Ditos & Feitos de Vilém Flusser

Seleção e organização das citações por João R. A. Borba (João Borba)


Sumário

Sobre ciência e mito| Sobre o intelecto e o pensamento | Sobre o conceito de "ideologia" | sobre Nietzsche e a valorização marxista da objetividade científica | Sobre entropia, diálogo e responsabilidade | Sobre democracia e comunicação | Sobre imagem, imaginação e consciência mágica | Sobre textos, conceitos e consciência histórica | Sobre o conceito de trabalho


 

Flusser: uma filosofia do mais radical e irreverente pessimismo
Crítica aos efeitos da tecnocracia no trabalho, na comunicação e na cultura, enfocando as abstrações da linguagem e suas implicações no pensamento científico e na imaginação, no mito, na ideologia e na consciência histórica

 

Sobre ciência e mito

As ciências são conjunto de proposições que se tornam existencialmente significativas quando articuladas em nossa língua. Essas proposições são organizações de palavras. Essas palavras procuram significar algo que é, em última análise, inarticulável. As tentativas de articular o inarticulável chamam-se mitos. O progresso da conversação é um constante desmitologizar de mitos. Mas novos mitos aparecem constantemente na conversação que progride. Esses mitos são novos temas a serem conversados. As ciências fornecem novos temas. (...) É pelas ciências que estamos em contato mais íntimo com o inarticulável.

 

FLUSSER, Vilem. História do diabo.
São Paulo: Livraria Maritns, 1965, tópico 3.703 p. 89

 

A necessidade é uma situação ordenada por leis, por cadeias inquebrantáveis. A liberdade é o quebrar das cadeias inquebrantáveis.

 

FLUSSER, Vilem. História do diabo.
São Paulo: Livraria Maritns, 1965, tópico 4.200, p. 107

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Esse processo de transferência de leis da região mágica para a região da ciência é um processo demorado e está atualmente ainda em curso. Chama-se "cientificação progressiva do mundo". Pedaços crescentemente maiores estão sendo arrancados do mundo "sobrenatural" da magia, para serem incorporados ao mundo "simbólico" da ciência exata. (...) Mas nos últimos tempos esse processo de cristalização começa a inverter-se. A própria ciência está gerando um calor suspeito, e os seus cristais começam a evaporar-se em névoas da magia.

 

FLUSSER, Vilem. História do diabo.
São Paulo: Livraria Maritns, 1965, tópico 4.204, p. 109

 

A sociedade é o lodo primordial da realidade. É o fundo do qual as nossas mentes brotam. A psicologia ocidental está descobrindo esse fundo e observa como borbulha (...). Os processos, ainda muito mal compreendidos, que se desenvolvem nessa camada são chamados de "mitos da humanidade". São as estruturas primárias de comportamento. Os mitos são as estruturas pelas quais a sociedade projeta as nossas existências para que realizem sociedade, realizando-se a si mesmos nesse processo.

 

FLUSSER, Vilem. História do diabo.
São Paulo: Livraria Maritns, 1965, tópico 6.101, p. 138

 

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Sobre o intelecto e o pensamento

Certos exercícios do Ioga ultrapassam, em radicalidade, as meditações cartesianas. Revelam vivencialmente, não que penso, mas que tenho pensamentos. Posso, nesses exercícios, eliminar os pensamentos, mas continuarei sendo. Com efeito, o método cartesiano prova a existência de pensamentos, não do eu que pensa. Há uma fé humanista no "eu" que se infiltra, sub-repticiamente, no argumento cartesiano, sem jamais ser duvidada.

 

FLUSSER, Vilem.  Da dúvida.
In Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade.
São Paulo: escrituras, 2002, p. 49 (a 1ª ed. é de 1967)

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O intelecto como campo no qual ocorrem pensamentos torna a pergunta "o que é intelecto?" pergunta sem significado. Um campo não é um algo. É um como algo se dá. (...) O intelecto é como pensamentos ocorrem. Para ocorrerem, os pensamentos devem ocorrer de uma forma ou outra. O intelecto é essa "forma ou outra".

 

FLUSSER, Vilem.  Da dúvida.
In Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade.
São Paulo: escrituras, 2002, p. 50 (a 1ª ed. é de 1967)

 

Todo nome próprio é um mito. (...) A língua é uma festa cujo mito são os nomes próprios, e cujo rito é a conversação. A conversação é a ritualização e a desmitologização dos nomes próprios. O intelecto pode ser definido como o campo aonde se dão mitos (nomes próprios) e aonde esses mitos estão sendo desmitologizados pelo ritual da conversação, isto é, pelas regras da gramática. O intelecto pode ser definido como campo de festa. A língua é a festa da desmitologização ritual dos nomes próprios. O intelecto é o campo da dúvida, porque é o campo da desmitologização de mitos. Pensar é duvidar, porque é o ritual da desmitologização.

 

FLUSSER, Vilem.  Da dúvida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999
(livro desenvolvido a partir do capítulo de mesmo nome em Da Religiosidade)

 

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Sobre o conceito de "ideologia"

Ideologia é como uma classe dominante conhece e trabalha a natureza (...), porque a classe dominante representa o espírito do tempo. É pois a maneira como o espírito do tempo procura objetivar-se. E o resultado da ideologia é uma cultura. De maneira que quando se estabelece o caçador como classe dominante surge uma ideologia do caçador e uma cultura de caçadores. No caso, a ideologia do caçador é mito.  Pois no momento em que uma classe dominante se estabelece ela cria de si  uma tensão dialética, ela é imediatamente negada, por outros que fazem ou não parte da classe dominada. No caso, a tensão é dada pelos fatores.

Quando os fatores sobrepujam os caçadores, se estabelece uma nova cultura com uma nova ideologia, a cultura e a ideologia do pastor. (...) até o estabelecimento do pastor, a ideologia do caçador era a verdade.  No sentido de ser a maior objetivação do espírito até aquele instante alcançada. Mas no momento da revolução dos pastores contra os caçadores,  a ideologia caçadora passa a ser reacionária e a ideologia do pastor passa ser progressista no sentido de ser agora a verdade do tempo. Pois eu vou definir. A parte objetiva em uma ideologia, chama-se CIÊNCIA.

A ciência é a parte objetiva de uma dada ideologia, de uma dada classe dominante.

(...)

No momento em que o operariado se tiver estabelecido como classe dominante, ele lançará a sua ideologia que será depois a ideologia "verdadeira" (...) Mas no momento em que se estabelece a ditadura do proletariado, no momento em que estabelece o proletariado como classe dominante, ele cria de si uma nova antítese (...)

 

FLUSSER, Vilem. Curso de Filosofia da Ciência.

Proferido em São Paulo: C.E.N., 1969, aula do dia 11/05
(não publicado, transcrito e datilografado por Adilson Simões)

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Nós podemos conceber uma série de novas revoluções, nas quais as ideologias são sempre mais objetivadas, e nas quais os elementos subjetivos diminuirão sempre mais, até que finalmente, chegaremos ao estágio em que todos os elementos sebjetivos terão sido superados. Quando este estágio for alcançado, não poderemos mais falar em ideologia, porque neste estágio haverá apenas conhecimento objetivo, CIÊNCIA. (...)

Na sociedade comunista não haverá mais subjetividade, todo o conhecimento será puramente objetivo (...). Vocês agora se lembrem como defini o homem.

O homem é um ser por definição alienado da natureza. Pois no conhecimento objetivo o homem será todalmente desalienado. O homem será totalmente realizado. Mas o homem totalmente realizado é um outro tipo de ser totalmente inimaginado, Nietzsche vai chamá-lo de super-homem, de maneira que a sociedade comunista será uma sociedade de super-homens (...) nosso projeto é limitado pela nossa condição de seres alienados.

 

FLUSSER, Vilem. Curso de Filosofia da Ciência.
Proferido em São Paulo: C.E.N., 1969
, aula do dia 11/05
(não publicado, transcrito e datilografado por Adilson Simões)

 

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Sobre Nietzsche e a valorização marxista da objetividade científica

A derradeira forma do cristianismo produziu o marxismo. O marxismo é a derradeira realização do cristianismo. (Eu vou logo dizer qual é a leitura nietzscheana de Marx). A evolução ainda não cessou e esse processo está alcançando um círculo. O que quer o rebanho? O rebanho quer a felicidade. A felicidade é a morte, porque a felicidade é a ausência de desejos e vida é desejo. O único homem feliz é o cadáver (...).

(...)

O rebanho viverá padronizadamente e, é bem provável, em forma quadrada. Haverá provavelmente grandes caixas brancas quadradas onde o rebanho viverá — pois a geometria é também uma forma de loucura. O rebanho será movimentado geometricamente. De manhã, ao soar de um som, o rebanho será sugado de seu esconderijo para ser transportado provavelmente em caixas de ferro em direção a máquinas (...) à noite, ao vibrar de um novo som, o rebanho será sugado pelas máquinas de transporte e derramado em seus diversos esconderijos. E lá, a fim de não assumir consciência de si mesmo, será divertido de uma maneira planejada, de maneira que toda a humanidade será assim divertida igualmente (...).

 

FLUSSER, Vilem. Curso de Filosofia da Ciência.
Proferido em São Paulo: C.E.N., 1969
, aula do dia 01/06
(não publicado, transcrito e datilografado por Adilson Simões)

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O marxismo será a forma pela qual estará organizado o rebanho (...).

Pois bem, quando a humanidade estiver marxisticamente em felicidade, na sociedade comunista, haverá uns poucos super-homens que jogarão (...); as decisões serão tomadas nos centros onde vivem os super-homens. Serão  lances de seus jogos divertidos.

Desta maneira, passaremos a um novo estágio da história: o estágio de plena consciência do super-homem, e de total inconsciência das massas.

O que Nietzsche não prevê (...) são os computadores. Nietzsche não prevê que os super-homens podem ser máquinas também.

Se analisarmos [desde já] a guerra do Vietnan dentro dessas previsões (...) os seus super-homens sendo um computador em Washington e outro em Moscou...

 

FLUSSER, Vilem. Curso de Filosofia da Ciência.
Proferido em São Paulo: C.E.N., 1969
, aula do dia 11/05
(material não publicado, transcrito e depois datilografado por Adilson Simões)

 

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Sobre entropia, diálogo e responsabilidade

O que distingue o discurso do diálogo é sobretudo o clima: o diálogo se dá em clima de responsabilidade. Responsabilidade é abertura para respostas. (...)

(...) o homem produz, armazena e transmite informações novas. Aumenta a soma das informações disponíveis. História é isto. Ela está em contradição com o segundo princípio da termodinâmica que afirma a diminuição progressiva da soma das informações em sistema fechado (no mundo). A história é antinatural enquanto represa de informações novas. (...) A história não invalida as leis da natureza. Estas continuam válidas para a cultura: as informações acumuladas ao longo da história acabarão esquecidas. Papéis cobertos de símbolos se decomporão em pó, cidades ruirão, civilizações inteiras desaparecerão sem traço. Mas isto justifica a distinção dialética entre natureza e cultura. A comunicação humana se opõe dialeticamente à tendência natural rumo à entropia. A história é (...) sua antítese.

 

FLUSSER, Vilem. Nossa comunicação.
In Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar.
São paulo: Duas Cidades, 1983, p. 57-58

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A produção de informações não é criação "ex-nihilo": informações novas são produzidas por síntese de informações disponíveis. Tal método sintético é chamado "diálogo". A acumulação de informações se dá graças à transmissão de informações rumo a memórias (humanas ou outras), nas quais a informação é depositada. Tal método distributivo é chamado "discurso". (...) Quando um dos dois métodos prevalece sobre o outro, a sociedade está em perigo. exige equilíbro, sempre precário, entre diálogo e discurso (...).

 

FLUSSER, Vilem. Nossa comunicação.
In Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar.
São paulo: Duas Cidades, 1983, p. 58

 

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Sobre democracia e comunicação

(...) Os diálogos são circulares (exemplos: mesas redondas, parlamentos), ou redes (exemplos: sistema telefônico, opinião pública). Os discursos são teatrais (exemplos: aulas, concertos), piramidais (exemplos: exércitos, igrejas), árvores (exemplos: ciência, artes), e anfiteatrais (exemplos: rádio, imprensa).

(...)

O discurso teatral é o mais antigo (...). O que caracteriza esse tipo de discurso é o fato dos receptores encararem o emissor: formam semicírculo em torno dele. Estão em posição de contestá-lo com perguntas, e ele está em posição de responsabilidade: vê-se obrigado a respostas. O teatro é discurso aberto para diálogos.

(...)

Na situação atual, as quatro formas de discurso coexistem. Mas os discursos teatrais (escolas, teatros etc.) e os discursos piramidais (Estado, partido etc.) estão em crise. o discurso teatral programa diálogos circulares. O discurso piramidal visa excluir diálogo de todo tipo. (...) "Democracia" no sentido de diálogo produtor de informação que não seja elitário é possível somente no teatro. Na situação atual democracia é impossível. A sensação da solidão na massa é consequência disso. Democracia não está no programa.

 

FLUSSER, Vilem. Nossa comunicação.
In Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar.
São paulo: Duas Cidades, 1983, p. 58-59, 62 e 63

 

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Sobre imagem, imaginação e consciência mágica

As são (...) resultado do esforço de se abstrair duas das quatro dimensões espécio-temporais, para que se conservem apenas as dimensões do plano. Devem sua origem à capacidade de abstração específica que podemos chamar de imaginação (...), imaginação é a capacidade de codificar fenômenos de quatro dimensões em símbolos planos e decodificar as mensagens assim codificadas. Imaginação é a capacidade de fazer e decifrar imagens (...).

O significado da imagem encontra-se na superfície e pode ser captada por um golpe de vista. No entanto, tal método de deciframento produzirá apenas o significado superficial da imagem. Quem quiser "aprofundar" o significado e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua vista vaguear pela superfície da imagem (...).

Ao vaquear pela superfície, o olhar vai estabelecendo relações temporais entre os elementos da imagem: um elemento é visto após o outro. O olhar reconstitui a dimensão do tempo. O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar elementos já vistos (...). O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem é o do eterno retorno (...) tempo de magia (...).

O caráter mágico das imagens é essencial para a compreensão das suas mensagens.

 

FLUSSER, Vilem. Filosofia da caixa preta:
ensaios para uma futura filosofia da fotografia.

São Paulo: Hucitec, 1985, p. 13-14

 

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Imagens são mediações entre homem e mundo. O homem "existe", isto é, o mundo não lhe é acessível imediatamente. Imagens têm o propósito de lhe representar o mundo. Mas ao fazê-lo, entrepõe-se  entre mundo e homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. o Homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens. Não decifra mais as cenas da imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como conjunto de cenas. Tal inversão da função das imagens é idolatria. Para o idólatra — o homem que vive magicamente —, a realidade reflete imagens (...).

Trata-se da alienação do homem em relação a seus próprios intrumentos. O homem se esquece do motivo pelo qual as imagens são produzidas: servirem de instrumentos para orientá-lo no mundo.

 

FLUSSER, Vilem. Filosofia da caixa preta:
ensaios para uma futura filosofia da fotografia.

São Paulo: Hucitec, 1985, p. 15

 

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Sobre texto, conceitos e consciência histórica

A luta da escrita contra a imagem, da consciência histórica contra a consciência mágica caracteriza a História toda (...). ao inventar a escrita, o homem se afastou ainda mais do mundo concreto quando, efetivamente, pretendia dele se aproximar (...). Os textos não significam o mundo diretamente, mas através de imagens rasgadas. Os conceitos não significam fenômenos, significam ideias. Decifrar textos é decobrir as imagens significadas pelos conceitos (...). A luta, porém, é dialética (...). Embora textos expliquem imagens a fim de rasgá-las, imagens são capazes de ilustrar textos, a fim de remagicizá-los. Graças a tal dialética, imaginação e conceituação, que mutuamente se negam, vão mutuamente se reforçando. As imagens se tornam cada vez mais conceituais e os textos, cada vez mais imaginativos.

 

FLUSSER, Vilem. Filosofia da caixa preta:
ensaios para uma futura filosofia da fotografia.

São Paulo: Hucitec, 1985, p. 16

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História é explicação progressiva de imagens, desmagicização, conceituação. Lá, onde os textos não mais significam imagens, nada resta a explicar, e a história pára. Em tal mundo, explicações passam a ser supérfluas: mundo absurdo, mundo da atualidade.

[mais acima, mesma página:]

Surge a textolatria, tão alucinatória quanto a idolatria (...). Tais textos passam a ser inimagináveis, como o é o universo das ciências exatas: não pode e não deve ser imaginado. No entanto, como as imagens são o derradeiro significado dos conceitos, o discurso científico passa a ser composto de conceitos vazios (...).

 

FLUSSER, Vilem. Filosofia da caixa preta:
ensaios para uma futura filosofia da fotografia.

São Paulo: Hucitec, 1985, p. 19

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Textolatria: incapacidade de decifrar conceitos nos signos de um texto, não obstante a capacidade de lê-los, portanto, adoração do texto.

 

FLUSSER, Vilem. Filosofia da caixa preta:
ensaios para uma futura filosofia da fotografia.

São Paulo: Hucitec, 1985, p. 11

 

A imagem técnica —  Trata-se de imagem produzida por aparelhos. Aparelhos são produtos da técnica que, por sua vez, é texto científico aplicado. Imagens técnicas são, portanto, produtos indiretos de textos — o que lhes confere posição histórica e ontelógica diferente das imagens tradicionais.

(...) a imagem tradicional é abstração de primeiro grau: abstrai duas dimensões do fenômeno concreto; a imagem técnica é abstração de terceiro grau: abstrai uma das dimensões da imagem tradicional para resultar em texrtos (abstração de segundo grau); depois, reconstituem a dimensão abstraída, afim de resultar novamente em imagem (...). Ontologicamente, as imagens tradicionais imaginam o mundo; as imagens técnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo. Essa posição das imagens técnicas é decisiva par ao seu deciframento.

 

FLUSSER, Vilem. Filosofia da caixa preta:
ensaios para uma futura filosofia da fotografia.

São Paulo: Hucitec, 1985, p. 19

 

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Sobre o conceito de "trabalho"

 

Grosso modo há dois tipos de objetos culturais: os que são bons para serem consumidos (bens de consumo) e os que são bons para produzirem bens de consumo (instrumentos). Todos os objetos culturais são bons, isto é: são como devem ser, contêm valores. Obedecem a determinadas intenções humanas. (...)

Instrumentos têm a intenção de arrancar objetos da natureza para aproximá-los do homem. Ao fazê-lo, modificam a forma de tais objetos. Esse produzir e informar se chama "trabalho". O resultado chama-se "Obra". No caso da banana, a produção é mais acentuada que a informação; no caso do sapato, é a informação que prevalece. (...)

Isto vale para aparelhos [como o fotográfico]?

A categoria fundamental do terreno industrial (e também do pré-industrial) é o trabalho. Instrumentos trabalham. Arrancam objetos da natureza e os informam. Aparelhos não trabalham. Sua intenção não é a de "modificar o mundo". Visam apenas modificar os homens. De maneira que os aparelhos não são instrumentos no sentido tradicional do termo. (...) Devemos repensar nossas categorias.

(...) O fotógrafo produz símbolos, manipula-os e os armazena. Escritores, pintores, contadores, administradores sempre fizeram o mesmo. O resultado desse tipo de atividade são mensagens: livros, quadros, contas, projetos. Não servem para serem consumidos, mas para informarem: serem lidos, contemplados, analisados e levados em conta nas decisões futuras. Essas pessoas não são trabalhadores mas informadores.

 

FLUSSER, Vilem. Filosofia da caixa preta:
ensaios para uma futura filosofia da fotografia.

São Paulo: Hucitec, 1985, p. 26-28

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