Tópicos de vida e obra de maquiavel

Pesquisa & Texto da autoria de João Ribeiro de A. Borba

 

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Maquiavel: a política como jogo de cena,
transparecendo a realidade crua das relações de poder

 

As principais contribuições de Maquiavel

 

Nicolau Maquiavel trouxe mais contribuições para nós com seus pensamentos do que aquelas que estamos acostumados a considerar. O diagrama abaixo procura mostrar isso:

 

Contribuições de Maqiavel

 

Foi o primeiro a estudar e entender a política de uma maneira mais puramente científica, determinando que para estudá-la era preciso primeiro observar os fatos cruamente como eles ocorrem nessa área, e quais as ações que se revelam eficazes, quais ineficazes, quando se trata de objetivos políticos. Só depois e com base nesse estudo prévio é que poderíamos avaliar e julgar se as ações políticas envolvidas são além disso moralmente "boas" ou "más", porque isso depende do resultado final delas. 

Em uma linguagem mais moderna e mais técnica podemos dizer que ele foi o primeiro a separar (ainda sem essa linguagem técnica para a coisa) de um lado os juízos ou julgamentos que fazemos sobre como as coisas são ou não são (juízos de fato) e sobre  o funcionamento delas (quando e como funcionam de modo eficaz ou de modo ineficaz); e de outro lado os juízos ou julgamentos que fazemos sobre o "dever-ser" das coisas, isto é, sobre como achamos que elas devem ser, como é bom que sejam ou como é bom que não sejam.

Com isso ele lançou as bases da pesquisa empírica, da pesquisa apoiada em primeiro lugar na cuidadosa observação dos fatos. Mais tarde o inglês Francis Bacon utilizou isso, levando a proposta de Maquiavel mais longe e organizando-a melhor, e acabou levando a fama de criador da pesquisa empírica. Entretanto é o  próprio Bacon, mais ou menos no início de seu livro mais famoso, o Novum Organon, quem declara e assume que só está organizando e levando mais longe o que Maquiavel já fazia na prática quando estudava política. 

Apoiado nessa nova forma de estudo –– a pesquisa empírica –– Maquiavel desenvolveu e pôs em prática todo um método para os estudos de História, e também toda a sua famosa e influente teoria política. Não é à toa também que ele foi um dos três primeiros grandes pensadores a desenvolverem estudos históricos consistentes depois dessa área de estudos ter sido  abandonada durante a Idade Média (os outros dois são Giambatista Vico, antes dele mas menos consistente, e Herder em língua alemã, depois dele). Também não é à toa que Maquiavel se destacou em sua época como um dos novos tradutores de Aristóteles que estavam começando a aparecer –– pois o próprio Aristóteles na antiguidade, de um modo diferente, já apresentava preocupações bem consistentes com a observação correta, metódica e cuidadosa dos fatos.

Como funciona a pesquisa empírica?

 Basicamente, ela segue os passos que estão descritos no diagrama acima, que começam com a experiência, isto é, com a observação e dos fatos que a experiência proporciona, e terminam com a formulação de regras ou leis gerais que expliquem o funcionamento de muitas coisas do mesmo tipo daquelas que foram observadas.

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O pensamento concreto em Maquiavel

Maquiavel valoriza acima de tudo os fatos da realidade concreta, procura descrever as coisas como as vê, com o máximo de objetividade. Ele acumula uma grande quantidade de descrições de casos reais procurando encontrar pontos comuns entre eles. Mas não valoriza esses pontos comuns como verdades a serem contempladas pela alma, como Platão fazia. Para ele as idéias gerais não têm valor em si mesmas, elas são acima de tudo ferramentas úteis para a ação. Além disso, não acredita que essas formas existam fora do mundo concreto. Maquiavel, quanto a isto, era mais aristotélico do que platônico.

Não vamos nos aprofundar em Aristóteles aqui, mas podemos dizer que para ele as formas gerais dos fatos só poderiam ser encontradas nos próprios fatos, e nunca como se existissem fora deles, a não ser no nosso raciocínio, quando usamos a lógica, onde trabalhamos com idéias gerais como se elas existissem fora da realidade concreta. Assim, Maquiavel encontra nos fatos históricos certas formas gerais que se repetem com novos conteúdos em sua época. Encontra na Roma antiga, por exemplo, a forma geral de uma república de sucesso que poderia se repetir entre os povos da região italiana, se eles conseguissem sobreviver ao período de tirania que se aproximava sem perderem a sua virtú de cidadãos (a sua força, a sua vitalidade, energia e entusiasmo em relação às questões de interesse público, sua vontade de participar das decisões importantes a respeito dos destinos de sua cidade).

Mas Maquiavel também não é exatamente aristotélico. Ele não dá tanta importância à lógica, valoriza acima de tudo a observação dos fatos concretos. Portanto, podemos dizer que Maquiavel não trabalha com o pensamento formal de tipo logicista, mas com uma espécie de pensamento concreto. No entanto, não podemos dizer que seja um pensamento concreto do mesmo tipo daquele buscado pelos dialéticos de hoje em dia. Uma das principais preocupantes de Maquiavel é a eficácia das ações.

Os nossos conhecimentos devem ser úteis para orientar ações eficazes, e muitas vezes o pensamento formal e abstrato nos ajuda nesse sentido, porque ajuda a reconhecer o que há de comum entre certos fatos (que têm mais ou menos a mesma forma) e o que há de diferente entre esses fatos e outros (que também têm uma mesma forma entre si, mas uma forma diferente daquela primeira); portanto, o pensamento formal ajuda a classificar os fatos reais observados, dizendo se são de um tipo ou de outro, ajuda a distinguir as coisas com mais clareza e a escolher melhor os exemplos que devemos seguir e os que devemos evitar.

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Além disso, se podemos reconhecer que uma certa situação é "do mesmo tipo" que uma outra do passado, embora não seja exatamente igual, isso pode nos ajudar a prever mais ou menos o que irá acontecer a partir dessa situação, porque situações do mesmo tipo devem se desenvolver mais ou menos da mesma maneira, e então o que já ocorreu no passado em uma situação "do mesmo tipo" que a atual pode nos dar uma idéia do que vai ocorrer no presente. Neste sentido, Maquiavel considera mais úteis os pontos comuns entre os fatos do que as contradições entre eles, o que o coloca bem longe dos dialéticos.
Por outro lado, procura sempre levar em consideração o contexto e as diferenças entre os fatos particulares, as contradições são um dado natural da realidade, e ele não as exclui. Em algumas situações até as valoriza; por exemplo: valoriza a contradição que observa entre os desejos dos poderosos e os desejos do povo. Enquanto houver essa contradição, ainda existe a esperança de um regime político de maior liberdade no futuro, desde que essa contradição não se torne um conflito entre radicalismos, o que levaria à destruição da própria sociedade.

Mas embora valorize as diferenças particulares e em algumas situações até as contradições, Maquiavel não tem uma lógica própria para lidar com isto, ainda não trabalha com algo que se aproxime da dialética; então, ao invés disso, se apega à observação dos fatos e a algumas generalizações formais, mas para se sentir seguro com essas generalizações, para que elas não se tornem abstratas demais e muito desconectadas dos fatos, procura apoiar cada uma delas na maior quantidade de observações que puder fazer.

Essa maneira de pensar de Maquiavel é o que chamamos de empirismo. O empirismo de Maquiavel valoriza a observação e comparação entre os fatos, buscando o que existe em comum entre eles, e generalizando esses traços comuns depois de uma quantidade muito grande de observações como se fossem uma "lei geral" que valesse universalmente para toda e qualquer observação de fatos do mesmo tipo. Mas Maquiavel não explicou esse seu modo de pensar nem deu nome a ele, porque na verdade estava mais preocupado com o com os assuntos políticos que estava estudando do que com o seu próprio método de estudo.

Conforme já mencionado, foi outro filósofo, um inglês chamado Francis Bacon (1521-1626), quem mais tarde explicou e desenvolveu melhor esse método que Maquiavel usava para pensar os problemas políticos, transformando-o em um método para o estudo dos fenômenos naturais, útil para a Física, a Química, a Biologia etc. (ciências que na época eram chamadas de "filosofia natural").

Bacon achava que as ciências deveriam nos ajudar a "dominar" a natureza e usá-la a nosso favor, por isso pensou em Maquiavel, que estudava as relações de poder. Para Bacon, há uma relação de poder entre o ser humano e a natureza: ou a dominamos ou ela nos domina, e para dominá-la é preciso conhecê-la muito bem (para Maquiavel, quando conhecemos o "mecanismo" de funcionamento de algo, podemos manipular e dominar esse algo, utilizando-o a nosso favor, assim como uma pessoa muito sincera e transparente pode ser facilmente manipulada).

Até hoje as ciências se apóiam muito nesse método empírico, de observação e comparação buscando traços comuns entre as coisas observadas. Mas as ciências de hoje misturam isso com alguma coisa do pensamento cartesiano e com a lógica matemática, que naquela época ainda nem existia. Bacon ficou conhecido como "o pai do empirismo", como se esse método fosse uma criação completamente dele e só dele, mas o próprio Bacon admite que apenas pôs às claras o que Maquiavel já havia praticado na Itália antes dele, quando estudava os problemas políticos. Entretanto, o trabalho de pôr às claras o método utilizado por Maquiavel já não é pouca coisa, e o aperfeiçoamento desse método conseguido por Bacon também não foi pequeno, de forma que o título de "pai do empirismo" é realmente merecido.

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A imagem superficial que costumamos ter do pensamento de Maquiavel
(ou o que não é a filosofia de Maquiavel)

Maquiavel é um filósofo do qual muita gente já ouviu falar, mas o que se fala dele costuma ser muito distorcido e superficial. Costumamos nos lembrar dele a partir de três idéias muito abstratas (ou seja, três idéias soltas, muito abstraídas do contexto de Maquiavel onde elas realmente nasceram):

a) A idéia de que existem pessoas "maquiavélicas" - e de que isso significa pessoas frias e calculistas e que não têm nenhum pudor de prejudicarem os outros para conseguirem o que querem, podendo ser consideradas também como pessoas cruéis e interesseiras, que colocam seus próprios interesses acima de qualquer ética, pouco se importando se suas ações fazem mal a alguém. E ficamos com a impressão de que uma pessoa "maquiavélica" seria uma pessoa que age como Maquiavel (ou seja, ficamos com a impressão de que o próprio Maquiavel era um sujeito "frio, calculista, interesseiro e cruel..." etc.)

b) A idéia de que Maquiavel defendia a monarquia contra os regimes políticos de maior liberdade em que os governantes eram eleitos (ou seja, contra as repúblicas), e mais do que isso, a idéia de que ele defendia as monarquias mais cruéis e terríveis, aquelas que chamamos de tiranias. Isso porque seu livro mais famoso, O príncipe, é um livro de conselhos para os reis que parece ensiná-los a agirem de maneira "maquiavélica" (no sentido atual da palavra), ou seja, de maneira fria, calculista, interesseira e cruel.

c) A idéia de que, segundo Maquiavel, para atingirmos um objetivo vale tudo, e não importa se no caminho acabamos prejudicando (ou até mesmo matando) alguém. Essa idéia vem do modo como costumamos interpretar aquele que acabou se tornando o mais famoso de todos os ensinamentos de Maquiavel: "Os fins justificam os meios". A partir das outras duas idéias, temos a impressão de que isto quer dizer que se os objetivos foram atingidos, então os meios utilizados para isso (por mais terríveis que tenham sido) estão justificados.

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A imagem que acabamos formando do pensamento de Maquiavel quando tentamos compreendê-lo apenas ligando essas três idéias umas com as outras através do nosso raciocínio, sem procurarmos entender o contexto de onde essas idéias emergiram, é uma imagem falsa e superficial. E é o que quase todas as pessoas que já ouviram falar de Maquiavel fazem. Aqui, a crítica que os dialéticos costumam fazer ao pensamento abstrato cabe perfeitamente: não basta raciocinar, não basta apenas buscar ligações racionais entre essas três idéias abstraídas do contexto em que Maquiavel vivia. Para compreendê-lo é preciso devolver essas idéias ao contexto de onde elas foram tiradas, é preciso ir além dessas abstrações e entender concretamente todo o conjunto da situação em que essas idéias nasceram, e tudo o que estava relacionado com elas. Para isso precisamos de um pouco de História, precisamos estudar o contexto em que Maquiavel vivia, examinar cuidadosamente onde, quando, como e por que essas idéias a respeito dele foram surgindo.
Maquiavel viveu na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, em um período que ficou conhecido como Renascimento, por causa da grande revalorização do ser humano em geral e de suas obras filosóficas, científicas e artísticas, depois de um longo período (a Idade Média) dominado pela Igreja, em que o ser humano só era valorizado como obra-prima de Deus, em meio a todas as outras obras que Deus teria realizado ao criar a natureza. Era como se os seres humanos estivessem "renascendo", voltando à luz, voltando a "mostrar a sua verdadeira face" sem medo ou vergonha de serem o que são, voltando a agir sobre o mundo e mostrar suas potencialidades, reprimidas por tanto tempo.
Para entendermos esse período, o que significa entendermos uma parte importante do contexto de Maquiavel, precisamos saber de algumas coisas a respeito da Idade Média (ou seja, do que estava ficando para trás) e a respeito da Idade Moderna (ou seja, daquilo que estava surgindo de novo na história da Humanidade). Isto exigirá um pouco de paciência: como estamos explorando o contexto ao redor daquelas idéias que queremos entender ao invés de falarmos delas diretamente, poderá parecer que estamos nos desviando do assunto, mas não estamos.
Além de servir para entendermos Maquiavel, esse breve "passeio" pela História do fim da Idade Média nos ajudará a entender também os outros três filósofos de que vamos falar nesta apostila, porque as diferenças das datas em que os quatro viveram não é tão grande, e podemos dizer que são todos do mesmo período renascentista.

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Uma breve História do fim da Idade Média
e da passagem para o Renascimento.

Na Idade Média as pessoas se distribuíam em três grandes grupos sociais que chamamos de "castas", o que significa que eram grupos fechados e ninguém podia "passar" de um grupo para outro: havia os trabalhadores (camponeses), os guerreiros (que eram os nobres) e os sacerdotes (o clero, ou seja, o pessoal da Igreja, em todos os níveis de sua hierarquia, do coroinha até o papa). Acreditava-se que Deus havia decidido quais famílias e pessoas estavam destinadas a serem de qual casta, e desde cedo, isso já estava fixado na vida de cada pessoa para sempre, até a morte. Descendentes de camponeses seriam sempre camponeses. Descendentes de nobres, sempre nobres. Quanto aos membros da Igreja, era preciso "descobrir" desde bem cedo quem tinha como destino entrar para a Igreja, mas costumava ser sempre gente da nobreza.
não existiam países, a Europa estava toda dividida em grandes fazendas que eram propriedade dos nobres ou da Igreja: os "feudos". O nobre que era dono de um "feudo" era o que chamamos de um "senhor feudal". Os camponeses faziam parte da terra. Um feudo podia mudar de dono muitas vezes, mas os camponeses íam junto, tinham direito sagrado de estar naquela terra onde viviam havia muitas gerações, em suas pequenas vilas, e não podiam ser tirados de lá.

Alguns nobres, no entanto, podiam infernizar a vida dos camponeses que viviam em seu feudo, cobrando impostos pesadíssimos e obrigando-os a seguirem leis terríveis, desde que esses nobres não tirassem os camponeses de suas terras e não os impedissem de tirar dessa terra pelo menos o mínimo necessário para o seu sustento - porque isso era considerado um direito sagrado, dado aos camponeses por Deus.
Nesses feudos, todo mundo se conhecia, e este é um dado importante. Os nobres eram em toda a Europa uma minoria, sustentada pelo trabalho da maioria que eram os camponeses, e os donos dos feudos de uma mesma região muitas vezes eram parentes. Mas os camponeses de um feudo também se conheciam, e tinham uma vida comunitária muito ativa, todos os problemas mais gerais, que afetavam toda a comunidade, eram resolvidos por todos em conjunto; eles formavam grandes conselhos camponeses em que decidiam o que devia ser feito, então pediam permissão ao senhor feudal (que normalmente cobrava algum imposto por essa permissão) e organizavam o trabalho em forma de mutirão para resolver o problema, fosse uma praga nos campos, uma fera atacando os rebanhos e que precisava ser caçada, uma ponte quebrada, o mato invadindo uma estrada que precisava ser limpa, ou fosse o que fosse. Só as questões de guerra eram resolvidas pela nobreza.


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Aliás é importante entendermos também este ponto se quisermos compreender bem Maquiavel, que se preocupava muito com a questão da guerra: pouco antes da época de Maquiavel, na Idade Média, a guerra era coisa de nobres, era uma arte reservada só para a alta classe. Um nobre jamais admitiria um de seus camponeses lutando, isso seria vergonhoso, um vexame, uma "baixaria", por assim dizer. Um camponês que se metesse a guerrear poderia ser duramente punido pelo nobre (ou pela própria comunidade dos camponeses); um nobre que pusesse seus camponeses para guerrearem poderia causar nojo aos outros nobres, por "sujar" a nobre arte da guerra trazendo para ela a gentalha da ralé, e certamente perderia o respeito e a amizade de toda a casta da nobreza. No campo de batalha, um nobre não se disporia a enfrentar um camponês, viraria as costas e iria embora indignado.

Tudo isso está ligado ao fato de que os nobres consideravam o trabalho como coisa de gente "inferior", então a guerra era uma das principais maneiras pelas quais um nobre podia enriquecer: enriqueciam conquistando mais terras (com mais camponeses para trabalharem para ele), pois os vencedores tomavam as terras (e os camponeses) dos vencidos. Isto era especialmente importante para os filhos mais novos das famílias nobres, os caçulas, porque na partilha da herança dos pais, os filhos mais velhos dividiam os feudos da família, com todo o poder e riqueza que isso significava; os do meio eram encaminhados para a Igreja, onde poderiam chegar a ter terras e poder, mas paralelamente, porque aquelas terras que ficavam para a Igreja não eram das pessoas do clero, mas da Igreja como instituição; e os mais novos, finalmente, ficavam sem nada, então freqüentemente saíam pelo mundo guerreando para conquistar algum espaço, e formavam exércitos mercenários, que lutavam para qualquer outro nobre em troca de alguma riqueza.

Toda essa maneira como as sociedades se organizavam era considerada a ordem que Deus colocou entre os homens. As coisas eram assim por vontade de Deus. E a Igreja, como porta voz de Deus, era o poder supremo em toda a Europa. Se alguma coisa em todo esse modo como as sociedades se organizavam parecia ruim, era porque nós, pobres seres humanos limitados em nossa pequenez, não tínhamos como compreender a sabedoria infinita de Deus, e portanto não conseguíamos entender de que maneira aquilo tudo, no fundo, era bom –– mas certamente devia ser, porque era a ordem de Deus na Terra, e Deus era bom. Só o próprio Deus teria uma inteligência tão profunda e infinita que seria capaz de compreender de que maneira, no conjunto de tudo o que existe no universo, essa ordem das coisas entre os homens era boa. Deus, em sua sabedoria, teria escolhido essa maneira de ordenar as nossas vidas justamente por ser muito boa.

Mas e os reis? Na Idade Média, ao contrário do que muita gente pensa por causa dos filmes e desenhos animados da televisão, que distorcem as coisas falando em reis e rainhas poderosos em seus castelos, e de lindas princesas, os reis não tinham nenhum poder especial, não passavam de figuras simbólicas. Eram coroados pelo papa e considerados pessoas sagradas, mas ao contrário do papa, que tinha muitas terras e dinheiro, e exércitos de nobres de toda a Europa sob seu comando, os reis não tinham poder para fazer muita coisa. Eram nobres como quaisquer outros, com suas terras e seus camponeses, e além desse poder igual ao de qualquer nobre, apenas tinham apenas esse "luxuoso" título que fazia deles pessoas consideradas "sagradas". Por isso às vezes podiam atuar como juízes supremos em algumas disputas entre nobres ou então entre os camponeses (que costumavam adorar a figura do rei vendo nele uma espécie de esperança de que Deus estivesse mais próximo e pudesse ouvir suas queixas através daquele homem sagrado). Com isso, às vezes alguns reis conquistavam o apoio de outros nobres, que queriam ser favorecidos nos tribunais. Mas era só isso.

Um último detalhe muito importante: na Idade Média, os camponeses de um feudo viviam isolados dos camponeses de outros feudos. não se viajava muito porque havia povos guerreiros muito violentos que vinham do norte da Europa e atacavam as pessoas que encontravam. Também atacavam as aldeias, destruindo tudo, roubando a produção, matando os homens e estuprando ou seqüestrando as mulheres. Era uma época de muito medo, por isso os camponeses necessitavam da proteção dos nobres, que sabiam guerrear.

Quando havia um ataque desses povos do norte, que eram chamados de "bárbaros", o povo corria para dentro das muralhas do castelo do senhor feudal, que saía para protegê-los e proteger suas terras, reunindo-se com os nobres vizinhos para guerrear contra os bárbaros (e é bom lembrarmos que a morte de muitos camponeses significava um prejuízo enorme para o senhor feudal, que dependia do trabalho deles).

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Então, no período do Renascimento, em que Maquiavel vive,
o que começa a acontecer?

No tempo de maquiavel as coisas começam a mudar. Os povos "bárbaros" do norte começam a aparecer cada vez menos, e conforme os ataques diminuem, o medo de sair do feudo (e a dependência da proteção dos nobres) também diminui. Um número cada vez maior de camponeses, ao invés de produzir para a comunidade camponesa e para o senhor feudal, começa a levar sua produção para as estradas e armar barracas para vendL-la nas encruzilhadas, acumulando dinheiro só para si mesmo e para sua família. Nobres e camponeses começam a ir a essas feiras para comprar o que falta em seus feudos (e, naturalmente, começa a faltar cada vez mais, porque há cada vez menos camponeses que ficam nas aldeias para produzir).

Muitas barracas começam a se acumular nessas encruzilhadas, formando feiras em que os camponeses de diferentes feudos começam a sentir a pressão da concorrência uns com os outros, e começa a se tornar importante ficar o maior tempo possível com a barraca armada e os produtos à venda ao invés de voltar para a aldeia (afinal, "tempo é dinheiro"). As barracas começam a se transformar em casas, as feiras em cidades, que são chamadas de "burgos". Esses ex-camponeses, agora comerciantes, que começam a enriquecer rapidamente, são os primeiros "burgueses".

A partir disto, começam a ocorrer algumas transformações interessantes: com esse novo grupo dos comerciantes as pessoas começam a perceber que não estão predestinadas por Deus a serem pobres ou ricas por toda a vida: é possível mudar as próprias condições de vida através dessa nova forma de trabalho. As pessoas começam a acreditar menos naquilo que a Igreja ensinava sobre a ordem de Deus no mundo dos homens, e começam a valorizar cada vez mais o esforço e a capacidade humana de realizar as coisas. Naturalmente a Igreja não vê nada disso com bons olhos, e faz propaganda contra esse novo grupo social que começava a desacreditá-la e fazê-la perder o poder.

Essa nova valorização das capacidades humanas vem junto com uma valorização da esperteza do comerciante, que já não lida mais com as pessoas amigas da aldeia, que ele conhece e que o conhecem bem desde a infância, mas sim com gente desconhecida de todo tipo que vem às encruzilhadas para comprar. O comerciante, que não se sente tão "amigo" dessa geste desconhecida, começa a aprender a ser dissimulado, a enganar, a ser frio e calculista e tirar vantagem dos compradores que não o conhecem, para conseguir lucrar mais. Muitas vezes as críticas da Igreja aos burgueses se dirigem contra essa esperteza "imoral" que visa o lucro, contra a nova maneira de ser dessa gente comerciante que vem tendo tanto sucesso.

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Os que insistem em continuar camponeses também não gostam dessa mentalidade dos novos burgueses, principalmente porque começam a se tornar cada vez mais difíceis os trabalhos comunitários em mutirão para resolver os problemas que são do interesse de todos na aldeia. Quem vai ajudar a consertar a ponte quebrada? Limpar as estradas que vão sendo tomadas pelo mato? Caçar a fera que está atacando o gado? Há cada vez menos gente para isso. Os burgueses muitas vezes são vistos como uma espécie de "traidores", gente mesquinha e avarenta que deixou de ajudar a comunidade para cuidar de seus próprios interesses. O que está entrando em cena e se tornando cada vez mais forte é o interesse privado, a valorização da vida privada, em detrimento da vida comunitária.

Os nobres, por sua vez, também começam a empobrecer, e cada vez mais deles começam a se comportar como aqueles filhos mais novos da família que se tornavam mercenários, ou seja, começam a vender seus serviços como guerreiros.

Muitos exércitos mercenários formados por nobres empobrecidos começam a circular pela Europa, e freqüentemente se comportam como uma espécie de "gangsters nômades": viajam pela Europa, atravessam cidades ("burgos") destruindo tudo, depois oferecem "proteção" em troca de dinheiro, mulheres, comida, abrigo por algum tempo etc. Alguns, sem camponeses em número suficiente para sustentar seu estilo de vida, até mesmo acabam se rendendo a esse novo tipo de trabalho (em que pelo menos não se mete as mãos na terra como um camponês ), e se associam a comerciantes enriquecidos, oferecendo as estradas das poucas terras que lhe restam em troca de algo, ou seja, começam a comercializar suas terras.

Nessas condições, os pequenos conflitos que precisam de julgamento em um tribunal, conflitos entre camponeses e burgueses, nobres e burgueses, nobres e nobres, burgueses e burgueses, burgueses e compradores em geral, começam a aumentar em toda a Europa, e o julgamento dos reis começa a ser cada vez mais requisitado.

Os reis (que cobram pelas decisões a favor de um lado ou de outro nas disputas) começam a ter não só o seu prestígio aumentado, mas também mais dinheiro do que antes. Com os burgueses ocupados com seus negócios, a Igreja desacreditada, os nobres empobrecidos e as comunidades camponesas enfraquecidas (com menor mno de obra), quem iria cuidar dos interesses públicos, ou seja, daquilo que é do interesse de todos, como a manutenção das estradas em bom estado, por exemplo?

As pessoas começam a se voltar para o rei, que começa a cobrar impostos em troca de investir na contratação de gente para fazer esses serviços em toda a região daqueles que têm aproximadamente os mesmos costumes "italianos" que ele. Começa a se formar algo como o que hoje chamamos de país, dirigido pelo rei como governante.

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É importante notarmos, em todo esse processo, que começa a desaparecer a vida comunitária da Idade Média em que a maioria da população (os camponeses) se preocupava com o que era de interesse público, ou seja, do interesse de todos. No lugar disto começa a crescer rapidamente a valorização dos interesses privados de cada burguês e sua família, e juntamente com isso, começa a tomar forma e se fortalecer o Estado moderno, com o governo de um rei responsável pela solução desses problemas de interesse público em toda uma extensa região de gente com língua ou costumes parecidos, e essas regiões começam a assumir a forma dos países que conhecemos hoje.

O rei cobra impostos em toda essa extensa região, que já não é mais formada de terras da sua propriedade –– portanto já não é um feudo e ele já não é um senhor feudal –– e faz isso em troca da contratação de gente para cuidar do que é do interesse de todos nessa região, já que as pessoas estão cada vez mais voltadas para seus interesses privados e não têm mais tempo para isso. E além disto, um país é muito maior do que um feudo, as pessoas agora convivem diariamente cada vez mais com gente desconhecida, e não só com gente conhecida desde a infância.

Naturalmente, a Igreja também não vê com bons olhos o crescimento dessas forças concorrentes que são os reis, considerados como figuras sagradas e uma espécie de representantes de Deus, e procura manter o seu poder forçando acordos com os futuros reis em troca de sua coroação (que é feita pelo papa).

O que mais incomoda a Igreja é talvez o fato de que esses reis começam a formar exércitos, contratando batalhões de nobres mercenários para protegerem as terras onde cobram seus impostos, e isso significa que a Igreja, cujo poder se estendia livremente por toda a Europa, ensinando as idéias que bem entendesse, começa a ter seu território de dominação dividido por esses reis com os quais ela agora precisa negociar para saber o que pode e o que não pode ensinar às pessoas em cada regino do continente.

O poder político, na Europa, está dividido entre o decadente poder espiritual da Igreja (que é um poder sobre a vida espiritual dos homens e sobre suas almas eternas, e que podemos dizer que é parecido com o poder que a mídia exerce sobre a mentalidade das pessoas nos dias de hoje, ditando modas, valores e maneiras de pensar e agir), e os crescentes poderes temporais ou seculares (o poder dos reis é chamado de "temporal" ou "secular", porque se dizia era um poder sobre o mundo material e sobre as coisas que não são eternas, porque mudam com o tempo ou com o passar dos séculos).

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Entendendo melhor Maquiavel a partir de seu contexto

Para entendermos Maquiavel, primeiro vamos procurar entender o que significa neste período a idéia de que as pessoas podem ser frias e calculistas, interesseiras e cruéis na realização desses interesses, e de que maneira essas características acabaram tão associadas ao nome de Maquiavel, que com o passar dos séculos as pessoas se acostumaram a chamar de "maquiavélico" quem tem essas características.

Onde vive Maquiavel? Em Florença, na Itália.

Mas a Itália ainda não existe, só existem as cidades de costumes parecidos (os "burgos" da região), que são muitas e muito ativas comercialmente. Em toda essa região que hoje é a Itália, ocorreu algo muito interessante e diferente do que ocorria no resto da Europa: eles saíram da Idade Média sem formarem um país. Ao invés disso, formaram cidades-Estado, cada uma com seus próprios governantes e completamente independente das outras. Ainda mais interessante do que isso, é o fato de que grande parte dessas cidades eram repúblicas, ou seja, os governantes eram eleitos pela população, e os povos de costumes italianos valorizavam muito essa liberdade de escolher seus governantes. não vamos analisar aqui por que isso ocorreu, mas é provável que a proximidade de Roma e do papa tenha influenciado na dificuldade de aparecimento de um rei forte na região. A Igreja faria de tudo para evitar a presença de um rei forte com seu exército tão perto do território do papa.

Na maioria dos países que se formam na Europa neste período, os nobres, mesmo enfraquecidos, ainda têm bastante influência sobre o rei, que afinal de contas é um nobre também, e tem muitos parentes na nobreza. Mas as cidades italianas do mesmo período são governadas principalmente pela burguesia, muito mais do que pelos nobres locais.

A mentalidade burguesa é muito forte nessas cidades, quase todos são comerciantes e pensam como comerciantes, mas ao mesmo tempo, continuam sendo cidades pequenas, em que todos se conhecem, e o espírito de comunidade continua existindo, só que de uma maneira bem diferente daquela das antigas aldeias camponesas: a população de cada cidade italiana participa ativamente da discussão a respeito das decisões políticas importantes e pressiona em praça pública os seus governantes eleitos em defesa dos interesses da cidade.

Naturalmente há muita malícia das pessoas em geral nisso tudo, pois nem todos têm exatamente os mesmos interesses, e cada grupo na cidade tenta "puxar a sardinha" a seu favor.

Toda essa agitação política da população, em Florença –– justamente a cidade de Maquiavel –– é muito mais forte do que na maioria das outras cidades. Há em Florença debates sobre que deve ser feito, há manifestações públicas, a multidão sempre se aglomera na rua discutindo sobre o que fazer ou protestando contra algo que os governantes não deviam ter feito, e os governantes às vezes são expulsos de seus cargos por uma multidão enfurecida.

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Pode-se dizer que quase toda a cidade de Florença valoriza aquela esperteza fria e calculista típica do comerciante que defende seus interesses e consegue um bom lucro acima de qualquer preocupação moral com o comprador. Mas os cidadãos de Florença valorizam a esperteza e a frieza calculista não só porque pensam como comerciantes; também valorizam isso porque pensam um pouco como políticos (que tendem a ter naturalmente esse tipo de mentalidade maliciosa), e essa maneira de pensar e agir para eles é muito natural nessa época.

Por outro lado, a cidade-Estado italiana tende atuar toda unida nesse sentido em relação aos compradores estrangeiros, que no caso de Florença vêm de toda a Europa, e o mesmo ocorre em relação às forças políticas estrangeiras, de outras cidades ou países. Maquiavel não é exceção, valoriza o que todos os seus conterrâneos tendem a valorizar: a defesa dos interesses públicos comuns a todos os cidadãos de Florença, e ao mesmo tempo a fria e calculista esperteza do comerciante e do político.

Florença é uma cidade especialmente forte na produção e comercialização de tecidos, exportados para todos os países, por isso é uma cidade muito rica nessa época, e muito conhecida e visitada por estrangeiros, que chegam atraídos além disso, pelo desenvolvimento artístico e intelectual do lugar, onde as capacidades humanas são supervalorizadas e há, entre os habitantes, muitos filósofos, cientistas e artistas famosos, como Leonardo Da Vinci, por exemplo.

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Por que essa valorização da malícia e da frieza calculista
que é tão comum na Florença desse período

acabou sendo tão mal vista no caso de Maquiavel?

A valorização da malícia e da frieza calculista, que na florença do tempo de maquiavel é tão comum na defesa de interesses, acabou tão mal vista no caso de Maquiavel porque ele ultrapassa nisso certos limites que os outros não ousam ultrapassar –– especialmente em seus ensinamentos a respeito do modo de agir dos reis.

Ao contrário do que costumamos imaginar, Maquiavel não defende a monarquia e menos ainda a tirania –– e ele próprio fez parte do governo republicano de Florença nesta época. Seu cargo nesse governo, na época, é de Secretário do Governo, e não lhe dá muito poder, mas é um cargo razoavelmente importante: ele é uma espécie de diplomata, ou mais precisamente um "relações-públicas" do governo, enviado para conversar com outros governos em situações de conflito, mas sem quase nenhum poder de negociação.

Maquiavel é portanto uma espécie de super-mensageiro de Florença, um porta-voz das propostas e decisões do governo republicano, com a função de tentar convencer os governos que visita em favor dessas propostas e decisões, mas sem poder alterá-las em nada para facilitar as negociações.

Mais do que funcionário de alto cargo do governo republicano, Maquiavel é considerado pelos florentinos um esquerdista radical. não é todo o povo que tem direito de voto na cidade nessa época, só os mais ricos votam nos governantes, e Maquiavel, na contra-corrente, defende que esse direito seja estendido a uma parcela bem maior da população, ou seja, é um republicano mais radical do que a maioria dos seus colegas, e de maneira nenhuma um monarquista.

Mas Maquiavel não ficou famoso justamente por escrever um livro de conselhos para os reis, chamado O príncipe, onde os ensina a agirem como tiranos? É o que costumamos ouvir a respeito de Maquiavel, e ele realmente escreveu isso, mas as coisas, nesse livro famoso, não são exatamente como parecem.

Os filósofos da época, quando falam a respeito dos reis, costumam sempre considerar que há dois tipos de monarquia:

  • a) aquela em que se tem um bom rei, que governa segundo as leis da Bíblia e em defesa dos interesses do povo, como se fosse um grande "pai" substituto tomando conta de todos em nome de Deus-pai (e neste caso, castigos e punições severas contra alguns cidadãos são aceitáveis, desde que a justificativa seja o bem de todo o resto do povo); e

  • b) aquela em que se tem um mau rei, um "tirano" que se esquece das leis da Bíblia e de sua função sagrada como representante de Deus-pai, e governa segundo seus próprios interesses, como um animal selvagem e poderoso que só se preocupa com dinheiro e poder.

E não são só os filósofos que pensam assim: são idéias bastante difundidas na época, e as pessoas em geral costumam pensar nos "bons" e nos "maus" reis mais ou menos dessa maneira.

O livro de Maquiavel choca a todos principalmente porque ali ele trata todos os reis, indiferentemente, como "tiranos", deixando muito claro que no fundo é isso o que todos os reis são, e que apenas alguns são mais "assumidos" na sua tirania (e mais competentes como tiranos, conseguindo o que querem) do que outros. Que esses outros, quando ingenuamente procuram ser "bons reis", na verdade acabam sendo manipulados pelos seus conselheiros, agindo na prática como tiranos sem se darem conta. Sem perceberem, acabam castigando o povo com seu mau governo.

Esses reis supostamente "bondosos", com a justificativa de que o fazem para o bem do povo, ainda por cima fazem o mau sem conseguirem tirar vantagem disso, porque neste caso quem tira vantagem são os seus conselheiros, mais espertos do que os reis aconselhados por eles.

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As análises políticas de Maquiavel
deixam completamente de lado as questões religiosas?

Nos livros de Maquiavel, as análises políticas deixam completamente de lado as questões religiosas.

Entre os exemplos de "tiranos" mais competentes ou menos apontados por Maquiavel em O príncipe, encontramos até mesmo papas.

Mas o mais interessante é que Maquiavel não diz em nenhum momento que o tirano mais competente é necessariamente o mais terrível: não é a crueldade o que torna os tiranos mais competentes, mas sim a frieza calculista, a malícia e a capacidade de dissimular, de fingir como um ator e agir com falsidade, mudando o modo de agir de acordo com a situação para fazer sempre o que cada situação exige.

O máximo que Maquiavel chega a dizer a respeito da crueldade, é que, para o governante, geralmente é melhor ser amado do que odiado, mas também é melhor se temido do que amado. A crueldade pode ser um bom recurso para fazer com que as pessoas tenham medo do governante. Mas precisa ser súbita e surpreendente e nunca algo previsível, para que as pessoas nunca saibam se e quando um gesto cruel e terrível como aquele vai se repetir. Isso porque se as pessoas se acostumarem à crueldade do tirano, vão acabar aprendendo a odiá-lo, o que é perigoso para ele.

Assim, para Maquiavel, o melhor governante não é o mais cruel, e sim o mais imprevisível e auto-controlado, aquele que sabe a todo momento exatamente o que está fazendo e que usa sua malícia e seu fingimento para manipular os outros, e que ao mesmo tempo não pode ser manipulado pelos outros porque nunca sabem o que ele realmente está pensando e quais as suas verdadeiras intenções.

O sinceramente bonzinho e o sinceramente cruel são maus tiranos, porque suas ações são previsíveis, seus pensamentos e sentimentos também, e por isso podem ser facilmente manipulados para agirem em favor dos interesses de outros, e não dos seus próprios (e como todo rei é um tirano, todo rei deveria assumir o fato de que no fundo age de acordo com seus próprios interesses pessoais, a menos que seja um grande tolo e acabe agindo de acordo com os interesses privados dos seus conselheiros e das pessoas com quem convive em geral, manipulado por essa gente).

O bom tirano é capaz de parecer "bondoso" no momento em que isto for necessário, e parecer "cruel" quando for preciso, mas deixando claro que pode agir livre e imprevisivelmente de um modo ou do outro.
O "bem do povo", neste sentido, não passa de uma desculpa esfarrapada, que pode ser bem utilizada por um bom fingidor, ou mal utilizada por um ingênuo que acredite realmente que isso seja mais do que uma "desculpa" de rei (ou de qualquer governante) para agir como bem entende.

É importante notarmos que Maquiavel está falando de pessoas que são consideradas "sagradas" em sua época, pois os reis são tidos como representantes de Deus-pai. Este é o suposto "monarquismo" que encontramos no livro O príncipe, de Maquiavel. E se examinarmos seus outros escritos, veremos que para ele mesmo os governantes eleitos de uma república, como a florentina, tendem a agir como tiranos, e isso, segundo Maquiavel, é muito natural. Mas ao contrário da monarquia, quando são eleitos o povo pode ameaçar tirá-los do poder, e portanto pode pressioná-los constantemente para que ajam "na marra" pelo menos um pouco no interesse de todos, e não apenas no seu próprio.

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Em que situação Maquiavel escreve O príncipe?

Podemos ir um pouco mais longe: em que situação Maquiavel escreve O príncipe?

Na mesma época, ele está escrevendo um grande livro –– chamado Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio –– sobre o modo como o historiador romano Tito Lívio, antes da Idade Média, descreve o nascimento, o desenvolvimento e o declínio de uma república que existiu em Roma na antiguidade.

Neste livro, que ele considera sua obra mais importante, Maquiavel compara várias outras repúblicas com a romana, e levanta leis gerais de funcionamento das repúblicas, para sugerir indiretamente uma porção de conselhos aos republicanos de sua época. Está mais ou menos na metade da obra quando uma família de nobres italianos (a família Médici) dá um golpe de Estado em Florença e toma o poder, derrubando a república da cidade.

Maquiavel, sendo um famoso republicano radical, é preso pelos Médici e cruelmente torturado por uma noite inteira, mais tarde, depois de livre, sofre perseguições políticas até o fim da vida e não encontra mais emprego. Então escreve um livro de conselhos dedicado aos Médici, tentando mostrar que pode ser útil trabalhando no governo, apesar de ser um republicano: O príncipe –– mas naturalmente o livro é republicano demais para que o aceitem. De qualquer modo, depois de escrever este seu "livrinho", como Maquiavel chama O príncipe, ele volta a escrever sua grande obra republicana, e a termina. Nunca poderia imaginar que sua principal obra seria quase esquecida e ficaria famoso por esse "livrinho".

Mas o que aconteceu, então, para acabarmos distorcendo tanto a imagem de Maquiavel nos dias de hoje?

Na verdade o público da época de Maquiavel não gosta nem um pouco de vê-lo tratar figuras "sagradas", reis e papas, representantes de Deus, como se fossem meros "tiranos", ignorando as leis da Bíblia. É bastante claro que para Maquiavel as leis da Bíblia, que são a base de toda a moral da época, simplesmente não servem para a arte de governar, e um governante que as seguisse de fato acabaria se tornando absolutamente manipulável e incompetente. Governar não parece ter nada a ver com moral, mas acima de tudo com uma questão de eficácia quando se trata de atingir certos fins.

Pode-se imaginar, diante disto, a reação da Igreja (poder espiritual que apesar de decadente ainda atravessa toda a Europa, atuando como a grande "mídia" do período e ditando, justamente, qual são os valores morais que devem ser seguidos e como as leis da Bíblia devem ser interpretadas).

O "livrinho" de Maquiavel torna-se rapidamente famoso em toda a Europa, e apesar de rivais, a Igreja e os reis se unem para fazer propaganda contra essa obra. O rei da Inglaterra, Jaime I, escreve um livro anti-Maquiavel, em que brinca de chamar o filósofo florentino de "Mac Evil" (que traduzido para o português seria talvez algo como "Mau Quiavel"). Em pouco tempo, começa a circular um novo apelido para o "demônio": Old Nic ("Velho Nic", trocadilho referindo-se ao primeiro nome de Maquiavel: Nicolau).

Assim, foi circulando cada vez mais a má-fama de Nicolau Maquiavel, até que começou a surgir a idéia de que algumas pessoas poderiam ser terrivelmente "maquiavélicas", no sentido em que ainda usamos esse termo até os dias de hoje.

Destarte já somos capazes de perceber um pouco mais claramente, agora, o verdadeiro sentido de duas daquelas idéias abstratas que costumamos ter acerca de Maquiavel: a de uma maneira "maquiavélica" de agir, que seria fria e calculista, interesseira e cruel; e a de que Maquiavel seria um defensor da tirania dos reis contra a liberdade. Podemos notar que nenhuma das duas idéias é verdadeira. Estão distorcidas pelo excesso de abstração, ou seja, pela falta do contexto.

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Os principais conceitos da filosofia política de Maquiavel

 

Maquiavel é um pensador de pensamento simples, com poucos conceitos básicos, mas de muita repercussão. E apesar disso seu pensamento é tão profundamente entranhado na realidade que acaba se tornando complexo, porque seus conceitos são usados para descrever e examinar uma realidade complexa.

 Para entendermos melhor o ensinamento de Maquiavel segundo o qual "os fins justificam os meios", quatro conceitos desse filósofo são fundamentais e precisam ser entendidos primeiro: os conceitos de Fortuna e virtú, que ele desenvolve em O príncipe, e os conceitos de liberdade e de corrupção do povo, que ele desenvolve nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.

 

Conceitos básicos de Maquiavel

 

De um lado, existe uma certa oposição entre os conceitos de virtú e Fortuna (veremos que a virtú luta para dominar a Fortuna, que sempre escapa em alguma medida ao seu poder). De outro lado, uma oposição entre o conceito de liberdade e o de corrupcão do povo (os que querem a liberdade, que consistem basicamente no "povo", estão em luta contra a concentração de poder, e a corrupção do povo afrouxa essa luta e permite a vitória dos que querem concentrar o poder).

O poder é conquistado e/ou mantido pelo uso da virtú, e pode ser de quatro espécies ou uma combinação delas: poder político-institucional, poder militar, poder econômico e poder de influência sobre as opiniões (este último dominado na época pela Igreja, mas hoje poderíamos dizer que a mídia adquiriu uma posição superior neste campo, de modo que até mesmo as diferentes religiões dependem cada vez mais dela para manterem ou aumentarem sua influência).

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A Fortuna

Para Maquiavel, a Fortuna (que é como ele e muitas outras pessoas na época costumavam chamar a "sorte" ou o "azar") pode ser favorável ao político ou desfavorável a ele. Maquiavel brinca de dizer que a sorte (a Fortuna) é como se fosse uma deusa volúvel que se sente seduzida a cada momento por alguém diferente, e que portanto muda sempre de idéia, às vezes gosta de uns e não gosta de outros, outras vezes muda de direção e passa a gostar desses outros, abandonando os primeiros.

Se o político for firme e decidido, e se tiver virtú (que é justamente aquela esperteza dissimulada, fria e calculista, combinada com um bom senso de oportunidade), conseguirá atrair e seduzir a "deusa" da sorte a seu favor por mais tempo. Ou seja, se tiver senso de oportunidade para perceber o momento certo de agir, e souber como agir da maneira correta, poderá escapar dos azares ou sobreviver a eles quando necessário, e tirar o melhor proveito possível dos momentos de sorte.

Os exemplos que Maquiavel vai apresentando de "boa" e "má" Fortuna no livro O príncipe levam à compreensão de que se trata apenas de "situações favoráveis" e "situações desfavoráveis" aos agente político, e que ele sugere as ideias de sorte e azar apenas para assinalar que não há controle nem previsibilidade total dessas situações. Não que aconteçam ao acaso, mas sim de forma frequentemente imprevista pelo agente político, o que na prática dá no mesmo. Isto não significa porém que não seja possível em alguma medida prever e controlar essas situações: a imprevisibilidade e o descontrole não são totais nem invariáveis ou completamente irreversíveis. A medida da virtú que um agente político tem é precisamente a medida da sua capacidade de prever e controlar tais situações.

Uma vez que estamos no mundo político, as situações favoráveis ou desfavoráveis, por sua vez (as situações de boa ou má Fortuna), envolvem principalmente relações com pessoas, individualmente ou coletivamente. De modo que a virtú consiste não apenas, mas principalmente, em saber lidar politicamente com as pessoas com as quais é preciso lidar.

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A virtú

 Vimos que Maquiavel usou sua pesquisa empírica (seu método de observação dos fatos e busca de leix gerais a partir deles) para desenvolver sua Teoria Política e também uma teoria da História.

 

Usos do método empírico

 

Entre suas observações no livro O príncipe, Maquiavel elogia muito a maneira de agir de um nobre espanhol de sua época (que era um general mercenário), sobrinho do papa, chamado César Bórgia, mais conhecido como Duque Valentino, com quem ele teve de negociar em uma de suas missões para o governo republicano de Florença.

O Duque Valentino, para ele, é um modelo de virtú que deveria ser imitado por todos os governantes, inclusive por seus próprios patrões, pois os governantes florentinos nessa época não mostram nenhuma virtú.

Mas o que é mais precisamente essa virtú?

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Comparando os diversos exemplos emppiricamente pesquisados que Maquiavel vai apresentando de atitudes poplíticas que demonstraram virtú, podemos concluir algumas coisas:

 

O líder sem virtú e o líder de virtú

 

 Em política, o agente político que está numa posição de liderança (em vermelho no diagrama acima) pode exercer uma liderança politicamente incompetente ou politicamente competente –– e o líder competente do ponto de vista da política é aquele que é eficaz na manutenção e no aumento de seu poder, de modo a conseguir realizar mais e melhor as coisas que deve ou pretende realizar.

Para isso, ele terá que lidar com uma boa ou má Fortuna que é constituída (na sua maior parte e na sua parte mais importante) por três "públicos" diante dos quais terá de atuar: seus aliados, seus inimigos e o povo.

A lição básica de Maquiavel é a de que o líder precisa saber fingir, e saber fingir da maneira certa, no momento certo, para conseguir obter com esse fingimento a reação necessária de cada um desses três públicos em cada momento.

Mas há uma outra razão pela qual o líder precisa saber fingir: é que ele precisa saber ocultar seus sentimentos e suas reais intenções, sejam elas quais forem. A transparência é considerada por Maquiavel uma fraqueza política. Por quê? Porque uma vez que saibam quais os seus sentimentos e as suas reais intenções, você se torna manipulável pelos que sabem.

O líder incompetente não sabe fingir. Ele é transparente, por isso, mesmo agindo sobre o povo, o povo também aprende como agir sobre ele e provocar nele as reações desejadas (que não são necessariamente as melhores para um bom governo, inclusive para o próprio povo). E o mais grave: seus inimigos saberão como manipulá-lo. E mais grave ainda: seus aliados saberão como manipulá-lo!

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Mas por que a manipulação pelos aliados é mais grave que a manipulação pelos inimigos?

Porque os aliados estão sempre mais perto, e conseguirar entender melhor o líder e manipulá-lo melhor, tirando proveito, inclusive tirando proveito em detrimento do  povo. E note-se bem: o aliado de hoje sempre pode ser o inimigo de amanhã. Se pode manipular o líder, se utilizará dele enquanto ele for útil, mas quando não for mais útil se voltará contra ele e tentará descartá-lo, derrubá-lo do poder.

Se o líder competente (o líder de virtú) não é aquele sinceramente "bonzinho", também não é aquele clara e sinceramente "cruel" ou "terrível". Do "bonzinho" o povo, os aliados e os inimigos tirarão proveito conduzindo-o, propositalmente ou não, a um mau governo, para depois descartá-lo quando os males do seu governo vierem à tona. Do "cruel" ou "terrível", os inimigos, os aliados e o povo tirarão proveito também, usando-o como uma arma, atiçando a ira dele contra os desafetos deles –– e o resultado será igualmente um mau governo, dirigido para os focos errados, com os objetivos errados em vista.

O líder competente  e eficaz, o líder de virtú, será aquele que –– sabendo fingir a coisa certa no momento certo para o público certo –– conseguir controlar esses três públicos e provocar neles as reações necessárias para atingir os objetivos corretos, ao invés de ser controlado erraticamente por eles, ao sabor do que desejam (entenda-se bem, ao sabor do que desejam sem terem o conhecimento ou o interesse necessários quando se trata do que é benefício para o Estado como um todo).

Mas a virtú, a partir dos exemplos detalhados de Maquiavel, também pode ser mais detalhada que isto:

 

Teoria política: a virtú

 Além do fingimento eficaz, a virtú envolve a capacidade do agente político de prever os movimentos da Fortuna, isto é, de prever as boas e más situações políticas que estão se formando ao seu redor, e que podem vir a favorecê-lo ou prejudicá-lo. Prevendo-as ou prevendo sua possibilidade, deve saber como agir para potencializar as situações favoráveis (ou até mesmo criá-las), e para minimizar (ou desfazer a meio de caminho antes que ocorram) as situações desfavoráveis. Isto exige atenção constante e predisposição para agir com firmeza e decisão no momento certo, de modo a não deixar passar as oportunidades (situações favoráveis) nem deixar ocorrerem as situações ruins ou se deixar cair nelas.

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Para evitar as situações ruins que podem se formar, ou para driar e potencializar as boas situações, se tais situações envolvem pessoas, existe um sentimento básico que o líder precisa tentar conseguir provocar (o mesmo sentimento básico) em seus 3 públicos: inimigos, aliados e o povo. Esse sentimento é de uma admiração respeitosa. Ele precisa conseguir que tanto do inimigos quanto os aliados e o povo sintam por ele essa admiração carregada de respeito.

A receita para isso é manipular 3 sentimentos ainda mais básicos dessa gente, sentimentos que combinados da maneira certa produzem a adniração respeitosa. e esses 3 sentimentos são o medo, o amor e o ódio. A receita maquiaveliana é a seguinte: "Melhor ser temido do que amado, e muito melhor ser amado do que odiado" –– portanto, provocar nos inimigos, nos aliados e no povo uma dose maior de medo, uma um pouco menor de amor, e reduzir o ódio ao mínimo possível. conquista-se o amor de alguém fazendo bondades ou benefícios para esse alguém. conquista-se o medo fazendo ruindades ou causando malefícios na vida desse alguém. Mas o excesso de medo se transforma em ódio, e o ódio precisa ser evitado.

O medo gera o respeito, e se o amor for maior que ele, as pessoas começam a esperar do líder mais e mais bondades e benefícios, perdendo o respeito por ele e abusando com exigências cada vez maiores nesse sentido. Por isso o medo precisa ser maior –– para garantir o respeiti, Mas não grande demais a ponto de se transformar em ódio, poruqe quem odeia também não respeita, e fica tramando a derrubada do odiado.

Maquiavel sugere, então, que as bondades sejam feitas "a conta-gotas", de pouquinho em pouquinho, para manterem sempre uma dose de amor, e as crueldades necessárias sejam acumuladas para seerem feitas todas de uma vez só, de modo a marcarem bem a lembrança e gerare o medo em quem tem tendência a abusar da boa vontade do líder, isto é, gerarem o respeito.

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A falta de virtú dos governos italianos da época

As ordens do governo de florença para Maquiavel, nas negociações com outros governos ou com generais mercenários como o Duque Valentino, que de tempos em tempos ameaçam a cidade, são sempre no sentido de "ganhar tempo" e não decidir nada –– em linguagem popular atual, a ordem era para "enrolar". Assim, na opinião de Maquiavel, acabam infelizmente deixando passar as melhores oportunidades, e nunca tomam uma iniciativa firme, mostrando-se sempre um governo fraco, o que pode inclusive ser perigoso em certas circunstâncias. E segundo ele, o Duque Valentino era o exemplo de uma liderança completamente oposta a isto: uma liderança firme e decidida.

A partir de comparações desta situação com as que encontrou na antiguidade, em seus estudos da História da república romana, e a partir também do contraste com a firmeza (e com o sucesso) das decisões do Duque Valentino, Maquiavel conclue que o problema da "enrolação", da hesitação, incerteza e  lentidão nas decisões, levando a sucessivos fracassos, é um problema estrutural que atinge todas as pequenas cidades republicanas da região italiana.

 Todas elas estão dando claros sinais de decadência. São repúblicas cada vez mais fracas e mais vulneráveis às situações de azar que podem ocorrer a qualquer momento. E essas situações de azar já estão dando sinais de que podem ocorrer em breve: Florença, assim como as demais cidadezinhas republicanas da região italiana, é rica, atraente e fraca, ou seja, não tem como se defender de ataques de exércitos muito poderosos se algum governo muito mais forte, como a França, por exemplo, resolver atacar e tomar essas riquezas.

Com sua riqueza, a cidade poderia contratar um grande exército de nobres mercenários para defender-se, assim como a França e os outros grandes países fazem. Mas por que um exército mercenário quereria defender esta cidadezinha em troca de um pouco dessa riqueza, se poderia facilmente atacar a cidade ele próprio e ficar com tudo? Afinal, uma cidade tão pequena e tão fácil de cercar e destruir... era mais seguro, então, ficar apenas com exércitos bem pequenos, suficientes para uma pequena guerra com outra cidadezinha italiana, por exemplo.

Haveria alguma escapatória contra o possível ataque de um grande país, como a França, se as cidadezinhas da região italiana se unissem em uma grande coligação e contratassem todas juntas esse grande exército de proteção, mas não há nesse momento força política nelas para essa decisão, continuam sempre divididas em coligações pequenas voltadas umas contra as outras, em pequenas guerras e conflitos, e os negociadores dessas diferentes cidades, assim como Maquiavel, jamais têm algum real poder de negociação para ajudar a articular as cidades umas com as outras.

Os líderes de Florença não vêem muito interesse pessoal nesse tipo de coligação tão ampla, preferem defender apenas o que de algum modo os favorece pessoalmente e de maneira mais imediata, nesses conflitos intermináveis entre as pequenas cidades, nas trocas e barganhas entre aliados e nas partilha dos bens dos vencidos.

O povo das diversas cidadezinhas não está suficientemente esclarecido dessa necessidade (não procura se esclarecer) nem se mostra suficientemente inflamado politicamente para pressionar os seus governos nesse sentido, porque é –– segundo Maquiavel –– um povo já um pouco corrompido, o suficiente para não lutar por sua própria liberdade. E é precisamente isso o que está em jogo: a liberdade das cidades republicanas, que podem eleger seus governantes, porque se forem dominadas pelo rei de um país, terno de obedecer a esse rei, e será o fim da república.

Precisamos então compreender o que é que Maquiavel está querendo dizer quando sugere que o povo de Florença já está um pouco corrompido.

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A corrupção do povo

Um povo corrompido, para Maquiavel, é um povo que perdeu muito do seu entusiasmo pela cidade, e já não participa das questões políticas como deveria.

Quando a corrupção de um povo aumenta, isso é muito perigoso para a liberdade, porque a partir de um certo ponto, se a corrupção é muito grande, já não há mais retorno, e esse povo nunca mais será livre, cairá sempre nas mãos de tiranos que vão governá-lo como bem entenderem. Por isso é importante que o povo se mantenha "inflamado" e entusiasmado em defesa de sua pátria.

Um ponto interessante em Maquiavel é que para ele esse entusiasmo só se mantém se existe entre o povo uma constante discussão dos problemas políticos da pátria e se existe realmente a participação de todos apoiando ou criticando o governo (e de preferência com muitos conflitos e posições opostas, parra manter o calor dos debates e o "sangue quente" da multidão).

A filosofia política que Maquiavel inclusive é a primeira –– e talvez uma das raras –– a defender o tumulto político da população nas ruas como algo muito bom, como um sinal da participação ativa do povo e de que esse povo ainda não foi muito atingido pela corrupção, e pode conseguir manter a sua liberdade.

Por outro lado, Maquiavel afirma que o tumulto deve se dar sempre dentro de certos limites: os limites da lei –– que deve abrir espaço legalizado para o tumulto, porque para além de certa medida, que é a medida do direito, os tumultos podem vir a esfacelar o tecido social (Maquiavel não utiliza estas expressões, mas pode-se imaginar a partir dessa observação algo como uma sociedade à beira de um "desmantelamento" da sociedade, com seu "esvaziamento", as pessoas abandonando o Estado, o que o arruinaria economicamente e de muitas outras maneiras, ou algo mais violento como uma "guerra civil").

Mas se existe o perigo do excesso de "entusiasmo" político tumultuário, existe um perigo que Maquiavel parece considerar ainda mais grave: o da corrupção irreversível. Se um povo se corrompe (perde seu entusiasmo e interesse nas questões políticas e públicas) apenas até um certo ponto, ainda é possível reverter isso, e voltar a provocar-lhe o interesse. Mas se a corrupção atinge um nível muito profundo, ela como que se enraíza na cultura e não há mais como desenraizá-la: o povo então está corrompido definitivamente, e o único modo de corrigir isto seria desfazer o Estado e refundá-lo inteiramente do zero.

(Este tema da refundação de um Estado, que aparece nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, tem chamado a atenção de muitos estudiosos interessados no tema da "revolução", porque parece haver aí um esboço dessa ideia já presente em Maquiavel.

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A guinada de Maquiavel do republicanismo
para a defesa de uma monarquia italiana

Se as cidadezinhas republicanas italianas da época de Maquiavel, como ele observa, não conseguem se coligar para defenderem-se da ameaça crescente dos grandes países com exércitos poderosos que estão se formando ao redor em todas as partes da Europa, e são ricas o suficiente para atraírem a atenção desses inimigos, não há saída: a liberdade das repúblicas está condenada.

Em algum momento, alguma dessas monarquias (provavelmente a França, que já vem mostrando interesse), irá invadir a regino da Itália e dominar todas essas cidades colocando seus povos sob o domínio do rei estrangeiro.

Diante disto, segundo o raciocínio pessimista, mas realista, de Maquiavel, como o povo, nas suas atuais condições de corrupção, não está em condições de reagir, a única solução é conseguir um líder poderoso com força militar e virtú suficiente para manipular e dominar todas as forças políticas de todas as cidades italianas, unindo-as e formando um país.

Naturalmente, um tal líder estaria agindo como um tirano, e só poderia estar interessado em riqueza e poder. O estímulo que poderia levar alguém como, por exemplo, o Duque Valentino, a fazer isso, seria a ambição de tornar-se rei de um novo país, a Itália. Isso significaria perder a liberdade das repúblicas (que já está decadente), mas evitando o domínio de um tirano estrangeiro que só se interessaria em arrancar o que pudesse para os cofres de seu país de origem, e em corromper o povo para mantê-lo bem obediente.

Um nobre mercenário, um nômade sem país como o Duque Valentino ou algum outro do gênero, poderia tornar-se um tirano local, menos penoso para o povo do que um tirano estrangeiro –– e note-se, isto significaria um tirano que já não seria considerado sagrado, que já não seria rei por vontade de Deus, mas por sua própria capacidade humana como líder, por sua própria virtú.

Agora vejamos como a noção do grau de corrupção de um povo se ajusta aos conselhos de Maquiavel para os reis, no sentido de que tenham virtú para enfrentar os reveses da Fortuna: em O príncipe, Maquiavel ensina que o tirano deve saber adaptar sua aparência, oscilando entre bondade e crueldade de acordo conforme o necessário para lidar com as forças políticas sob seu domínio. Um tirano que pretendesse dominar povos acostumados à liberdade (e ainda não completamente corrompidos) como os das cidades italianas, teria que adaptar-se a isso.

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Cobrar pesados impostos para manter o exército mercenário maior que um país italiano exigiria, causaria um perigoso espírito de revolta contra o próprio tirano, em povos desse tipo. Além disso, durante o processo de unificação da Itália esse tirano precisaria atrair e seduzir a seu favor os diferentes governos republicanos, fazendo com que os eleitores se interessassem em apoiá-lo.

Isso significa que teria de fazer muitas alianças com os poderosos, que sempre podem traí-lo em favor de seus interesses privados se as forças estrangeiras oferecerem algo melhor. Para não ficar nas mãos deles, o tirano teria que romper no final essas alianças e colocar-se ao lado do povo. Por outro lado, corromper todo o povo não é algo que um homem sozinho no governo possa fazer fácil e rapidamente, então como dominar uma porção de pequenos povos acostumados à liberdade sem revoltá-los contra si?

Diante das ameaças crescentes de ataque estrangeiro, a melhor saída para esse novo rei italiano seria direcionar esse espírito de liberdade e de participação nos assuntos da pátria, que é típico dos povos italianos, para a guerra contra os inimigos externos, a fim de evitar que o povo se dirigisse contra o inimigo "interno" natural de toda a sua liberdade –– que é o próprio tirano.

A proposta de Maquiavel, revolucionária para a época, é que se forme um exército popular, que o tirano prepare soldados do povo armando-os e ensinando-os a lutar. Esse exército seria bem mais barato que um exército de nobres mercenários e bem mais seguro (pois mercenários podem mudar de lado a qualquer momento se o inimigo oferecer um pagamento maior), e além disso poderia compensar a pouca experiência militar com muito treinamento e com muito entusiasmo patriótico.

Um soldado mercenário talvez não se disponha a enfrentar certos perigos diante do risco de morrer e não poder mais aproveitar o pagamento pelo qual está lutando. Um soldado do povo movido pelo espírito patriótico, muito mais do que pelo salário como soldado, se tivesse o sangue devidamente fervendo em defesa de sua pátria, enfrenta qualquer coisa.

Mas para isso, o tirano precisa manter esse espírito patriótico do povo aceso, através da liberdade para o tumulto e para a agitação na rua em defesa de pontos de vista políticos diferentes, como os cidadãos de Florença ainda estão acostumados a fazer (pois sua corrupção ainda não chegou tão longe), o que significa manter acesa uma semente de liberdade republicana no fundo da tirania. Seria uma liberdade certamente manipulada e controlada pelo tirano, que se colocaria ele próprio como o principal promotor de toda essa mobilização política, e precisaria sempre de muita virtú para não permitir que essa agitação do povo se voltasse contra ele.

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Para antecipar as coisas, e pensando em tornar a situação mais propícia para que um futuro tirano da Itália aceitasse sua proposta ao invés de tentar corromper a liberdade do povo, Maquiavel propôs ao próprio governo republicano, antes do golpe dos Médici (e naturalmente sem esclarecer que sua preocupação era preparar o terreno para quando a república caísse), a formação de um exército popular.

Se um tirano, tentando unificar a Itália para tornar-se rei, encontrasse um exército como este já funcionando em uma das cidades, estaria a um passo de entender a idéia e implantá-la em toda a regino italiana. Mas para o governo republicano, a justificativa de Maquiavel era a possibilidade de se livrarem da dependência de mercenários, que muitas vezes já aviam se voltado contra os florentinos e saqueado a cidade, por acharem isso mais vantajoso do que o pagamento oferecido.

A proposta foi aceita e o próprio Maquiavel, em pessoa, se encarregou de formar e treinar esse exército em Florença, liderando-o em algumas pequenas batalhas. Infelizmente, Maquiavel não teve muitos bons resultados militares, então a proposta acabou sendo abandonada, e o exército popular de Florença sendo desfeito.

Perceba-se então que, por detrás da defesa de uma unino das cidades italianas sob a direção de um tirano, Maquiavel está querendo salvar uma semente da liberdade republicana que será abafada se essas cidades forem dominadas por um rei estrangeiro. Sob um tirano que mantivesse essa semente acesa, mais tarde, quando esse tirano caísse, haveria a possibilidade de um retorno da república.

Perceba-se, finalmente, que existem certos valores éticos orientando Maquiavel, apesar da imagem anti-ética que costumamos ter dele: Maquiavel é acima de tudo um patriota que ama a Itália, defendendo uma pátria muito maior do que a pequena cidade de Florença e que ainda nem mesmo existe, mas que ele quer ajudar a nascer, e que essa pátria, para Maquiavel, deveria ser livre, republicana - mas como isto seria impraticável diante das circunstâncias que ele observa em toda a Europa ao redor da Itália, procura meios para conseguir manter a semente da liberdade republicana (que está no sentimento patriótico da população) ainda viva sob a tirania que ele prevê que virá a qualquer momento.

Estamos agora aptos a compreender melhor o ensinamento de Maquiavel segundo o qual "os fins justificam os meios": não é qualquer finalidade ou objetivo político que se queira atingir que justifica os meios utilizados; o que Maquiavel está nos dizendo é que se os fins forem realmente bons e válidos (inclusive eticamente falando), então vale tudo para atingi-los. E o melhor de todos os fins, para ele, é a defesa da pátria livre, a unino dos povos italianos nas condições de maior liberdade que forem possíveis diante das circunstâncias –– que devem ser encaradas com muito realismo, e que infelizmente não são muito propícias, mas que não deixam de apresentar algum espaço para que os italianos tenham esperanças e lutem por isso, como o próprio Maquiavel procura lutar.

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As bases da teoria da História criada por Maquiavel

 

Os estudos de história de Maquiavel se concentram principalmente nos livros História de Florença e Discursos sobre a primeira década de Tito LívioEste último é o que Maquiavel considerava seu livro mais importante, e apesar de menos conhecido, ele o considerava um livro mais importante que seu famoso O príncipeChamava O príncipe carinhosamente de "meu livrinho" –– gostava de tê-lo escrito. Mas chamava os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio de "minha grande obra". Às vezes a palavra "Discursos" é traduzida como "Comentários", mas a tradução mais precisa seria mesmo "Dissertações" ou "Discursos". Os estudiosos de Maquiavel se acostumaram a tratar esta "grande obra" de Maquiavel de maneira simplificada pelo apelido de Discorsi. 

Tito Lívio foi um historiador romano que escreveu uma longa obra de história sobre o império de Roma, feita de vários volumes. A palavra "década" no livro de Maquiavel se refere aos primeiros 10 livros dessa grande obra de Tito Lívio.

Antes da era dos imperadores, o império romano teve uma organização republicana: era governado conjuntamente pelo senado, que representava os ricos patrícios, e o Tribunato da Plebe, que representava a imensa maioria, formada pela camada plebéia e pobre da população. Esses primeiros 10 livros de tito Lívio eram sobre essa fase republicana de Roma, e Maquiavel faz o exame deles para tentar compreender quais os erros cometidos por aquela república, e ensinar aos seus contemporâneos como evitar esses erros.

Um elemento de importância fundamental para entendermos tanto a teoria política quanto a teoria da História de Maquiavel, é a diferença entre o poder real e o poder apenas "de fachada", ou mera aparência de poder de quem não tem poder real. Segundo Maquiavel, aqueles que têm poder individual podem tê-lo realmente ou apenas "de fachada", nas aparências, neste caso sendo na verdade manipulados pelos aliados, que são quem tem o poder real e que se ocultam por detrás dessa fachada.

Outro elemento de importância fundamental é a diferença entre têm poder individual para alterar as coisas com suas ações e decisões, seja esse poder real ou aparente; e de outro lado os que simplesmente não têm poder como indivíduos, nem mesmo nas aparências, e só conseguem algum poder agindo coletivamente. 

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A teoria da História criada por Maquiavel parte do princípio de que em todos os tempos se observam alguns mesmos comportamentos repetidos de todos os homens, comportamentos em que eles se revelam falsos, ambiciosos e egoístas. E os que se comportam de outro modo acabam sendo manipulados e prejudicados pelos falsos, ambiciosos e egoístas. Os primeiros se tornam poderosos, e exercem esse poder sobre os segundos. é interessante notar que a capacidade de mentir e fingir, para Maquiavel, caracteriza uma condição de liberdade individual que a pessoa sincera e transparente não consegue manter, porque se torna volnerável para os que mentem e fingem.

Como os homens se comportam sempre do mesmo modo, as situações da história criadas por esses homens divididos sempre nesses dois grupos, são situações que também se repetem (não do mesmo exato modo, mas de modo parecido) –– e isso quer dizer que podemos aprender com a História, entendendo o que provocou certas situações indesejáveis para evitar que se repitam, ou entendendo o queprovocou as situações desejáveis para garantir que se repitam.

Além disso, como há sempre as mesmas duas forças opostas na sociedade: a dos que têm poder individual, e a dos que só têm poder coletivamente, agindo em conjunto (que podem ser chamados genericamente de "o povo") –– essas situações que se repetem são sempre de dois tipos gerais: situações  de concentração de poder (nas mãos dos que têm esse poder individualmente) e situações de dissolução desse poder concentrado, em que o povo se liberta da opressão dele.

Quem exerce poder exerce esse poder sempre sobre alguém. E o que quer é manter e aumentar esse poder (sobre os outros), concentrando ainda mais poder. Já quem não tem poder sofre esse exercício de poder de quem tem. E o que quer é livrar-se disso, viver a vida livremente.

A história de um povo sempre oscila entre essas duas situações: as situações de vitória dos poderosos sobre o povo, quando os poderosos concentram maior poder sobre ele; e as situações de maior liberdade do povo. E falamos aqui de poderosos de diferentes tipos de poder: poder político, econômico, militar ou de influência sobre as opiniões.

A história então é dirigida por duas forças opostas, e pende às vezes em favor de uma delas, às vezes em favor da outra. Pende em favor dos poderosos quando eles conseguem fingir bem e aumentar sua concentração de poder....

 

Como os poderosos fazem a história

 

...e pende para o lado do povo quando este consegue resistir bem à concentração do poder e impedi-la:

 

Quando o povo move a história

 

Como os que não têm poder e sofrem a ação dele (o povo) são a imensa maioria, coletivamente eles acabam constituindo, juntos, a maior de todas as forças em jogo nas relações políticas. Mesmo entre os poderosos (que também disputam o poder uns com os outros), aquele que consegue o apoio do povo é quem costuma sair vitorioso.

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A república, as instituições e as leis

 

Os Discorsi são diferentes de O príncipe não apenas por se concentrarem muito mais na questão histórica (enquanto O príncipe se concentra em política com uma atenção bem menor ao método de estudo histórico): além disso, os Discorsi são diferentes porque servem de aconselhamento político para os republicanos –– isto é, para os que querem dissolver a concentração de poder e aumentar a liberdade –– enquanto O príncipe  serve de aconselhamento para os monarquistas, que querem justamente concentrar o poder em suas mãos.

No esforço para ser cientificamente neutro no trato das questões políticas, mas ao mesmo tempo reconhecendo a dificuldade da neutralidade em política, pois a política sempre nos coloca em posicionamentos e faz da própria neutralidade um posicionamento em favor dos mais poderosos, Maquiavel decidiu não fugir das tomadas de posição, mas examinar as coisas considerando ao mesmo tempo os dois posicionamentos opostos que sempre aparecem no mundo político: o dos poderosos e o do povo, ou seja, o dos que queriam concentrar mais poder sobre os outros de poder e o dos que queriam se libertar desse poder. Para isto escreveu  O príncipe e os Discorsi, dois livros considerando a política a partir de posicionamentos opostos. 

Nos Discorsi ele não apenas coloca a história mais cuidadosamente a serviço de suas análises, mas além disso focaliza muito melhor o papel das instituições na política. 

 Em um estudo em que propõe um projeto de Constituição para a cidade-Estado de Florença, Maquiavel diz que as leis e as instituições políticas em geral (regulamentadas pelas leis) são uma forma de contenção dos abusos dos poderosos. Segundo ele, os poderosos estariam sempre tentando usar seu poder pessoal para passar por cima das leis e do funcionamento oficial das instituições, e saírem favorecidos ou beneficiados em detrimento dos outros em todas as coisas, aumentando ainda mais seu poder e sua opressão sobre o povo.

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A luta do povo é então uma luta pelo direito e por instituições republicanas, de defesa da liberdade e que sejam capazes de evitar ou conter a concentração do poder pessoal nas mãos de alguém.

 Nos Discorsi Maquiavel examina as instituições enquanto instrumentos de poder. E como vimos, o poder para ele está diretamente ligado à capacidade de fingir ou mentir, em oposição à transparência que torna as pessoas manipuláveis. Pois bem: as ações de fingimento e mentira podem se estender às insittuições, é possível mentir ou fingir através delas, através do modo como as criamos ou modificamos.

Isso é possível porque, do mesmo modo como um poder pode ser real ou apenas aparente ("de fachada"), uma instituição também pode ter poder de ação real ou apenas aparente, o que significa que pode ser uma instituição real ou pode ser apenas "de fachada", servindo como instrumento para a mentira.

Segundo Maquiavel é importante entender o uso político das instituições "de fachada". Esse uso está diretamente ligado às oscilações da política ora em favor dos monarquistas e oligarcas, e dos poderosos em geral, ora em favor dos republicanos e do povo. No conflito fundamental da política –– que é o conflito entre os poderosos e o povo –– cada vez que um dos lados avança muito radicalmente e tem muitos sucessos, isso tende a provocar o lado oposto a se organizar melhor e reagir também com força e radicalidade, fazendo todas as conquistas do outro lado retrocederem. 

Existe aqui uma lei de ação e reação em que todo radicalismo provoca uma força radical em sentido oposto. Por isso mesmo, segundo Maquiavel, o radicaliamo leva à instabilidade, e as conquistas feitas por movimentos muito radicais não duram muito, devido à reação, igualmente radical e em sentido oposto, dos adversários.

 

Oscilação entre a concentração e a distribuição de poder

 

 Diante disso, só parece ser possível manter as conquistas de duas maneiras: ou eliminando totalmente os adversários –– o que é quase sempre impossível –– ou moderando o posicionamento de modo a abrigá-los, cedendo algum espaço para eles de modo a se acomodarem sem reação.

 Mas existe uma terceira possibilidade: criar falsos espaços de acomodamento para os adversários, falsas instituições que defenderiam os interesses deles, mas que na verdade não funcionam na prártica –– são apenas instituições "de fachada", sem poder real. Com isso se consegue enganá-los por algum tempo e, durante esse tempo, manter as conquistas radicais obtidas.

Mas isso dificilmente pode durar muito. Os advesários logo aprenderão que não conseguem defender seus interesses com essas instituições, perceberão o engodo, e lutarão para tornar tais instituições reais, para dar a elas poderes reais –– e podem acabar conseguindo. Manter instituições "de fachada" é sempre um risco, porque podem acabar se tornando instituições com poder real.

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A luta em torno das instituições

 

 Resumindo: os poderosos tentam sempre agir passando por cima das leis e das instituições. Os republicanos e o povo procuram contê-los nos limites do direito e do funcionamento oficial e correto das instituições.

Mas nessa luta, cada um dos dois lados se utiliza de instituições de "fachada" para enganar o outro por algum tempo, e conseguir manter durante esse tempo suas conquistas mais radicais –– visto que quando se tem inimigos no mesmo Estado em que se vive e não é possível eliminá-los, não há saída senão conviver com eles, e só se pode conviver com eles adotando uma posição mais moderada que considerem aceitável, ou então enganando-os.

 Nessa luta, cada um dos lados tenta tirar o poder das instituições que protegem os interesses do outro lado, transformando-as em instituições de fachada, ao mesmo tempo que procura aumentar o poder daquelas instituições que protegem os seus próprios interesses, transformando-as eminstituições reais quando são instituições "de fachada".

 Os poderosos procuram além disso escapar do controle das instituições, apoiados em seu poder pessoal, enquanto os republicanos e o povo procuram controlá-los por meio das instituições e das leis.

Um exemplo digno de nota para examinarmos o modo como Maquiavel trata do assunto é o caso da democracia de Atenas, na Grécia antiga. Segundo Maquiavel, os republicanos (os democratas) foram suficientemente espertos para manterem um órgão político do tempo da monarquia, que agradava os aristocratas: o Areópago (uma câmara de representantes da nobreza para fazer julgamentos de casos de traição e para fazer projetos de lei).

Já que não era possível eliminar os aristocratas naquela sociedade, trataram de contê-los mantendo esse órgão político para a proteção dos interesses deles, mas transformando esse Areópago em um órgão "de fachada" para enganá-los. Pois na verdade tiraram a maior parte do poder do Areópago.

 Mas isso funcionaou por pouco tempo, porque os democratas de Atenas não dosaram direito o quanto precisavam ceder para os aristocratas. Aquele órgão político de fachada não foi suficiente: depois de um tempo os aristocratas perceberam que estavam sendo enganados e começaram aumentar o poder do Areópago, mas como não conseguiam, começaram a reagir contra a democracia.

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