Menchevismo

Menchevismo

Menchevismo

No partido que iniciou a Revolução Russa, chamado POSDR - Partido Operário Social Democrata Russo, havia duas facções adversárias, que representavam duas interpretações diferentes do pensamento de Karl Marx: os bolcheviques e os mencheviques.

Os mencheviques e seu principal lider, Julius Martov, queriam que o partido se abrisse a todo aquele que desejasse militar em favor da revolução. Lenin e os bolcheviques queriam que a revolução fosse liderada por um grupo especial no poder — uma solução claramente mais autoritária, e mais ao estilo de Marx.

Apesar disso, a posição de Martov e dos mencheviques era, até certo ponto, mais ortodoxamente marxista, isto é, seguia (ou procurava seguir) Marx mais ao pé da letra, com menos interpretação. Marx tinha um posicionamento etapista, isto é, defendia a existência de etapas históricas pelas quais era preciso passar para que a revolução comunista tivesse sucesso. E essas etapas históricas estavam ligadas a etapas de desenvolvimento econômico.

Para Marx, antes da revolução proletária era preciso passar por uma revolução burguesa e um processo de industrialização capitalista. O capitalismo produziria o capital que depois seria estatizado e transformado em benefícios sociais na revolução proletária. A própria revolução proletária só poderia surgir a partir do desenvolvimento do proletariado em tensão com a classe capitalista burguesa. A exploração desta última é que levaria à formação de uma classe proletária consciente, organizada e ativa.

Os mencheviques achavam que poderiam produzir essa etapa de desenvolvimento industrial capitalista sob controle de um partido revolucionário de perfil predominantemente proletário, e que desse modo poderiam ir conduzindo o capitalismo para o seu desfecho numa organização proletária e comunista, minimizando a exploração dos trabalhadores e sem precisarem do recurso à violência revolucionária e ao autoritarismo — portanto sem a famosa “ditadura do proletariado” (que apesar de famosa está longe de ser um ponto importante na teoria original de Marx).

A “ditadura do proletariado” — da qual Marx na verdade fala bem pouco, deixando o assunto vago, sem detalhes e sem esclarecimento — para Marx é mais do que qualquer coisa a previsão que ele faz de uma provável necessidade tática de autodefesa dos trabalhadores, durante o processo revolucionário. 
 Segundo Marx (leia-se o início do “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”), as revoluções burguesas são movidas por explosões de entusiasmo enquanto as revoluções proletárias vão caminhando lentamente com a correção de erros, movidas pelas necessidades que o proletariado sente, e que por causa do capitalismo não tem condições de satisfazer.

Marx acredita que a exploração capitalista só será superada quando os meios de produção de bens materiais — os mesmos bens capazes de suprir as necessidades dos trabalhadores — estiverem nas mãos dos trabalhadores. Mas acha que isso só é possível através do poder do Estado, que só o Estado teria forças para desapropriar esses meios de produção e socializá-los, pois as forças capitalistas são poderosas.

Por isso, Marx acha que os trabalhadores precisam se apossar do Estado, através de representantes eleitos. Se se serão eleitos pelos trabalhadores para chegarem ao Estado numa eleição democrática ou se serão eleitos para formarem um grupo revolucionário que irá tomar o poder à força, isso é um problema estratégico que depende da circunstância de cada país. A questão da “ditadura do proletariado” para Marx, é outra.

E é a seguinte: uma vez chegados ao poder oficial — por meios democráticos ou não — os representantes dos trabalhadores precisarão se manter no poder por todo o tempo necessário e suficiente para estabelecerem a revolução, isto é, para que tudo mude na vida da sociedade e toda exploração capitalista que sofrem desapareça de maneira definitiva, sem possibilidade de retrocesso. Para isso, será preciso evitar que se formem partidos que não estejam alinhados com a defesa do processo revolucionário de mudanças — e aí está a “ditadura do proletariado”: seria preciso impedir, proibir, caçar quaisquer partidos “anti-revolucionários”.

E Marx (assim como depois dele os bolcheviques) desconfiava bastante das divergências e da diversidade de posicionamentos dentro de um partido de trabalhadores. Portanto é possível imaginar que uma tal “ditarura do proletariado” também não permitiria nem mesmo outros partidos igualmente proletários que tivessem um projeto um pouco diferente. Mas Marx não chega a assumir claramente essa posição tão autoritária. Pelo contrário: assume uma posição internacionalista. Os partidos proletários ou de trabalhadores de todo o mundo, segundo ele, deveriam seguir as orientações de um órgão internacional de trabalhadores de todo o mundo, que fariam congressos para decidir estratégias.

Aqui temos um ponto controverso quanto ao autoritarismo ou não de Marx. Ele seguramente não era nacionalista, de modo que a tal “ditadura do proletariado” dentro de um país não seria realmente um centro de poder para ele. As decisões mais importantes viriam de fora, e não de outro país  e sim de um órgão internacional de trabalhadores unidos na luta contra a exploração capitalista (Marx, nunca é demais repetir, era internacionalista, anti-nacionalista). Mas quando surgiu uma organização internacional assim, participando com seu grupo de seguidores, Marx instaurou um forte e sujo jogo de poder dentro dessa organização lançando as pessoas e grupos ums contra os outros para conseguir tomar o controle de tudo. E quando seu grupo tomou o controle, passou a atuar de forma extremamente autoritária, instaurando perseguições e expulsões de todos os que não concordassem com ele.

Contudo no final da vida (quando essa organização internacional não existia mais) ele mudou de posição, defendendo uma organização de tipo mais federalista — com maior independência para os representantes dos trabalhadores de diferentes nações que participassem. Esse autoritarismo de Marx e essa mudança de posição no final da vida se devem às variações no seu modo de encarar a “classe trabalhadora”. Durante quase toda a vida Marx considerou que havia um conjunto de necessidades e traços característicos comuns a toda a classe trabalhadora do mundo, e que era preciso que os trabalhadores tomassem consciência dessas necessidades e de suas próprias características peculiares, sem se confundirem com a classe exploradora — por exemplo sem seguirem valores e interesses que na verdade são típicos da classe capitalista.

Marx achava que era preciso manter a classe trabalhadora unida em torno da luta pela satisfação de suas necessidades e interesses comuns. Mas seu melhor amigo, Engels, vivia com uma líder operária irlandesa chamada Mary Burns que sempre criticava Marx, dizendo que essa visão de um proletariado unido em torno dos mesmos interesses e necessidades era um delírio utópico e puramente teórico. Argumentava mostrando o quanto o operariado inglês desprezava e marginalizava o operariado imigrante irlandês — um dado de realidade observável na Inglaterra, e que se repetia sob outras formas envolvendo outras nacionalidades em outras partes do mundo.

Marx rejeitava as críticas de Mary Burns de maneira tão agressiva que houve ocasiões em que Engels teve que intervir com firmeza. Mas depois da morte dessa operária, Marx passou a refletir sobre as críticas dela — foi o que acabou levando-o a mudar de posição no final da vida quanto à forma de organização ideal para uma organização internacional de trabalhadores, passando a preferir algo mais descentralizado.

Podemos dizer que se os mencheviques tentavam ser marxistas ortodoxos e fieis ao “etapismo histórico” de Marx, proponto primeiro uma aliança com a burguesia capitalista para industrializar a Rússia dentro de um regime econômico capitalista, para só mais tarde (décadas depois) avançarem para a revolução comunista. Por outro lado esqueciam a razão pela qual Marx falava em “ditadura do proletariado”: é que não seria possível capitalismo sem exploração capitalista dos trabalhadores, e essa exploração levaria a uma polarização cada vez mais radical opondo de um lado os trabalhadores e de outro a classe capitalista.

De modo que se os trabalhadores conseguissem chegar ao poder do Estado, mesmo que por vias democráticas, os capitalistas continuariam fazendo de tudo para derrubá-los e promover o retrocesso, com a volta da exploração, organizando inclusive partidos políticos com essa finalidade. Se os mencheviques achavam que poderiam ter mais de 10 anos de aliança com os capitalistas para que depois eles abrissem mão pacificamente de seu capital, sem que fosse preciso impor nada pela força, Marx diria que estavam loucos. Mas Marx não estava vivo para dizer isso, e os mencheviques realmente achavam que o estavam seguindo ortodoxamente, ao pé da letra.

Já os bolcheviques deixavam de lado a sequência que Marx considerava necessária das etapas de desenvolvimento econômico ao longo da história — queriam fazer a revolução comunista imediatamente, num país que era quase todo agrário e quase nada industrializado. Marx achava que a revolução comunista nunca poderia ocorrer em um país assim. Ele também diria que os bolcheviques estavam loucos. Achava que a revolução comunista só poderia ocorrer em primeiro lugar no país mais industrializado do mundo: a Inglaterra.

Marx errou. A Inglaterra nunca se tornou comunista, os bolcheviques venceram os mencheviques, e a União Soviética, formada a partir da Rússia com outros países também agrários, foi a primeira a instaurar uma revolução que se dizia assumidamente comunista. Entretanto, uma revolução comunista operária num país quase todo agrário não poderia deixar de ser a revolução de uma minoria — mesmo essa minoria tendo o nome de “bolchevique” (que quer dizer “maioria”).

Já vimos que os mencheviques queriam seguir as etapas históricas previstas por Marx, mas não queriam a “ditadura do proletariado” — os mencheviques radicais e internacionalistas (e Trotsky também foi um deles no início) também não queriam —, e achavam que seria possível operar a industrialização pela força da burguesia capitalista por algumas décadas, mas de forma controlada para conseguir depois instaurar a revolução comunista. Achavam também que seria possível fazer esse processo com aliança dessa burguesia liberal capitalista, sem que ela se revoltasse para tentar manter sua riqueza e sem que fosse preciso usar  de violência contra ela.

Além dessas posições talvez ingênuas em alguns de seus pontos, a postura menchevique era por outro lado menos elitista que a bolchevique. Os mencheviques achavam que podiam atrair camponeses e operários iletrados e trabalhar em conjunto com eles  sem precisar de um grupo de elite mais preparado no comando.

Os mencheviques também defendiam uma abertura interna para divergências, aceitavam uma variedade maior de opiniões diferentes entre os próprios mencheviques, com mais debate aberto sobre posicionamentos possíveis. As discordâncias eram toleradas e até mesmo democraticamente encorajadas, desde que todos se mantivessem sempre de algum modo dentro do que os textos originais de Marx propunham. Os bolcheviques consideravam essa abertura para divergências um defeito.

Os mencheviques mais radicais e internacionalistas também defendiam essa mesma abertura entre eles, mas por outro lado recusavam qualquer postura mais moderada de aliança com a burguesia liberal capitalista, e suas posições às vezes pareciam contraditórias para os mencheviques mais moderados.

Para todos os mencheviques, radicais ou não, era importante ser fiel ao "Manifesto do Partido Comunista" de Marx, onde o capitalismo não é visto só como modelo antagonista do socialismo, mas também e principalmente como uma etapa a ser completada rumo ao socialismo, sendo que a Rússia czarista encontrava-se em um estágio de desenvolvimento considerado medieval. Já os camponeses eram vistos como uma categoria necessariamente conservadora, interessada em ter a propriedade privada de pequenos lotes de terra e, evidentemente, em ampliá-los depois — quando a proposta da revolução comunista era a de abolir a propriedade privada de meios de produção como as terras.

Os mencheviques moderados ofereciam menos espaço aos camponeses do que à burguesia, porque apesar de igualmente voltada para a propriedade privada dos meios de produção, pelo menos a burguesia tenderia a promover o desenvolvimento industrial necessário como etapa anterior à revolução comunista. Foi apesar disso que os mencheviques conseguiram tanta popularidade num país tão agrário — porque mesmo pensando na liderança da burguesia para as transformações, propunham um partido aberto à presença de todos, burgueses, camponeses e trabalhadores industriais. Mas não foi à toa que tiveram mais popularidade principalmente nas grandes cidades — mais industrializadas.

Já os mencheviques internacionalistas e mais radicais não davam tanto espaço nem à burguesia nem aos camponeses, e pensavam na força de uma união internacional do proletariado urbano como poder de controle da burguesia capitalista no processo de transição para o comunismo.

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