Tópicos de Vida e Obra de Pierre-Joseph Proudhon

Pesquisa & Texto da autoria de João Ribeiro de A. Borba

Maio/2009 - Revisão em Jan/2021

 

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Proudhon: O mais completo dos teóricos anarquistas,
filósofo, sociólogo, cientista político, economista, jurista,
psicólogo, pedagogo, teólogo e linguista

 

Qual a produção intelectual de Proudhon?

Proudhon é um dos mais produtivos e complexos pensadores entre todos os apresentados nesta enciclopédia online. Pode ser considerado em primeiro lugar como um filósofo, mas avançou para diversas outras áreas, principalmente sociologia, economia, teoria política, defesa de ideologia política (anarquista), historia, direito, teologia (como uma espécie de anti-teólogo), linguística, pedagogia e psicologia. Mas de todos esses campos de atuação preferiu sempre ser considerado como sociólogo –– ou socioeconomista, como preferia dizer, considerando ainda que sua "socieconomia" interage ainda sempre e  intensamente com o campo jurídico. Aqui vamos nos concentrar principalmente, então, neste seu campo de preferência –– a sua "socioeconomia".

Proudhon é famoso como o fundador da teoria anarquista — conhecida principalmente como uma teoria política (ou mais precisamente, como uma teoria social anti-política). Contudo sua produção vai muito além de uma teoria do campo puramente político ou mesmo do campo sócio-político Proudhon caracteriza seu "anarquismo", na verdade, como um modo de vida amparado por um vasto, complexo e densíssimo conjunto de teorias iniciadas por ele em diferentes áreas e continuadas de maneira criativa e personalizada por grandes intérpretes às vezes também críticos em relação a ele, que acabaram fornecendo uma variedade de rumos diferentes para o "anarquismo".

A produção intelectual de Proudhon, enquanto fonte teórica básica, oferece uma série de princípios — ou "ideias-força" (o que já é a interpretação de uma noção proudhoniana) — que foram sendo colhidas e recontextualizadas livremente por esses intérpretes (os demais pensadores anarquistas) de acordo com suas próprias teorias, atitude aliás considerada normal e aprovada pelo próprio Proudhon ainda em vida, desde que a criação de outros a partir de suas ideias não fosse atribuída integralmente à à sua responsabilidade. Forneceu os princípios e uma teoria anarquista inteira em torno deles, cada interessado que se responsabilizasse por sua própria reformulação pessoal da teoria anarquista a partir desses princípios.

Essas "ideias-força" proudhonianas de fato servem de base comum a todos os demais pensadores anarquistas, embora frequentemente os militantes não se dêem conta disso.

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O que é de sua autoria pessoal, no pensamento anarquista, se apresenta em linguagem ora intensa e inflamada, ora irônica ou sarcástica, ora poética e dramática, ora seca e cerebral, oscilando entre abstrações complexas e exame de exemplos e situações reais... mas sempre, em qualquer desses casos, extremamente conceitual e densa, derramando-se por uma produção de mais de quarenta livros publicados em vida e mais de dez textos póstumos. Seu pensamento atravessa inúmeras áreas, mostrando um conhecimento enciclopédico, mas tudo se mantém interconectado por uma abordagem filosófica única e coerente, sustentada pelo exame de dados da realidade e por sólidos argumentos, embora não  se trate de uma filosofia exatamente sistêmica (na verdade, alguns comentadores a consideram anti-sistêmica, como a de Nietzsche, outros a consideram semi-sistêmica, como a de Max Weber).

Apesar de sua constante atenção ao problema de se compreender as tendências e possibilidades que vão esboçando o futuro em seu país (a França) e no mundo, e do alto nível de abstração que atinge em diversos pontos de cada um de seus livros, o pensamento de Proudhon se mostra inteiramente conectado à aos fatos diários sua biografia, e apesar de ter sido sempre considerado um excêntrico (e inclusive reconhecido por si mesmo como tal), sua vida se mostra inteiramente conectada e atenta às ocorrências importantes do contexto social, político, econômico e cultural de sua época — e em especial ao modo como tudo isso afeta as classes trabalhadoras, das quais emergiu e às quais procurou sempre se manter intimamente ligado.

Tudo isto transparece em suas obras quase que a cada página. Proudhon aliás não apenas procura deixar clara, explicitamente, a presença de sua vida e de seu contexto histórico em cada passo de sua obra, como chega a desenvolver densos estudos, voltados principalmente para a educação e a ciência, sobre a importância do cultivo dessa conexão entre o pensamento (ou as "ideias") e a vida social. Mas seus Cadernos de notas pessoais, publicados postumamente, mostram que preferia deixar fora da exposição da vida social quaisquer informações sujeitas a mexericos sobre a vida íntima, e as relações privadas com amigos e familiares — coisa bastante compreensível, visto que teve inúmeras vezes a sua vida pessoal devassada pela difamação de adversários e inimigos que preferiam atacá-lo pessoalmente do que pelo confronto teórico e argumentativo.

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Como foi a formação de Proudhon?

Proudhon é um legítimo autodidata: a imensa maioria do que aprendeu e do que serviu de alimento às suas teorias veio de suas experiências pessoais e profissionais, da observação dos fatos (especialmente da observação das relações e comportamentos humanos inter-indivuduais e coletivos) e da leitura de livros que buscou para tentar entender mais a fundo suas experiências e observações, mas que nunca satisfaziam sua ânsia por explicações mais profundas, mais claras e mais coerentes.

Para compreender corretamente suas fontes e o modo como se aproveitou delas, é necessário compreender não apenas sua história de vida, mas sua personalidade — a começar pelo modo como respondeu aos problemas de sua vida desenvolvendo um intenso senso crítico em relação a tudo o que lia, vivia e observava, mas combinando esse senso crítico com um forte espírito construtivo e criativo, e com o que se pode considerar como uma estranha frieza apaixonada, marcada pela ousadia, pelo sangue-frio e por um humor corrosivo que não se detia diante de nada, a não ser o respeito humano pelos indivíduos e conjuntos de indivíduos — e somente pelas pessoas, consideradas individualmente ou coletivamente, não por tendências ou categorias gerais considerados abstratamente — mesmo pelos seus piores inimigos.

Isto torna os textos de Proudhon às vezes difíceis para os que tendem a categorizar muito rápida e superficialmente as pessoas em termos de "amigos" e "inimigos" (o que é o caso da maioria de seus inimigos).

É que esse respeito humano, no caso de Proudhon, não resultava em qualquer tipo de linguagem conciliatória ou moderada. Pelo contrário: sem qualquer suavização de sua linguagem carregada de críticas ácidas, irônicas e corrosivas, alternava isto o tempo todo com considerações a respeito dos seres humanos que estavam por detrás de suas críticas, tratando-os — é verdade que sim, com algumas raríssimas mas exaltadas exceções — com toda a dignidade possível.

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Com isto, Proudhon frequentemente parecia destacar as tendências e posições abstratas, separando-as dos seres humanos por detrás delas. E de fato, criticava tudo aquilo que, no meio social, promovia a ruptura entre os pensamentos e a vida, e também tudo aquilo que fazia o ser humano submeter-se a ideias externas que o dominavam inconscientemente e irrefletidamente. No entanto, por outro lado, considerava a si mesmo e a cada indivíduo como um produto do meio social e do contexto histórico — nosso pensamento seria no fundo, mais do que qualquer outra coisa, uma composição dessas ideias "externas"!

Entretanto, segundo Proudhon, cada indivíduo seria ao mesmo tempo um reflexo único, um cruzamento absolutamente original de todas as incidências sociais sobre ele, e cabia a cada um tomar seus partidos: assumir e cultivar refletida e criticamente as tendências que pretendia assumir, rejeitar e combater as que pretendia afastar em si mesmo — em suma: assumir responsabilidade pelo sentido que pretendia dar a sua vida e pelo modo como pretendia levá-la adiante em sua existência na sociedade.

Por toda a adolescência passou dificuldades nos estudos por falta de dinheiro e por ter de ajudar a família, coisa de que não fazia alarde e que nunca utilizou como desculpa quando não conseguia fazer as lições pedidas pelos professores. Se não fazia alarde da pobreza, também não se preocupava em escondê-la, apesar da discriminação de professores e alunos, sendo apenas discreto e focado obsessiva e pacientemente nos estudos, e não na opinião alheia a seu respeito, dedicava-se aos estudos independentemente de quaiquer circunstâncias.

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Mas se dedicava acima de tudo aos seus próprios estudos, aos quais dava mais valor que à maioria das lições escolares que oficialmente precisava realizar. Parecia achar as tarefas e exercícios pedidos por seus professores demasiado abstratos, e mesmo procurando fazê-los da melhor maneira possível, procurava ainda mais se exercitar examinando diretamente os fatos da realidade (estudar a matemática, por exemplo, a partir de suas aplicações no dia a dia). Em seus estudos pessoais, era muito mais exigente consigo mesmo (e com melhores resultados) do que os próprios professores. Aprendeu sozinho, por exemplo, o latim, o grego e o hebráico, porque queria ler textos clássicos da antiguidade nas suas línguas originais.

Sua pobreza era notória. Não tinha dinheiro para os livros e nem mesmo para sapatos (usava um par de tamancos de madeira de casca de árvore e couro esculpidos por ele próprio), e sofria castigos corporais na escola, conforme o costume da época, por comparecer sem os livros ou sem as lições feitas (para as quais precisava dos livros).

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Como Proudhon superou suas dificuldades de aprendizado?

Orgulhoso e com muito espírito de luta, Proudhon não via de que se envergonhar da pobreza, nem tampouco lhe agradava se aproveitar dela como desculpa para o que não conseguia realizar. Já desde bem jovem tendia a pensar que cada um deve fazer o melhor que pode em suas condições, e se as condições não permitem o melhor, elas é que devem ser mudadas. Tornou-se o aluno mais assíduo na biblioteca de sua pequena cidade (Besançon) e amigo dos bibliotecários, e se empenhou com sucesso não só superando as dificuldades, mas destacando-se rapidamente como um aluno brilhante, apesar de discreto.

Passou longo de sua biografia pelos mais diversos setores da vida produtiva das classes trabalhadoras na França, desempenhando atividades variadas que foram deixando, cada uma, uma forte e clara marca de sua presença em sua produção teórica — pois tanto na prática quanto em seus posicionamentos teóricos, jamais separou trabalho e aprendizado, de modo que foi demarcando sempre com considerável clareza seus aprendizados profissionais na construção de sua teoria.

Considerava indigno que o aprendizado se submetesse à produtividade, valorizando antes exatamente o oposto. Considerava o trabalho como "força plástica" do indivíduo e da sociedade, por meio da qual ambos vão se formando em interação mútua (indivíduo e coletividade) e decidindo os rumos de seu processo de autoconstrução — questão que diz respeito diretamente à da liberdade.

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Alguma fé religiosa ajudou Proudhon a superar
a barreira da pobreza em sua formação?

Se Proudhon valorizava o trabalho como uma forma de aprendizado, isso não significa que desprezasse os livros. Pelo contrário, era apaixonado pela leitura de livros teóricos, e os devorava um atrás do outro. A ideia de trabalhar sem poder se dedicar a suas leituras era-lhe inadmissível. Por essas e outras razões, pensava com bastante expectativa em um futuro na Igreja, como sacerdote, atividade que pelo menos lhe permitiria estudos intensos e constantes não apenas da Biblia, mas de diversos materiais direta ou indiretamente ligados a questões teológicas, religiosas e morais.

Proudhon era muito consciente de que suas condições financeiras dificultariam sua formação, e esperava de fato encontrar na Igreja um apoio nesse sentido, porque podia se dedicar a estudos de interesse religioso. Mas não foi exatamente o que aconteceu. Pelo contrário: seu apego ao exame da realidade social concreta e seu temperamento naturalmente rebelde tendiam a atraí-lo para estudos considerados heréticos e proibidos (principalmente porque não admitia a ideia de que alguma leitura fosse "proibida").

Além disso, a fé cristã (em especial a católica) era sempre utilizada para justificar a monarquia de direito divino, bem como diversas outras formas de autoritariasmo e opressão na vida social diária, o que o deixava revoltado. A história da religião cristão, como a de muitas outras religiões, lhe parecia agravar ainda mais essa má imagem que tinha de tais instituições, de modo que o próprio estudo de religião foi levando-o a adiar essa ideia de ser sacerdote... até abandoná-la de vez, formulando uma teoria não apenas anticlerical, mas de confronto com a própria ideia de "Deus" enquanto autoridade suprema a ser venerada.

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A noção de que haveria uma autoridade divina, superpoderosa e que que estaria para além de toda e qualquer crítica — seja por seu poder, seja pelo seu caráter sagrado, que exigia respeito, seja por ser considerada "boa" já de saída, antes e acima de qualquer avaliação do que haveria de bom e de ruim na presença de um poder assim — parecia em si mesma absurda e cada vez mais inaceitável para Proudhon.

Ele percebia com clareza que a imensa maioria das pessoas fazia refletir essa atitude servil perante Deus em uma atitude servil também perante a existência de autoridades humanas e terrenas em geral, e que esse tipo de servilismo e subserviência das pessoas diante do sentido de "autoridade" era utilizado pelos detentores do poder, em todas as formas e níveis de poder, para se manterem nessa condição de poder. A própria monarquia, por exemplo, não justificava explicitamente o seu direito como um direito de governar dado ao rei diretamente por Deus?!

E que importava se Deus era mesmo algo real ou era algo imaginário, como diziam os ateus? A questão que ia se firmando para Proudhon era outra: ele se perguntava qual o papel que, na prática, essa crença exercia na vida política e social e na história da humanidade, qual o efeito dessa noção na mente humana.

Ia-se formando cada vez mais claramente, no pensamento de Proudhon, a avaliação de que a própria ideia de autoridade na cabeça das pessoas, independentemente de ser uma autoridade divina ou humana, exprimia algo de profundamente pernicioso, algo de eticamente inaceitável e que precisava ser combatido.

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Quais as experiências que mais marcaram Proudhon
em sua vida como trabalhador?

Entre as experiências que mais o marcaram (e que mais marcaram sua formação teórica) no campo do trabalho, podemos destacar o conjunto de suas atividades na adolescência junto ao pai como cervejeiro e depois artesão fabricante de barris, e mais adiante seu trabalho como boiadeiro.

Depois, o trabalho como operário especializado em uma editora. Em seguida sua atuação como estudante bolsista, tendo vencido um prêmio com um livro altamente polêmico de teoria em direito trabalhista, que o tornou imediatamente famoso em toda a europa. E finalmente seu trabalho como jornalista, sem nunca deixar completamente de lado seu envolvimento com a revisão e a tipografia, e começou a publicar seus livros mais famosos (que também lhe deram algum sustendo econômico) voltando-se principalmente para questões de sociologia, ética e direito e de economia, história e política.

Mas diversas outras condições de trabalho o afetaram e marcaram sua vida intelectual além dessas.

Resumindo o conjunto de toda a sua vida no campo do trabalho, podemos dizer o seguinte: Proudhon pensou na infância e adolescência, em seguir a carreira sacerdotal, mas afastando-se (radicalmente) dessa ideia, tanto pelas vicissitudes da vida quanto por suas opiniões e seu espírito de rebeldia, acabou trabalhando por toda a adolescência, em sua pequena cidade interiorana de Besançon, como cervejeiro, artesão fabricante de barris e depois boiadeiro.

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Mais tarde, indo sozinho a Paris em busca de emprego, tornou-se operário especializado em uma empresa editorial (como tipógrafo e revisor de textos). Depois foi pesquisador-bolsista (graças a um prêmio acadêmico), trabalhou como contador, e finalmente, voltanto ao campo editorial, tornou-se jornalista, e depois editor de seu próprio jornal. Impulsionado pos sua fama como jornalista e autor de obras pllêmicas de crítica política, tornou-se deputado federal em uma Assembleia Constituinte, e depois banqueiro (ou mais precisamente, criador e sócio-fundador de uma cooperativa de crédito gratuito para trabalhadores), que acabou falindo.

Proudhon conheceu também em diversas ocasiões o desemprego, e sempre que desempregado, procurava atuavar como professor particular de matemática, além de ter conseguido ocasionalmente alguma renda com suas obras teóricas, que diversas vezes atingiram fama internacional.

As dívidas constantes, que não conseguia sanar, e a polêmica pública contra as estratégias políticas oficiais do Estado, especialmente nos campos da economia e do direito ao trabalho, que se seguiam sempre de acusações como agitador, o levaram a seguir boa parte da vida passando em média, alternadamente um ano na cadeia a cada dois em liberdade, o que paradoxalmente lhe facilitou a sobrevivência e a produção.

Sempre reincidentemente na cadeia pelas mesmas razões (dívidas ou acusações como agitador político e fomentador de revoltas e tumultos), acostumou-se a trocar parte de sua indignação e irritação pela ironia, rindo-se de sua própria situação absurda: ali, era alimentado pelo Estado, e tinha tempo e condições para... escrever seu próximo livro contra as estratégias político-econômicas do Estado.

Quando estava livre, trabalhava ora como tipógrafo e revisor de textos, ora como professor particular de matemática (pois era muito bom na matéria), ora como contador em alguma empresa.

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Como foram as experiências profissionais iniciais de Proudhon,
em sua adolescência?

Nascido em uma família bastante pobre do campo, mas não miserável, Proudhon ainda adolescente foi fabricante artesanal de cervejas junto com seu pai. Seu pai ao que parece também vendia e servia sua cerveja para os camponeses, com a ajuda de Proudhon e seus irmãos. A mãe prestava paralelamente pequenos serviços artesanais de tecelagem para ajudar nas contas da casa.

Depois tiveram que parar e fabricar e servir cervejas por questões financeiras, e passaram a ser apenas a fabricantes artesanais de barris para empresas produtores de cerveja mais ricos, o que parece ter sido um duro golpe para a família.

Essa produção também acabou inviabilizada pela concorrência, e como a família não conseguia sustentar todos os filhos com atividades independentes, os Proudhon se deslocaram para os trabalhos no campo, junto aos "amigos", isto é, àqueles que no início eram os consumidores de sua cerveja de alto custo de produção e de preço teimosamente baixo (uma das razões da falência).

Pierre-Joseph Proudhon tornou-se então boiadeiro, conseguindo emprego na fazenda de um juiz aparentado à família.

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O juiz que, um pouco a contragosto, acabou aceitando empregá-lo enttre seus boiadeiros, considerava esses parentes pobres, cervejeiros-camponeses, "a gota de sangue ruim" na periferia da árvore genealógica dos Proudhon — a começar pelo bisavô do jovem Pierre-Joseph.

O bisavô de Pierre-Joseph Proudhon tinha sido um velho teimoso e orgulhoso, condenado por matar (com uma tora de lenha na cabeça, durante uma discussão) um nobre aristocrata que havia comprado as terras em que o velho estava acostumado a vida toda a buscar lenha e caçar para comer.

Ao que parece, o aristocrata, que havia acabado de comprar aquelas terras, proibiu o avô de Proudhon e entrar nelas e a proibição simplesmente ignorada, mandou então intimidarem e ameaçarem expulsar o velho da cabana em que morava, quase na fronteira daquelas terras.

Depois de várias tentativas frustradas, foi tratar do assunto pessoalmente, irritado, e parece ter agarrado o braço do velho para impedi-lo de levar as toras de lenha para casa como sempre fazia... e paf, tora na cabeça. Esse bisavô, que o juiz considerava "a gota de sangue ruim" nos Proudhon, era considerado pelo nosso jovem e discreto Pierre-Joseph como uma espécie de herói.

Depois de trabalhar como boiadeiro, uma crise econômica generalizada no campo levou o jovem Proudhon, como muitos outros camponeses, a tentar a sorte na cidade grande, procurando trabalho em Paris.

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Como foi a chegada de Proudhon a Paris, em busca de trabalho?

E recém-chegado, criou considerável dor de cabeça para um funcionário público. É que as leis asseguravam que trabalho para todos, mas Paris estava tomada pelo desemprego. E o pouco caso governamental quanto a isto, combinado à evidente hipocrisia das leis, que lhe pareciam dedicadas a garantiar o trabalho apenas retoricamente, deixaram Proudhon chocado e indignado.

Ele então foi a um órgão público exigir esse direito previsto por lei. Insistente, e deixando clara sua indignação, foi expulso do prédio. Mas retornou teimosamente diversas vezes, iniciando um pequeno tumulto entre os que acompanhavam a situação dando-lhe toda razão... até que, não podendo prendê-lo (já que apenas exigia os direitos previstos por lei), os funcionários (porque o primeiro foi recorrendo à ajuda de outros) tentou empurrar-lhe dinheiro para que fosse embora de Paris e voltasse para o campo.

Proudhon recusou essa solução. Acaso achavam que o problema do desemprego na França estaria resolvido se conseguissem se livrar de um dos poucos jovens desempregados que ousavam protestar?

Seu inistente protesto e sua argumentação inteligente acabaram atraindo algumas amizades e alguma admiração das pessoas que acompanhavam esse caso de certa maneira cômico — admiração até mesmo por parte dos funcionários que tentavam nervosamente se livrar dele.

É possível que essa ousadia tenha lhe garantido alguns contatos e, com eles, algum serviço provisório para conseguir iniciar a vida na cidade grande.

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Como Proudhon iniciou sua carreira no campo editorial?

Pouco mais adiante o jovem Proudhon conseguiu um trabalho que lhe permitia estudar muitos livros gratuitamente: começou a trabalhar como revisor de textos e tipógrafo em uma editora.

O que fazia um "tipógrafo" naquela sua época?

As impressoras de livros funcionavam à mão. Havia uma caixa rasa de metal na qual eram encaixadas e fixadas, uma por uma, pecinhas de metal que tinham cada uma uma letra gravada em baixo-relevo. Essas pecinhas eram os "tipos", que iam sendo fixados na caixa com as letrinhas para cima, formando uma por uma as palavras que iam ser impressas em uma das páginas. Era o tipógrafo quem fazia isso: montava uma caixa dessas, letrinha por letrinha, para cada página de cada livro que ia ser publicado.

A caixa então, com todas as letras, era bezuntada com tinta preta, e puxando-se uma alavanca, um mecanismo onde ela ficava encaixada a fazia descer de cabeça para baixo sobre uma folha de papel como um carimbo (os tipos ficavam bem presos na caixa, não caíam). Depois colocava-se outra folha, e outra e outra, e assim por diante, fazendo centenas de cópias da mesma página (a primeira do livro, por exemplo) e bezuntando novamente a caixa de "tipos" sempre que a tinta ia acabando.

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Em seguida fazia-s eo mesmo com a segunda página do livro, e assim por diante. E um funcionário da editora ia montando em uma longa mesa cada livro, colocando uma página de cada cuidadosamente na sequência certa, para depois um outro costurá-las e fazer a capa. Proudhon era o revisor dos livros (fazia a correção gramatical) e o tipógrafo, o sujeito que montava cada página na caixa dos "tipos", encaixando uma por uma as letrinhas.

Nesta época, portanto, era operário qualificado em uma editora, num dos maiores centros industriais da França: Paris, a capital do país. E como a França havia passado pela famosa Revolução Francesa e continuava sempre atravessada por polêmicas e debates no campo político, em que estavam crescendo os ideais socialistas e as utopias políticas, o mercado de livros de história, filosofia, economia, sociologia e política era bastante movimentado, e o trabalho de Proudhon, bastante intenso.

Mas como revisor, ler sobre tudo isso — o que para ele era uma paixão — fazia parte de seu trabalho. Proudhon, como podemos imaginar, lia tudo sempre com um caderno de notas à mão, fazendo suas críticas e comentários.

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Como Proudhon começou a publicar suas ideias?

Na editora em que Proudhon trabalhava, as revisões precisavam passar pelo autor do livro, que daria um visto de "ok" antes que o livro fosse publicado. Era uma formalidade cumprida pelos autores quase mecanicamente, sem realmente examinarem com cuidado a revisão.

O jovem Proudhon era considerado um revisor de qualidade, exigente e cuidadoso. Mas ia além de seu ofício normal. Quando um livro o interessava mais do que os outros, tinha o hábito de enviar junto uma carta educada e inteligente com seus comentários e críticas pessoais em relação também ao modo como o autor se exprimia e inclusive, ousadamente, em relação ao conteúdo. Fazia isso com bastante bom senso, ciente de sua responsabilidade profissional junto à editora, e parece nunca ter havido reclamações. Pelo contrário, os autores elogiavam a dedicação do jovem operário da editora.

Mas um dia, lendo como revisor um livro de teoria da linguagem que envolvia questões religiosas sobre a possível origem das línguas, Proudhon escreveu quase um pequeno livro defendendo respeitosamente, com críticas a inúmeras passagens, uma postura divergente em relação à origem das línguas e ao papel da religião nisto.

Proudhon enviou esse seu texto crítico para o autor junto com sua revisão do material original. A qualidade do texto do jovem Proudhon, bem informado e inteligente, chamou a atenção desse autor, que era um estudioso de certo renome na França. Bastante impressionado com aquele jovem operário da tipografia, o autor foi conversar com o editor, e pediu que o texto do rapaz fosse publicado junto com o seu, como uma espécie de introdução crítica.

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Nesta época Proudhon já estava às voltas com suas dúvidas e questionamentos íntimos em relação à Igreja, mas não tinha ainda um posicionamento claro em relação a isto, ainda ecoava nele a ideia abandonada de um dia se dedicar ao sacerdócio, e podemos perceber facilmente que esse seu primeiro textro publicado está ainda bastante marcado pela influência de textos religiosos.

Mas escavando com cuidado essa superfície em busca dos traços iniciais do que Proudhon foi desenvolver mais tarde em sua teoria, e limpando o texto de sua pesada influência religiosa, já podemos perceber nele alguns traços esboçados de sua futura filosofia da linguagem.

 Esse primeiro texto publicado de Proudhon permaneceu desconhecido por muito tempo, mas lhe conquistou a admiração do editor para o qual trabalhava, e as recomendações desse editor, junto às do autor que havia apoiado seu texto, facilitaram sua busca de trabalho, publicando artigos e estudos principalmente sobre questões de política econômica.

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De que modo trabalhar como contador marcou
a formação do pensamento teórico de Proudhon?

O trabalho como contador, um pouco mais tarde, colocou Proudhon em contato mais direto com os assuntos econômicos de que tratava. Proudhon começou logo a extrair reflexões teóricas dessa sua experiência contábil.

Coisa bastante incomum no perfil de um contador na época, Proudhon estendeu seus conhecimentos em contabilidade especialmente em direção à crítica dos efeitos questões contábeis na vida social. Neste sentido, foi de certo modo o precursor — para não dizermos o fundador original e não reconhecido, porque avançou bastante no assunto — do que hoje se conhece como contabilidade social.

Essa atividade não apenas o levou a compreender mais a fundo a importância das questões econômicas, incluindo os problemas relativos à corrupção; mas também o ajudou a desenvolver alguns elementos básicos uma teoria moral, fundada na ideia de que o "bem" e o "mal" são relativos, mas de que seria possível construir uma teoria moral de carater plenamente científico demarcando claramente os limites do lícito e do ilícito.

Segundo Proudhon, o bem e o mal seriam relativos porque cada pessoa, conscientemente ou não, avalia isso de acordo com sua formação, que por sua vez depende em grande parte de interesses das coletidades da qual essa pessoa faz parte e que ela, quando se conscientiza dessas influências, decide assumir ou rejeitar. O que é bom para uns pode ser ruim para outros e vice-versa.

Na vida social temos que procurar não alguma "perfeição", mas apenas um balanço favorável entre o tanto de "bem" conseguimos atingir e o "mal" que conseguimos evitar, na convivência com os outros em cada situação — sendo que os outros concebem esses bens e males de forma diferente e talvez até oposta.

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Há então, para Proudhon, uma espécie de "contabilidade moral", com suas colunas do "deve" e do "haver", que estão sempre interconectadas e precisam ser sempre realimentadas com novas informações e checadas, conferidas, fiscalizadas. Dessa contabilidade moral — que relativiza "bem" e "mal"  e rejeita quaquer ideia de "perfeição", mas permite checar, contabilizar e fiscalizar vantagens lícitas e ilícitas na defesa dos interesses em uma sociedade, Proudhon parte para uma crítica (feroz) das versões sonhadoras e utópicas do socialismo.

Seu olhar de contador o levou a acompanhar de perto, como uma espécie de consultor informal, os problemas econômicos de uma das maiores, mais rebeldes e mais bem organizadas corporações de pequenos artesãos empobrecidos, os artesãos de Lion, que enfrentavam a pesada e implacável exploração por um lado de alguns grandes intermediários capitalistas (revendedores de seus produtos), e por outro de banqueiros e agiotas que atuavam em segundo plano seguindo os interesses desses intermediários, que eram seus associados. 

Esses grandes intermediários capitalistas (que revendiam os produtos das corporações de artesãos de Lion) iam se tornando cada vez mais donos das máquinas e ferramentas de trabalho em Lion, permitindo aos artesãos que as utilizassem apenas sob diversas condições.

Eram condições que tornavam o trabalho não apenas custoso demais, mas também realizado com liberdade cada vez menor, sob pressão e com muitas exigências inclusive organizacionais. Essas pressões e exigências iam interferindo cada vez mais na produção das corporações artesãs — por exemplo baixando a qualidade dos produtos para acelerar a produtividade em termos quantitativos.

Com base nessa sua contabilidade moral, Proudhon foi o primeiro a criticar o socialismo utópico opondo a ele um socialismo "científico": realista, crítico, e voltado para uma prática que visasse resultados tão eficazes quanto éticos, sem utopias ou irrealismo, mas também sem moderação na defesa dos valores.

Mais tarde, seu maior rival dentro do socialismo, o autoritário Karl Marx, tratou de roubar-lhe essa ideia para reformulá-la e dirigi-la contra ele, acusando o próprio Proudhon de ser um socialista "utópico" contaminado pela ideologia burguesa e capitalista.

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O envolvimento de Proudhon com o jornalismo
estava ligado a suas atividades políticas?

A noção de um jornalismo "imparcial" é recente, e na França dos tempos de Proudhon, não apenas ele, mas qualquer um que estivesse envolvido com o jornalismo estava quase que necessariamente envolvido em disputas políticas.

Depois de ter trabalhado bastante tempo como tipógrafo, revisor e jornalista, e já experiente como contador, Proudhon, a certa altura, associado a um amigo em melhores condições financeiras, conseguiu fundar, com um capital bastante modesto, seu próprio jornal, O Povo (que acabou tendo suas atividades encerradas para mais tarde ser reaberto com o nome de A voz do Povo).

Nesse jornal, que seguia uma linha editorial politicamente aafinada com as ideias mais radicais do socialismo revolucionário francês, Proudhon continuou atuando como jornalista, revisor e tipógrafo. Seu jornalismo político se tornou um sucesso, mas tambpem uma constante fonte de atritos. O jornal passou a ser apontado como referência quando se tratava de acompanhar os posicionamentos mais radicais do socialismo francês em política.

É importante notar que, na época, não havia na França partidos políticos oficiais organizados como nas democracias de hoje. O que se costumava chamar de "partido" era o agrupamento informal de um grande número de pessoas em torno de algum posicionamento político, e essas pessoas costumavam se organizar justamente em torno de jornais voltados para esses posicionamentos, muitas vezes fazendo inclusive reuniões políticas na sede desses jornais.

Por isso foi natural que Proudhon fosse apontado a certa altura, pelos leitores de seu jornal, para concorrer um cargo político, durante uma revolução que, no início de 1848, expulsou a monarquia da França e instaurou a república. Concorreu, venceu e se tornou deputado em uma Assembleia Constituinte que já estava trabalhando havia meses, com poucos resultados satisfatórios para a população. A cada dois meses, mais ou menos, alguma revolta levava a novas eleições e à substituição de muitos dos deputados... e Proudhon entrou para a Assembleia em uma dessas ocasições, no mês de julho.

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Como foi a participação de Proudhon como deputado
na Assembleia Constituinte de 1848 na França?

Durante todo o ano de 1848, não havia nenhuma outra forma de governo dirigindo a sociedade francesa além dessa mesma Assembleia Constituinte, que ia ao mesmo tempo firmando a nova Constituição da França e governando provisoriamente. O poder tendia para aqueles que tivessem maior influência nos debates ou (principalmente) para aqueles que se firmassem nas posições dominantes no controle da Assembleia, cujas regras quanto a isto também iam se alterando.

Proudhon iniciou seu mandato defendendo que a Assembleia Constituinte provisória se tornasse permanente e permanentemente provisória, com maior abertura para a participação da população, e uma Constituição sempre revisada (a certa altura, quando a Assembleia respondia a pressões populares procurando resolver de uma vez a Constituição, Proudhon declarou, naquele tom polêmico, ousado e perturbador ao qual seus leitores já haviam se acostumado, que votaria contra a Constituição porque se fosse realizada ela estaria definitivamente Constituída.

Mas nesse início dos seus trabalhos legislativos, ainda lhe parecia possível travar na Assembleia uma luta política pela recuperação da participação popular junto aos representantes nesse processo constituinte. No início da revolução, essa participação tinha sido bastante intensa, com os representantes bastante próximos dos seus eleitores. E essa proximidade vinha se perdendo cada vez mais, com a maioria dos constituintes contribuindo para esse crescente isolamento em relação às mobilizações populares na rua, que lhes pareciam "atrapalhar" o processo decisório e servir apenas para alimentar a autopromoção de "arruaceiros".

Proudhon estava no contrafluxo nessas águas da política parlamentar constituinte, e ainda achava que seria possível de algum modo mudar o sentido de toda a corrente.

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Entretanto sua posição foi mudando: conforme os representantes eleitos foram conseguindo se firmar cada vez mais na Assembleia, e evitar as diversas formas de fiscalização e controle de suas decisões pela população, conforme eles foram conseguindo evitar formas de participação e mesmo de acesso direto e prévio da população aos projetos de lei e às decisões que iam sendo tomadas, a desconfiança de Proudhon em relação a uma Constituição fixa se transferiu também para a própria Assembleia Constituinte, e mais ainda, para o próprio mecanismo da delegação de poderes a um representante político através do voto. Começou a ver nessa tendência uma espécie de tendência natural irreversível de qualquer sistema político em que o poder é colocado nas mãos de "representantes" oficiais.

Foi ali, em suma, atuando como deputado constituinte em uma Assembleia Constituinte provisória, mas que parecia interminável e dedicada a se isolar da população cada vez mais (tendência que Proudhon chamou de "isolamento parlamentar"), que ele acabou firmando definitivamente seu posicionamento político anarquista.

Isso porque Proudhon percebeu (e passou a declarar publicamente) que havia algo de errado no próprio funcionamento de uma assembleia formada por representantes políticos eleitos. Segundo ele, o próprio funcionamento dessa política representativa, tal como agora a conhecia por dentro, arrastava esses representantes para longe do povo e do clamor das ruas, minando e falsificando toda a sua suposta representatividade.

Proudhon avaliava que não havia nenhum modo possível de corrigir a representação política, e que era preciso ao invés disso lutar pelos espaços de participação direta e ativa da própria população na organização da vida social — o que ademais, segundo ele, não deveria ser feito pela via política, mas pelo controle popular direto das instituições econômicas (empresas), reorganizando a sociedade através da organização do trabalho. Era preciso tomar o mercado com organizações econômicas de controle popular direto, e não tomar o controle do poder político no Estado.

Para Proudhon, portanto, base de qualquer transformação consistente da sociedade estava nessa tomada direta do campo econômico-organizacional, e não na tomada do poder político, que se configurava como uma espécie de desvio e de "armadilha" de sedução autoritária para os defensores da liberdade que se pusessem a trilhar essa via (Estatal) para consegui-la.

O caminho político-governamental, segundo ele, tenderia sempre e necessariamente a corromper na prática os valores que os defensores da liberdade pregavam em teoria, mesmo quando não se dessem conta disso e permanecessem fieis a isso em suas mentes. Isto por ser um caminho cujas práticas de funcionamento estavam fundadas incontornavelmente no princípio de "autoridade", em um desequilíbrio de poder institucionalizado, fixado e oficializado, na ideia de uma hierarquia o comando de uns pelos outros — sem o equilíbrio tenso e oscilante de um jogo de influências efetivamente justo (isto é, instavelmente e informalmente balanceado) para cada par de pessoas envolvido.

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Como foi a experiência de Proudhon no mercado financeiro,
como sócio-fundador do Banco do Povo?

Na mesma época em que atuava como deputado na Assembleia Constituinte da França, Proudhon fundou e gerenciou o Banco do Povo — um banco de crédito gratuito para trabalhadores. Era uma tentativa inovadora de criar condições para uma transformação radical das relações sociais a partir da economia, sem intervenção do governo.

Podemos dizer então que se tornou banqueiro. Mas como funcionava esse tal "Banco do Povo" criado por ele?

O Banco do Povo era dedicado a, sem cobrança de juros para além dos limites do preço de custo de seu próprio funcionamento, fazer empréstimos e oferecer crédito para empreendimentos criados pelos trabalhadores que fossem organizados e dirigidos pelos próprios trabalhadores exprimindo formas de auto-organização dos mesmos, como cooperativas por exemplo. Visava fomentar atividades e experimentos nesse sentido, não apenas economicamente, mas fornecendo aos trabalhadores condições melhores de contato e apoio mútuo e de troca de suas experiências, incluindo a possibilidade de contribuirem uns com as experiências de auto-organização dos outros.

O Banco do Povo, apresentado por Proudhon como um instrumento e como uma arma viável de luta econômica contra o capitalismo, oferecia aos trabalhadores um meio de discutir essas experiências de auto-organização colocando tudo isso em prática, na forma de projetos em constante debate e sendo experimentados em confronto com a realidade econômica, ao invés de ficarem experimentando às cegas as promessas pré-formuladas de algum socialista utópico.

O próprio Banco do Povo era uma espécie de cooperativa de crédito, e procurava servir como um modelo plausível para outras experiências. Todos os membros de cada grupo de trabalhadores interessado em crédito ou empréstimo para experiências de auto-organização entravam individualmente, de maneira imediata e automática, para a própria sociedade do Banco. Tornando-se co-responsáveis pelo próprio banco, como acionistas com igual direito de voto.

Assim, a decisão quanto à concessão de crédito ou empréstimos para as experiências de auto-organização dos trabalhadores era tomada pela assembleia de todos os acionistas, na qual se discutiam as dificuldades práticas dessa autoorganização no ambiente capitalista, e era proibida no próprio estatuto do banco qualquer estruturação hierárquica de poder nesse processo de tomada de decisão, estando entre os princípios do banco, aceitos automaticamente como condição para cada pessoa se tornar acionista, que deveriam ser buscadas soluções contra qualquer estruturação desse tipo.

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Como o Banco do Povo de Proudhon foi recebido pelos outros bancos
no mercado financeiro?

O Banco do Povo começou a ser recebido no mercado financeiro como uma ameça, pois afetava o mercado de trabalho e com isso desestabilizava as empresas privadas capitalistas, que eram as principais correntistas dos demais bancos.

Essas empresas costumavam trabalhar com a fórmula do economista Malthus, segundo a qual era necessário unirem suas forças para manter sempre na sociedade uma certa margem de desemprego, grande o suficiente para pressionar para baixo os salários dos trabalhadores, diminuindo os custos de produção, mas ao mesmo tempo não grande a ponto de gerar revoltas distúrbios políticos que pudessem afetar a economia.

Proudhon se opunha frontalmente, em seus livros, à economia malthusiana, e seu Banco do Povo estimulava propositalmente saídas divergentes para as crises de desemprego, que não pareciam aceitáveis para os poderes econômicos dominantes. Logo muitos dos bancos tradicionais da França começaram a se unir e atuar por todos os meios contra o Banco do Povo, que acabou derrubado e abrindo falência.

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Qual foi a principal ação de Proudhon como deputado,
na Assembleia Constituinte de 1848?

Na Assembleia Constituinte, as ações de Proudhon se encerraram com um chocante projeto de lei — o primeiro na história da humanidade — propondo a abolição da propriedade privada, substituindo-a por uma formjulação do deireito de posse que manteria os bens como bens sociais apenas cedidos ao usuário, e organizados por órgãos coletivos da sociedade civil organizada, independentes do poder oficial do Estado.

Em seu projeto de lei aparecia também pela primeira vez em um documento oficial, a distinção e oposição entre uma classe trabalhadora e uma classe dominante, capitalista e governamental na sociedade.

Foi o bastante para sua expulsão da Assembleia e seu imediato encaminhamento (mais uma vez) diretamente para a cadeia como agitador político — coisa à qual já estava bastante acostumado, e que segundo o relato de seus amigos na época, estava inclusive prevista por ele, assim que expusesse seu projeto de lei.

Proudhon, segundo o relato de seus conhecidos e amigos, sabia perfeitamente e com antecedência que seu projeto não seria aceito pelos demais deputados: com sua atitude, pretendia apenas utilizar a Assembleia como um holofote para deixar clara para a população essa distinção entre duas classes opostas, e a postura já incontornavelmente contrária aos interesses dos trabalhadores que estava se desenvolvendo firmemente e a passos largos entre os constituintes, aliados ao empresariado capitalista.

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Proudhon foi um pensador famoso?
Teve sua obra reconhecida enquanto ainda era vivo?

Desde seu segundo texto publicado, ainda bem jovem — um livro conhecido pelo título O que é a propriedade? — Proudhon se tornou famoso internacionalmente (em quase toda a Europa) como o principal pensador do socialismo radical e revolucionário, fama que perdurou durante toda a primeira metade do século XIX. O livro foi inscrito em um grande concurso acadêmico, e com ele Proudhon recebeu como prêmio uma bolsa que podia sustentá-lo por um tempo custeando seus estudos.

Passou a vida lutando contra os ataques, interpretações maliciosamente distorcidas e leituras superficiais de teóricos conservadores, em geral monarquistas. A maior parte dos comentários publicados sobre suas obras era movida, durante as primeiras décadas, bem mais pelo preconceito fundado em sua fama de revolucionário radical do que em um estudo realmente cuidadoso de seus textos.

A partir de pouco antes da segunda metade do século XIX, passou a sofrer novos ataques, interpretações distorcidas e leituras superficiais por parte de uma linha concorrente no socialismo revolucionário, o comunismo marxista - o que se iniciou devido a uma intensa, agressiva e muito eficaz campanha de desinformação a respeito de Proudhon e de seu pensamento promovida diretamente pelo próprio Marx, que procurava fazê-lo parecer um pensador conservador, um falso revolucionário.

O núcleo da discórdia, da parte de Proudhon, estava no pluralismo anti-autoritário que defendia, pois valorizava intransigentemente as divergências e o debate incessante de posicionamentos no desenvolvimento do socialismo, e uma organização das lutas sociais a partir de pequenas células em debate e em negociação umas com as outras, mais ou menos à maneira de uma confederação. Marx, em sentido oposto, achava que esse pluralismo enfraquecia a luta socialista, de modo que defendia a massificação do movimento, a unidade de ideário, e até o policiamento contra divergências consideradas "excessivas" –– o que deveria ser avaliado, fiscalizado e empreendido por órgãos de liderança que concentrassem o poder na organização das lutas sociais, direcionando as massas –– e defendia também a tomada do poder Estatal por essas lideranças socialistas e a concentração de poder como meios necessários e incontornáveis no processo revolucionário.

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A campanha de desinformação contra Proudhon tomou impulso a partir do livro "Miséria da filosofia" de Marx, em que este critica um livro de Proudhon chamado "Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da miséria". Além de se apoiar apenas nesta obra de Proudhon ignorando a conexão dela com as demais, e de generalizar para tudo em proudhon o que encontrou ali, o livro de Marx inventa contra Proudhon coisas absolutamente impossíveis de serem atribuídas a ele, e chega inclusive a jogar contra Proudhon como se fossem de Marx posicionamentos que já estavam presentes bem antes no próprio Proudhon. Nenhum estudioso sério pode pretender conhecer algo do pensamento de Proudhon a partir deste livro. Mas é possível conhecer muito de Marx e do inísio do amadurecimento da obra marxiana a partir dele.

O pensamento econômico de Proudhon não pode ser compreendido a partir desta única obra: ele se espalha por inúmeras outras obras além dela, como O que é a propriedade, Da criação da ordem na Humanidade ou Princípios de organização política, e Da justiça na revolução e na Igreja.

Um dos principais pontos para se entender a economia de Proudhon é a compreensão de que não é por indisciplina teórica que essa economia se espalha por obras que tratam de assuntos não-econômicos, e sim porque segundo Proudhon a economia não deveria ser tratada de modo nenhum como uma especialidade à parte, e sim como apenas um aspecto de uma "socioeconomia" mais ampla

Nessa "socioeconomia" estariam intimamente fundidas principalmente economia, sociologia e direito, além de outras disciplinas cujo exame estaria implicado indiretamente no exame destas, como história, política, filosofia da linguagem e psicologia do conhecimento e das motivações humanas –– envolvendo até mesmo estudos sobre o fenômeno da fé e as implicações psicológicas e políticas de diferentes crenças religiosas. Tudo isso, segundo Proudhon, afeta os agentes econômicos e os processos de desenvolvimento tecnológicos e organizacionais, e por isso não pode ser deixado de fora em um estudo de caráter econômico.

Ridiculamente, uma das críticas de Marx a Proudhon é a de que este teria construído em "seu livro de economia" um sistema de pensamento abstrato, excluindo os conceitos econômicos do contexto concreto –– quando o conjunto de toda a obra de Proudhon em toda a sua vida é um imenso testemunho prático de posicionamento contrário a esse tipo de abstração –– para o qual Proudhon tinha inclusive um nome: chamava isto de "ideomania", e considerava como um dos mais graves sintomas do que chamava de "absolutismo", tendência a se orientar por ideias absolutizadas (não-relativizadas, não-relacionadas a contexto, não-variáveis de acordo com variações do contexto) acerca da realidade.

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O autodidatismo prejudicou Proudhon?

Conhecendo a vida de Proudhon, marcada pelas dificuldades econômicas e mergulhada em constantes agitações políticas que de uma maneira ou de outra lhe tomam todo o tempo, não é difícil imaginar as suas construções retóricas estranhas e freqüentemente marcadas por imprecisões conceituais, à primeira vista, como resultado de uma formação deficiente, enquanto autodidata, desabituado ao rigor conceitual característico de leituras mais cuidadosas e de uma boa formação acadêmica –– já foi dito aqui que seus adversários muitas vezes se valem desta "compreensão" do sentido desse pouco acadêmico estilo proudhoniano. Marx faz isso, por exemplo.

Mas o fato de Proudhon jamais ter tido sua linguagem domesticada pelos padrões acadêmicos a rigor não pode ser considerado propriamente como uma deficiência, senão por força do preconceito: lembremos mais uma vez de quem estamos falando –– de um homem que, sozinho e sob circunstâncias econômicas e emocionais sempre muito desfavoráveis, desenvolveu ainda jovem profundos conhecimentos de latim, hebraico e grego antigo, lendo os autores clássicos no original e acumulando reconhecidamente um vasto e bem-articulado repertório de informações e erudição.

Esse repertório de línguas, além disso, não se tornou para ele jamais um mero verniz intelectual, e sim uma fonte viva de reflexões efetivamente aplicadas a problemas concretos do contexto histórico em que vivia, como raramente chegava a ocorrer entre os que desenvolviam esse gênero de erudição em sua época, abrasada pelo valor do progresso científico e tecnológico ao estilo do positivismo –– coisa que aliás contribuiu, e muito, para o estranhamento com que as obras de Proudhon foram recebidas nos meios intelectuais. Foram recebidas em geral como se, pretendendo anunciar o que haveria de mais revolucionário e progressista, ao mesmo tempo carregassem algo de "antigo", de estranhamente anacrônico no seu modo de abordar os acontecimentos que examinavam.

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Além disto, embora o próprio Proudhon reconheça ocasionalmente certas dificuldades suas com a linguagem e até deixe transparecer que isso talvez possa ser atribuído, em alguma medida, a algo como uma formação deficiente, parece haver, curiosamente, uma dose bem pequena de humildade nesse reconhecimento –– ainda que a humildade esteja presente. Na verdade, Proudhon –– e talvez com razão –– tende a atribuir suas dificuldades com a linguagem menos a uma questão de "má" formação e mais a uma dolorosa inadequação de sua personalidade, excêntrica e rebelde, à sua época e aos limites e condicionamentos impostos aos de sua classe socioeconômica.

Por outro lado as vicissitudes que o teriam forçado a uma vida dura e, por falta de recursos, ao autodidatismo, tendem a ser tratadas por ele, ao contrário, como fonte de orgulho, enquanto marcas de sua conexão íntima com os sofrimentos das classes menos favorecidas às quais se filia politicamente.

Arriscando um mergulho especulativo e hipotético na psicologia de Proudhon, com base em seus relatos decerto breves e lacunares, mas bastante intensos a esse respeito, diria que talvez reencontrasse nessa filiação o seu lugar próprio e autêntico por nascimento, e se sentisse por essa via resgatado de sua excentricidade e isolamento em relação à intelectualidade de sua época de um modo geral, intelectualidade que parecia reagir com um profundo incômodo e um mal sustentado silêncio à sua presença no cenário francês, não o propriamente o silêncio de quem desconhece ou ignora, mas um silêncio constrangido como o de quem evita um tabu, como se a intelectualidade francesa de então fosse tão incapaz de ignorá-lo quanto de acolhê-lo sem uma boa dose de mal-contida aspereza e atrito.

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Proudhon se sentia incomodado com a marginalização de sua obra
pelos intelectuais da época?

O maior incômodo de Proudhon com relação a essa marginalização de sua obra parece ter sido apenas de ordem prática: ela não lhe permitia uma penetração na esfera pública que seja suficiente para uma interferência mais direta e efetiva na vida política do país através de seus textos.

Seja qual for a realidade dessas avaliações especulativas (no tópico acima deste) tecidas em relação à recepção da obra de Proudhon pela intelectualidade francesa, elas me parecem bem próximas do modo como ele próprio provavelmente a avaliava, e esboçam um quadro plausível de seu estado psicológico em relação a essa questão.

As obras de Proudhon estão pontuadas de passagens autobiográficas muito lúcidas e bastante significativas a esse respeito, mas ele se torna ainda mais expressivo quanto a isto em seus Cadernos autobiográficos e em suas Correspondências, das quais cito abaixo duas passagens a título de exemplo:

 

Sempre me consideraram um escritor excêntrico, incômodo, inoportuno e desagradável; tratam de mim pouco menos que a pontapés (...). A democracia jacobina está enfurecida contra mim, o orleanismo não me suporta, os legitimistas se servem de mim para provocar os partidos rivais e o imperialismo se contenta em guardar silêncio. Às vezes algum filho perdido do jornalismo me ataca, ainda que isto não desperte nenhum eco. Às vezes me pergunto se pertenço a este mundo, se realmente levam em conta o que digo ou se devo ver-me como uma alma penada que regressa para assustar os vivos, que se negam a mencioná-la em suas discussões. Meus êxitos literários bastam para a subsistência de minha família e satisfazem meu amor próprio como autor; mas queria poder atuar sobre os fatos e me vejo excluído dessas esferas.
(PROUDHON. Carta ao Sr. Gouvernet, 19 de dezembro de 1861. In Correspondências, XI, p. 296-297.)
(...) qualquer que seja o talento de um autor ou sua facilidade de expressão, se o que expressa é justo, necessariamente desorientará o público.
(PROUDHON. Carta ao Sr. [ilegível], 5 de junho de 1861. In Correspondência, p. 113-114)

 

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Para avaliarmos corretamente essas dificuldades a que o próprio Proudhon se refere, precisamos nos lembrar de que ele entrou para a história não apenas por seu pensamento, mas também, por sua expressividade e estilo, como um dos grandes nomes da literatura francesa –– e muitas vezes é mencionado nesses termos em manuais especializados na prosa francesa do século XIX. Assim, a condição de autodidata forçada pela pobreza parece responsável muito menos por uma suposta deficiência em sua comunicação ou em seu uso da linguagem, do que por uma condição de singular isolamento entre os intelectuais de seu tempo, que poderia ter-se traduzido também em deslocamento em relação aos seus pares e companheiros de classe social, se não assumisse declarada, espontânea e visceralmente, do início ao fim de sua vida pública, a condição de porta-voz dessa classe.

É possível que Proudhon, conduzido a uma formação bem superior à média do círculo de convivência de seus mais próximos e íntimos por sua sede intelectual desmesurada, aliada a uma sede de justiça social igualmente insaciável, sentisse vivamente esse risco de deslocamento em relação às suas origens e de isolamento ainda mais completo, e lutasse contra isso –– é possível, mas é preciso reconhecer que nem mesmo seus textos mais íntimos publicados postumamente nos dão qualquer pista nessa direção. Pelo contrário, seu enraizamento em suas origens proletárias parece sempre algo tão intrínseco à sua pessoa quanto sua carne ou seus genes, e Proudhon o assume sempre infalivelmente com a mesma alegria e orgulho inabaláveis, mesmo nos momentos de maior pessimismo e quando parece amargo e deprimido com o rumo dos acontecimentos na França e ao seu redor.

Ainda assim, é possível que isso não se traduzisse efetivamente em suas relações pessoais com os amigos e conhecidos, parecendo um pouco estranho para eles, embora fosse ao que tudo indica um estranhamento acompanhado de certa admiração, e não da mesma aspereza com que era recebido como estranho pela intelectualidade francesa em geral: não parece ser outra a fonte de sua auto-admitida e reconhecida excentricidade, senão essa condição de intelectual de renome e simultânea e assumidamente proletário, numa época em que não havia espaço para esse cruzamento de características, especialmente no campo político - pois em relação a tudo o mais, nada sugere que Proudhon viveria uma vida de algum modo excêntrica para um homem de sua condição social e econômica.

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Como podemos resumir a produção intelectual de Proudhon?

A produção intelectual de Proudhon é extremamente extensa e complexa.

São 44 obras publicadas em vida, variando entre aproximadamente 300 e 2.300 páginas cada uma, mais 15 obras póstumas, 6 volumes de correspondências filosóficas e 8 volumes de cadernos autobiográficos repletos de notas de reflexão. Tudo isto escrito de maneira nada acadêmica, no estilo algo existencialista de um intelectual orgânico de formação autodidata.

O volume e a linguagem dos textos constituem uma das principais razões pelas quais Proudhon tem sido pouco estudado e mal compreendido especialmente no meio acadêmico: poucas vezes encontramos estudiosos de Proudhon que tenham conhecimento dos mesmos textos, e isto, somado ao caráter fortemente passional de seus escritos, influencia também a compreensão que se tem do conjunto de obra. Assim, também são poucos os pontos de acordo entre os estudiosos.

Atualmente (janeiro do ano 2021) –– e ao menos no Brasil –– a primeira resposta que costumamos encontrar, quando pesquisamos a respeito pela primeira vez, nas enciclopédias, livros de história e compêndios didáticos com resumos sobre pensadores de diferentes áreas, é que se trata de um socialista francês do século XIX, um dos principais fundamentadores teóricos da corrente política anarquista, "socialista utópico" anterior a Marx e seu precursor, mas ainda muito primitivo em suas formulações, e muitas vezes acusado pelos marxistas de ter sido na verdade e em última instância um pensador "pequeno-burguês", com idéias desarticuladas e incoerentes.

Esta fama (ou má-fama) de Proudhon como um ideólogo político pré-marxista de tempos passados, cuja importância histórica deveria ser considerada apenas em função dos comentários favoráveis ou desfavoráveis de Marx, costuma precedê-lo, e freqüentemente lança sombras sobre o conjunto de sua produção intelectual, que tende a ser lida superficialmente e distorcida na imaginação do pesquisador com base nessa primeira resposta; ou não chega sequer a ser lida, sendo sumariamente rejeitada, pois muitos, diante desse primeiro conjunto de informações e levados pelo preconceito, preferem deixar o assunto de lado, e não passam jamais desse primeiro estágio de pesquisa.

Nesse "pacote" básico de informações sumárias sobre Proudhon, no entanto, apenas duas podem ser levadas a sério pelo pesquisador que desenvolve realmente um exame histórico e teórico cuidadoso: foi de fato um socialista francês do século XIX, e de fato um dos principais fundamentadores teóricos do anarquismo. 

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O restante é produto da polêmica entre proudhonianos e marxistas no século XIX –– que se estendeu até os dias de hoje ––, e o material produzido por essa polêmica não pode ser lido ingenuamente, pois os marxistas, conforme tornavam-se hegemônicos na direção dos rumos históricos do movimento socialista no correr do século XX, encontraram sempre em Proudhon e no pensamento anarquista em geral a maior divergência teórica e prática quanto a esses rumos, a mais consistente resistência a sua direção, e a alternativa mais sedutora e acolhedora para os dissidentes e vozes discordantes que preferiam adotar posturas mais libertárias –– ou mais "democráticas" para usarmos um termo menos preciso, mas atualmente em voga quando se trata de defender, dentro de um posicionamento claramente socialista e não imprecisamente "social-democrata", a maior liberdade de expressão, descentralização e distribuição do poder que for possível.

O objetivo aqui não é aprofundar-se nessa polêmica, assunto já bastante "surrado" e que tem se tornado repetitivo, mas fornecer referências para a conexão do que se encontra no conteúdo, no estilo e na retórica de Proudhon –– mesmo em obras que fogem um pouco ao padrão geral das demais, como Da criação da ordem na humanidade ou Princípios de organização política –– com o sentido geral do conjunto de sua produção intelectual, conforme os propósitos assumidos e explicitados por Proudhon, e aos quais procurou manter-se fiel ao longo de toda a sua vida. E como a recepção desse sentido geral tem sido sempre contaminada de antemão por um viés marxista de leitura, pareceu-me interessante apresentá-lo por oposição a essa leitura.

Portanto, em relação à sua leitura tortuosa por seus rivais políticos na esquerda ou na direita, passaremos por alto apenas o que importa no sentido de desfazer um pouco da "cortina de fumaça" marxista que historicamente tem impedido pesquisadores iniciantes de detectarem certos pontos extremamente interessantes a serem estudados em Proudhon, e com tanto maior gravidade quanto essa corrente –– a marxista –– tem produzido de fato alguns dos mais profundos e brilhantes intelectuais do mundo nos últimos tempos, em todas as áreas de humanas, agregando a essa "fumaça" uma chama intelectual que ajuda a dar crédito, em contrapartida, aos mais grosseiros preconceitos anti-proudhonianos.

O primeiro fato a observar é que Proudhon não é "anterior" a Marx: o francês nasceu em 1809 e faleceu em 1865, o alemão viveu de 1818 a 1883, foram contemporâneos e chegaram a se encontrar.
A teoria de Proudhon também não é por outro lado uma "antecipação" daquilo que Marx teria formulado melhor: é uma outra teoria, sob muitos aspectos oposta ao que Marx propõe, oferecendo um caminho alternativo no socialismo, e nem por isso mais "moderado" ou menos "radical" –– coisa que seria preciso avaliar com muito cuidado pois cada um dos dois autores apresenta seus pontos de maior radicalidade e de maior moderação em relação ao outro, e porque avaliações de "radicalidade" e "moderação" que podemos fazer em relação a qualquer autor são sempre muito subjetivas, dependendo de critérios e referências do avaliador.

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Quem são os "explorados" e os "exploradores" segundo Proudhon?

Assim como o socialista utópico Saint-Simon fazia antes dele, Proudhon também vê a sociedade dividida em várias camadas sócio-econômicas que vão dos mais ricos e poderosos aos mais pobres, e também conclui que uma dessas camadas explora as demais. Mas ao invés de considerá-la como camada dos "ociosos" (como Saint-Simon fazia), a considera como a camada dos que, ociosos ou não, usam a força de trabalhado dos outros para conseguir riqueza e poder às custas deles, ou usa a ingenuidade e passividade dos outros para conseguir mais poder político.

Assim, para Proudhon, os grandes industriais e donos de terras, que enriquecem utilizando a força de trabalho dos operários e camponeses, fazem parte do grupo dos "exploradores", e os governantes também. E ainda segundo Proudhon, o clero (que Saint-simon já colocava no grupo dos ociosos) ajuda os governantes e grandes proprietários a explorarem o povo. De que modo? Ensinando o povo a venerar e adorar autoridades, através do modelo de uma autoridade suprema que seria Deus. Ao atribuir a autoridades todas as decisões de tomadas de ação autônomas, livres, independentes, as pessoas deixam de tomar essas ações por si mesmas,e abandonam sua liberdade e seu poder de auto-organização.

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O que Proudhon pensa das religiões?

Apesar das fortes críticas contra a religião Proudhon não acredita que a religião seja pura enganação: ele observa que em todos os povos sempre houve uma grande maioria de pessoas religiosas, e que os ateus e irreligiosos (como ele próprio) sempre foram minoria. Conclui que existe nas religiões algo de muito profundo no ser humano, e que as instituições religiosas não foram criadas puramente como instrumentos de poder dos mais ricos e poderosos no início das sociedades humanas (que é a idéia que mais tarde os marxistas vão tender a defender).

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O que é isso que há de tão profundo nas religiões, segundo Proudhon? 

Para Proudhon, o problema da religião tem a ver com as nossas percepções e a nossa linguagem. A religião, segundo ele, é basicamente é uma doença incurável que contamina toda a humanidade, e alguns um pouco menos profundamente que outros (o que significa que inclusive ateus como ele próprio no fundo estão contaminados também. Para Proudhon, existe de fato uma espécie de "doença congênita da humanidade" (esta é a exata expressão que ele usa) pela qual não somos capazes de suportar uma situação de muita transformação e contradição, então inventamos formas de viver em um mundo de faz-de conta no qual acreditamos, e que parece bem mais estável, pacífico e harmonioso. Esse faz-de-conta –– que tem um fundo religioso –– começa no próprio modo como percebemos as coisas e no modo como nos comunicamos.

Olhamos para um objeto e continuamos a vê-lo do mesmo modo, como se continuasse sendo o mesmo objeto e não sofresse transformações nem contradições. No plano microscópico, o objeto é repleto de pequenas forças contraditórias e está passando a cada instante por milhões e milhões de pequenas transformações, conforme algumas dessas forças predominam sobre outras... (na época a teoria dos átomos não era a única nem a mais forte das teorias científicas sobre o assunto, mas esse modo de ver as coisas combinava tanto com ela quanto com outras teorias científicas existentes).

Mas nós não conseguimos perceber isso, porque nosso organismo não suportaria viver em um mundo em que tudo ao nosso redor, e até mesmo o nosso próprio corpo, fosse percebido assim. Quando nos comunicamos também usamos "nomes" que são os mesmos e se mantêm constantes para as mesmas coisas, justamente porque percebemos essas coisas como se fossem constantemente "as mesmas", e esses nomes estáveis que usamos para as coisas ajuda a influenciar fortemente a nossa percepção de como elas são.

O que acontece, é que acabamos acreditando que as coisas são tão estáveis quanto os nomes que damos a elas. E quando fazemos isso, esses nomes e essas percepções estáveis (que na verdade são ilusões de um mundo de faz-de-conta que criamos ao nosso redor) passam a ter poder sobre nós, porque começamos a viver de acordo com essas "coisas" estáveis que achamos que são evidentes. Mas muitas delas não se apóiam em nada que se possa comprovar ou demonstrar de alguma maneira racional.

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"Governo" seria um exemplo de nomes
que não se apoiam em nada que se possa comprovar?

O que é o governo? Tudo o que podemos observar é um conjunto de pessoas que se organizam em instituições, seguem certos rituais de comportamento, e nos dizem como devemos ou não devemos viver, o que podemos ou não podemos fazer; e que comandam um grupo de outras pessoas que estão sempre armadas e aparecem para nos reprimir quando desobedecemos.

Além disso, há outras pessoas que nos ensinam constantemente, de diversas maneiras e com as mais variadas justificativas, que é errado desobedecer, e que obedecer ao governo é algo muito importante. O que podemos perceber quanto ao governo, se observarmos a coisa mais friamente, é isso. Mas como as pessoas vêem o governo? Como uma força suprema que está acima de tudo isso e merece respeito e às vezes até adoração, uma força que é apenas representada por essas pessoas e instituições, pois as pessoas e instituições podem mudar, e continua havendo governo.

Mais do que isso, a figura do rei é considerada inclusive sagrada, como se representasse um poder ainda superior e ainda mais sagrado, o poder de Deus.

Perceba-se que, para Proudhon, por detrás das instituições e órgãos governamentais, e por detrás das pessoas que atuam nesses órgãos e instituições, existe uma imagem de poder abstrata, na qual as pessoas em geral acreditam.

Essa imagem abstrata é, no fundo, um faz-de-conta estável que se mostra como que capaz de resistir a todas as transformações e contradições que constituem o mundo real, Proudhon acha que o poder que atribuímos a tipo de ilusão, chegando a criar órgãos e instituições humanas capazes de garantir esse poder e dar a ele condições de atuar sobre nós como se fosse real –– o que quer dizer que, para todos os efeitos, ele acaba mesmo se tornando real para nós –– é um poder que vem da nossa fraqueza humana, da nossa necessidade de encontrar algo que tenha o poder de vencer as contradições e transformações da realidade. Vem da nossa necessidade de nos colocarmos nas mãos desse poder, para nos sentirmos em paz e seguros. A origem de tudo isso é a nossa fraqueza, a nossa incapacidade doentia de suportar contradições e mudanças.

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Qual a conexão entre as ideias de "Deus", "governo"
 e "propriedade", segundo Proudhon?

Proudhon segue o mesmo raciocínio quando fala de um poder que é visto como superior ao do governo, que é o poder de Deus, segundo ele um faz-de-conta que ganha forças para agir sobre nós como se fosse real a partir do momento em que criamos ao redor dessa idéia órgãos e instituições humanas capazes de efetivamente agir na sociedade em seu nome, e damos a certas pessoas a função de fazerem justamente isso, representarem Deus entre nós.

E Proudhon segue, finalmente, o mesmo raciocínio também em relação a um faz-de-conta mais próximo da vida humana e social, abaixo do governo, que é a noção de propriedade. Para ele no fundo não existe isso que chamamos de "propriedade", existem apenas bens produzidos pelos seres humanos ou encontrados na natureza, e pessoas que se apegam a eles e não deixam que outros se utilizem dos mesmos. Mas quando criamos órgãos e instituições humanas capazes de agir em nome dessa ficção que é a "propriedade", damos realidade a ela, como se existisse de fato e devesse ser "respeitada" e "protegida".

Esse é o mecanismo pelo qual vai se formando, historicamente o princípio de autoridade. Quando as pessoas deixam de acreditar que devem respeitar a "propriedade", se apela para o respeito ao "governo", quando deixam de acreditar que se deve respeitar ao "governo", se apela para "Deus". Se apela sempre para alguma forma de autoridade maior, algum princípio ou poder superior que deve ser seguido, respeitado, obedecido.

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Somos dominados por ficções da imaginação?

 Segundo Proudhon, nossa necessidade de estabilidade e segurança diante de contradições e transformações acaba sempre por gerar alguma ficção que imaginamos ter poder de se manter estável, dominando essas contradições e transformações. E logo essa ficção começa a exercer o mesmo poder sobre nós, e orientados pela crença nessas ficções, nos organizamos de modo a conservar a vida humana e social nas mesma situação –– o que naturalmente é vantajoso para quem está bem ou só tem a ganhar com a atual situação, e desvantajoso para quem está mal ou só tem a perder. Mesmo assim, iludido por sua própria fraqueza e necessidade de estabilidade, paz e segurança, quem está "por baixo" acaba aderindo ao princípio de autoridade, e ajudando a conservar o mesmo estado de coisas.

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Proudhon é relativista?

Como já mencionamos antes, Proudhon chama essa "doença congênita da humanidade" às vezes de ideomania –– mania de valorizar obsessivamente uma idéia –– às vezes de absolutismo –– valorização de coisas que se imaginem serem "absolutas".

Coisas "absolutas" porque não seriam "relativas": existiriam e seriam do modo como são independentemente de qualquer relação com outras coisas, e que por isso estariam fora do jogo de contradições e transformações que formam a realidade ao nosso redor, e teriam mais poder que qualquer outra coisa que tentasse agir sobre elas.

Proudhon, como se pode perceber, é relativista, e para ele esses "absolutos" não existem, apenas passam a ter força de agir sobre nós como se existissem a partir do momento em que damos a eles essas forças, criando órgãos e instituições humanos que agem sobre a sociedade em seu nome. A forma mais completa desses "absolutos" abstratos e imaginários seria a idéia de Deus.

O que torna as coisas mais complicadas é que, para Proudhon, nem todas as idéias abstratas são imaginárias. Algumas podem ser reais. Por isso é preciso investigar bem cada caso em que elas aparecem. E existe uma idéia que segundo ele representa –– ou pelo menos tudo indica que represente - algo efetivamente real: a idéia de sociedade.

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Qual foi o primeiro livro de Proudhon a ficar famoso?

O primeiro livro pelo qual Proudhon ficou famoso foi o primeiro que ele escreveu (antes disso só havia publicado uma introdução a um livro de filosofia da linguagem).

Esse livro, publicado por ele aos seus 32 anos de idade (em 1840) foi O que é a propriedade?. Nele, Proudhon levanta inúmeros argumentos que servem de prova de que a "propriedade" não apenas é uma idéia abstrata e sem realidade própria, que só existe porque é defendida pelas pessoas como se fosse real, como é além disso uma idéia contraditória e impossível. E se mesmo assim as pessoas acreditam que devem respeitar essa idéia como se fosse algo real, é porque estão dominadas pelo princípio de autoridade.

Mas nesse mesmo livro Proudhon levanta também um argumento importantíssimo para defender que a idéia de sociedade, por outro lado, não é uma ficção como a de propriedade. É um argumento apoiado em algo que já havia sido observado por Adam Smith em economia.

O argumento é o seguinte: quando trabalham juntas e bem entrosadas dividindo tarefas, as pessoas criam uma sinergia entre elas que acaba gerando um grande excedente de força, capaz de realizar uma produção muito maior. Isso pode não apenas ser observado como até mesmo medido, calculado. Pode-se medir quanto cada trabalhador é capaz de produzir sozinho, e quanto trabalho seria necessário para realizar uma tarefa "X" qualquer que precise de vários trabalhadores, e calcular quantos trabalhadores seria preciso então para realizá-la. Mas quando colocamos esses trabalhadores juntos para realizar essa tarefa, distribuindo funções diferentes para eles, se houver bom entrosamento entre esses trabalhadores, eles podem conseguir realizar talvez o dobro da tarefa, ou realizá-la muito mais fácil e rapidamente.

É que surge entre eles uma força excedente de produção.

De onde vem essa força extra? Segundo Proudhon, vem do entrosamento e da divisão de funções. Esse entrosamento e essa divisão de funções que se complementam umas às outras transformam aquele grupo de trabalhadores em uma pequena "sociedade" que age direcionando suas forças para um mesmo objetivo.

A força excedente é a força dessa sociedade, dessa organização social dos trabalhadores, que já não são simplesmente um conjunto de trabalhadores aglomerados ali.

Segundo Proudhon, a sociedade é real porque é dela que emerge essa força excedente, e não dos trabalhadores individualmente ou de alguma outra coisa.

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Porque certas ideias abstratas têm força real mesmo sem serem reais?

A sociedade é uma entidade real, apesar de invisível. E a prova de que é real é a força que apresenta, diferente da mera soma de forças de seus indivíduos. Mas outras ideias abstratas não são reais e mesmo assim apresentam uma força real. Qual a diferença entre o caso da sociedade e o dessas outras ideias?

O que está por detrás da força real que pensamos encontrar em algumas ficções abstratas, como as idéias de propriedade, governo ou Deus, na verdade é a força de certas formas de organização da própria sociedade, que agem em nome dessas idéias. A força real apenas parece vir dessas ideias abstratas, mas se a examinarmos de perto veremos que é mais uma vez uma força que vem das relações sociais, e de nada mais além delas.

Isso quer dizer que a sociedade, ou organização social, é algo extremamente importante e que precisa ser estudado. Entre outras coisas porque está por detrás da força eficaz de todas as ideias abstratas em torno das quais nos organizamos.

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De onde Proudhon partiu para desenvolver a sua "socioeconomia"?

É com base nessa presença das relações sociais por detrás de todas as nossas ideias organizadoras (e da força real que elas apresentam) que Proudhon defende a criação de uma ciência para estudar a sociedade.

Augunto Comte, que era da mesma época mas um pouco mais velho, já estava lutando para fazer as pessoas aceitarem uma nova ciência chamada Sociologia, que seria algo imaginado (ainda sem esse nome) por seu mestre Saint-Simon. Mas Proudhon não aceita o modo como Comte formula isso, entre outras razões porque Comte não chega a essa prova tão clara da existência de algo efetivamente real para ser estudado por detrás da idéia de "Sociologia", e aliás também não chega a uma elaboração tão detalhada dessa ciência.

Era como se Comte apenas tivesse decidido, sem nenhuma justificativa realmente razoável, que o assunto deveria ser estudado. Além disso, Comte não percebia a importância da economia política e do direito econômico (sobretudo das questões ligadas à organização do trabalho) nesse estudo. Mas a "Sociologia" de Comte já estava ficando famosa, então Proudhon resolveu chamar a sua nova ciência, ao invés disso, de "Socioeconomia", para marcar suas diferenças em relação a Comte.

A atenção especial que ele dá à economia está toda centrada na questão da organização do trabalho. Segundo Proudhon (como se pode verificar em seu livro A guerra e a paz, sobre direito internacional), existem dois grandes movimentos capazes de gerar essa força social organizadora: o movimento de produzir ou realizar algo, que é o movimento construtivo chamado "trabalho", e o movimento destrutivo chamado "guerra".

Os dois movimentos são capazes de gerar "sociedade", organização social dotada de força e realidade própria. Os seres humanos se orgnaizam em sociedade para criar, construir, produzir... ou então para destruir. Mas o conjunto das obras de Proudhon revela que o trabalho –– verdadeira "força plástica da sociedade", geradora além disso de tudo o que tem valor para a mesma –– tem prevalência e superioridade sobre a guerra. Inclusive porque ao construir algo realmente novo, construindo no mesmo movimento as relações sociais produtoras desse "algo novo", se estabelece automaticamente e ao mesmo tempo a destruição revolucionária do velho –– enquanto a guerra enquanto pricípio é puramente destrutiva, e por si só, constrói apenas os próprios laços sociais entre os combatentes.

É o trabalho que cria a tecnologia e os produtos necessários à vida, à cultura e à civilização, e evidentemente, pode ocorrer também misturado à guerra –– se a guerra também é capaz de produzir essas coisas, é apenas devido a essa mistura com o trabalho que se organiza dentro dela, mesmo que para criar algo com a finalidade guerreira de destruir outro algo (como as tecnologias inovadoras que se desenvolvem a partir dos esforços de guerra).

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A socioeconomia de Proudhon considera também os indivíduos
ou somente o todo social?

Nesta ciência que hoje em dia acabamos chamando de "Sociologia", como Comte queria, e que Proudhon chama de "Socioeconomia", a posição proudhoniana é a de que se deveria examinar por um lado a sociedade como um todo que é diferente da mera soma de suas partes, isto é, como uma realidade relativamente independente dos indivíduos que a formam, mas também por outro lado deveria examinar as relações entre o todo da sociedade e os indivíduos que a formam.

Para proudhon, é importante perceber que os indivíduos são diferentes uns dos outros, e que a diferença entre eles ajuda a entender como vai se formando aquele entrosamento que gera a sociedade, porque esse entrosamento que faz as pessoas conviverem e agirem juntas começa por uma espécie de complementariedade.

As ações de um indivíduo complementam as ações do outro e vice-versa, formando um conjunto.
Proudhon chama isso de mutualismo: o que um faz, sente ou pensa dá apoio ao que outro faz, sente ou pensa, e vice-versa –– porque as ações, sentimentos e pensamentos de um complementam as do outro formando um conjunto.

É claro que existem muitas afinidades, ou coisas em comum entre as pessoas, que ajudam a explicar por que é que elas acabam andando juntas. Mas para Proudhon, a sociedade é mais do que isso: é uma força maior que avança em uma direção. E essa força se forma muito mais a partir das diferenças que se complementam entre as pessoas do que a partir do que elas têm de comum.

O que um não consegue fazer sozinho, dois ou mais conseguem, e Proudhon diz que se observamos com cuidado como é que isso acontece, percebemos que não é só uma questão de forças somadas. Porque a maioria das tarefas que só podem ser realizadas por muita gente, por exemplo construir uma locomotiva de trem inteira em apenas 40 minutos, só são possíveis porque diante do amontoado de peças que precisam ser montadas para formar a locomotiva, cada um dos construtores faz uma tarefa diferente, e as tarefas se combinam umas com as outras e são realizadas com muito entrosamento.

Por isso é que Proudhon procura examinar esse entrosamento social em sua época –– que inclui questões psicológicas e culturais –– em conjunto com a idéia de divisão do trabalho em tarefas ou funções diferenciadas.

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A realidade do trabalho no mundo a partir do século XXI
não se tornou diferente daquela da teoria de Proudhon?

Com a tecnologia atual, provavelmente se poderia construir uma locomotiva inteira em menos de 10 minutos, usando apenas algumas máquinas eletro-mecânicas, ou "robôs", e um só trabalhador, responsável por apertar um botão –– isto coloca novos problemas que nem Marx nem Proudhon poderiam ter imaginado.

Não quer dizer que suas teorias estejam necessariamente "ultrapassadas", mas que por esta e por outras razões, elas precisam de muitas correções. Por exemplo: Proudhon coloca no centro de sua Sociologia a questão do trabalho, porque em sua época a situação de trabalho era a situação social mais evidente de todas, e quando ele pensa em trabalho, pensa em pessoas que estão em contato direto umas com as outras porque estão produzindo juntas alguma coisa.

Mas hoje em dia, a produção tende a ser cada vez mais uma questão de relações entre homens (às vezes trabalhando isolados) e máquinas eletrônicas, e só indiretamente, através disto, relações entre pessoas de uma mesma sociedade.

A produção parece ser cada vez menos o centro de onde nascem as relações sociais, e que depende delas, e cada vez mais encontramos situações em que as relações sociais acontecem "no local" de trabalho, mesmo que não aconteçam através do trabalho –– ou acontecem indiretamente "por causa" do trabalho, mas não no próprio processo de realização do trabalho.

A produção dos bens que utilizamos na vida hoje em dia, por exemplo, tende a precisar cada vez menos de pessoas que estejam diretamente relacionadas umas com as outras, e cada vez mais de máquinas eletrônicas que estejam relacionadas umas com as outras, e que sejam operadas por pessoas.

Os operadores de máquinas eletrônicas ainda podem ser vários trabalhando em conjunto, mas em muitos casos também podem ser operadores que trabalham isoladamente, ou pelo menos sem precisarem prestar atenção uns ao trabalho dos outros, bastando que cada um fique bem atento às informações que vão aparecendo nas telas ou mostradores das máquinas que eles estão operando. A situação de trabalho original observada por Proudhon e Marx está desaparecendo.

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É possível dizer que a maior parte do que Proudhon
pensou para a Sociologia continua valendo?

Sim.

A crítica de Proudhon ao princípio de autoridade, por exemplo, não perde nada com essas mudanças. Nem tampouco a idéia de que é importante examinar não apenas o todo da sociedade como algo relativamente independente das partes, mas também a relação desse todo com as suas partes.

O que Proudhon nos ensina é que, na relação entre os indivíduos e a sociedade (ou grupo social) de que eles fazem parte, podem ocorrer basicamente três tipos de situações diferentes:

1ª) Os indivíduos podem ser muito mais fortes do que o todo, e nesse caso, a sociedade ou grupo social depende desses indivíduos permanecerem unidos, e sofre grandes mudanças quando um deles muda de atitude ou é substituído por alguma outra pessoa, que age, sente e pensa as coisas de modo diferente. Isso costuma acontecer apenas em pequenos grupos, e caracteriza uma situação bastante comum.

2ª) Pode haver um certo equilíbrio entre a força dos indivíduos e as do grupo social como um todo. Neste caso cada indivíduo interfere, pelo seu modo de agir, pensar e sentir, no modo de ser da sociedade como um todo. Mas o contrário também acontece, e a sociedade como um todo interfere também fortemente no modo de pensar, sentir e agir do indivíduo.

Esse equilíbrio entre as forças dos indivíduos e as do grupo social como um todo é o que Proudhon considera a situação ideal, a que oferece melhores condições para a força produtiva do conjunto e a liberdade e bem-estar dos indivíduos que fazem parte dele. Mas essa situação é bem rara, difícil de se atingir, e quando é atingida, geralmente não dura muito tempo, precisa ser ativamente realimentada e preservada por todos os membros do grupo a todo momento.

É uma situação menos difícil de se atingir e manter em grupos de tamanho pequeno ou médio, mas mesmo assim difícil. E em grupos muito grandes, é praticamente impossível. (Isto na época de Proudhon. Hoje, com a possibilidade de comunicação em tempo real de muitas pessoas simultaneamente via Internet, talvez não fosse tão impraticável assim... mas por outro lado, essa tecnologia introduziria nessa situação novos problemas ainda não examinados, e talvez inclusive problemas ainda nem mesmo imaginados.)

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3ª) A sociedade como um todo se mostra muito mais forte do que os indivíduos que a formam. Neste caso, o que quer que esses indivíduos façam, pensem ou sintam ou não faz diferença, porque não altera nem interfere em nada o modo de ser e agir do conjunto.

Ou então, se o que o indivíduo faz, pensa, ou sente interfere na sociedade como um todo e contraria o modo de ser normal dela, a sociedade reage, seja forçando o indivíduo a "entrar na linha", seja marginalizando-o, seja eliminando-o (e ele então acaba no hospício, no cemitério, na prisão ou na miséria econômica, ou em alguma combinação dessas situações). Segundo Proudhon, que tem uma visão nada otimista das coisas, esta é a situação mais comum de todas.

Neste caso sociedade age com toda a sua força sobre os indivíduos, justamente quando se organiza ao redor do princípio de autoridade, formando órgãos e instituições que se justificam como se atuassem em nome da propriedade, do governo ou de Deus –– autoridades que precisariam ser respeitadas a qualquer custo.

Essas relações entre o indivíduo e o todo social passam por uma dialética da liberdade, em que a pessoa procura se diferenciar para conquistar independência (maior liberdade), mas a partir de um certo ponto precisa dos complemento das atividades dos outros para conseguir maior poder de ação (maior liberdade), e mais adiante isto prende a pessoa às exigências sociais, de modo que a pessoa se sente impulsionada no sentido de conquistar independência novamente, e assim por diante.

(Proudhon aliás tem uma concepção própria e original da dialética, que não é aquela de Marx nem tampouco a de Hegel. Ele procura aliás combater a dialética de Hegel pesquisando suas origens graduais desde a ruptura entre Kant e Fichte, passando por Schelling, para diferenciar-se de todo o processo, e não apenas de Hegel. Se ele diversas vezes aceita a classificação de "hegeliano, apesar de suas críticas diretas, explícitas e profundas a Hegel –– por exemplo em Da criação da ordem na humanidade –– aceita isso apenas para poder manter um canal de diálogo aberto com os jovens socialistas hegelianos da intelectualidade alemã. Marx e depois dele os marxistas quase na generalidade procuraram fazer parecer, difamatoriamente, que Proudhon seria um seguidor de Hegel que não tinha entendido o mestre. Nada poderia ser mais falso e calunioso que isso.)

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Como seria uma situação de trabalho típica da época de Proudhon?

Numa situação de trabalho típica da época de Proudhon, os trabalhadores poderiam ser por exemplo grandes artesãos, verdadeiros artistas naquilo que faziam, e cada um contribuir com o que sabia fazer, numa situação de grande entrosamento mútuo entre eles, resultando em uma força social excedente capaz de produzir muito mais e melhor.

Isto acontecia em Lyon (França) –– região cujas condições foram ampla e profundamente examinadas por Proudhon (mas desprezadas por Marx, que considerava o trabalho artesão apenas como um resto de uma situação do passado prestes a ser superada). Ali, os artesão não conseguiam levar adiante essa condição de artistas-produtores, porque viviam sob a pesada exploração de um capitalismo ao mesmo tempo mercantil e financeiro, em que os grandes capitalistas eram os intermediários (mercadores) e os financiadores da produção, cobrando juros pesados pelo empréstimo de dinheiro e ferramentas para a produção. (A situação e o modo como Proudhon a teorizou estão muito bem examinadas por Pierre Ansart em seu excelente livro El nacimiento del Anarquismo, da Amorrortu Editores.)

Mas no caso desse tipo de organização artesã do trabalho, idealmente (sem a exploração por forças capitalistas) cada um seria responsável pela sua própria atuação, ninguém agiria apenas como se fosse uma "peça" em uma engrenagem, e o resultado de todo o grupo dependeria muito da atuação de cada um e inclusive das decisões de cada um, do modo como cada um decidisse fazer sua parte. (Era por esse tipo de organização, de alta autonomia e responsabilidade para cada uma das partes envolvidas, que os trabalhadores -artesãos de Lyon lutavam).

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A presença de uma autoridade, segundo Proudhon,
é oposta ao entrosamento entre os trabalhadores?

Se existe realmente entrosamento, cada um procurará fazer as coisas de um modo que possa ser complementado pela ação dos colegas, para no conjunto realizarem juntos um bom trabalho.

Ou então os trabalhadores poderiam, numa situação bem diferente (uma situação de exploração e dominação por forças externas às que agem diretamente no trabalho produtivo), ser apenas "peças" vivas cumprindo funções mecânicas que poderiam ser desempenhadas por qualquer outra pessoa, como simplesmente puxar uma alavanca na hora certa, por exemplo.

Neste segundo caso, a pessoa individual já não importa, a "engrenagem" do conjunto dessas ações coordenadas funciona exatamente da mesma maneira se a pessoa for trocada por uma outra qualquer, e surge uma situação de opressão da liberdade individual pela força da ação que o grupo como um todo precisa desempenhar para realizar sua tarefa. O "rebelde" ou o trabalhador excessivamente "criativo" é simplesmente mandado embora. O grupo funciona como uma poderosa engrenagem que age de maneira bastante conservadora e tende a rejeitar qualquer inovação.

O que acontece neste segundo caso é que as diferenças particulares que fazem cada trabalhador ser quem ele é são simplesmente ignoradas: há uma função a desempenhar, e quem quer que a ocupe tem que se ajustar a ela. Quem irá garantir isso é a força da autoridade.

Quando os trabalhadores individualmente decidem as coisas por si mesmos e à sua maneira, se cada um tende para um lado e não presta atenção aos outros, as forças de trabalho podem não formar um mesmo grupo social, com aquele excedente de energia produtiva, e todos saem perdendo, porque o que se produz é bem menos. Pior ainda, se o objetivo comum é algo necessário à própria sobrevivência do das pessoas ou do grupo, isso tende a atrair a formação de alguma autoridade que se mostre capaz de manter "na marra" esse grupo social inteiro e funcionando.

Mas se esses trabalhadores, pelo contrário, estão bem entrosados uns com os outros, visando um objetivo comum –– de modo a terem essa sua liberdade individual é equilibrada pelas necessidades do grupo como um todo –– ocorre a melhor situação para o grupo e para cada um no grupo, a autoridade se torna não só desnecessária como contraproducente, porque sua função é justamente impedir ou limitar a criatividade e capacidade do trabalhador de agir por si mesmo.

Segundo Proudhon, o que justifica a autoridade é, no final das contas, apenas a força do grupo social como um todo sobre os indivíduos que fazem parte desse todo. Quando essa força é muito grande e os indivíduos não podem resistir a ela, ela se manifesta na forma de algum tipo de autoridade.

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O trabalho, na visão de Proudhon, pode ser entendido como um modelo
para a compreensão de todas as relações sociais?

Sim.

O que Proudhon descreve para o trabalho, segundo ele, serve de modelo para entendermos todas as relações sociais: o princípio de autoridade, por outro lado, é contrário à manifestação livre das partes que formam o todo da sociedade, e quanto maior a pressão da autoridade sobre os indivíduos, menos aparecem as diferenças entre eles –– que são necessárias para o bom entrosamentoem relações sociais.

Isto demonstra mais uma vez como o princípio de autoridade está ligado à insegurança dos seres humanos que os coloca em atitude conservadora frente a uma situação (a de liberdade individual) em que podem aparecer muitas contradições (divergências de opinião, por exemplo) e muitas transformações (já que os indivíduos teriam condições para provocarem alterações no comportamento do conjunto de todo o grupo).

A autoridade, portanto, é antissocial, e contrária à boa organização do trabalho.

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Ideias abstratas, segundo Proudhon, muitas vezes escondem
a pressão do todo social sobre os indivíduos?

O que ocorre com idéias imaginárias como as de propriedade, governo e Deus é que a força da sociedade como um todo, muito maior que a dos seus indivíduos, acaba "se escondendo" por detrás dessas idéias.

Os medos, fraquezas e necessidades humanas levam as pessoas a fugirem da responsabilidade por suas próprias ações, pois quando cada um começa a assumir responsabilidade por si mesmo, agindo de maneira mais independente, logo começam a aumentar as contradições, conflitos e transformações no dia-a-dia, e isso assusta as pessoas em direção a alguma figura de autoridade.

Nessa situação (em que as pessoas, por receio, querem acreditar que tudo está nas mãos de alguma força superior, e não nas suas), a força da sociedade como um todo acaba sendo dirigida, inconscientemente, na direção de reforçar essas autoridades imaginárias, criando formas de organização que são meramente humanas, mas que atuam em nome dessas autoridades que parecem superiores às forças humanas, aumentando a impressão de que são forças reais.

É o caso da propriedade, com uma tradição tão antiga e poderosa que parece uma simples realidade, como se fosse completamente evidente e impossível de se negar –– por isso é que o livro de Proudhon O que é a propriedade? acaba chocando tanto as pessoas em sua época –– ou como o governo (até mesmo hoje, dizer que "não existe governo", que essa história de governo é uma "fantasia", é algo que soaria chocante ou mesmo ridículo); ou ainda, no caso mais exagerado, a força assumidamente sobrenatural de um Deus, que funciona da mesma maneira.

É evidente que o que podemos de fato perceber dessas forças é sempre algum grupo humano organizado de modo a atuar em nome delas, mas as pessoas preferem considerar, a partir disso, que o evidente é que essas coisas existem.

Nos dias de hoje é muito mais fácil considerarmos, por exemplo, que "governo" é apenas e justamente um nome para todo esse conjunto de órgãos governamentais, a começar pelo presidente, no caso de uma democracia presidencial como a nossa. Mas na época de Proudhon, em que a maioria dos países era dominada por reis considerados reis por "direito divino", isso não era nada óbvio. E mesmo hoje, apesar de podermos reconhecer isso –– que não há exatamente uma coisa só chamada "governo", mas um conjunto de organizações humanas ao qual damos esse nome –– continuamos muitas vezes pensando e agindo como se, na prática, "governo" fosse uma coisa só, que atua e se movimenta em uma só direção.

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Para Proudhon as "classes" sociais não são apenas
camadas com diferentes graus de poder econômico como para Marx?

O famoso sociólogo proudhoniano Georges Gurvitch desenvolveu um complexo e detalhado trabalho em torno do conceito de "classes" socioeconômicas, trabalhando com esse conceito como uma forma de compreender toda a estruturação real dos diferentes grupos que existem na sociedade, todas as "nervuras" e divisões reais da sociedade, inclusive dentro de cada camada econômica, e não simplesmente aquelas duas grandes categorias abstratas dos "exploradores" e dos "explorados" à qual remete o conceito simplificado de "luta de classes" de Marx, que serve mais como um mito ideológico instrumental para orientar o combate político do que como um real instrumento científico de exame e compreensão da sociedade.

Gurvitch estava sendo efetivamente proudhoniano ao fazer isso.

É importante ressaltar, então, que para Proudhon, a Sociologia (ou ciência do social, que ele preferia chamar de "Sócioeconomia") não deve ver a sociedade como se ela fosse apenas dividida em camadas sócio-econômicas mais ricas e poderosas ou mais pobres e exploradas: em cada uma dessas camadas, existem diversos subgrupos sociais bem diferentes uns dos outros, cada um com seu modo próprio de pensar, sentir e agir, e dentro de cada subgrupo, outros subgrupos e assim por diante –– até que chegamos a indivíduos efetivamente diferentes uns dos outros. A luta de classes para Proudhon é um fato real e observável, continuam existindo exploradores e explorados em luta na sociedade, mas a realidade que se exprime nessa luta de classes é bastante mais complexa do que aquilo que aparece na teoria de Marx.

Para entender uma sociedade ou grupo social em seu conjunto, é preciso entender como suas partes (os subgrupos ou indivíduos) se diferenciam umas das outras, e como se entrosam e se articulam umas com as outras para se complementarem a partir dessas diferenças, formando o grupo social maior do qual fazem parte. E é preciso examinar também até que ponto o todo domina as partes ou as partes se mostram mais independentes e mais livres para agirem sobre esse todo.

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Qual o papel desempenhado pelas autoridades
na formação de classes sociais?

As pessoas e subgrupos (ou "classes") sociais muitas vezes podem se organizar em torno de alguma autoridade imaginária, e com isso dar força a ela como se ela fosse real. E quanto mais fazem isso, mais as diferenças entre os subgrupos e indivíduos vão desaparecendo, sendo esquecidas, perdendo a importância no conjunto –– ou, quando alguém insiste em manifestá-la, vão sendo "empurradas" para a marginalização ou exclusão (pois os que não se enquadram vão sendo arrastados com o tempo, junto com as diferenças que insistem em manifestar, para o fundo dos hospícios, prisões, cemitérios ou "bolsões" de miséria econômica na sociedade).

Mas a "força" que sentimos na ação dessas autoridades na verdade vem de formações sociais que agem em nome delas, e é preciso detectar quais são essas formações e o que faz com que elas sejam formadas.
Por isso, o cientista social, ou sociólogo (que Proudhon chamaria de sócio-economista) não pode se deixar enganar pela aparente força dessas autoridades, como a maioria das pessoas faz. Ele precisa se acostumar a pensar sem se deixar levar pelo princípio de autoridade, para poder detectar qual é a formação social real que está por detrás de uma autoridade qualquer na qual uma sociedade acredita.

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O cientista socioeconômico, segundo Proudhon,
é completamente neutro em termos políticos?

O cientista socioeconômico, segundo Proudhon, não pode distorcer os fatos que observa e os resultados de sua análise fria e científica em função da mera ideologia política, ou não seria digno de ser considerado cientista.

Entretanto, é claro que, ao desmascarar isso para as pessoas com os seus estudos, o sociólogo está oferecendo para as pessoas condições para que elas percebam a "farsa" de noções consideradas tão importantes como as de propriedade, governo e Deus –– noções cuja "autoridade", respeitada por todos, acaba levando levando as pessoas a uma atitude conservadora.

Nessa atitude conservadora, as diferenças entre os indivíduos e subgrupos sociais são rejeitadas em favor do que é útil para a manutenção do conjunto, e isso quer dizer que tudo tende a seguir os padrões estabelecidos de cima para baixo pelas formações sociais que agem em nome dessas autoridades imaginárias. Isso –– Proudhon observa sempre e com muita perspicácia –– beneficia quem já está bem (por exemplo quem tem propriedades, quem é do governo ou tem poder para influenciar o governo, ou quem tem os sentimentos, crenças, opiniões e valores morais mais compatíveis com os da religião dominante), e prejudica quem já está mal (quem não tem propriedade, ou poder, ou os sentimentos, valores e crenças considerados "certos" pelo resto da sociedade).

Portanto fica claro que, para Proudhon, o sociólogo, pelo próprio fato de tentar ser "objetivo" e mostrar a realidade como ela é, acaba tomando o partido desses últimos contra os primeiros. Isso quer dizer que, para ele, a sociologia não é uma ciência "neutra" como pretendia Comte, porque mostrar a verdade objetivamente acaba ajudando os explorados a enxergarem os mecanismos pelos quais seus exploradores os dominam, dando condições para "virarem o jogo", por assim dizer. Por isso, assumir um posicionamento que defende os "explorados" não atrapalha em nada a objetividade científica, pelo contrário, essa objetividade tende a arrastar o sociólogo naturalmente nessa direção –– Comte errou ao tentar afastar a sociologia do socialismo, é o que diria Proudhon.

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