que, nesse processo de diálogo, cada um vai corrigindo os erros do outro. Com isso, os participantes do diálogo devem ir pouco a pouco se afastando de todos os erros, e portanto se aproximando mais e mais da verdade. Mas é um tipo de discurso que ainda permanece sempre carregado de muitas incertezas: o que parece certo em um momento do diálogo, sempre pode acabar se revelando falso mais adiante.

Além disso, se lembrarmos o que Platão dizia a respeito desse diálogo em busca da verdade, logo nos daremos conta da presença de um elemento bastante irracional, do qual o bom funcionamento do diálogo depende: segundo Platão, é preciso que esse diálogo seja amoroso, isto é, que os participantes do diálogo não estejam interessados em disputar um com o outro, cada um procurando vencer os demais participantes a todo custo.

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É preciso que o diálogo seja amoroso para que, ao invés de vencer a opinião dos demais, cada um deixe de lado a sua própria opinião e procure apenas o melhor para todos os envolvidos (lembrando que, para Platão, buscar o melhor significa o mesmo que buscar as essências das coisas, e portanto a verdade, que é uma só e a mesma para todos).

Sem esse elemento irracional, que é o sentimento amoroso, o diálogo inteiro pode acabar se tornando algo menos racional, e se confundindo com um conjunto de discursos de tipo retórico jogados de um lado para o outro, isto é um conjunto de discursos que procuram cada qual defender a sua própria opinião fazendo-a parecer mais verdadeira que a dos outros — é esse tipo de situação, aliás, que Platão queria evitar quando fazia sua crítica aos sofistas, que segundo ele, ao invés de estimularem uma sincera e saudável investigação da verdade, valorizavam demais a retórica e o esforço de cada um para defender suas próprias opiniões.

Acima do discurso de tipo dialógico (ou dialético) defendido por seu mestre Platão, Aristóteles passou a valorizar o discurso de tipo lógico, isto é, um discurso sem diálogo e completamente purificado de elementos irracionais. Um discurso cujas regras, se fossem corretamente seguidas, levariam a uma coerência de raciocínio perfeita, tornando impossíveis as contradições e os erros.

Naturalmente, um discurso desse tipo seria o mais adequando de todos para a busca da verdade, e deveria se organizar para servir a essa finalidade – por exemplo evitando as ambiguidades e imprecisões, e se concentrando apenas em frases que pudessem ser avaliadas como “verdadeiras” ou “falsas”.

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Se seguirmos esse percurso de um tipo de discurso para o outro, considerando o valor de cada um dos quatro nessa sequência, e se isso realmente estiver presente em Aristóteles, como Olavo de Carvalho sugere, podemos imaginar que Aristóteles teria procurado, na verdade, examinar diferentes níveis de desenvolvimento do discurso humano na busca da racionalidade e da verdade.

Isso sugere que há algo como uma essência ou forma pura do discurso racional em busca da verdade (isto é, do discurso filosófico ou científico), e que Aristóteles, com todos esses estudos, estaria procurando mostrar o processo pelo qual o discurso humano se desenvolve na medida em que procura realizar o seu potencial como instrumento racional de busca da verdade.

Se isto é correto, podemos pensar no discurso de tipo poético, segundo os estudos de Aristóteles, como um discurso em que esse potencial filosófico-científico ainda está quase completamente adormecido, e nos demais tipos de discursos como tipos que apresentam um nível crescente de desenvolvimento na realização (ou “atualização”) desse potencial, até máximo alcance do discurso humano como instrumento de busca racional da verdade, que seria atingido finalmente com a lógica.

Essas considerações a respeito de uma busca racional da verdade como causa final que poderíamos atribuir aos discursos humanos, nos levariam a pensar em quais seriam as causas eficiente, material e formal envolvidas na realização desse potencial, abrindo todo um campo de pesquisas de perfil aristotélico nesse sentido. Será que essa articulação entre as duas facetas de Aristóteles é correta? Ela parece fazer sentido, mas é preciso lembrar que foi levantada a partir de especulações de Olavo de Carvalho, que precisariam ser examinadas mais a fundo.

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